Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (4ª parte)

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A missão de João Leite de Oliveira (noite de 5 para 6 de Fevereiro de 1652)

Segundo o relatório do tenente-general da artilharia, ficou tudo combinado com os sargentos para que se infiltrasse em Badajoz, na missão de reconhecimento, na noite de 5 para 6 de Fevereiro. Na narrativa de Mateus Rodrigues, foi numa das vezes que um dos sargentos se deslocou a Elvas, a recato da noite, que D. João da Costa revelou que iria enviar o tenente-general, e que não se enfadasse o sargento com aquela decisão e cautela, mas que era necessário ver tudo muito bem. E o oficial português devia entrar e sair de Badajoz numa só noite (ao contrário do que sucedeu com o furriel João Dias de Matos).

Prossigamos com a relação de Leite de Oliveira:

E logo sendo na noite assinada, saí à tarde com todo o recato de Elvas, eu só, e onde se chama Malpica de Castela se tinha mandado vir de Olivença uma guia prática [seria o furriel Dias de Matos?] e o capitão Aguiar, que é engenheiro, o qual não sabia nada, nem a guia, e ajuntando-me aí com eles, lhe[s] disse que tínhamos uma jornada que fazer e aqui neste lugar pasámos o dia, e ao pôr do sol disse ao guia me guiasse ao ribeiro, que passa pela outra parte de Mérida, ao qual chmam ribeiro de Redilhas, e estando já perto dele lhe disse me mostrasse o moinho, e depois de o fazer, mandei se retirasse (…) os três cavalos, e eu me adiantei ao moinho, do qual me saiu o sargento flamengo [Alejandro Perez], e depois de nos reconhecermos tornei atrás, e chamei o engenheiro, e então lhe comuniquei ao que íamos.

Deram dez horas da noite e saiu a lua [ou seja, estava uma noite de luar], que nos podia fazer dano, sem embargo disso nós chegámos ao pé da muralha do castelo, um à vista do outro, sem haver sentinela por aquela parte na muralha, e fomos seguindo (…) até uma meia lua, que fecha por uma e outra parte na muralha do castelo, que terá 18 ou 20 palmos ao mais de alto, a esta meia lua sai uma porta do castelo, que fica de noite somente ferrolhada, porque a meia lua não tem saída para a campanha, e essa é a causa.

Chegou o sargento, que me guiava, diante da meia lua onde estava o outro sargento com dois soldados, que ali havia de sentinela, e lhe perguntou «eres tu?», ao que lhe respondeu o nosso guia «yo soy y no pude pilher el carnero, y aqui vienen comigo dos amigos, que alla topé, que se habian quedado fuera pera el mesmo efecto», com o que nos deu o sargento que estava dentro um chuço pelo pé, e pegando nele, e na muralha nos baldeámos dentro todos três, eu saudei aos soldados, que ali estavam de sentinela, e não repararam no trapilho do vestido que eu levava, e assim abriram o postigo da porta, que estava cerrado, e entrámos no castelo os quatro, no qual eu andei até uma hora depois da meia-noite, correndo a muralha, reconheceno a artilharia, e armazéns de munições e mantimentos, e o trem da artilharia, e onde moravam os almoxarifes que têm as chaves dos armazéns.

O castelo tem só uma porta, que sai para a cidade, e a companhia que entra de guarda todas as noites tem cuidado de a fechar às nove da noite, e abrir pela manhã, o que tudo vimos mui devagar, por estar um dos sargentos esta noite de guarda com 2 homens, que é o mais que entram de guarda pela muita falta que têm de gente. Visto tudo à nossa vontade, nos viémos à meia lua, fingindo tornávamos fora ver se os pastores dormiam para lhes furtar o carneiro, e nos viémos. (Relação…, pgs. 180-181)

Segundo Mateus Rodrigues (exagerado, por vezes, no que tocava a referir recompensas materiais), D. João da Costa terá oferecido aos sargentos que preparavam a traição 3.500 réis em moedas de dobrão, só para que esta missão de espionagem se efectuasse, mas os sargentos recusaram, dizendo que, se Deus quisesse, haveria tempo para que o governador das armas os pudesse recompensar. Esta recusa em aceitar o dinheiro fez acreditar D. João da Costa ainda mais na boa fé dos dois sargentos, e afastar qualquer receio de traição por parte deles em relação aos portugueses. Quanto ao resto, a narrativa de Mateus Rodrigues não é completamente coincidente com o relatório em alguns pormenores: diz o soldado que Leite de Oliveira se fez acompanhar por 30 cavalos (e não por três), os quais ficaram afastados da muralha “um bom tiro de mosquete” (correspondente a pouco mais de 100 metros, aproximadamente) – o que é um absurdo, pois seriam facilmente detectáveis. Depois, refere que o tenente-general foi comer e beber com os sargentos a um mesão, falando com eles em bom espanhol, repetindo assim a façanha de João Dias de Matos – outra fantasia do autor, pois para além do despropósito da acção, dada a hora tardia da noite, seria um risco desnecessário e de todo improvável de ser corrido pelo tenente-general. No entanto, o que Mateus Rodrigues descreve sobre o resto do episódio está de acordo com o relatório. (MMR, pgs. 254-257)

