O combate de Cabeço de Vide, 23 de Abril de 1649 (3ª e última parte)

Originalmente, a data que surgia no título desta série de artigos era a de “22 de Abril”. Fora induzido em erro pelo texto de Mateus Rodrigues, mas ao reler um documento oficial (a carta do governador das armas Martim Afonso de Melo) pude verificar que o combate ocorreu, de facto, numa sexta-feira, 23 de Abril, dia de São Jorge. É ao combate e suas consequências que o texto de hoje é dedicado.

Em que consistiu o perder-se o inimigo foi o virmos a buscar para pelejar connosco. Que se se deixara estar como estava, tão forte, estava bem arriscado o não podermos romper, (…) e assim se averiguou que nisso consistiu, porque nunca quem buscou primeiro vai tão forte como o que está quedo. Finalmente, que assim como nós fomos chegando ao regato que estava ao pé do outeiro aonde estava o inimigo, vem-se abaixo com a vanguarda só a receber-nos e a pelejar connosco. Mas o famoso [tenente-general Tamericurt] fez logo alto com o seu batalhão, esperando que o inimigo o cometesse primeiro. Chegou o inimigo à nossa vanguarda com brava resolução (…), e logo deu primeiro uma notável carga de cravinas e pistolas, que não há dúvida que caíram alguns dos nossos com ela. E assim como a deu vem-se a eles à espada com uma fúria que parecia que levavam tudo de coalho, mas a nossa gente se deixou estar mui cerrados que parecia uma muralha, e mais já haviam caído muitos com a carga que o inimigo deu (…). Averbado (…) com a nossa vanguarda, já todos juntos, dando uns nos outros muita pancada, sem o inimigo poder nunca romper (…), que era o que determinava. Contudo, como eles viram que não puderam levar a vanguarda, fazendo-lhe as diligências possíveis, dão as costas outra vez para trás, mas apenas eles as tinham dado, já a nossa vanguarda lhe estava em cima com grande valor, matando e ferindo. E logo a nossa batalha e reserva, que até aquele tempo estavam vendo em que parava a nossa vanguarda, logo foram sempre nas suas costas, sempre formados, dando-lhe calor [ou seja, dando apoio]. E assim como o inimigo chegou ao cimo do outeiro aonde estava sua reserva, quis ali tornar a ter mão com a sua reserva (…). Ali em o outeiro houve mais pancadas que aonde o inimigo nos cometeu [primeiro], mas arrimou-se logo a nossa reserva toda, e com facilidade se determinou o inimigo a fugir (…).

Esta narrativa de um combate de cavalaria deixa bem claro quão importante era a resistência oferecida pela vanguarda que recebia o choque das tropas que a carregavam. Se se rompia essa primeira linha de batalhões, a perseguição podia levar a confusão às outras linhas (chamadas batalha e reserva). Por outro lado, se os atacantes não conseguiam romper a vanguarda inimiga e necessitavam de fazer meia-volta para se reagruparem à retaguarda, a perseguição de que seriam alvo poderia revelar-se fatal para a coesão das restantes forças. Foi isso que sucedeu às tropas comandadas por Juan Jacome Mazacan, neste combate perto de Cabeço de Vide.

(…) E tanto que ele se deliberou a fugir, então direi eu que não havia mãos a medir (…), antes que ele entrasse na coutada de Cabeço de Vide, que estava um quarto de légua de onde foi a bulha, (…) [já] os nossos iam tão enfrascados neles [que] não se podiam apartar deles, que não há gosto para um soldado como ir seguindo o inimigo que vai com a proa no vento, vendo por donde escapará.

Findo o combate com a fuga das forças de Mazacan, a população de Cabeço de Vide veio saudar os vencedores.

(…) Não ficou gente na vila, que todos saíram cá fora (…) e (…) nos davam grandes vivas e louvores e que nos não havia de faltar nada na vila aquela noite, e bem cumpriram sua palavra (…). Entrámos logo para dentro da vila de Cabeço de Vide com grandioso gosto e alegria de ver que nos dera Deus tão honrado dia, e o bem-aventurado São Jorge, que era em o seu dia, a quem o Conde Martim Afonso de Melo faz festa todos os anos por lhe dar aquela vitória. (…) Não sabia a gente de Cabeço de Vide que nos fizesse com tanto gosto como nos receberam aquela noite em suas casas, que não havia galinha que não matassem, nem tinham coisa boa que não nos dessem. De modo que toda a fazenda que o inimigo tinha junto, tudo ali ficou, e foram seus donos a buscar cada um o que lá tinha e não lhe faltou nada. E na verdade que ficavam aqueles lugares todos perdidos se o inimigo lhe levava aquela pilhagem.

No rescaldo do combate, segundo Mateus Rodrigues, foram capturados mais de 250 cavalos, mas os camponeses terão escondidos vários que encontraram pelos campos. As perdas da força incursora cifraram-se em mais de 50 mortos, entre os quais 3 capitães, e 260 prisioneiros. A cavalaria portuguesa sofreu menos de 30 mortos, mas 100 soldados ficaram feridos. A violência da refrega fica bem patente pelas baixas sofridas por ambos os lados, tendo em consideração que os efectivos seriam cerca de 600, do lado português, e cerca de 700, do lado espanhol. Entre os mortos do exército português contava-se o capitão Latouche, francês que servia o rei D. João IV desde 1641, dois tenentes e três alferes. Neste combate também ficou ferido o jovem capitão Dinis de Melo de Castro (uma bala em uma perna e todo o corpo por fora crivado um capotilho que levava sobre as armas), cuja brilhante carreira militar só terminaria no início do século XVIII, durante a Guerra da Sucessão de Espanha, já como Conde de Galveias.

(Citações do Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM: pgs. 159-162).

Imagem: Combate de cavalaria em frente de um moinho em chamas, Philips Wouwerman, Gemäldegalerie, Dresden.

O combate de Cabeço de Vide, 23 de Abril de 1649 (2ª parte) – a disposição táctica

Juan Jacome Mazacan (ou Mazacani, pois era napolitano de nascimento) era um militar bem conhecido dos portugueses. O soldado Mateus Rodrigues refere-se-lhe algumas vezes nas suas memórias. Comandava desde 1644 a guarnição de Zarza la Mayor, e embora o seu território de operações fosse habitualmente a fronteira que confinava com a Beira, entrou por vezes com a sua cavalaria pela raia alentejana. É nesta província que se encontra com a cavalaria portuguesa sob o comando do tenente-general francês Achim de Tamericurt em 23 de Abril de 1649, nas proximidades de Cabeço de Vide, não muito distante da vila de Fronteira.

Na continuação da narrativa, percorremos hoje a disposição táctica das forças, segundo o testemunho de Mateus Rodrigues.

