Organização do exército português (2) – Infantaria: o equipamento das companhias

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Além da organização em terços, a infantaria portuguesa também compreendia companhias independentes (soltas, como então se dizia). No exército profissional eram raras e normalmente de curta duração, acabando quase sempre absorvidas por um dos terços existentes. O mesmo sucedia entre a milícia de auxiliares. Já na milícia de ordenanças, a companhia era a estrutura básica de organização, pois os terços eram formados ad hoc, isto é, para uma operação ou uma campanha específica.

Em qualquer dos casos, a organização interna das companhias seguia o previsto no projecto de Ordenanças Militares de 1643 (já aqui referido), que por sua vez reflectia a prática existente nos exércitos português e espanhol. De um modo geral, a proporção entre os soldados atiradores equipados com mosquete (de mecha) ou arcabuz (também de mecha)  e os soldados armados de pique não se afastava muito do que o projecto de 1943 preconizava. Tudo dependia da escassez temporária de determinado tipo de armamento – sobretudo, das armas de fogo – mas, ainda assim, os desvios não eram muito significativos. Os registos de certidões de contas de armas existentes para o período 1647-1654 no Arquivo Histórico Militar mostram que havia, em média, equipamento ofensivo para 90 a 100 soldados por companhia, sendo que a proporção dos mosquetes oscilava entre os 33% (mínimo) e os 49,5% (máximo), a dos arcabuzes entre 20,2% e 32,5%, e a dos piques entre 30,3% e 34,5%.

As companhias da ordenança eram equipadas com arcabuzes e piques, numa proporção de 2 para 1. Mas era possível encontrar companhias totalmente equipadas com arcabuzes. Sendo o mosquete mais pesado do que o arcabuz (e também com maior alcance efectivo, e mais potente), esta arma de fogo era encaminhada preferencialmente para as companhias de tropas pagas.

O equipamento defensivo referido nos registos mostra que o uso de cossoletes compostos por peito e espaldar (ou espaldas, como se dizia na época) era uma raridade entre a infantaria. Só os oficiais e os piqueiros tinham direito a este tipo de protecção, mas as proporções são baixíssimas em relação ao armamento ofensivo existente em cada companhia. Os peitos e espaldares variam entre 0,4% (mínimo) e 7,6% (máximo), os morriões entre 0,4% e 8,3% (e este máximo só é atingido em 1647, sendo cada vez mais escassos nos anos posteriores), as rodelas (escudos redondos utilizados pelos capitães) entre 0,2% e 0,4% e as golas (gorgeiras) entre 0,1% e 0,3%. No caso das rodelas e das golas, o uso exclusivo destas pela oficialidade justifica o reduzido número encontrado nas listas, mas ainda assim eram muito raras. Os capitães podiam optar por combater com pique ou com espada e rodela, ou com mosquete ou arcabuz, se assim preferissem.

O abandono de qualquer protecção metálica para o corpo era uma tendência evidente na infantaria. O Conde da Ericeira refere que cerca de 3.000 cossoletes de infantaria foram adaptados para couraças da cavalaria em 1663, por já não serem usados pelos infantes [História de Portugal Restaurado, 1945-46, vol. IV, pg. 101]. Por outro lado, o uso de couras (coletes ou casacas de couro) pela infantaria dependia da capacidade de cada militar se abastecer – por exemplo, despindo os mortos, feridos e prisioneiros inimigos, principalmente os cavaleiros e os oficiais. Não existe qualquer referência a este tipo de protecção nos registos, pois não era fornecida aos militares por conta da fazenda real.

Outro material que era fornecido e que constava nos registos eram as forquilhas (apoio para os mosquetes), os frascos (polvorinhos) e as bândolas (bandoleira de onde pendiam frasquinhos de madeira contendo o cartucho com a bala e a pólvora necessária para um tiro; normalmente cada bandoleira tinha 12 frasquinhos, daí serem conhecidas em Inglaterra por “doze apóstolos”). Havia forquilhas para mais de metade dos mosquetes, na maior parte dos casos; os frascos chegavam para cerca de 2/3 dos atiradores (os restantes teriam de providenciar os seus próprios polvorinhos ou utilizar o de um camarada, provavelmente); já as bândolas eram mais raras, na maior parte dos casos nem a terça parte dos atiradores as usavam.

Cada companhia tinha uma bandeira e duas caixas de guerra (tambores), mas algumas companhias só dispunham de uma caixa de guerra.