Os sargentos continuavam a visitar D. João da Costa em Elvas, de cada vez que vinham a Portugal sob pretexto de fazerem pilhagens, e recebiam algum dinheiro de recompensa do mestre de campo general, pois de facto não levavam nada pilhado.

No próximo artigo serão descritos os preparativos para a operação de conquista de Badajoz, e no seguinte (e último), o resultado final de todos estes planos.

Imagem: “O descanso dos cavaleiros”, quadro de Philips Wouwerman, Koninklijk Museum voor Schone Kusten, Antuérpia.

Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (3ª parte)

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O furriel João Dias de Matos em Badajoz

Esta parte é omitida por João Leite de Oliveira, mas Mateus Rodrigues conta-a conforme ouviu da boca do próprio furriel de cavalaria.

Mandou Dom João da Costa chamar o furriel João Dias de Matos, e vindo ele lhe falou (…) só em uma casa muito tempo, dando-lhe contas do que tinha entre mãos e que não tinha em quem confiar aquelas cousas senão nele, pois sabia muito bem seu préstimo e valor, que tinha ajustado com os sargentos de como ele havia lá de ir, e que lhe disse o sargento que seguramente podia entrar a cavalo pela porta dentro às trindades [toque do sino, chamando à oração do fim da tarde], que fosse logo direito ao castelo e que em tal calle podia perguntar por su amigo sargento hulano [ou seja, fulano; respeitou-se aqui, e assim será na restante transcrição, a mistura de castelhano com português], e que ele também se obrigava a botá-lo fora seguramente [quer dizer, em segurança]; de maneira que Dom João da Costa lhe disse (…) que se ele lhe trazia boas informações, que lhe dava sua palavra de o acrescentar muito bem; (…) e logo ali ajustaram o dia em que havia de ir lá. Foi-se o furriel para Olivença e lá se preparou de todos os aviamentos castelhanos, como era cavalo castelhano ferrado à espanhola, e sela castelhana e armas também, (…) todos os arreios e cousas que levava eram castelhanos. E assim se partiu um dia de Olivença e se foi emboscar em um olival que chamam a Florida, quero dizer, os olivais das Malas Aradas, que não ficam de Badajoz mais de meia légua, no meio da estrada que vem de Albufeira. E assim como foi sol posto meteu-se na estrada, e foi por ela abaixo como que vinha de Albufeira, e assim como chegou às portas entrou por elas dentro sem que ninguém lhe perguntasse nada, cuidando era algum soldado que vinha com alguma carta de fora ou algum negócio. E assim como entrou, foi pela cidade fora até ao castelo, e perguntando pelo sargento fulano em tal calle, logo lhe disseram aonde morava, que a poucos passos tinha já dado com ele, e assim como se viram, abraçaram-se um ao outro por diante de alguns castelhanos, e a saudação que se davam era perguntar era perguntar «como estás, primo de mi vida?», «bueno, primo de mi anima», «en aquesta terra, primo, que negocio vos ha traído acá?», respondia o furriel «un negocio que no es de mucha importancia, imos tambien a vervos, que muchos tiempos que nos no avemos visto». De modo que se foram para casa, e foi o sargento acomodar-lhe o cavalo a casa de um soldado de cavalo seu amigo, dizendo-lhe que lhe acomodasse aquele cavalo, que era de un primo suio que era de Mérida; acomodou-lhe logo o soldado e foi-se o furriel e mais o castelhano sargento a comer logo a um mesón, que assim chamam lá às bodegas que dão de comer; de modo que em todos estes tempos sempre o furriel falando tão cerrado espanhol, melhor que o mesmo sargento. E assim como comeram, lá pela alta noite foi o sargento a mostrar todos os armazéns do castelo ao furriel, e logo foi pela muralha do mesmo castelo, como que ia o sargento rondando a muralha, e viu tudo mui à sua vontade. E se esteve ali até ao outro dia à noite, que saiu às mesmas horas a que havia entrado, sem haver pessoa alguma que lhe perguntasse nada. E não há dúvida que foi uma grande aventura, e quando eram dez horas da noite já o furriel estava às portas de Elvas. (MMR, pgs. 250-252).