(…) De modo que o dito Mazacan, assim como nos viu a todos, disse para a sua gente (…) senhores, soldados e capitanes, nos tenemos aqui mui buena pillaje de ganados, pero mejor es la que hemos de tener de aquesta que aca viene [em castelhano no original]. (…) E passando o nosso comissário [quer dizer, o tenente-general Tamericurt] pela vanguarda de toda a nossa cavalaria, dizendo aos capitães e mais soldados que não houve[sse] descomposição nem rumor, senão mui calados e cerrados e que fize[sse]mos todos como ele esperava de tão bizarros soldados como nós éramos [na época, a palavra bizarro era aplicada áquele que se distinguia pela sua valentia]; de maneira que se foi para a vanguarda pelejar (…), que iam cinco companhias na vanguarda, muito boas e [com] bons capitães, que era a companhia de um francês, por nome Latuie [Latouche], que o mataram ali, e a companhia do capitão João Homem Cardoso, e a companhia do comissário de Olivença, Duquesne, e a companhia do capitão Dinis de Melo [de Castro], que foi a primeira ocasião em que se achou depois de [promovido a] capitão de cavalaria e procedeu tão bizarramente como adiante direi, e assim mais a companhia do capitão João de Oliveira Delgado, e estas cinco companhias que na vanguarda iam teriam 200 cavalos (…) e as outras iam 4 na batalha e outras 4 na reserva, tudo mui composto e com ordem, na batalha ia o capitão Fernão de Mesquita [Pimentel] por cabo , e na reserva ia o capitão António Jacques de Paiva por cabo. De maneira que assim como o inimigo nos viu com determinação de pelejar, não fez mais que formar-se em (…) vanguarda e reserva, mas na vanguarda pôs todos os bons soldados e oficiais (…), e fê-lo mui grosso, que trazia na vanguarda perto de 400 cavalos, porque fazia conta que, em nos rompendo a vanguarda, que nos fizesse fugir, que logo a demais [cavalaria] havia de fazer o mesmo. Que não há dúvida que era uma ocasião daquelas [em] que é necessário haver bons cabos diante e bons soldados, que se uma vanguarda se rompe, ou sua ou nossa, é necessário muito auxílio de Deus e valor para terem bem mão, vendo fugir a sua vanguarda, e por isso o inimigo se fundava nestas circunstâncias (…). Aonde (…) se formou era um cabeço alto, e ao pé dele corria um ribeiro (…). E todo o gado, assim bois como ovelhas e cabras e porcos e muitas cavalgaduras, tudo isto estava junto, ao pé do inimigo, por onde havíamos de passar forçadamente [forçosamente]. E pelo meio de lá rompemos, e era tanto o fato de roupa que estava pelo chão, que eles haviam roubado pelos montes, que podiam carregar um navio, que todos os castelhanos (…) largaram [d]as garupas para pelejarem mais à sua vontade, e desembaraçados.

(Citações do Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM: pgs. 157-159).

Agradeço muito especialmente a colaboração do amigo e investigador de Zarza la Mayor, senhor Juan Antonio Caro del Corral, que tem disponibilizado muita informação sobre o período da Guerra da Restauração – e neste caso, a obra de Gervasio de Velo Y Nieto, Escaramuzas militares en la frontera carcereña con ocasión de las guerras por la independencia de Portugal, Madrid, 1952, de onde me foi possível recolher alguns dados sobre o percurso militar de Juan Jacome Mazacan.

Imagem: Mapa de Portugal, cerca de 1700 (detalhe da província do Alentejo). Note-se a pequena diferença do topónimo, que surge como Cabeça da Vide. Biblioteca Nacional, Cartografia, CC164P.

Imagens de Cabeço de Vide, da arquitectura de hoje e do passado (e da tranquila paisagem dos arredores) podem ser vistas aqui.

O combate de Cabeço de Vide, 23 de Abril de 1649 (1ª parte)

As narrativas de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz) sobre as operações militares em que participou são muito interessantes pelos detalhes que revela, ainda que escritas num português pouco correcto no estilo e na forma, mesmo pelos padrões do século XVII. Como as memórias foram passadas ao papel vários anos após os acontecimentos vividos, o autor comete, por vezes, erros de pormenor, principalmente quanto à datação dos eventos. É o caso da interessante narrativa que o ex-soldado de cavalaria produziu a respeito do combate de Cabeço de Vide, ocorrido em 23 de Abril de 1649 – mas que o memorialista situa no tempo dois anos e um dia antes. Uma carta de Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço, datada de 24 de Abril de 1649 (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Consultas, 1649, maço 9, nº 93) permite corrigir o erro de Mateus Rodrigues e corroborar, no essencial, o que se passou nesse recontro. Mas para os detalhes bélicos vistos a partir do chão (ou melhor, da sela do cavalo), nada melhor do que seguir o que a pena do combatente riscou no papel há mais de 350 anos.

Martim Afonso de Melo, governador das armas do Alentejo, teve conhecimento que o inimigo tinha tenção de fazer uma entrada às nossas partes de Cabeço de Vide e Crato e Fronteira e Monforte. (…) Mandou logo a Olivença uma ordem, que viessem das companhias que lá estavam três ou quatro para Vila Viçosa, e assim mais a que estava em Terena e a do Alandroal. (…) E logo o Conde Martim Afonso de Melo mandou para lá ao comissário, que então era Achim de Tamericurt [mais uma confusão do autor – o francês Tamericurt era já tenente-general, e foi acompanhado nessa missão pelo seu compatriota Pierre Maurice Duquesne, esse sim, comissário geral] para que assistisse com elas, para dali acudir a qualquer parte donde o inimigo entrasse.

Passaram 5 ou 6 dias sem que houvesse notícia da cavalaria espanhola, até que o Conde de São Lourenço recebeu a informação de que as forças inimigas se preparavam para acampar entre Assumar e Arronches e que eram compostas por 800 cavalos e 600 infantes, e que enviara mais 700 cavalos a pilhar várias localidades. Os portugueses tinham menos de 400 cavaleiros para se lhes oporem, entrando aqui em conta as companhias de Elvas (segundo o Conde de São Lourenço, pois Mateus Rodrigues refere que eram quase 600).

(…) Mas não foram todas senão oito [Elvas tinha então 12 companhias], as maiores e melhores. E logo saímos para fora da cidade a sol posto e (…) já fora, junto dos arcos da Moreira, (…) chamou [Martim Afonso de Melo] o meu tenente, que era homem de grande préstimo e valor, e lhe disse que havia de ir (…) a Vila Viçosa avisar [Tamericurt] (…) que montasse com elas [as 6 companhias que lá estavam] e fosse ter a Veiros [n]aquela noite. (…) Partiu-se o meu tenente em um cavalo que tinha, que era um assombro, o nome do tenente era Agostinho Ribeiro. (…) E quando nós juntámos todas as nossas companhias em Veiros (…), algumas delas eram mui pequenas, mas ainda tinham mui perto de 600 cavalos, porque havia algumas companhias grandes (…), a minha não levava mais de 24 cavalos e não levava capitão, que já D. João de Ataíde (…) se havia ausentado para Coimbra [na verdade, havia quase dois anos que isso sucedera; a companhia foi entregue posteriormente ao capitão Francisco Pacheco Mascarenhas], não ia senão o tenente e alferes.

O tenente general Tamericurt recebera ordens escritas do governador das armas para se opor à entrada do inimigo, e que peleje com ele, pois é crédito nosso, e não repare em que tenha mais cavalaria, que a não o fazer assim se haverá El-Rei por muito mal servido de vossa mercê e em mim me terá por inimigo. (…) Saímos de Veiros já quase manhã e nos fomos marchando na via de Cabeço de Vide, aonde era que o inimigo se dizia andar. E já tínhamos marchado duas léguas de Veiros pela estrada adiante sem em todos aqueles campos haver notícia alguma de inimigo, (…) que como aqueles campos estão ainda povoados de montes com lavradores, era de espantar não haver um aviso, estando o inimigo naquelas partes. E assim como [o tenente-general Tamericurt] viu a quietação da campanha, mandou chamar todos os furriéis das tropas para que fossem diante tomar alojamentos para as companhias e livranças de mantimentos para os cavalos e pão para os soldados.

Partindo para a missão que lhes tinha sido confiada, os 17 homens destacados (os furriéis, alguns soldados e um ajudante da cavalaria) em breve toparam 40 cavaleiros espanhóis que guardavam uma passagem num ribeiro. Esta pequena força retirou, sendo seguida pelos portugueses, a quem procuravam os espanhóis atrair a uma emboscada. Pouco tempo depois travou-se uma escaramuça, à qual foram acudindo mais tropas portuguesas. Entretanto, os batedores informaram Tamericurt que tinham descoberto o grosso da força inimiga, a cerca de meia légua de Cabeço de Vide, perto do local onde se escaramuçava.