Os vestidos de munição (casaca, camisa, calças e meias), bem como chapéus e sapatos, eram entregues aos soldados uma vez por ano, contra desconto no soldo. Era à vedoria geral do exército de cada província que cabia esta tarefa. As espadas também eram entregues aos soldados pela vedoria, não sendo contabilizadas nos registos das companhias.

A companhia era uma unidade administrativa, não uma unidade táctica. Devido à composição heterogénea das companhias, estas eram desarticuladas quando os terços formavam em esquadrão (formação táctica, também designada por batalhão). Este assunto será tratado em breve.

 Fotos do autor (não mostram forças portuguesas ou espanholas, mas sim tropas inglesas do New Model Army; todavia, o equipamento era muito semelhante em qualquer exército da época): em cima, em primeiro plano, soldados atiradores transportando ao ombro um tipo mais leve de mosquete, o qual dispensava forquilha;  note-se o polvorinho, as bandoleiras com os “doze apóstolos” e a variedade de mochilas (o termo era empregue na época para designar os sacos de lona usados a tiracolo) e bornais, bem como o modo de segurar a mecha (segundo soldado a contar da esquerda); em baixo, piqueiros em marcha, protegidos por cossoletes sem escarcelas e usando morriões; vê-se ainda um sargento com alabarda a fechar a coluna e, mais atrás, um oficial (provavelmente um capitão); ambos usam golas. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa (conflito contemporâneo da primeira década da Guerra da Restauração),  levada a cabo em Kellmarsh Hall em Agosto de 2007.

João Pascácio Cosmander e o assalto a Olivença (18 de Junho de 1648)

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Joannes Cieremans, mais conhecido em Portugal como João Pascácio Cosmander, nasceu em Hertogenbosh (Países Baixos) em 7 de Abril de 1602 e morreu em Olivença em 18 de Junho de 1648. Padre da Companhia de Jesus, notável matemático e engenheiro militar, fez parte do grupo de arquitectos e engenheiros estrangeiros contratados no início da Guerra da Restauração para fortificar as praças de guerra da fronteira e da orla marítima. A Cosmander se devem, entre outros trabalhos, o forte de Santa Luzia em Elvas, o de São Tiago em Sesimbra, a fortificação da praça de Juromenha e vários melhoramentos das defesas de Olivença.

Numa época em que as fidelidades mercenárias dependiam da boa recompensa em metal sonante pelos serviços prestados, de preferência dispensada com pontual regularidade (condição muito difícil de cumprir, dadas as dificuldades financeiras da Coroa), era natural que alguém com o talento e o saber de Cosmander fosse tentado pelo inimigo a trocar de campo. A ocasião – muito provavelmente premeditada e planeada pelos espanhóis, com recurso à espionagem – proporcionou-se em Outubro de 1647, quando o engenheiro regressava de uma das suas frequentes deslocações a Lisboa. Perto da Fonte dos Sapateiros, a cerca de duas léguas (10 Km) de Elvas, saiu-lhe ao caminho uma pequena força de cavalaria espanhola – apenas uma dezena de cavaleiros comandados por um alferes – que o levou prisioneiro e a um criado seu para Badajoz. Conduzido mais tarde a Madrid, à presença de Filipe IV, foi convidado a entrar ao serviço deste soberano, proposta que acabou por aceitar. A selar o novo compromisso de fidelidade, Cosmander traçou um plano para a conquista da praça de Olivença, que muito bem conhecia.

Na madrugada de 18 Junho de 1648, João Pascácio Cosmander intentou tomar de assalto o seu objectivo com uma força de 1.000 infantes e cavaleiros. A acção é referida em muitos documentos dispersos, mas a descrição mais colorida deve-se ao então soldado de cavalaria Mateus Rodrigues, que passo a transcrever, com a devida adaptação para português corrente:

“(…) Quando vinha já amanhecendo (…) já ele [Cosmander] estava à roda da vila, e para melhor dizer dentro dela, e a ordem e modo como entrou foi assim como os castelhanos iam passando por umas hortas que chamam da Rala, onde havia muitos hortelões, e assim como viram os castelhanos lhe não pareceram homens, senão porcos, e como as hortas estavam mui cheias de hortaliça naquele tempo, tomaram paus nas mãos para ir a botar os castelhanos fora dizendo «Valha o diabo! Quem trouxe aqui tanto porco, donde veio isto?». E os castelhanos mui calados, marchando para a vila, e averbando com a muralha se meteram dentro por escadas, e mais estando a muralha com suas sentinelas nossas, mas quando a nossa gente se começou a alvoroçar e a gritar «Armas! Armas!», já o inimigo estava [com] muita (…) da sua infantaria dentro da vila. E no Rossio de Santo António [já] estava um batalhão de 1.000 infantes formados (…), [que] por um buraco que na muralha estava (…) [tinha entrado] uma manga de castelhanos, todos aventureiros e gente escolhida. De modo que ainda estava toda a gente da vila na cama , e muitos (…) tinham por parvoíce o dizerem que estava o inimigo dentro da vila. Logo começaram a ir-se levantando todos muito depressa, uns mal calçados e mal vestidos, e a gente de cavalo acudindo, uns em sela, outros em osso, que havia uma notável confusão da vila em ver já o inimigo dentro sem lhe poderem valer (…). E a tudo isto o Cosmander andava lá fora da vila dando ordem para meter a sua cavalaria dentro (…), e foi buscar um petardo para ele mesmo lhe pôr fogo às portas, para que entrasse a sua cavalaria, e assim como o trouxe para junto da porta, já neste tempo a nossa trincheira tinha muita gente defendendo (…). De modo que tanto que Cosmander veio com o petardo para as portas, sem se lhe dar das balas que neste tempo choviam da muralha, e ele só, trazendo o petardo às portas sem se lhe dar de nada, e a sua cavalaria toda já à vista esperando que ele botasse as portas dentro para virem entrar, mas tanto que ele se veio arrimando às portas, começaram da muralha bradando todos «Eis ali Cosmander! Eis ali Cosmander!». Mas apenas (…) o nomearam, já ele estava estirado no chão com uma bala, que estava na trincheira um carpinteiro com uma espingarda nas mãos, (…) [que] assim como o viu, já o tinha aviado, ao qual carpinteiro fez El-Rei mercê.

Assim como o inimigo viu este homem morto, parece que se acabou o seu encantamento, que não houve mais castelhano que pegasse em arma senão tratar cada um de fugir mais. Os que estavam fora logo se retiraram a bom passo e os que estavam dentro levaram tal esfrega que não sabiam por onde se meterem. (…) O batalhão que estava já no terreiro de Santo António (…) [foi atacado e ficou] em breves horas em miserável estado, que como não tinham já outro remédio se metiam pelas casas e se escondiam por debaixo das camas (…). É certo que não escaparam nem 50 homens dele.”

Uma “esfrega”, é certo, mas como em outras partes das suas memórias, Mateus Rodrigues deixou-se levar pelo exagero dos números. Segundo a carta enviada no dia seguinte a D. João IV pelo governador das armas do Alentejo, Martim Afonso de Melo, foram apenas 300 os soldados inimigos que conseguiram entrar na praça, dos quais 154 foram mortos e 35 feridos e capturados, entre os quais 3 capitães. Quanto aos portugueses, sofreram menos de 20 baixas, mas entre estas contaram-se o mestre de campo D. António Ortiz, morto, e o governador militar da vila, D. João de Meneses, gravemente ferido.

Assim se finou João Pascácio Cosmander, com uma bala ajustada por um carpinteiro. Conforme referiu Mateus Rodrigues, e nisso é corroborado por outros documentos, o engenheiro jesuíta bateu-se até ao fim com bravura: tendo falhado o primeiro petardo que colocara na porta, Cosmander voltou atrás, indiferente ao perigo, de modo a colocar um segundo engenho, acção que lhe foi fatal. A interpretação nacionalista dos acontecimentos – não só a do típico nacionalismo restauracionista da época, como a do nacionalismo romântico dos séculos XIX e XX – estigmatizou João Pascácio Cosmander como um traidor que teve o fim merecido. Mas como refere Vítor Serrão, “as dramáticas vicissitudes da sua morte (…) não invalidam o grau de novidade construtiva das empresas militares que gizou e que profundamente alteraram em eficácia e em fisionomia o carácter das linhas defensivas portuguesas” (SERRÃO, Vítor, História da Arte em Portugal – O Barroco, Barcarena, Editorial Presença, 2003).

Bibliografia:

COELHO, P. M. Laranjo, Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV, vol. I, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940.

Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952 (1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 2), pgs. 179-185.

Gravura: Planta de Olivença, in La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII. Originalmente tinha incluído neste artigo um suposto retrato do Padre João Cosmander. Na verdade, não se tratava de Cosmander, mas de um outro padre jesuíta, o sueco Brott, conforme esclareceu o Dr. Edwin Paar no comentário 3 deste artigo.

Organização do exército português (1) – Infantaria: a estrutura dos terços

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A grande unidade administrativa para a infantaria era o terço, designação de origem espanhola (tercio) que remonta ao século XVI. Correspondia ao regimento, termo então em uso em vários exércitos da Europa central e do norte: agrupamento de várias companhias, cujo comando era atribuído a um coronel. Em Portugal, os termos regimento e coronel, na infantaria, só eram aplicados por tradição às unidades da ordenança de Lisboa. O terço era comandado por um mestre de campo, coadjuvado por um sargento mor, a quem competia a parte técnica.

1. A organização segundo a proposta das Ordenanças Militares de 1643 

Segundo o preconizado no projecto de Ordenanças Militares (regulamento – não confundir com a categoria militar das ordenanças) de 1643, cada terço devia constar de 1.500 homens, compondo-se de uma primeira plana (Estado-Maior, com o mestre de campo, o sargento-mor, dois ajudantes e um tambor mor) e de 12 companhias a 125 homens. Cada companhia, para além da respectiva primeira plana (capitão, alferes, abandeirado, capelão, dois sargentos, dois tambores e um pífaro), compreendia 40 piqueiros, 60 mosqueteiros e 25 arcabuzeiros, distribuídos por 5 esquadras, cada uma comandada por um cabo de esquadra. O mestre de campo comandava a primeira companhia, a qual não tinha, por isso, capitão – todavia, o comando efectivo era sempre delegado no alferes. No total, haveria num terço 480 piqueiros (32% do efectivo), 720 mosqueteiros (48%) e 300 arcabuzeiros (20%). Esta era a dotação preconizada pela proposta de regulamento de 1643 que, embora nunca tivesse passado do rascunho, reflectia a prática organizativa então vigente. Note-se que os efectivos globais apontados não contemplavam os elementos das primeiras planas. Contudo, entre o idealizado no papel e o que tomava forma no terreno existiam várias discrepâncias.

2. A organização segundo as listas existentes nas unidades

Uma das divergências mais evidentes  era no número de companhias, na verdade já fixadas em 10 por terço ainda antes da proposta de Ordenanças Militares ter sido elaborada. Ocasionalmente era possível encontrar terços com um número de companhias superior ao estipulado (12 e 13, por exemplo), em virtude da agregação de companhias soltas, mas os decretos do Conselho de Guerra são peremptórios na imposição do máximo de 10 companhias.

Segundo organizações detalhadas de 1645 e 1646, cada terço compreendia uma primeira plana com 8 elementos: mestre de campo, sargento-mor, dois ajudantes do número, um ajudante supranumerário, um tambor-mor, um cirurgião e um capelão (estes dois últimos elementos, porém, nem sempre estavam presentes, dada a falta de pessoas que servissem como cirurgiões e capelães militares). A primeira companhia (a do mestre de campo) tinha 5 elementos na primeira plana: um alferes, um sargento, um abandeirado (não se tratava de um oficial, mas de um pagem do alferes, cuja função era transportar a bandeira da companhia quando o alferes estivesse ocupado com outra tarefa – o seu estatuto e pagamento era inferior ao de um soldado) e dois tambores; as restantes 9 companhias tinham, cada uma, 7 elementos na primeira plana: os mesmos acima referidos, mais o capitão (comandante da unidade) e um pagem de gineta, que carregava o espontão (gineta) que era a insígnia do posto do capitão, quando este oficial estava ocupado nas funções de comando da companhia; ao contrário do abandeirado, o pagem de gineta recebia a mesma paga que um soldado. As 10 companhias do terço tinham 4 cabos de esquadra e 96 soldados cada. O total perfazia 76 elementos das primeiras planas do terço e das companhias, e no conjunto das companhias 40 cabos de esquadra e 960 soldados – 1.076 elementos no total de um terço. Não havia diferenças entre a estrutura interna de um terço de tropas pagas e um terço de auxiliares.