Foi então avisado D. João da Costa da chegada do furriel, e este de imediato foi conduzido à presença do mestre de campo general. Disse-lhe João Dias de Matos que, pelos modos que tinham os dois sargentos, não lhe parecera que tentassem trair os portugueses, e antes pelo contrário, que se esperava uma grande vitória e sucesso na conquista de Badajoz pela traição, e que pelos planos que lhe tinham exposto, seria impossível deixar de se tomar a praça, e com muito pouca perda de vidas. Foi recompensado o furriel com 50 patacas e prometeu-lhe D. João da Costa outros acrescentamentos pelo bom desempenho da missão.

(…) Foi-se o furriel a descansar, que pousava em casa do meu furriel, que eram ambos naturais de Louriçal [na comarca de Esgueira]. Mas nunca este homem dizia onde ia nem de onde vinha, só depois que a cousa não teve efeito (…) se soube então, contava ele tudo o que passava em Badajoz com os sargentos e com D. João da Costa. (MMR, pg. 252)

Esta é a parte que não consta do relatório do tenente-general. Segundo Mateus Rodrigues, só depois da acção de espionagem do furriel é que D. João da Costa mandou chamar João Leite de Oliveira, para o incumbir de missão semelhante, mas visando objectivos finais.

(continua)

Imagem: Planta de Badajoz; in La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (2ª parte)

jacob-duck1Prelúdio à traição (continuação)

Tanto o relatório do tenente-general da artilharia João Leite de Oliveira como as memórias do soldado Mateus Rodrigues referem a entrevista de um dos sargentos com o mestre de campo general D. João da Costa. No relatório, refere o tenente-general que

(…) depois de eu ajustar isto tudo com ele [ou seja, com o sargento galego], o comuniquei a D. João da Costa, mestre de campo general do exército, o qual abraçando-me muitas vezes me ordenou que depois de dormirem os outros pilhantes [capturados], lá pela meia-noite adiante, lhe levasse o sargento para falar com ele, e levando-lho tornou a repetir o modo com que nos podia dar entrada no castelo. E logo o senhor mestre de campo general lhe prometeu em nome de Sua Majestade honras e rendas com que luzidamente passaria neste Reino, e dando-lhe os dobrões que ele quis levar, o advertiu que não gastasse mais do que até então era costumado, nem comprasse uns sapatos, para que alguma pessoa não reparasse nisso, e que querendo o outro seu camarada acompanhá-lo, nos viria dar recado à noite, que lhe apontámos, na qual não veio, mas vieram ambos daí a três ou quatro dias. (“Relação…”, in Madureira, pgs. 179-180)

O plano

A narrativa de Mateus Rodrigues não difere até aqui, em substância, do relatório do tenente-general, mas acrescenta alguns pormenores sobre os dois sargentos. Assim, o galego teria exposto, em pormenor, o plano da traição a D. João da Costa:

(…) saberá Vossa Excelência de como eu e o meu camarada, o outro sargento que está no corpo da guarda, somos senhores do castelo de Badajoz, pois que as nossas companhias não têm capitães, há muito tempo que andam lá por suas terras, e nós entramos de guarda e saímos todos os dias e pomos e tiramos sentinelas da muralha toda a noite, e a guarda do castelo corre por nossa conta, sem a isso ser necessário assistência de mais algum oficial de fora (…). De modo que eu e meu companheiro havemos de traçar a cousa; é que a muralha de Badajoz tem um pedaço muito mau, que quase lhe chega um homem com a mão acima, e isto é no castelo; e como nós pomos e tiramos as sentinelas, pode Vossa Excelência juntar 500 ou 600 mosqueteiros pela parte do castelo, que eu tirarei todas as sentinelas da muralha, para que não sejam sentidos na cidade, e logo estarei eu na muralha e darei um sinal (…). E tanto que a gente estiver dentro do castelo, havemos logo de ir mui depressa a terraplanar a porta do castelo que vai para a cidade, e logo ficamos mui seguros senhores de toda a melhor artilharia, que é a do castelo, que todo Badajoz lhe fica debaixo dela; e na mesma noite há Vossa Excelência de ir com toda a mais gente amanhecer às muralhas de Badajoz, e vendo-se Badajoz com o castelo tomado e com poder à roda das muralhas, sem remédio logo se entrega, e quando não seja logo, não haverá dilação, porquanto todas as munições que em a cidade há estão no castelo, que lá estão os armazéns, e não podem pelejar faltando-lhe o melhor; e demais que a artilharia do castelo os fará entregar (…), que iremos arrasando a cidade pouco a pouco. (…) Mande Vossa Excelência um homem a Badajoz da sua parte, para que tome informação da cousa bem à sua vontade, e este tal homem, quando for, seja por minha ordem, para que vá seguro e venha. (MMR, pgs. 244-246)