O inimigo [estava] mui bem formado em três formas, que era vanguarda e batalha e reserva. (…) Ele via-se com mais cavalaria do que nós íamos, e além disso tinha uma notável presa de gados (…) que havia juntado em todos os campos daqueles lugares que ficavam destruídos para sempre, e também via o inimigo que era a primeira vez que vinha a fazer entrada com a cavalaria lá de cima da Beira, que vinha ali por cabo um comissário da Sarsa [Zarza la Mayor] que chamam Mazacan, que o mandou vir o governador de Badajoz de lá com o seu partido para fazer a dita entrada. (Citações do Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM: pgs. 153-157).

A entrada fora ordenada pelo Barão de Mollingen, o qual estava quase a ser substituído como mestre de campo general pelo Marquês de Mortara. Como era costume na fronteira, quando um cabo de guerra estava prestes a deixar o seu cargo, mandava fazer uma grande incursão de pilhagem “de despedida”, visando obter lucros consideráveis com a venda das presas. E assim nos aproximamos do combate, que será descrito nos próximos artigos.

Imagem: Cavalos arcabuzeiros em acção. Reconstituição histórica, Kellmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Ainda os dragões e as razões da sua descontinuidade no exército português

Para além dos motivos financeiros enunciados por Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço, para justificar a transformação da solitária companhia de dragões em cavalos arcabuzeiros na província do Alentejo, registe-se a opinião de D. Luís de Meneses, Conde de Ericeira, a respeito do mesmo assunto:

Mandou El-Rei dividir a cavalaria em tropas de Couraças, e Arcabuzeiros. Formaram-se algumas [na verdade, apenas uma, pois as outras não passaram do papel] de Dragões, que duraram pouco, avaliando-se o seu exercício em Alentejo por inútil, por haver naquela província poucos montes, e menos rios, e na campanha rasa ser mais arriscado que necessário o exercício dos Dragões.

(Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, Parte I, Tomo II, Lisboa, na Officina de Domingos Rodrigues, 1751, pg.161)

Imagem: “Soldados equipando-se”, pormenor de um quadro de Jacob Duck, Minneapolis Institute of Arts. O militar da direita apresta-se a colocar a bandoleira com os “doze apóstolos” dependurados (cada frasquinho tinha pólvora suficiente para um tiro de arcabuz ou mosquete), mas o uso de botas e esporas revela que é um dragão.

O uso de “uniformes” na cavalaria

Com toda a propriedade, devemos colocar entre aspas a palavra uniformes quando nos referimos à indumentária da cavalaria durante a Guerra da Restauração. Se, entre a infantaria, o uso de uniformes no sentido moderno da palavra começava a dar os primeiros passos, mais por iniciativa pessoal dos comandantes dos terços do que por institucionalização, já entre a cavalaria seria difícil levar a cabo a distinção de unidade para unidade com base no equipamento usado. Em primeiro lugar, porque o equipamento defensivo da cavalaria era muito semelhante em qualquer exército do ocidente europeu do período – coletes ou casacas de couro e couraças de aço. Em segundo lugar, porque a companhia continuava a ser a unidade administrativa básica nos exércitos português e espanhol e as preocupações imediatas que sobrecarregavam os capitães em termos financeiros tinham que ver com a manutenção das montadas e do material de guerra imprescindível aos combatentes. A aparência distinta da sua unidade em relação às demais era um luxo impensável para a esmagadora maioria dos comandantes de companhia.

Além disso, é questionável que o conceito actual de uniforme estivesse formado na época. O uso de casacas de cores idênticas no seio de uma unidade, distinguindo-a das outras do mesmo exército, se não constituía novidade (veja-se como exemplo o exército sueco de Gustavo Adolfo), era pouco frequente, e quase sempre encontrado na infantaria. É provável que a preocupação de um comandante como Roque da Costa Barreto em dotar a sua unidade com casacas de cores específicas relevasse mais da ideia de libré (cor tradicional usada pela criadagem de uma casa nobre), do que aquilo que a partir dos finais do século XVII seria tido como norma militar. Mesmo nos casos em que uma determinada cor predominava num exército, ao ponto de se tornar um símbolo de identificação do mesmo (o vermelho das casacas inglesas, introduzido a partir do New Model Army de Cromwell em 1645), os motivos originais da escolha eram económicos e de facilidade logística – por exemplo, o corante que produzia a tonalidade escura de vermelho era relativamente comum e barato, sendo adequado ao tingimento de uma quantidade considerável de tecido.

Apesar de tudo o que acima ficou escrito, é possível encontrar na cavalaria alguns exemplos de unidades que se notabilizaram, em dada altura, pelo uso de equipamento distinto das demais. A sua excepcionalidade é revelada pelos documentos que os referem. Nenhuma delas era composta por portugueses. Assim, a companhia da guarda do Conde de Schomberg, durante a campanha do Alentejo em 1663, usava casacas azuis sobre as armas de corpo (ou seja, sobre a couraça de peito e espaldar). Note-se que não era invulgar o uso de casacas de tecido sobre as armas de corpo. Dois anos mais tarde, na batalha de Montes Claros, a mesma guarda usava capas vermelhas com cruzes brancas. Menos certo é que a cavalaria inglesa usasse casacas vermelhas, como a sua infantaria, mas a hipótese não é de pôr de parte. Outra unidade distinta era a cavalaria da guarda de D. Juan de Áustria, que na batalha do Ameixial, em 1663, usava casacas amarelas. E um documento inglês relativo à batalha de Montes Claros refere o regimento de cavalaria do alemão Conde de Rabat (que pertencia ao exército espanhol comandado pelo Marquês de Caracena) uniformemente equipado com casacas de cor castanho-claro, embora a passagem possa significar que todos usavam apenas casacas de couro. São, todavia, momentos excepcionais em que unidades de cavalaria são referenciadas pela sua aparência peculiar.

Bibliografia:

A Anti-Catastrophe, Historia d’ElRei D. Affonso 6º de Portugal, publicada por Camilo Aureliano da Silva e Sousa, Porto, Tipographia da Rua Formosa, 1845.

“A Relation of the last summers Campagne in the Kingdome of Portugall, 1665”, anonymous (by an officer of an English Regiment of Horse), 23 June 1665, The National Archives, SP89/7, fl. 49.

Imagem: Pormenor de um quadro de Jacques Callot (da colecção do Museu de Versailles), onde dragões do exército francês (reinado de Luís XIII) ostentam capas vermelhas com cruzes brancas. Uma inspiração para a cavalaria do Conde de Schomberg que se bateu em Montes Claros? Todavia, a moda e o trajo eram já diferentes por altura da batalha de 1665, nas proximidades de Vila Viçosa.

Postos do exército português (9) – o capitão de cavalaria

De todos os postos militares, aquele que maior peso tinha no imaginário seiscentista era o de capitão de cavalos. Associado aos valores herdados da nobreza medieval, do capitão de cavalos se esperava, no mínimo, que servisse com a honradez que os ancestrais pergaminhos exigiam. E por isso, a ideia de que o posto devia ser confiado apenas a pessoas de nobre nascimento ainda prevaleceu nas mentes mais conservadoras de alguns, pelo menos nos anos iniciais do conflito. A realidade, todavia, encarregar-se-ia de demonstrar que era preciso muito mais do que uma ascendência fidalga para encabeçar uma companhia de cavalos. A evolução dos modos de fazer a guerra não se compadecia com alguns arcaísmos que teimavam em subsistir. Mas num aspecto o mundo material não desenganava a concepção imaginada das qualidades do posto: os capitães de cavalos eram responsáveis pelas suas companhias ao ponto de garantirem, do seu próprio bolso, a aquisição e manutenção das montadas. A Coroa nunca conseguiu cumprir pontualmente as suas obrigações com os soldos e outras despesas necessárias à manutenção das companhias de cavaria. Isto explica, em parte, o grau de autonomia dos capitães de cavalos e a não introdução do sistema de regimentos no exército português (aliás, também não o havia no exército espanhol).