Esta era a organização efectiva, de acordo com as listas emanadas dos comandos provinciais. No entanto, podia haver ocasionalmente algumas diferenças entre províncias, sobretudo no número de indivíduos pertencentes à primeira plana dos terços. Ainda assim, estas listas destinavam-se ao cálculo das despesas para efeitos de pagamento das tropas, pelo que apenas faziam referência aos efectivos completos. A realidade que transparece de outras listas – as que eram elaboradas nas ocasiões das mostras, quando se contavam os efectivos reais, ou quando se fazia o levantamento do material de guerra existente – era muito menos uniforme. Mas aí estamos já a entrar numa outra esfera, a do atrito provocado pela guerra sobre a estrutura dos terços. Será um tema a tratar proximamente, quando passarmos em revista a composição e o material de guerra de que dispunha cada companhia, de acordo com os registos de certidões de armas de que cada oficial tinha de dar conta quando entrava e saía do comando da unidade. É que, se o terço era a grande unidade administrativa para a infantaria no que tocava a pagamentos, já para o material de guerra toda a administração se efectuava tendo por base a companhia. Tais documentos, ainda que parciais, permitem estabelecer, por exemplo, a relação entre os soldados munidos de armas de fogo e os que estavam equipados com piques por companhia.

Bibliografia de base para o estudo da organização da infantaria portuguesa e espanhola nos séculos XVI e XVII:

MATOS, Gastão de Melo de, Notícias do têrço da Armada Real (1618-1707), separata dos Anais do Club Militar Naval, Lisboa, Imprensa da Armada, 1932.

QUATREFAGES, René, Los Tercios, Madrid, Servicio de Publicaciones del Estado Mayor del Ejército, 1983.

 

Foto: Combate entre piqueiros – reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa; foto do autor.

Palcos de operações (1) – Ponte de Nossa Senhora da Ajuda ou de Olivença

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Ponte fortificada sobre o rio Guadiana, construída em 1510. Tinha 380 metros de comprimento e 5,5 metros de largura, com dezanove arcos e um torreão de três pisos a meio. Durante a Guerra da Restauração, a ponte de Nossa Senhora da Ajuda era conhecida simplesmente por ponte de Olivença, pois ligava esta vila à cidade de Elvas. A ponte foi definitivamente destruída pelo exército espanhol no século XVIII, durante a Guerra da Sucessão de Espanha, permanecendo até hoje no estado documentado pelas fotografias.

Facto que parece ter caído no esquecimento geral, uma parte da ponte já tinha sido derrubada durante a Guerra da Restauração, inutilizando deste modo e até ao final do conflito a via de comunicação mais curta entre a principal praça de guerra do Alentejo e a vila além-Guadiana. Nas suas memórias, o ex-soldado de cavalaria Mateus Rodrigues [Matheus Roiz] dedica um capítulo à operação da destruição da ponte, desenrolada em Setembro de 1645 (embora a data referida no manuscrito esteja errada – 1646):

“Como sempre se temeu que o inimigo viesse derrubar-nos a ponte de Olivença, que era muito necessária (…), ordenaram mandar fazer um forte em um outeiro que ficava da outra banda da ponte, donde o inimigo podia bater a ponte com a artilharia. (…) Em breves dias foi feito, mas logo disseram que não era seguro, em razão que era a área onde o formaram, e não ficava a muralha firme. (…) Mas estando feito, meteram-lhe 100 homens de guarnição, com um capitão muito valente. (…) Tanto que o inimigo viu o forte feito, logo (…) se determinou a vir arrasá-lo. (…) E preparado saiu à campanha com seu poder, que constou de 5.000 infantes e dois mil cavalos. (…)

A primeira coisa com que o inimigo investiu foi com o forte e logo lhe pôs bateria com artilharia. (…) E assim pelo decurso de nove ou dez dias lhe desfez a muralha, que podiam entrar carros e carretas dentro nele, e logo que o viu bem aberto (…) tratou então de o escalar. (…) O capitão que lá estava nunca se quis entregar, senão pelejar [até ao fim], que era um demónio, (…) era o Canastreiro de alcunha. De modo que o inimigo avançou duas e três vezes, matando-lhe os nossos de dentro muita gente. Mas como o capitão Canastreiro viu que não tinha já nenhum remédio (…), pediu então quartel. (…)