Interessante é o pormenor da combinação entre os dois sargentos, diálogo embelezado pela imaginação de Mateus Rodrigues, mas certamente fundamentado em dois aspectos essenciais: a vivência da maior parte dos combatentes de ambos os exércitos, padecendo muitas dificuldades e perigos, sem esperança imediata de melhorias (situação que Mateus Rodrigues muito bem conhecia); e as notícias dos acontecimentos mais extraordinários ou curiosos, que rapidamente passavam de um lado a outro da fronteira, quer através das conversas entre prisioneiros e seus guardas (papéis que, por vezes e no espaço de dias ou semanas, se podiam inverter), quer através das comunicações entre não-combatentes de ambos o lados, que sempre se iam fazendo à margem das ordens das autoridades militares. Assim, Mateus Rodrigues recria o diálogo entre os sargentos, depois de estes terem ido à presença de D. João da Costa (conforme se refere no trecho do relatório) e terem sido despedidos de regresso a Badajoz, tudo combinado para a traição…

(…) todo o caminho foram tratando na matéria, e o primeiro sargento que tinha falado na cousa a D. João da Costa foi dando tão boas razões a seu camarada, que lhe dizia «camarada, nosotros somos dos soldados de fortuna, há tantos anos sargentos, sem nenhumas esperanças de acrescentamentos, passamos com grã miséria e nos vemos com mala vida e pouco que comer, assim já que nosostros somos senhores del castillo, com favor de Dios o hemos de arriscar nuestras vidas, o hemos de ser hombres de muchos regalos en la vida; e assim que me parece bien que demos ordem com mucho segredo en lo caso; que tenemos mui buena orden para hablar en la cosa seguramente (…)». O sargento lhe deu tais razões, que o tomou o outro nos braços e lhe disse: «Ó camarada de mi vida y de mi corazón, que bien se hio vuestra voluntad y animo (…), camarada, hased lo que quiseres, que en todo tengo de vos acompanhar y morir com vós, en todo el caso (…) lo que resta ahora es que no demos cuenta per nenhum caso de naide a nuestras amigas, porque son mujeres y no hazen caudal de segredos», porque estes dois sargentos tinham (…) cada um sua amiga das portas adentro, mas cada um deles tinha seu alojamento à parte [respeitou-se neste trecho o hábito de Mateus Rodrigues misturar português e castelhano, quando usava o discurso directo entre militares do exército de Filipe IV]. (MMR, pg. 248)

O papel desempenhado pelas mulheres dos sargentos seria crucial para o desfecho da história. Mas por ora, registemos uma discrepância entre o relatório de João Leite de Oliveira e a narrativa de Mateus Rodrigues. Segundo o tenente-general, depois da segunda conversa entre os sargentos e D. João da Costa,

(…) ajustámos que era necessário darem-me eles entrada no castelo para eu o ver, e reconhecer, e esta foi a noite de cinco para seis de Fevereiro; eles vieram nisso lhanamente, e assim se foram recolhendo a Badajoz, levando dois burros, que eu tinha prevenido e posto em uma horta fora da cidade, para que assim fingissem que os levavam de pilhagem, que era o sobreposto com que de lá [de Badajoz] saíram (…). (“Relação…”, in Madureira, pg. 180)

Mateus Rodrigues insere um episódio omitido no relatório: uma prévia infiltração de um espião português, antes de Leite de Oliveira levar a cabo a sua missão. Terá D. João da Costa querido certificar-se de que tudo correria conforme o acordado, e que não se trataria de nenhuma armadilha, na qual não quereria arriscar um oficial com patente tão superior como a de João Leite de Oliveira. Deste modo, D. João da Costa informou o sargento galego que lá havia de ir [a Badajoz] um homem, por nome João Dias de Matos, que era um furriel de Olivença, da cavalaria, e que era o mais prático homem em a língua castelhana que havia em Portugal e homem de grande préstimo e valor. (MMR, pg. 249)

É sobre esta missão que tratará a próxima parte desta série.

Entretanto, apraz-me convidar os leitores a consultar o blog do estimado amigo Julián García, Puertas de Badajoz, onde encontrarão muitos assuntos de elevado interesse sobre aquela praça de armas.

Imagem: “Soldados e mulheres numa taberna”, pintura de Jacob Duck, meados do séc. XVII, The State Art Museum of Florida.

Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (1ª parte)

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É quase desconhecida a tentativa de tomada de Badajoz pela traição, nos inícios de 1652, por parte dos portugueses. Praça-forte fundamental do sistema defensivo da fronteira extremenha, tal como Elvas o era para o Alentejo, Badajoz correspondia à congénere portuguesa do Alentejo na importância e inexpugnabilidade. Tal como os cercos que Elvas sofreu, também os que os portugueses puseram ou tentaram pôr a Badajoz não resultaram. Um deles, previsto em 1645, não se concretizou por contratempos vários, quando o exército comandado pelo 2º Conde de Castelo Melhor já marchava para o objectivo. Em 1658, Joane Mendes de Vasconcelos (o mesmo que treze anos antes se pronunciara contra tão arriscada aventura) montou um desastroso cerco a Badajoz, em resposta à perda de Olivença no ano anterior. O que quase se perdeu, no rescaldo, foi o exército do Alentejo. E temeu-se pela sorte da guerra quando, nos finais desse ano de 58, D. Luís de Haro foi cercar, por sua vez, a cidade de Elvas. Mas também essa tentativa fracassou.

A solução da traição foi sempre procurada por ambos os lados em conflito, de forma a conseguir tomar uma praça importante, de surpresa e sem esgotamento de meios bélicos. Em Janeiro de 1652 proporcionou-se ao mestre de campo general do Alentejo (que desempenhava também, interinamente, o governo das armas) D. João da Costa, a possibilidade de alcançar esse feito no que respeitava a Badajoz. Para além da menção que ao episódio se faz na História de Portugal Restaurado, do 3º Conde de Ericeira, existe na secção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa um relatório detalhado do tenente-general da artilharia João Leite de Oliveira, publicado pelo coronel Horácio Madureira dos Santos (Cartas e outros documentos da época da Guerra da Aclamação, Lisboa, Estado-Maior do Exército, 1973, pgs. 179-184); o tenente-general tomou parte activa na operação e chegou a entrar, sob disfarce, em Badajoz. Ao relatório deste oficial junta-se um capítulo do manuscrito de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), em que o soldado de cavalaria narra o que ouviu contar da boca de João Dias de Matos , então furriel e intrépido espião que se infiltrou em Badajoz, preparando os pormenores da traição (poucos anos depois, sendo tenente da companhia de D. Luís de Meneses, este João Dias de Matos desertaria para o inimigo; e já como capitão de cavalos do exército de Filipe IV, preparou e levou a bom termo a tomada – também pela traição – da praça de Olivença). Todavia, Mateus Rodrigues erra na data do episódio, situando-o um ano mais cedo do que efectivamente se passou. Mas a sua narrativa contém pormenores mais rocambolescos do que o relatório oficial de Leite de Oliveira. Para completar este pequeno leque de fontes primárias, existe o relatório da confissão de um dos militares do exército espanhol envolvidos na traição (Arquivo Geral de Simancas, Sección Guerra Moderna, Legajo número 1822). Chegou-me ao conhecimento por via do estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral, investigador e autor, que já teve a grata amabilidade de me permitir aqui publicar algumas das suas excelentes pesquisas, e a quem renovo os meus agradecimentos por tão preciosa ajuda.

Prelúdio à traição

O relatório de Leite de Oliveira principia pela tomada de prisioneiros do exército espanhol (ortografia e pontuação actualizadas para português corrente):

Em 26 de Janeiro [de 1652] se fizeram prisioneiros cinco pilhantes de pé, entre os quais vinha um sargento da companhia do mestre de campo o Conde de Torregon; estes estavam na estrada de Juromenha para fazerem nela alguma pilhagem, foram descobertos dos pastores que os fizeram prisioneiros e trouxeram a Elvas. Nas perguntas que lhe fiz das cousas de Castela, catequisei o sargento, dizendo-lhe que era um soldado pobre, que sua miséria o obrigava às pilhagens a pé, que nos quisesse dar alguns avisos e fazer algum serviço a El-Rei de Portugal, que com isso podia conseguir muito proveito, e livrar-se da miséria em que vivia.