Em Portugal, as companhias de cavalos do exército pago ou das milícias da ordenança, auxiliares, pilhantes ou moradores eram sempre comandadas por capitães. Exceptuavam-se as companhias dos oficiais superiores, que na prática estavam a cargo dos respectivos tenentes. Havia, no entanto, uma distinção entre os capitães de couraças e os capitães de cavalos arcabuzeiros. As disputas quanto à primazia de uns sobre outros foram motivo para quezílias e mal-entendidos. Só em 1651 ficou assente que os capitães de couraças seriam considerados superiores, na hierarquia militar, aos de cavalos arcabuzeiros, pois até essa data valia a antiguidade das cartas de patente de cada um, o que causava ressentimentos entre os capitães de couraças, cujas companhias eram mais prestigiadas.

Mas o que seria de esperar de um capitão de cavalos? Alguém que passou pelo posto sem grande experiência prévia, nem brilhantismo no desempenho, apesar de possuir a qualidade da nobreza associada à condução de uma companhia, deixou assim escrito no seu esboço de tratado:

O posto de capitão de cavalos, por ser de tanta autoridade e reputação em Espanha, foi sempre pretendido e requisitado de Príncipes e Senhores grandes, em que ainda ordinariamente e assim se devia sempre de prover, não deixando contudo de fora aos soldados de nome e de merecimentos, entendendo-se que na guerra o valor se iguala à melhor nobreza, que só por si não basta para fazer a um capitão perfeito sem ser acompanhada com alguma prática e experiência das armas (…).

Pelo que o capitão que não tiver de guerra muita experiência procurará trazer junto a si algum bom oficial ou soldado velho de suficiência, para que faça menos faltas ou lhe encubra algumas (…).

(…) Os capitães são todos livres administradores de suas companhias e provêem os cargos delas como lhes parece absolutamente, como é tenente, alferes e os outros todos, podendo-os dispor e despedir na mesma forma, dando conta ao general ou ao seu lugar-tenente em sua ausência, que devem deixar aos capitães em sua liberdade, por ser esta a sua preeminência.

Uma visão que reflecte uma noção mais assente na realidade da guerra no terreno. Foi D. João de Azevedo de Ataíde que assim escreveu, a páginas 34 até 37 do seu tratado de cavalaria, entre os anos de 1644 e 1647.

Imagem: Oficiais de cavalaria. Pormenor do painel de azulejos relativo ao último combate da Guerra da Restauração na fronteira de Trás-os-Montes. “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira.

Relação do saque e queima da vila de Membrio em 28 de Abril de 1644 (3ª e última parte)

Enquanto a força comandada pelo tenente de mestre de campo general Diogo Gomes de Figueiredo (pai) se preparava para iniciar o assalto a Membrio,

(…) O terço de Dom Nuno Mascarenhas (…) fez alto, formado em dois batalhões para aquela parte donde podia vir socorro inimigo, e os nossos batedores de cavalo bem ao largo do lugar por fora da cavalaria, para avisar se de Valença [Valencia de Alcántara], Ferreira [Herreruela], Carvajo [Carbajo] e outros lugares daqueles redores lhe vinha algum socorro.

É de notar a referência ao emprego, muito vulgar nas incursões, de uma força de cobertura e apoio, normalmente composta por um ou mais terços de infantaria e alguma cavalaria. A sua missão era aguardar, num determinado ponto afastado do objectivo, pelas unidades mais móveis que executavam o golpe de mão, evitando a intercepção destas por eventuais forças inimigas de reforço. Finda a acção de saque e pilhagem, a força pilhante incorporava-se com a de cobertura e apoio, regressando às suas praças de origem com o produto do saque. Este procedimento era posto em prática por ambos os exércitos beligerantes nas respectivas entradas em território inimigo. Mas prossigamos com a acção em Membrio:

Resistiram os nossos pelejando contra o inimigo fortificado na igreja mais de quatro horas, fazendo-lhe muito dano com a mosqueteria e granadas, e porque o principal intento era queimar o lugar depois de saqueado (…), brevemente ardeu de sorte que nenhuma casa ficou por abrasar, aproveitando-se do saque mais os moradores de nossas fronteiras do que os soldados, que nesta ocasião só se empregaram em pelejar, não largando nunca as armas da mão.

Vendo o tenente [de mestre de campo] general Diogo Gomes que tinha satisfeito com a ordem que levava, porque para o mais que a ocasião e o ânimo dos soldados lhe oferecia não levava instrumentos convenientes, e que os mesmos capitães, por falta deles, faziam torneiras [buracos por onde podiam disparar] nas paredes com as adagas e as espadas, e que as informações que se deram do lugar foram que não havia nele coisa forte, e que da igreja lhe matavam alguma gente, não podendo atalhar este dano por[que] as nossas granadas não eram de proveito por ser muita a distância, mandou pôr fogo às casas junto da igreja, para que com o fumo, ou não fôssemos vistos, ou se o inimigo saísse nós entrássemos com ele de companhia na sua fortificação. E reconhecendo tudo pessoalmente, ordenou aos capitães que retirasse a gente com estes intentos, o que se fez com muito vagar e boa ordem, e porque então com mais ousadia se descobria o inimigo, é provável que se lhe matou muita gente, assim o disse um prisioneiro (…).

Retirada toda a gente à parte donde havia desmontado a infantaria das cavalgaduras de albarda, juntamente cinco soldados mortos e dois artilheiros, catorze ou quinze feridos, entre os quais foi o capitão Inácio Pereira com três balázios, o ajudante António da Costa e três sargentos e os demais soldados, a que o padre Frei Simão de Lima acudia entre as balas a confessar e fazer curar com grande caridade e valor, e postos todos a cavalo por caminho mais breve se marchou para Castelo de Vide à vista de Valença, recolhendo a nossa cavalaria toda a sorte de gado que se achou por aqueles distritos, que foi muito, e fermoso.

O inimigo saiu de Valença com intento de impedir-nos o passo no rio de Sever, que por ali não é tão fragoso, e tendo disto notícia (…) [Diogo Gomes] se adiantou com 200 mosqueteiros e duas tropas de cavalos da vanguarda a ocupar primeiro aquele passo (…).

Passou a nossa gente o rio antes da noite, e (…) a sexta-feira de madrugada se entrou em Castelo de Vide, donde depois de se refrescarem os soldados e a cavalaria com pão e cevada que ali tinha Dom Nuno Mascarenhas, prevenido se partiu cada um a seu alojamento, entrando nesta cidade de Elvas ao sábado último de Abril passado (…).

Fonte: Rellação do saque e queima da Villa de Membrio em 28 de Abril deste prezente anno de 644 (AHM, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 2, nº 26).

Imagem: Cavalaria e infantaria do período da Guerra Civil Inglesa, contemporânea da Guerra da Restauração. Foto do autor. Kellmarsh Hall, 2007.

Ainda o assalto a Olivença e o padre Cosmander (18 de Junho de 1648)

No dia em que passam 360 anos sobre o assalto comandado pelo engenheiro militar João Pascácio Cosmander à praça de Olivença, nada melhor do que corrigir uma imprecisão. Veja-se o artigo e principalmente o comentário nº 3, feito pelo leitor Edwin Paar, a quem agradeço a correcção.

Relação do saque e queima da vila de Membrio em 28 de Abril de 1644 (2ª parte)

A força portuguesa comandada por Diogo Gomes de Figueiredo (pai) chegara a Portalegre e fazia os preparativos para a jornada até ao objectivo. Continuando a narrativa:

Chamados os homens práticos que havia[m] de guiar ao tenente [de mestre de campo] general (…) se resolveu que se não podia partir aquela mesma tarde, (…) porquanto se não podia ir amanhecer a Membrio pela distância do caminho, pela sua fragosidade, pelos ruins passos de dois rios que desembocam no Tejo, Sever e Alburrel, e pelo cansaço das cavalgaduras, que até então não haviam parado, nem comido, e que assim mais convinha partisse ao outro dia pelas nove horas, para ir ao lugar à quinta-feira ao amanhecer, tempo mais acomodado para semelhantes facções.

