A fortaleza de Peniche em 1644

Fortaleza Peniche

A faixa costeira portuguesa não era considerada uma frente de guerra de principal importância, apesar dos receios do poderio naval espanhol (uma ameaça que, todavia, nunca se veio a concretizar durante o conflito). A defesa estática da costa encontrava-se subalternizada em relação às fronteiras do hinterland português, tanto em homens como em material.  Mas qualquer movimento suspeito de navios podia aumentar, de súbito, as preocupações entre a população civil e os comandantes militares.

Um episódio desta natureza é reportado por Gaspar Luís de Meireles, comandante da fortaleza de Peniche, ao Conselho de Guerra. Na sua carta de 16 de Julho de 1644 refere que nesse mesmo dia, um sábado, pela uma hora da tarde, tinham aparecido oito navios à parte do norte, os quais se dirigiram às Berlengas, onde ancoraram. Foram identificados como navios de Dunquerque, cidade portuária no norte de França que desde 1559 pertencia à Espanha, na sequência do Tratado de Cateau-Cambrésis. Gaspar Luís de Meireles manifesta a sua preocupação pelo facto da vila estar aberta e sem abastecimento nenhum, sofrendo muita falta de artilharia, apetrechos para ela e munições, conforme em outra carta, escrita em 24 de Maio, tinha exposto ao Conselho de Guerra. E acrescenta: E o porto é tal, que não faltam jamais navios de Mouros, sem falar dos de Dunquerque. Recorda ainda que D. João IV havia ordenado que houvesse mil infantes de guarnição no presídio, mas hoje não tem mais de sessenta que se repartem em três postos, não se podendo socorrer uns aos outros. As companhias da terra não tinham gente por serem todos marinheiros, de sorte que se não pode ter esperança, senão de vinte ou trinta homens honrados da terra que não faltarão no serviço de Vossa Majestade.

Na sequência destas queixas e preocupações, o Conselho de Guerra solicitou que o Rei mandasse perguntar ao Conselho da Fazenda que razão tinha para não executar as consultas que lhe tinham sido dadas sobre a consignação daquele presídio, e que com efeito se remediasse necessidade tão urgente, enviando os mantimentos que se tinham ordenado e 120 soldados para aquele presídio, em lugar dos que dele se tinham levado para a província do Alentejo.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4-A, nº 282, consulta de 21 de Julho de 1644.

Imagem: Fortaleza de Peniche (parte da fortaleza com a traça primitiva, concluída em 1570). Foto de J. P. Freitas.

Cavalaria e dragões holandeses em Portugal – a mostra de 29 de Junho de 1644

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A mostra de 29 de Junho de 1644 foi feita com o intuito de verificar os efectivos reais da cavalaria na província do Alentejo, um mês volvido sobre o desastre das forças montadas do exército português na batalha de Montijo, e aquilatar as necessidades em cavalos, armamento e equipamento.

No rol da mostra não se faz qualquer referência a regimentos de cavalaria ou dragões, somente a cada companhia, sob o título genérico “Cavalaria Holandesa”; havia 8 companhias de cavalos e 4 de dragões – estas só se distinguem pelo armamento descrito. A cavalaria (e dragões) dos holandeses contava com um efectivo de 448 homens, correspondente então a 26,8% do total da província, contando soldados montados e apeados. No entanto, cerca de 40% dos soldados holandeses não estavam providos de cavalos.

Ao contrário da cavalaria francesa, que não estava equipada com murriões, peitos e espaldares, a cavalaria holandesa estava munida deste equipamento, tal como as companhias portuguesas, embora uma parte dele estivesse em falta. Só os dragões não tinham qualquer tipo de protecção metálica.

Eis os efectivos detalhados (não estão incluídos os oficiais das companhias, nem os furriéis, trombetas e ferreiros):

Companhia do coronel Jan Willem van Til: soldados montados – 49; apeados – 3; carabinas – 9; pistolas – 54; peitos – 28; espaldares – 27; murriões – 22.

Cª do sargento-mor Alexandre van Harten: soldados montados – 23; apeados – 7; carabinas – 25; pistolas – 56; peitos – 28; espaldares – 28; murriões – 28.

Cª do capitão Conrad Piper: soldados montados – 22; apeados – 12; carabinas – 11; pistolas – 44; peitos – 22; espaldares – 22; murriões – 22.

Cª do capitão van Wagen (ou Wagenheim): soldados montados – 43; apeados – 10; carabinas – 9; pistolas – 78; peitos – 3; espaldares – 3; murriões – 2.

Cª do capitão Mauricius Lamair (2): soldados montados – 19; apeados – 6; carabinas – 2; pistolas – 38; peitos – 1; espaldares – 1; murriões – 1.