Isto [se] passou entre nós, sem estar outra pessoa presente, ao que me respondeu depois destas promessas que ele não só nos queria dar avisos, senão que se atrevia a entregar o castelo de Badajoz, aonde ele era costumado entrar de guarda cada cinco noites, porém que sempre lhe era necessário comunicar este negócio com um seu camarada, também sargento, de uma companhia do mesmo terço, o qual era natural do país de Flandres, e este era galego de nação. (“Relação…”, in Madureira, pg. 179)

O sargento galego chamava-se Alonso de Castro e o flamengo, com quem queria combinar o assunto da traição, chamava-se Alejandro Perez e nascera em Cambrai, conforme consta da confissão deste, feita sob tortura (AGS, Guerra Moderna, Leg. nº 1822). Na versão do manuscrito de Mateus Rodrigues, eram estes sargentos grandes amigos e camaradas, cujas companhias estavam sempre efectivas de guarnição no castelo de Badajoz, sem se mudarem, e teriam combinado ambos virem às pilhagens a Portugal, já com o intuito de se deixarem prender e proporem a traição a D. João da Costa, livrando-se assim, com a recompensa que receberiam, das muitas necessidades que então padeciam. (MMR, pgs. 143-144)

(continua)

Imagem: Planta do perímetro defensivo de Badajoz (c. 1645), sendo bem visível a localização do castelo mencionado no texto; in La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Armas e munições existentes na província da Beira em Março de 1663

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As listas que a seguir se apresentam são extraídas de uma longa relação do material de guerra existente nos armazéns das localidades da província da Beira. Na carta que acompanhava a relação original, o mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães referia a falta de munições, mas afirmava compreender que não se lhe podia acudir com tudo o que era necessário.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1663, maço 23, consulta de 21 de Março de 1663 e carta de Pedro Jacques de Magalhães, de 11 de Março de 1663.

Imagem: Piqueiros e mosqueteiros da Guerra Civil Inglesa (década de 1640); reconstituição histórica, Old Sarum, Inglaterra. Foto de Jorge P. de Freitas.

Equipamento e armamento para a infantaria

Praças

Armas de fogo

Frascos

Piques

Forquilhas

Bandoleiras

Guarda

150

50

128

269

324

Almeida

362

49

321

300

200

Castelo Rodrigo

60

Castelo Bom

27

13

Vilar Maior

60

20

Sabugal

46

24

Penamacor

200

Idanha a Nova

30

20

550

100

Segura

191

75

Salvaterra

150

Rosmaninhal

16

Penha Garcia

25

Zibreira

65

10

19

11

Castelo Branco

200

1382

129

1350

569

635

Equipamento e armamento para a cavalaria

Praças

Corpos de armas

Pistolas (pares)

Carabinas

Selas

Guarda

3

2

2

Almeida

150

Penamacor

40

40

20

Idanha a Nova

25

Zibreira

4

Castelo Branco

4

182

46

42

20

Pólvora, balas e corda (morrão)

Praças

Pólvora (barris)

Balas (cunhetes)

Corda (arrobas)

Guarda

30

10

550

Almeida

400

60

1000

Alfaiates

180

76

400

Castelo Rodrigo

45

34

90

Castelo Bom

13

10

72

Castelo Mendo

11

7

10

Vilar Maior

11

7

16

Sabugal

40

18

70

Vale da Mula

8

9

16

Escalhão

13

8

53

Pinhel

6

4

8

Penamacor

134

16

300

Idanha a Nova

25

55

600

Segura

50

63

140

Salvaterra

90

100

240

Rosmaninhal

12

12

18

Penha Garcia

13

15

25

Monsanto

4

5

12

Zibreira

2

8

32

Castelo Branco

12

8

80

1099

525

3732

Postos do exército português (15) – o ajudante de tenente de mestre de campo general

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O ajudante de tenente de mestre de campo general era um oficial colateral, o de mais elevada patente entre os desta categoria. Segundo o disposto nas Ordenanças Militares de 1643

Os ajudantes de tenente de mestre de campo general hão-de ser eleitos de capitães de infantaria de mui particular talento e expediente; exercitam repartir e levar as ordens, e assistirem sempre na sala dos generais, repartidamente por dias.

Segundo Joane Mendes de Vasconcelos, a nomeação de sujeitos para aquele posto cabia ao mestre de campo general. Os ajudantes de tenente de mestre de campo general podiam ser nomeados para qualquer vaga de sargento-mor de um terço (de tropas pagas) do exército da sua província.

Fonte: “Ordenanças Militares de 1643”, tit. 18º e 19º, in AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 62-63.

Imagem: Representação de infantaria portuguesa no chamado “Biombo dos Marqueses de Fonte Arcada”, séc. XVII.  Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

Nicolau de Langres, arquitecto e engenheiro militar

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Nicolau de Langres, arquitecto e engenheiro militar, chegou a Portugal em 1644, com um contrato inicial válido por três anos. Em França, ao serviço de Luís XIII, adquirira experiência no projecto e reparação de fortalezas. Permaneceu em Portugal muito para além do termo do primeiro contrato. Sucedeu a João Pascácio Cosmander na província do Alentejo como coronel superintendente dos engenheiros, tendo desenhado os projectos de fortificação de várias praças naquela província, como Estremoz, Campo Maior ou Juromenha. Tal como o seu antecessor holandês, também Nicolau de Langres viria a ser capturado e passaria a servir o soberano espanhol, neste caso no início da década de 60. E a completar a coincidência de trajectos entre aqueles dois engenheiros militares, também Nicolau de Langres viria a morrer num cerco: o de Vila Viçosa, em 1665, onde foi mortalmente ferido, durante a campanha que conduziu à batalha de Montes Claros.