Marchou-se na hora sinalada a quarta-feira, por caminhos tão ásperos e estreitos que sempre iam soldados enfiados uns atrás outros. Fez-se alto de noite, depois de passar os rios, [a] duas léguas [c. 10 km] de Membrio até sair a lua, que foi pela meia-noite, em que houve tempo, ainda que breve, para refrescar a infantaria e cavalaria.

Daqui se começou a marchar com grande silêncio e boa ordem por não serem sentidos, e chegados ao romper da alva à vista do lugar de Membrio, ocupou a cavalaria os postos mais altos, rodeando, e detrás de umas árvores, a pouco mais de tiro de mosquete, se apeou a infantaria, e formada em troços de mosqueteiros, depois de reconhecidas as partes por onde se havia de investir o lugar, se repartiu a todos com grande brevidade as granadas, os fechos e as escadas que haviam de levar (…).

Separou o tenente [de mestre de campo] general 80 piques, que levava em um batalhão com suas guarnições, que todos pelo desejo que tinham de pelejar ficaram de má vontade, e logo adiante com quatro mangas de mosqueteiros (…) a bom passo se foi para o lugarejo debaixo de sua mosquetaria. Dividiu aos quatro capitães para quatro partes sinaladas, para que se investisse a praça, e detrás, em socorro destas mangas, ordenou outras quatro (…).

Com pouca resistência treparam as primeiras trincheiras até abarbarem de carreira com a igreja [para] onde o inimigo se retirou fugindo, e se fez forte, porquanto uma hora antes de se avistar o lugar foi a nossa gente sentida, ou já por se haverem adiantado uns cavalos holandeses a furtar o gado, ou já porque a gente solta de nosso país, que saiem à pilhagem, deram com uns lavradores, de que escapando algum, foi dar aviso à vila, e fez recolher com tempo a mais da gente e mulheres à igreja, que assim o disse (…) um castelhano que pouco antes se havia tomado, e que no lugar havia uma companhia de 80 homens pagos e mais de 300 que tomaram armas.

A narrativa terminará no próximo artigo.

Imagem: Tropa de Cavalaria. Quadro de Peter Snayers, c. 1640. Kunsthistorisches Museum, Viena.

Relação do saque e queima da vila de Membrio em 28 de Abril de 1644 (1ª parte)

A relação que hoje aqui trago não consta do rol de narrativas propagandísticas impressas, nomeadamente do levantamento coordenado por Martinho da Fonseca em 1927 (Elementos bibliográficos para a história das guerras chamadas da Restauração 1640-1668, separata de Arquivo de História e Bibliografia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1927). Dela existe uma cópia manuscrita no Arquivo Histórico Militar, feita provavelmente nos finais do século XIX. Não sendo muito diferente de outras narrativas apologéticas, esta tem um interesse acrescido pela informação detalhada acerca dos procedimentos tácticos numa incursão mista de cavalaria e infantaria (na versão de dragões improvisados).

A acção ocorreu depois da primeira incursão do governador das armas do Alentejo, Matias de Albuquerque (futuro Conde de Alegrete), à vila de Montijo, cerca de um mês antes da segunda incursão que culminaria na célebre batalha campal. Eis a relação dessa entrada, nas passagens mais significativas e numa escrita actualizada.

Depois de vir o senhor Matias de Albuquerque da jornada de Montijo em 20 de Abril passado, começou a dispor outra, para a qual elegeu por cabo a Diogo Gomes de Figueiredo, tenente de mestre de campo general deste exército [do Alentejo], que com 800 mosqueteiros montados de dois em dois, em quatrocentas bestas de albarda, e duzentos cavalos a empreendeu com particular disposição pela maneira seguinte.

Dos terços que aqui se acham nesta praça de Elvas escolheu oito companhias de infantaria, a 90 mosqueteiros e a dez piques cada uma, e foram os capitães Domingos Carneiro, Inácio Pereira de Aragão e Fulgêncio de Matos, do terço do mestre de campo João de Saldanha, e do terço de Luís da Silva os capitães João de [A]Morim, André de Araújo, Francisco Fernandes o Canastreiro [o mesmo que iria participar na defesa da ponte de Olivença, dois anos mais tarde] e Fernão de Mesquita, e do terço do Conde do Prado o capitão Cristóvão Pantoja; levou consigo para a distribuição das ordens o capitão Bernardim de Sequeira, ajudante de tenente [de mestre de campo general] e os ajudantes Francisco Manuel e António da Costa, aquele do terço de João de Saldanha, e este do terço de Luís da Silva, e todos estes oficiais levaram soldados de muito valor (…). A cargo de um gentil-homem de artilharia [posto de oficial artilheiro] iam doze artilheiros com cem granadas, cem fechos, seis escadas, quatro cargas de pólvora, quatro de corda e quatro de balas sortidas; acompanhou ao tenente [de mestre de campo] general o cirurgião-mor do terço da Armada, e o capelão-mor do terço de João de Saldanha, o padre Frei Simão de Lima, que para isso se lhe ofereceu, como também o fez o capitão reformado Amador Rodolfo.

Partiu desta cidade segunda-feira pela manhã, que se contavam 25 do passado [Abril] (…), e pelo caminho de Barbacena e de Assumar se foi dormir a Portalegre, que são oito léguas [c. de 40 km] desta cidade, e ao outro dia a Castelo de Vide, donde pelo ruim caminho chegou às três horas da tarde, ali deu umas ordens que levava do governador das armas ao mestre de campo Dom Nuno Mascarenhas [morreria na batalha de Montijo, um mês depois], que assiste naquela cidade com o seu terço, e outro ao capitão de cavalos João de Saldanha da Gama, que por mais antigo governava as companhias de cavalo que ali se achavam, como eram a de António de Saldanha, a de Fernando Pereira de Castro, e as Holandesas de Vagenheim, e outra de dragões da mesma nação, com mais uma companhia de cavalos da ordenança de Portalegre.

Achou aqui o tenente [de mestre de campo] general Diogo Gomes de Figueiredo segunda ordem do Senhor Matias [de Albuquerque] para que com o mestre de campo Dom Nuno e os capitães de cavalos, assentassem a parte aonde ele havia de ir fazer a facção, porquanto aquela para que o tenente [de mestre de campo] general trazia as primeiras ordens se havia alterado com segunda informação de Dom Nuno, (…) porque a primeira ordem era uma praça distante de Castelo de Vide 12 léguas [c. de 60 km], e os soldados não levavam mantimentos para gastar tantos dias, e assim se resolveu que a empresa fosse à vila de Membrio, 7 léguas [c. de 35 km] distante daquela praça.

Era esta vila de mais de 100 vizinhos [c. de 450 habitantes] e com fama de rica pelo trato que tinha das lãs, situada em um lhano, e quase toda de casas terreiras, estava cercada de trincheiras de terra e barro, e as mais das bocas das ruas com suas costaduras da mesma; tem no meio uma igreja com sua torre quadrada, alta e coroada de ameias, donde se descortinavam as mais das ruas, ou por suas bocas, ou por cima dos telhados das casas, por serem baixas, defronte da porta da igreja todo o terreno, adro à maneira de meia lua, com uma parede de altura de dois homens, e vinte pés afastada do adro outra parede a modo de barbacã, que testavam nas esquinas das ruas que iam para a igreja, pelo lado esquerdo dela havia um cercado, onde estava algum gado, e pela direita outro cercado a modo de cemitério, que tornejava a sacristia, tudo com suas torneiras, donde se disparava.

Está montado o cenário. Será continuada a narrativa na próxima entrada.

