Originalmente, a data que surgia no título desta série de artigos era a de “22 de Abril”. Fora induzido em erro pelo texto de Mateus Rodrigues, mas ao reler um documento oficial (a carta do governador das armas Martim Afonso de Melo) pude verificar que o combate ocorreu, de facto, numa sexta-feira, 23 de Abril, dia de São Jorge. É ao combate e suas consequências que o texto de hoje é dedicado.
Em que consistiu o perder-se o inimigo foi o virmos a buscar para pelejar connosco. Que se se deixara estar como estava, tão forte, estava bem arriscado o não podermos romper, (…) e assim se averiguou que nisso consistiu, porque nunca quem buscou primeiro vai tão forte como o que está quedo. Finalmente, que assim como nós fomos chegando ao regato que estava ao pé do outeiro aonde estava o inimigo, vem-se abaixo com a vanguarda só a receber-nos e a pelejar connosco. Mas o famoso [tenente-general Tamericurt] fez logo alto com o seu batalhão, esperando que o inimigo o cometesse primeiro. Chegou o inimigo à nossa vanguarda com brava resolução (…), e logo deu primeiro uma notável carga de cravinas e pistolas, que não há dúvida que caíram alguns dos nossos com ela. E assim como a deu vem-se a eles à espada com uma fúria que parecia que levavam tudo de coalho, mas a nossa gente se deixou estar mui cerrados que parecia uma muralha, e mais já haviam caído muitos com a carga que o inimigo deu (…). Averbado (…) com a nossa vanguarda, já todos juntos, dando uns nos outros muita pancada, sem o inimigo poder nunca romper (…), que era o que determinava. Contudo, como eles viram que não puderam levar a vanguarda, fazendo-lhe as diligências possíveis, dão as costas outra vez para trás, mas apenas eles as tinham dado, já a nossa vanguarda lhe estava em cima com grande valor, matando e ferindo. E logo a nossa batalha e reserva, que até aquele tempo estavam vendo em que parava a nossa vanguarda, logo foram sempre nas suas costas, sempre formados, dando-lhe calor [ou seja, dando apoio]. E assim como o inimigo chegou ao cimo do outeiro aonde estava sua reserva, quis ali tornar a ter mão com a sua reserva (…). Ali em o outeiro houve mais pancadas que aonde o inimigo nos cometeu [primeiro], mas arrimou-se logo a nossa reserva toda, e com facilidade se determinou o inimigo a fugir (…).
Esta narrativa de um combate de cavalaria deixa bem claro quão importante era a resistência oferecida pela vanguarda que recebia o choque das tropas que a carregavam. Se se rompia essa primeira linha de batalhões, a perseguição podia levar a confusão às outras linhas (chamadas batalha e reserva). Por outro lado, se os atacantes não conseguiam romper a vanguarda inimiga e necessitavam de fazer meia-volta para se reagruparem à retaguarda, a perseguição de que seriam alvo poderia revelar-se fatal para a coesão das restantes forças. Foi isso que sucedeu às tropas comandadas por Juan Jacome Mazacan, neste combate perto de Cabeço de Vide.
(…) E tanto que ele se deliberou a fugir, então direi eu que não havia mãos a medir (…), antes que ele entrasse na coutada de Cabeço de Vide, que estava um quarto de légua de onde foi a bulha, (…) [já] os nossos iam tão enfrascados neles [que] não se podiam apartar deles, que não há gosto para um soldado como ir seguindo o inimigo que vai com a proa no vento, vendo por donde escapará.
Findo o combate com a fuga das forças de Mazacan, a população de Cabeço de Vide veio saudar os vencedores.
(…) Não ficou gente na vila, que todos saíram cá fora (…) e (…) nos davam grandes vivas e louvores e que nos não havia de faltar nada na vila aquela noite, e bem cumpriram sua palavra (…). Entrámos logo para dentro da vila de Cabeço de Vide com grandioso gosto e alegria de ver que nos dera Deus tão honrado dia, e o bem-aventurado São Jorge, que era em o seu dia, a quem o Conde Martim Afonso de Melo faz festa todos os anos por lhe dar aquela vitória. (…) Não sabia a gente de Cabeço de Vide que nos fizesse com tanto gosto como nos receberam aquela noite em suas casas, que não havia galinha que não matassem, nem tinham coisa boa que não nos dessem. De modo que toda a fazenda que o inimigo tinha junto, tudo ali ficou, e foram seus donos a buscar cada um o que lá tinha e não lhe faltou nada. E na verdade que ficavam aqueles lugares todos perdidos se o inimigo lhe levava aquela pilhagem.
No rescaldo do combate, segundo Mateus Rodrigues, foram capturados mais de 250 cavalos, mas os camponeses terão escondidos vários que encontraram pelos campos. As perdas da força incursora cifraram-se em mais de 50 mortos, entre os quais 3 capitães, e 260 prisioneiros. A cavalaria portuguesa sofreu menos de 30 mortos, mas 100 soldados ficaram feridos. A violência da refrega fica bem patente pelas baixas sofridas por ambos os lados, tendo em consideração que os efectivos seriam cerca de 600, do lado português, e cerca de 700, do lado espanhol. Entre os mortos do exército português contava-se o capitão Latouche, francês que servia o rei D. João IV desde 1641, dois tenentes e três alferes. Neste combate também ficou ferido o jovem capitão Dinis de Melo de Castro (uma bala em uma perna e todo o corpo por fora crivado um capotilho que levava sobre as armas), cuja brilhante carreira militar só terminaria no início do século XVIII, durante a Guerra da Sucessão de Espanha, já como Conde de Galveias.
(Citações do Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM: pgs. 159-162).
Imagem: Combate de cavalaria em frente de um moinho em chamas, Philips Wouwerman, Gemäldegalerie, Dresden.