Na Biblioteca Nacional de Lisboa existe um volume que reúne vários dos seus trabalhos ao serviço da Coroa portuguesa. É desse volume que se reproduz a gravura acima – um auto-retrato de Nicolau de Langres, no acto idealizado de preparar um esboço de fortificação, sendo acompanhado de dois criados, muito provavelmente durante a década de 1650.

LANGRES, Nicolau de – Desenhos e Plantas de todas as praças do Reyno de Portugal pelo Tenente General Nicolao de Langres Francez, que servio na guerra da Acclamação. (F2359)

Regimentos holandeses de 1641 ao serviço da Coroa portuguesa (cavalaria e infantaria – organização teórica)

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Regimentos constituídos “no papel” em Outubro de 1641. Tal como no caso dos franceses, as 8 companhias de cavalaria (a 100 cavalos cada, segundo o efectivo previsto) operaram quase sempre de forma independente, embora a designação “regimento” se mantivesse em termos puramente administrativos e contratuais. O regimento de dragões é mencionado num documento de 1644, mas tal como a cavalaria, as companhias (num máximo de quatro) terão operado de forma independente. As fontes narrativas não distinguem cavaleiros e dragões holandeses, e os documentos oficiais (róis enviados ao Conselho de Guerra após as mostras efectuadas no Alentejo, ou cartas com declaração minuciosa dos efectivos) juntam sempre a cavalaria e os dragões num único regimento. O tenente-coronel Estacius Pick, inicialmente declarado como comandante do regimento de dragões, recebeu patente de mestre de campo e o comando de um terço de infantaria portuguesa a 12 companhias (com vários  militares estrangeiros, incluindo quatro oficiais holandeses e franceses) no Alentejo em 1642. Pick foi capturado pelos espanhóis na batalha de Montijo e só foi libertado em finais de 1646, tendo regressado à Holanda.

À semelhança do que aconteceu com a cavalaria francesa, as reformas de Março de 1645 integraram as companhias do ex-regimento de cavalaria no exército português (nessa data já não se fazia qualquer referência aos dragões). Até então, por motivos religiosos, as unidades de cavalaria holandesa estavam proibidas de incluir soldados portugueses. Com a dissolução do regimento e a integração dos oficiais e soldados holandeses no exército português, essa discriminação terminou.

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este assunto é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais.

Comando do contingente (apenas até ao início de 1642): coronel Lambert Floris van Til (m. 1642; cabia-lhe comandar uma companhia de cavalaria, embora delegasse o comando efectivo da mesma no tenente Mathias Waremburg).

Regimento de cavalaria: Comandante, tenente-coronel Jan Willem van Til (irmão do coronel Lambert Floris); sargento-mor, Alexandre van Harten (comandava uma companhia; m. 1647, sendo comissário geral no Alentejo); capitães, Conrad Piper, Jacob de Cleer, Jacob van Wagen, Alexandre Bery, Mauricius Lamair, Henrique Schilt, Gaspar van Berg.

Regimento de dragões (só parcialmente constituído no terreno): Comandante, tenente-coronel Estacius Pick; capitães, Frederik van Plettemburg, Frederik Streecht, Joan Doecy, Pedro Behan, Sigismundus Finkeltous, Roomfort, Joan de La Roche. Alguns destes oficiais passaram a servir na cavalaria, outros receberam passaportes para regressarem à Holanda em meados de 1642, mas alguns deles demoraram-se em Portugal, sem prestar qualquer serviço, pelo menos até finais de 1643.

Imagem: Combate de cavalaria. Pintura do século XVII (autor não identificado).

Regimentos franceses de 1641 ao serviço da Coroa portuguesa (cavalaria e infantaria – organização teórica)

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Regimentos constituídos em Setembro de 1641, a partir do contingente enviado pelo Cardeal Richelieu. Organização teórica, nunca cumprida no terreno. A maioria dos regimentos de cavalaria só conseguiu alinhar duas companhias, inicialmente com 25-30 efectivos cada, quando era suposto terem quatro companhias de 40 a 50 efectivos cada uma, a do coronel incluída. Nunca combateram como unidades autónomas, e várias companhias actuaram como as portuguesas, isto é, independentes ou integradas em troços (agrupamentos) temporários, sob as ordens de um coronel estrangeiro ou um comissário geral português. Uma curiosidade: de acordo com as listas de equipamento apresentado nas mostras, a cavalaria francesa em Portugal nunca utilizou protecções metálicas (peito, espaldar e murrião), limitando-se a usar um colete de couro para protecção do tronco e chapéu de aba larga para a cabeça.