Assim como o inimigo teve feita a diligência do forte, tratou logo de pôr bateria à ponte, que do mesmo outeiro donde nos pôs bateria no forte, desse mesmo batia a ponte. (…) Mas não que a bateria derrubasse a ponte ou lhe fizesse dano, mas tinha [a ponte] uma mui grande torre no meio, que sempre tinha uma companhia de infantaria de guarnição, com um capitão natural de Olivença, por nome João Domingos, que bem mal se houve na tal ocasião, que se entregou antes que se visse em nenhum aperto. Finalmente o inimigo deu logo com a torre no chão, que era substância da ponte, porque pelejavam de umas varandas que a torre tinha em cima 50 homens, e como lhes faltou a torre, ficaram a peito descoberto e não tinham nenhum remédio. Como o capitão viu o pouco remédio que tinha, mandou logo aviso ao inimigo que se queria entregar (…). E assim como [o inimigo] esteve de posse [da ponte] tratou logo de a derrubar, para que nunca mais passassem por ela, e começando a querer derrubá-la com artilharia não lhe fazia nada, porque era tudo obra de cantaria mui forte (…). Contudo usou então de outro artifício mais cruel, que eram de minas, e começou a fazê-las em os pilares dos arcos, e como foram feitas estas coisas com barris de pólvora, e dando-lhe fogo deu com dois arcos inteiros e parte de outro na água. De maneira que ficou que não se podia passar de nenhum modo, nem nunca mais se consertou, nem se consertará, porque é necessário um poder [militar] grande para assistir [ou seja, proteger] ao conserto, que não se faz nem em 4 meses, por bem que trabalhem. E não há dúvida que fez muito grande falta assim a Olivença como a Elvas, que era uma grande conveniência e mui bizarra ponte, que tinha 400 ameias de cada banda, com aquela grande torre (…). E ficou o caminho daí por diante sempre por Juromenha, que se trazem duas léguas mais, que são de Elvas a Juromenha por Olivença (…) cinco léguas.

Mateus Rodrigues tinha razão: a ponte só seria reparada depois da Guerra da Restauração ter terminado. Mas em 1709 seria de novo arrasada e de um modo mais extenso do que o testemunhado pelo memorialista. E até aos nossos dias assim permanece.

Fotos do autor.

Bibliografia: Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952 (1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 2), pgs. 130-133. O excerto foi adaptado para português corrente.

Categorias militares do exército português

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O exército português reconstruído após o rompimento da monarquia dual em 1640 compreendia duas categorias militares:

a) Os militares pagos. Estando sujeitos a prestação de serviço militar todos os homens válidos do reino entre os 15 e os 60 anos, salvo isenção relacionada com a actividade profissional ou outra particular, eram recrutados como soldados pagos para o exército profissional os filhos segundos ou aqueles que não tivessem a seu cargo quaisquer dependentes. Inicialmente eram chamados apenas os homens solteiros, mas ainda na década de 40 começaram a ser admitidos os casados. As levas eram efectuadas de tempos a tempos, quase sempre por pessoas de categoria elevada na hierarquia sociomilitar, sendo os abusos e desrespeito pela legislação frequentes. Os soldados pagos começaram por servir por um período indeterminado (na prática, para sempre), mas a partir de 1654 ficou estabelecido que deviam servir continuamente durante 8 anos, findos os quais poderiam regressar a suas casas. Nos anos 40 e primeira metade da década de 50, entre os militares que constituíam as forças pagas contavam-se muitos veteranos das guerras no Império ultramarino português, com destaque para o Brasil, ou que haviam servido nas campanhas europeias integrados no exército espanhol ou no dos seus aliados do Sacro Império.

b) Os milicianos, categoria que compreendia a ordenança e os auxiliares. Esta segunda força miliciana foi constituída em 1646 para a infantaria e somente em 1650 para a cavalaria. Na ordenança eram obrigatoriamente alistados todos os homens válidos entre os 15 e os 60 anos que não fossem recrutáveis como soldados pagos, sendo organizados em companhias (uma ou mais companhias de infantaria por comarca, havendo também algumas de cavalaria). Parte da gente da ordenança passou a servir nos auxiliares quando esta força foi criada (um terço e uma companhia de cavalaria em cada comarca). Em teoria, apenas os milicianos  auxiliares deviam prestar serviço nas fronteiras de guerra, pois para isso tinham privilégios semelhantes aos dos soldados pagos. A partir de 1657 passaram a receber metade do soldo que se pagava áqueles, quando partiam em campanha. Todavia, não era raro encontrar unidades da ordenança empregues em guerra viva, mesmo depois de 1646 e até fora da província de origem. Havia ainda uma subcategoria da ordenança, a dos volantes, que era composta por gente escolhida e que se destinava a formar unidades itinerantes. Com o surgimento dos auxiliares, estas unidades tornaram-se mais raras.