Nota: os tenentes de mestre de campo general eram considerados oficiais colaterais, que hoje diríamos de Estado-Maior, destinados a distribuir as ordens emanadas do mestre de campo general pelas unidades. Não deveriam comandar contingentes de tropas, excepto em circunstâncias muito extraordinárias. O prestígio de Diogo Gomes de Figueiredo e Bobadilha (pai – o seu filho homónimo também se celebrizou durante a guerra) foi motivo para uma dessas excepções.

Imagens: em cima, Membrio (grafado como Membrilho, forma que aparece por vezes na narrativa transcrita) no mapa de João Teixeira Albernaz, c. de 1650. Biblioteca Nacional, Iconografia, CC254A; em baixo, Membrio na actualidade. Reprodução de imagem obtida a partir do programa Google Earth.

O batalhão, formação táctica da cavalaria

Qualquer que fosse a doutrina táctica adoptada – e a que privilegiava o choque e o combate com espada era a dominante entre as cavalarias do exército português e espanhol, durante a Guerra da Restauração – a formação básica consistia no batalhão (termo de significado diferente e que não corresponde, por isso, à actual unidade composta por várias companhias). Por vezes era também designado por esquadrão, embora este termo fosse aplicado com mais propriedade às formações tácticas da infantaria.

Uma companhia podia bastar para formar um batalhão, ou seja, para se dispor no terreno formada a três fileiras de profundidade, à maneira sueca, ou a quatro ou mais, com uma frente de 20 elementos, por vezes até superior. Tudo dependia do número de efectivos e da disposição no terreno ordenada pelo comissário geral, tenente-general ou general que comandasse a força de cavalaria. Quando os efectivos de uma companhia não fossem suficientes, podiam ser reforçados com os de outra, de modo a dar consistência à formação. Em casos mais raros, mas documentados (como o da companhia do general da cavalaria Dinis de Melo de Castro em 1665), uma companhia numerosa, com mais de 100 efectivos, podia constituir dois batalhões.

Os soldados mais experientes e valorosos eram sempre escolhidos para as duas primeiras fileiras. A distância entre fileiras podia variar entre o comprimento de dois cavalos e um mínimo que quase compactava os animais das fileiras anteriores e posteriores (neste último caso, quando se tratava de receber imóvel e firme o choque provocado pela carga da cavalaria inimiga).

D. João de Mascarenhas, Conde de Sabugal, refere de sua lavra nos comentários à obra Maneio da Cavallaria (pgs. 15-15 v) que

(…) reparando na cavalaria com que nos defendemos, que sendo sempre menos que a de nossos inimigos, que não devemos fazer os corpos tão grossos, porque ficaremos diminutos na forma, sendo-o sempre na quantidade, e assim me parece que podemos regular os nossos batalhões ao número de 80 cavalos cada um, porque ainda que os dos castelhanos sejam mais (como eu vi este ano [1663]), contudo poucos passavam de 60, com que os nossos tiverem de menos na forma, terão de mais na resistência, e à forma da batalha sempre se pode acomodar a quantidade da cavalaria, e não será pior por mais unida, antes tenho para mim (segundo os nossos países) que será de mais fortaleza.

Os batalhões eram dispostos no terreno habitualmente em duas linhas, por vezes três, numa formação em xadrez. O intervalo lateral entre cada batalhão designava-se por claro. Serviam os claros para que um batalhão que viesse carregado pelo inimigo pudesse escapar e voltar a formar na retaguarda, ao mesmo tempo que a formação que o perseguia era contra-carregada por uma outra unidade da segunda linha.

Gravura: Modo de formar os batalhões numa disposição em xadrez – note-se que os intervalos entre batalhões (os claros) eram mais espaçosos do que o que aqui está representado. Desenho do autor.

Termos militares do século XVII (2) – a cavalaria

Arcabuzeiro a cavalo – Designação do militar que integrava uma companhia de cavalos arcabuzeiros. A designação remonta ao século XVI, mas durante a Guerra da Restauração o arcabuzeiro a cavalo estava armado de carabina (além de um par de pistolas e espada) e já não com o arcabuz de mecha do século anterior.

Banda – Faixa usada à cintura ou a tiracolo, cuja cor identificava o exército ao qual pertencia o militar.

Bandola – Correia de couro à qual se prendia a carabina.

Batalhão – Formação táctica de cavalaria, por vezes também designada por esquadrão, embora este termo se aplique com mais propriedade à infantaria. Num próximo artigo será desenvolvido este tema.

Bolsa – Coldre pendente do arção, no qual era transportada a pistola.

Carabina – Arma de fogo com fecho de pederneira usada pelos militares de cavalos arcabuzeiros (e também pelos de cavalos couraças, embora não fizesse parte da dotação regulamentar); variantes: clavina, cravina.

Cavalos – Designação genérica de qualquer militar ou unidade de cavalaria (soldado de cavalos, companhia de cavalos).

Cavalos arcabuzeirosTipo mais comum de cavalaria do exército português. Empregue no choque contra cavalaria inimiga e na escaramuça à distância com armas de fogo. Desempenhava tarefas de escolta, reconhecimento e rondas.

Cavalos couraçasTipo de cavalaria cujo emprego era reservado ao choque contra cavalaria inimiga.

“Cerra a eles!” – Ordem para a unidade se lançar a trote ou a galope contra o inimigo, iniciando o combate corpo-a-corpo. Equivalente à ordem “À carga!” de épocas posteriores.

Claro – Espaço deixado livre entre dois batalhões dispostos lado a lado.

Colete – O mesmo que coura. Peça básica de equipamento defensivo. Confeccionado em pele de anta ou de vaca, protegia o tronco e as coxas. Havia versões com mangas compridas, tornando-se assim numa casaca de couro. Também eram usados coletes e casacas em tela.

Companhia – Unidade administrativa básica na cavalaria.

Couraça – Peça de equipamento defensivo composto de peito e espalda (espaldar) de aço. No plural, designava uma companhia de cavalos couraças.

“Dar carga!” – Ordem para a unidade abrir fogo sobre o inimigo. Equivalente à ordem “Fogo!” de épocas posteriores.

Manopla – Peça de equipamento defensivo, em aço, que protegia a mão e o antebraço do cavaleiro.

Pilhante – Combatente miliciano de cavalaria pertencente a uma companhia formada voluntariamente por moradores de uma determinada localidade, para protecção dos seus gados e propriedades e para levar a cabo incursões de pilhagem em território inimigo (daí o nome). As companhias podiam ser designadas por pilhantes, de moradores ou amunicionadas.

Regimento – Unidade composta por diversas companhias. Inexistente no exército português, só se encontrava entre a cavalaria estrangeira. Era comandado por um coronel ou tenente-coronel.

Troço – Agrupamento de diversas companhias, normalmente comandado por um comissário geral.

Tropa -Termo genérico para qualquer força de cavalaria, mas frequentemente usado para referir uma companhia.

Imagem: Cavalaria do período da Guerra Civil Inglesa, semelhante à da Guerra da Restauração. O equipamento defensivo (apenas casacas de couro, excepto um elemento que usa uma couraça) é característico dos cavalos arcabuzeiros, mesmo se os cavaleiros retratados não apresentam armas de fogo (situação que era muito vulgar, também, na Guerra da Restauração). Foto do autor, Kellmarsh Hall, 2007.

Palcos de operações (4) – Ameixial, 8 de Junho de 1663

Visão do campo de batalha do Ameixial a partir da posição do flanco direito da infantaria espanhola, sobre a planície onde se enfrentaram as cavalarias dos dois exércitos. Foto do autor.

Uma entrada nos campos de Brozas – Dezembro de 1652 (2ª parte)

Continuemos a narrativa de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), que deixámos com o resto da força incursora já em território espanhol, na zona de Albuquerque, nos cabeços denominados As Duas Hermanas.