Os regimentos de infantaria nunca se formaram por falta de oficiais e soldados franceses em número suficiente. Os coronéis e restantes oficiais das companhias foram comandar ou integrar terços mistos de portugueses e estrangeiros.

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este assunto é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais.

Cavalaria (apesar das diferentes designações, os elementos da cavalaria ligeira e os carabineiros estavam equipados de maneira idêntica, correspondendo aos chevaux légers franceses: carabina e um par de pistolas; o regimento de dragões nunca se constituiu como tal, apesar de, em 1644, uma das duas companhias comandadas então pelo Marquês de Gravelines ser nominalmente de dragões, mas sem um único arcabuz entre os 20 elementos que a constituíam – presume-se que combatesse unicamente com espada, como a restante cavalaria)

Regimento de cavalaria ligeira de du Boucquoy. Coronel: Jean du Boucquoy de La Motte; capitães: Arnaud Bruneau de La Chabatière, Bernabé Brisson de La Touche, Théodore de Murasson.

Regimento de cavalaria ligeira de Montjouant. Coronel: Claude de Montjouant, Barão de Cornau; capitães: Jacques de Grille de Roubiac, Jean Danse d’Erbauvillins, Stéphane Paschier de Brussy.

Regimento de cavalaria ligeira de Gravelines. Coronel: Jean Pierre de la Roque, Marquês de Gravelines; capitães: Achim Avaux de Tamericurt, Jean Heitor de Nier, Stéphane Boule de Rosières (m. 1653).

Regimento de cavalaria ligeira de Chantereine. Coronel: François de Huybert de Chantereine; capitães: Louis de Chivray du Plessis, Henri de Belys de Billon, Michel du Bocage (a partir de Dezembro de 1641).

Regimento de cavalaria ligeira de Mahé. Coronel: Sebastian de Mahé de La Souche; capitães: Adrien de Mahé du Plessis, Pierre Guerineau de La Tortinière, Jacques Talonneau de La Popelinière.

Regimento de carabineiros de Boisemont. Coronel: Esme de Pillavoine de Boisemont; capitães: Jean Baptiste Lambert de Gransan, Urbain de Boissey de Chandonville, Nicolas Verniere de Lousières.

Regimento de dragões de Mazeros. Coronel: Pierre de Berfriert de Mazeros; capitães: Jean Chevallier de La Blanchardière, Jean de La Valée de Beaulieu, Henri de La Morlaye, o Maltês (m. 1642).

Nota: com os militares franceses chegou também a Portugal um capitão genovês, Francisco Fiesco, Conde de Lavagna, que comandou uma companhia de cavalos. Embora não estivesse originalmente integrada em nenhum regimento, a sua companhia é sempre incluída na cavalaria francesa nos documentos da época, pois os oficiais e soldados eram franceses. Francisco Fiesco foi capturado pelos espanhóis na batalha de Montijo, tendo passado alguns anos no cárcere.

Infantaria (os regimentos nunca tomaram forma)

Regimento de infantaria de Viole d’Athis. Coronel: Eustache Pierre Viole d’Athis (m. 1643); capitães: François Bouchel de Mirville, Stephan Damar de La Molière, Charles Yvelin de Roquemont.

Regimento de infantaria de Orelio (ou O’Reilly, irlandês). Coronel: Hugo Orelio (ou O’Reilly, irlandês); capitães: Carlos Orelio (ou O’Reilly, irlandês), Nicolas de La Rocca, Volant de Roufiat.

Regimento de infantaria de MacSuey (escocês). Coronel: Maurice MacSuey (escocês); capitães: Henri Marast de Loges, Louis de La Motte de La Prelle, Guillaume Giroult de La Vardin

Regimento de infantaria de Tirel (italiano). Coronel: Gualtiero Tirel (italiano); capitães: Rodrigo Chiogo (italiano – em 1644 deixou o exército e tornou-se frade), John Dungan (irlandês).

Imagem: Soldados franceses – um cavaleiro e um infante mosqueteiro da década de 1640. Gravura extraída da obra de Philip Haythornthwayte The English Civil War 1642-1651. An Illustrated Military History, London, Brockhampton Press,1994.