O combate de Cabeço de Vide, 23 de Abril de 1649 (1ª parte)

As narrativas de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz) sobre as operações militares em que participou são muito interessantes pelos detalhes que revela, ainda que escritas num português pouco correcto no estilo e na forma, mesmo pelos padrões do século XVII. Como as memórias foram passadas ao papel vários anos após os acontecimentos vividos, o autor comete, por vezes, erros de pormenor, principalmente quanto à datação dos eventos. É o caso da interessante narrativa que o ex-soldado de cavalaria produziu a respeito do combate de Cabeço de Vide, ocorrido em 23 de Abril de 1649 – mas que o memorialista situa no tempo dois anos e um dia antes. Uma carta de Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço, datada de 24 de Abril de 1649 (Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Consultas, 1649, maço 9, nº 93) permite corrigir o erro de Mateus Rodrigues e corroborar, no essencial, o que se passou nesse recontro. Mas para os detalhes bélicos vistos a partir do chão (ou melhor, da sela do cavalo), nada melhor do que seguir o que a pena do combatente riscou no papel há mais de 350 anos.

Martim Afonso de Melo, governador das armas do Alentejo, teve conhecimento que o inimigo tinha tenção de fazer uma entrada às nossas partes de Cabeço de Vide e Crato e Fronteira e Monforte. (…) Mandou logo a Olivença uma ordem, que viessem das companhias que lá estavam três ou quatro para Vila Viçosa, e assim mais a que estava em Terena e a do Alandroal. (…) E logo o Conde Martim Afonso de Melo mandou para lá ao comissário, que então era Achim de Tamericurt [mais uma confusão do autor – o francês Tamericurt era já tenente-general, e foi acompanhado nessa missão pelo seu compatriota Pierre Maurice Duquesne, esse sim, comissário geral] para que assistisse com elas, para dali acudir a qualquer parte donde o inimigo entrasse.

Passaram 5 ou 6 dias sem que houvesse notícia da cavalaria espanhola, até que o Conde de São Lourenço recebeu a informação de que as forças inimigas se preparavam para acampar entre Assumar e Arronches e que eram compostas por 800 cavalos e 600 infantes, e que enviara mais 700 cavalos a pilhar várias localidades. Os portugueses tinham menos de 400 cavaleiros para se lhes oporem, entrando aqui em conta as companhias de Elvas (segundo o Conde de São Lourenço, pois Mateus Rodrigues refere que eram quase 600).

(…) Mas não foram todas senão oito [Elvas tinha então 12 companhias], as maiores e melhores. E logo saímos para fora da cidade a sol posto e (…) já fora, junto dos arcos da Moreira, (…) chamou [Martim Afonso de Melo] o meu tenente, que era homem de grande préstimo e valor, e lhe disse que havia de ir (…) a Vila Viçosa avisar [Tamericurt] (…) que montasse com elas [as 6 companhias que lá estavam] e fosse ter a Veiros [n]aquela noite. (…) Partiu-se o meu tenente em um cavalo que tinha, que era um assombro, o nome do tenente era Agostinho Ribeiro. (…) E quando nós juntámos todas as nossas companhias em Veiros (…), algumas delas eram mui pequenas, mas ainda tinham mui perto de 600 cavalos, porque havia algumas companhias grandes (…), a minha não levava mais de 24 cavalos e não levava capitão, que já D. João de Ataíde (…) se havia ausentado para Coimbra [na verdade, havia quase dois anos que isso sucedera; a companhia foi entregue posteriormente ao capitão Francisco Pacheco Mascarenhas], não ia senão o tenente e alferes.

O tenente general Tamericurt recebera ordens escritas do governador das armas para se opor à entrada do inimigo, e que peleje com ele, pois é crédito nosso, e não repare em que tenha mais cavalaria, que a não o fazer assim se haverá El-Rei por muito mal servido de vossa mercê e em mim me terá por inimigo. (…) Saímos de Veiros já quase manhã e nos fomos marchando na via de Cabeço de Vide, aonde era que o inimigo se dizia andar. E já tínhamos marchado duas léguas de Veiros pela estrada adiante sem em todos aqueles campos haver notícia alguma de inimigo, (…) que como aqueles campos estão ainda povoados de montes com lavradores, era de espantar não haver um aviso, estando o inimigo naquelas partes. E assim como [o tenente-general Tamericurt] viu a quietação da campanha, mandou chamar todos os furriéis das tropas para que fossem diante tomar alojamentos para as companhias e livranças de mantimentos para os cavalos e pão para os soldados.

Partindo para a missão que lhes tinha sido confiada, os 17 homens destacados (os furriéis, alguns soldados e um ajudante da cavalaria) em breve toparam 40 cavaleiros espanhóis que guardavam uma passagem num ribeiro. Esta pequena força retirou, sendo seguida pelos portugueses, a quem procuravam os espanhóis atrair a uma emboscada. Pouco tempo depois travou-se uma escaramuça, à qual foram acudindo mais tropas portuguesas. Entretanto, os batedores informaram Tamericurt que tinham descoberto o grosso da força inimiga, a cerca de meia légua de Cabeço de Vide, perto do local onde se escaramuçava.

O inimigo [estava] mui bem formado em três formas, que era vanguarda e batalha e reserva. (…) Ele via-se com mais cavalaria do que nós íamos, e além disso tinha uma notável presa de gados (…) que havia juntado em todos os campos daqueles lugares que ficavam destruídos para sempre, e também via o inimigo que era a primeira vez que vinha a fazer entrada com a cavalaria lá de cima da Beira, que vinha ali por cabo um comissário da Sarsa [Zarza la Mayor] que chamam Mazacan, que o mandou vir o governador de Badajoz de lá com o seu partido para fazer a dita entrada. (Citações do Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM: pgs. 153-157).

A entrada fora ordenada pelo Barão de Mollingen, o qual estava quase a ser substituído como mestre de campo general pelo Marquês de Mortara. Como era costume na fronteira, quando um cabo de guerra estava prestes a deixar o seu cargo, mandava fazer uma grande incursão de pilhagem “de despedida”, visando obter lucros consideráveis com a venda das presas. E assim nos aproximamos do combate, que será descrito nos próximos artigos.

Imagem: Cavalos arcabuzeiros em acção. Reconstituição histórica, Kellmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

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