Assim como chegámos começaram logo de ir acomodando tudo mui bem para que ficasse bem formado de noite; e logo mandaram muitas partidas ao largo, a vigiar a campanha, e a tudo isto fazendo o mais notável frio e água que nunca fez, e o pior de tudo que nunca o mestre de campo general quis deixar fazer fogo a ninguém, para que o inimigo não soubesse aonde ele estava, nem lhe visse o poder que levava. (…) [O inimigo] veio aquela mesma noite com 100 cavalos por uma estrada que vem de Badajoz para Albuquerque para ver o nosso poder e onde estávamos; mas nunca o pôde saber, porquanto por donde ele vinha estava um tenente nosso, muito grande soldado, por nome Francisco de Matos, o Coxo, com 40 cavalos todos escolhidos das tropas, e tendo as sentinelas postos mui ao largo na estrada e fora dela.

Dado o alarme, foi alertado D. João da Costa, que enviou reforços ao tenente Francisco de Matos. No entanto, a força de cavalaria espanhola não atacou, nem houve mais incómodos durante aquela noite. Mas o governador de Badajoz fôra posto a par da incursão, desconhecendo todavia a real dimensão da força portuguesa. Mandou buscar reforços de cavalaria a todas as guarnições da região, pensando que seria o bastante para enfrentar o inimigo, sem saber que havia terços de infantaria entre os invasores.

Assim como amanheceu, logo Dom João da Costa se começou [a] aparelhar para marchar, para ir esperar as tropas que tinham ido a Brozas, porque já lhe parecia que faziam mais dilação [ou seja, demora] do que eles tinham lançado conta, e assim que pondo-se em marcha para as ir esperar quando logo vem um aviso de que vinham já as tropas. Folgou muito Dom João da Costa, porque lhe davam elas grande cuidado, e assim que as viu as mandou logo incorporar connosco, porque não traziam pilhagem de consideração, porquanto foram sentidos na entrada e não acharam que trazer mais que 200 bois e 1.000 carneiros.

Incorporadas as forças regressadas da expedição a Brozas e iniciada a marcha, chegou a notícia de que o inimigo ia aparecendo á vista com muita cavalaria, mas sem infantaria. Logo D. João da Costa tratou de formar em batalha o seu pequeno exército – nesta época ainda não se praticava a marcha de costado, ou seja, as forças marchando em formação de batalha, a qual, embora fosse conhecida em teoria pelos portugueses, só após 1661 foi utilizada, graças ao Conde de Schomberg. Ofereceu-se o capitão francês Stéphane Boule de Rosières para dispor as forças em formação de batalha, o que foi aceite por D. João da Costa, conhecedor da grande experiência na matéria por parte daquele oficial (promovido a comissário geral, Rosières morreria no ano seguinte ao desta incursão, em consequência de ferimentos recebidos no combate de Arronches). Não demorou muito para que ficasse o exército pronto para a peleja.

(…) Quando neste meio tempo vem o inimigo apresentar-se por cima de uns outeiros com tanta cavalaria que a todos nós pôs certeza de haver choque (…); e assim que logo começaram muitos a buscar confessor para se confessarem, e o nosso general da cavalaria André de Albuquerque se vestiu de suas couraças, com suas plumagens brancas na viseira do murrião mui bizarro, fazendo grandes práticas [ou seja, discursos] aos capitães e soldados, que todos cuidavam que não passasse o dia sem choque.

O combate acabaria por não se dar. A força de cavalaria espanhola contava 1.800 efectivos, mas o seu comandante, verificando que o total da sua força era muito inferior aos 1.400 cavalos e 3.000 infantes dos portugueses, optou por retirar-se. Apenas aconteceu uma escaramuça entre companhias que faziam o reconhecimento de ambos os lados, na qual entre 20 a 30 cavaleiros espanhóis foram capturados. Curiosa é a observação de Mateus Rodrigues a respeito do general da cavalaria inimiga, que não nomeia, mas que

(…) os soldados castelhanos bem o diziam, enquanto ele serviu, que su general de la cavalaria era bueno para fraile, mas para soldado no, pues no queria pelejar nunca jamás [em castelhano no original].

Quanto ao saldo da incursão, depois de três dias de muita chuva e muito frio, só 200 bois foram pilhados, e esses acabaram por ser repartidos entre os generais, mestres de campo e capitães de cavalos. Mateus Rodrigues não esconde o seu desapontamento a este respeito. Ficaram a perder os soldados… e as populações às quais o gado fora roubado.

Bibliografia: Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952, pgs. 314-318.

Imagem: “O alto dos cavaleiros numa floresta”, Peter Snayers, década de 1650, Museu Hermitage, S. Petersburgo. Note-se a cena de pilhagem, à direita – uma constante da passagem de militares por qualquer zona povoada, mesmo que minimamente o fosse.

Uma entrada nos campos de Brozas – Dezembro de 1652 (1ª parte)

Num cenário mais a jusante do que foi descrito no artigo imediatamente anterior ocorreu a incursão que a seguir é narrada. Os campos de Brozas foram o alvo da rapinagem perpetrada pelas forças portuguesas. Desta feita, a propaganda coeva dá lugar à palavra escrita pela pena de um combatente, o soldado Matheus Roiz (Mateus Rodrigues), em cujo testemunho se baseia a descrição da operação – corresponde ao capítulo 49 da versão transcrita, pertencente ao acervo do Arquivo Histórico Militar e já aqui referida.

Os campos de Brozas ficam já no distrito da província da raia da parte de Cidade Rodrigo e A Sarça [La Zarza], onde está um comissário do inimigo por nome Mazacan, que tem o seu regimento 700 cavalos, e como estes campos de Brozas são terras aonde o inimigo traz sempre muita quantidade de gados, quis o nosso mestre de campo general e governador das armas [do Alentejo] Dom João da Costa ver se por esta via podia armar ao inimigo a que lhe saísse, de modo a que pelejasse com ele.

Observe-se a semelhança de propósitos entre os chefes militares de ambos os lados, confrontando com o que foi descrito no artigo anterior. Era a constante da pequena guerra, causadora de desgaste para as forças militares, mas principalmente para as desgraçadas populações raianas. Era também um modo de assegurar alguns recursos para os combatentes, uma vez que os soldos eram escassos no provimento.

E assim se determinou a mandar aos ditos campos 10 ou 12 tropas de cavalo, porque tinham boa entrada pela parte de Campo Maior indo por Albuquerque, de modo que não fossem sentidas (…). Dois dias antes que Dom João da Costa o fosse aguardar, entrou [o capitão] João da Silva [de Sousa] ao longo de Albuquerque uma légua, mas não foi sentido, que nisso constava sua segurança.

Agora atentemos na disposição táctica da força mista de cavalaria e infantaria em marcha:

Assim como lhe pareceu a Dom João da Costa que eram horas de sair [de noite], marchou com os três terços de Elvas e com toda a mais cavalaria. (…) [Levou] toda a cavalaria de vanguarda e uma companhia muito mais avançada diante, que ia descobrindo a campanha, e levava batedores por todas as partes e a companhia que então ia diante era a minha, e o capitão dela Francisco Pacheco Mascarenhas, (…) levava o meu capitão dois batedores de cada lado, avançados da tropa um tiro de cravina [carabina], e um pela estrada adiante, (…) [que] era eu.

Na noite de claro luar, a cavalaria passou um curso de água conhecido por ribeiro do Judeu, que ficava no meio do caminho para Campo Maior, mas teve de deter-se para dar tempo a que a infantaria atravessasse o ribeiro, o que levou muito tempo. Enquanto se estava neste impasse e o grosso da cavalaria aproveitava para desmontar e descansar os animais, o batedor Mateus Rodrigues vigiava uma vereda que era habitual ponto de passagem de tropas espanholas quando faziam as suas incursões. Foi então que

(…) eu vi vir uma partida de seis ou 7 cavalos, uns atrás dos outros, pela mesma vereda; (…) não podiam ser dos nossos, que os [nossos] batedores eram menos e além disso iam já adiante, e tanto que os vi levanto o cão da pistola, que a tinha na mão, (…) e perguntando-lhe[s] quem vive duas ou três vezes (…) me não responderam nada senão avançar a mim à rédea solta, ao que eu logo toquei arma [ou seja, disparou um tiro de aviso] com a pistola.