 Foto: piqueiro português do início da guerra, armado com pique e protegido por couraça composta por peito, espaldar e escarcelas, além do característico morrião. Apenas uma pequena parte dos piqueiros usava este equipamento defensivo. Os restantes não tinham qualquer tipo de protecção para o corpo, sendo designados por piques secos. Figurino do Museu Militar de Elvas.

Introdução

Linhas de Elvas 

Este blogue é dedicado à História Militar do período da Guerra da Restauração, que também é designada, por vezes, como Guerra da Aclamação, a qual opôs Portugal a Espanha entre 1641 (ano do início das operações militares) e 1668 (ano da assinatura do Tratado de Paz entre os dois Estados vizinhos ibéricos). 

O conflito eclodiu devido à secessão de Portugal da (até então) monarquia dual, após a Revolução ocorrida em Lisboa em 1 de Dezembro de 1640. Na sequência dessa separação, o Duque de Bragança D. João, descendente de D. Manuel I, foi aclamado Rei, inaugurando a Dinastia de Bragança. Daí o termo Guerra da Aclamação (de D. João IV). Embora enfrentando desde o início muitas dificuldades no campo da diplomacia, face ao poderio internacional do Império Espanhol encabeçado por Filipe IV, da Dinastia de Habsburgo (mas também descendente de D. Manuel I), o reino de Portugal conseguiu readquirir a independência política – daí a outra designação para a guerra que se seguiu: da Restauração (da independência).

O longo conflito foi caracterizado pelas inúmeras escaramuças e acções de pequena guerra nas fronteiras, bem como vários cercos inconsequentes e poucas batalhas campais (Montijo, 1644; Linhas de Elvas, 1659; Ameixial, 1663; Castelo Rodrigo, 1664 – mais um recontro do que uma batalha campal, na verdade, mas a propaganda da época assim a recordou; Montes Claros, 1665). Numa fase inicial, entre 1641 e 1646, houve operações ofensivas por parte do exército português, desencadeadas sobretudo a partir da província do Alentejo – o principal teatro de operações durante toda a guerra. Depois, o objectivo estratégico passou a ser a contenção da ameaça militar do vizinho ibérico. Esta fase duraria até 1657. A partir daí, Filipe IV incrementou as incursões militares contra Portugal. A fase final da guerra seria caracterizada pelo crescimento dos efectivos militares envolvidos em operações e pelas campanhas e batalhas campais que acentuaram o desgaste financeiro de ambas as Coroas. As perdas e consequências a médio prazo revelar-se-iam mais negativas para a Espanha, cujo exército foi severamente batido em duas ocasiões: Ameixial e Montes Claros. A paz foi assinada em 1668: para além das dificuldades económicas e financeiras que afligiam os dois reinos inimigos, contribuíram para o definitivo ponto final no longo conflito as circunstâncias políticas internas (em Portugal, o afastamento de D. Afonso VI pelo seu irmão D. Pedro em 1667; em Espanha, a periclitante situação dinástica após a morte de Filipe IV em 1665) e as conveniências estratégicas das potências europeias, com destaque para a França e a Inglaterra.

Bibliografia:

COSTA, Fernando Dores, A Guerra da Restauração 1641-1668, Lisboa, Livros Horizonte, 2004. Uma reinterpretação do conflito que transcende a área da História Militar, muito útil como enquadramento.

ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, Porto, Livraria Civilização, 1945-46, 4 volumes. Reedição da obra de D. Luís de Meneses, 3º Conde de Ericeira, anotada e prefaciada por António Álvaro Dória. A 1ª edição deste clássico, em dois volumes, data de 1679-1698.

FREITAS, Jorge Penim de, O Combatente durante a Guerra da Restauração. Vivência e comportamentos dos militares ao serviço da Coroa portuguesa, Lisboa, Prefácio, 2007. Outra análise do conflito, no âmbito da História Militar, centrada no campo das mentalidades e cultura castrense.

 

Gravura: Batalha das Linhas de Elvas, 14 de Janeiro de 1659 (pormenor). Pintura do século XVII.