Toda a cavalaria portuguesa entrou em alvoroço e o que se passou a seguir foi confuso. Mateus Rodrigues fugiu para junto da sua companhia. Procuraram os supostos inimigos, mas não toparam ninguém, pelo que Mateus Rodrigues foi acusado pelos camaradas de ter confundido tropas portuguesas com castelhanos. O memorialista manteve-se firme na afirmação de que avistara um grupo de 6 ou 7 cavaleiros inimigos, e segundo escreve, no decurso da operação os factos demonstraram que tinha tido razão. Encerremos por ora esta primeira parte com a narração da aproximação e entrada em território hostil:

Fomos marchando até Campo Maior aonde já os dois terços nos estavam aguardando cá fora no rossio; e assim como chegámos logo nos pusémos em marcha, (…) e quando o sol saía já nós íamos passando a ribeira de Xévora; fomos marchando pela campanha à vista de Albuquerque, que era aonde nós íamos fazer a espera da nossa gente que ia a Brozas, e assim quando era a tarde com duas horas de sol já tínhamos chegado ao posto que chamam ali As Duas Hermanas, porque são dois cabeços mui altos que estão um à vista do outro e por isso lhe puseram tal nome.

Bibliografia: Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952, pgs. 310-313.

Imagens:

Em cima, zona dos campos de Brozas na actualidade (a amarelo, a linha de fronteira); reprodução de imagem obtida a partir do programa Google Earth.

Em baixo, “Combate sobre uma ponte”, água-forte do pintor flamengo Peter Snayers (1592-c. 1667), Courtauld Institute of Arts, Londres.

Escaramuças raianas – Extremadura (partido de Alcántara), 6 de Março de 1652

Com a colaboração do senhor Juan Antonio Caro del Corral, serão apresentadas aqui algumas narrativas de operações militares desenroladas de um e outro lado da raia, na zona entre a Extremadura espanhola (partido de Alcántara) e a província da Beira. Sobre as características destas operações e a maneira como eram apresentadas nas Relações publicadas por ambos os contendores já fiz referência noutro artigo. O que hoje vos deixo tem a particularidade de ser respigado de uma Relação (ou melhor, Relación) dada à estampa do lado espanhol, pois refere uma vitória das armas de Filipe IV. O Conde da Ericeira também escreve, de passagem, sobre este insucesso português na sua História de Portugal Restaurado.
D. Francisco Totavila, Duque de San Germán, mestre de campo general e governador das armas da Extremadura, fora avisado das frequentes entradas feitas a partir da província da Beira, partido de Penamacor (a Beira fora dividida em 1647 em dois partidos, ou distritos militares: a norte o de Riba Coa, também designado como de Almeida, a sul o de Penamacor, também referido como de Castelo Branco). Estava-se em 1652 e era a Beira governada pelo mestre de campo general D. Sancho Manuel de Vilhena, que mais tarde viria a ser Conde de Vila Flor.

O Duque de San Germán encarregou D. Tomás Alardi, Conde de Troncan, general da artilharia do reino de Sevilha e governador das armas dos partidos de Alcántara, Coria e Sierra de Gata, de fazer uma entrada em Portugal, de modo a enfrentar e derrotar a cavalaria portuguesa. Este era um objectivo comum na pequena guerra de fronteira, quando a intensidade das pilhagens se tornava demasiado incómoda para a vida das populações. Diminuir a capacidade do inimigo através de uma operação que lhe causasse baixas militares significativas podia ser a solução – sempre temporária – para travar a frequência das incursões.

Tendo em vista esse fim, o Conde de Troncan mandou incorporar as tropas de Arroyo, Malpartida, S. Vicente e Valencia de Alcántara às de Moraleja. Entretanto, as forças portuguesas fizeram nova entrada até às proximidades de Moraleja com 200 cavalos, mas retiraram quando souberam que o comissário geral Juan Jacome Mazacan se aproximava com sete companhias de cavalaria. Foi então o comissário geral encarregado de levar a cabo uma entrada em Portugal, o que fez no dia 5 de Março de 1652, embora sem sucesso de maior, pois os portugueses tinham recolhido todo o gado e nada pôde ser furtado.

Por sua vez, o Conde de Troncan encetou a marcha rumo a Portugal. Ao amanhecer do dia 6 de Março topou com uma força portuguesa nos campos de Ceclavin. Eram 250 cavalos e 500 infantes que defendiam um vau do rio Alagón, no sítio chamado El Pontón. Faziam a cobertura de uma força de cavalaria que fora rapinar gado e que o recolhia em grande número. Procurou avisar o comissário geral Mazacan, que já se encontrava nas cercanias de Monfortiño e La Zarza. Lançado em perseguição dos portugueses, alcançou-os a meia légua de Alcántara, e os investiu

pelejando com tanto esforço que rompeu toda a cavalaria e infantaria inimiga, sendo o recontro tão sangrento que ficaram mortos na campina mais de 150, e entre eles um capitão de cavalos, dois tenentes, seis capitães de infantaria, o sargento-mor do terço [o que não se confirma por outras fontes, pois era António Soares da Costa, o Machuca, que ficou posteriormente a comandar o que restou do terço pago], cinco alferes e outros oficiais [incluindo um capelão] e 366 prisioneiros, tão mal feridos que morreu a maior parte. (…) Da cavalaria apenas escaparam 50 e os demais que faltam se vão recolhendo, de modo que passam de 200 os cavalos capturados e muitas armas, munições e apetrechos de guerra.

Do lado espanhol ficaram feridos dois capitães de cavalos – D. Gonzalo de Escobar e D. Andrés de Rada. Este morreu devido à ferida ter sido causada por um golpe de pique na barriga. Também morreram o alferes e 4 soldados da companhia de D. Andrés.

Os prisioneiros portugueses de maior nomeada foram o mestre de campo João Fialho, o governador da cavalaria do partido de Penamacor Gaspar de Távora, um sobrinho do príncipe de Marrocos, aventureiro, e quatro cavaleiros do hábito de Cristo. Ao todo, foram capturados 38 oficiais, 5 aventureiros, 4 tambores e 332 soldados, tendo sido recolhido todo o gado que a força portuguesa havia previamente pilhado.

Bibliografia: Relación del feliz succeso que han tenido las armas de S. Majestad, gobernadas del Conde de Troncan, en la Extremadura por la parte de Alcántara, contra las armas del tyrano, que gobierna dº Sancho Manuel, maestre de campo general del exercito rebelde. Sucedió miércoles 6 de marzo de este año de 1652. Transcrição enviada pelo senhor Juan Antonio Caro del Curral, a quem agradeço a gentileza.

Imagem: Cavalaria escaramuçando com infantaria. Reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa. Foto do autor. Kellmarsh Hall, 2007.

Palcos de operações (3) – A raia de Alcántara a Montijo

Aproveitando uma sugestão do senhor Juan Antonio, visitante deste blogue que se dedica à investigação das acções levadas a cabo na Beira Baixa, na fronteira com o partido de Alcántara, alguns dos próximos artigos serão dedicados àquela região. Para já, deixo aqui um pedaço da carta da fronteira de guerra elaborada por João Teixeira Albernaz (c. de 1650), representando a parte mais a sul de Alcántara, entre esta localidade e Montijo (o norte fica situado para o lado esquerdo do mapa). Note-se a ilustração da batalha de Montijo, à direita da gravura. 

Biblioteca Nacional, Iconografia, CC254A.