Cª do capitão Jacob de Cleer (2): soldados montados – 25; apeados – 7; carabinas – 1; pistolas – 46; peitos – 24; espaldares – 24; murriões – 24.

Cª do capitão Mathias Waremburg (1): soldados montados – 22; apeados – 18; carabinas – 4; pistolas – 35; peitos – 23; espaldares – 23; murriões – 23.

Cª do capitão Willem Segres van Wassenhoven: soldados montados – 20; apeados – 29; carabinas – 4; pistolas – 26; peitos – 4; espaldares – 4; murriões – 4.

[dragões] do capitão Frederik van Plettemburg (2): soldados montados – 20; apeados – 11; arcabuzes – 25.

[dragões] do capitão Joan de La Roche: soldados montados – 13; apeados – 27; arcabuzes – 24.

[dragões] do capitão Sigismundus Finkeltous (2): soldados montados – 7; apeados – 23; arcabuzes – 30.

[dragões] do capitão Frederik Streecht (1): soldados montados – 9; apeados – 23; arcabuzes – 31.

(1) Estes capitães não deixaram o serviço em meados de 1642, apesar de terem então recebido passaporte para regressar à sua terra natal (quando escrevi O Combatente durante a Guerra da Restauração…, o período conhecido de serviço destes militares, em face da documentação consultada, não ia além de 1642; fica aqui a correcção).

(2) Estes capitães não deixaram o serviço da Coroa Portuguesa em 1643, conforme refiro a pgs. 87-88 de O Combatente durante a Guerra da Restauração…, mas somente após o termo do primeiro contrato, em meados do ano seguinte.

Fonte principal:  ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, mç. 4-A, nº 264, doc. anexo à consulta de 12 de Julho de 1644, “Rezumo das Companhias de Cauallo que neste Ex.to Seruem a SMgde Apresentado na mostra que se comesou em 29 de Junho 1644”.

Imagem: Cavalaria do período da Guerra Civil Inglesa. “History Day”, Kelmarsh Hall, 2007. Foto de J. P. Freitas.

Cavalaria e dragões holandeses em Portugal (1641-1644) – uma revisão

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A escrita da História nunca é definitiva. Quando se produz uma síntese em função da documentação recolhida e analisada, eis que se descobre um documento até então “escondido” ou descurado que obriga a rever o que até então era dado como muito plausível ou mesmo certo.

É o caso dos dragões ao serviço do exército português. Sobre a existência de uma única companhia portuguesa, não existem grandes dúvidas. No que respeita às unidades estrangeiras de dragões, sabia-se que haviam sido constituídos – pelo menos no papel – um regimento holandês e outro francês. Do francês, a única prova fidedigna que existe é o de uma companhia com 20 soldados, mas sem qualquer tipo de armamento, segundo uma mostra passada em Julho de 1644. Do holandês, escrevi que nunca tinha sido constituído e que os seus militares haviam sido integrados em companhias de cavalos ou combatido como infantaria. A documentação dispersa apontava nesse sentido. A ausência de referências explícitas nas fontes narrativas a dragões holandeses parecia confirmar a hipótese. Até porque o seu hipotético comandante regimental, o tenente-coronel Eustacius Pick, esteve em vias de regressar às Províncias Unidas em meados de 1642, mas acabou por permanecer em Portugal, onde serviu como mestre de campo de um terço português até à batalha de Montijo.

Mas um documento que até agora não tinha sido explorado veio lançar uma nova perspectiva sobre o assunto. Uma carta de D. João da Costa, de 28 de Dezembro de 1643, inclusa numa consulta do Conselho de Guerra de Janeiro do ano seguinte, refere que, ao contrário do sucedido com as unidades francesas, as holandesas ainda não tinham sido reformadas (ou seja, reorganizadas ou extintas, conforme os casos) nessa altura, por se ter extraviado a carta régia que assim o ordenava. Na missiva, o cabo de guerra aponta os números da última mostra que se passara ao contingente holandês. Assim, havia 369 soldados montados de cavalaria ligeira, em oito companhias, que se podem e devem reduzir a quatro. E 148 dragões montados em quatro companhias, que se devem reduzir a duas. Havia ainda 101 soldados a pé. D. João da Costa sugeria que se  formasse com estes soldados uma companhia de infantaria, para que sirvam a pé com mosquetes e arcabuzes enquanto não houver cavalos para lhes dar.

No rol de unidades que constituíram o exército que em 1643 lançou a campanha ofensiva sobre território espanhol, todas as companhias holandesas são incluídas na cavalaria, sem qualquer distinção ou referência a dragões (veja-se, por exemplo, João Salgado de Araújo). No segundo contrato celebrado com a Coroa portuguesa (1644-1647), ficou a servir em Portugal apenas um regimento de cavalaria a 4 companhias, inicialmente com cerca de 100 soldados cada. Sobre este assunto a documentação é mais clara e não deixa margem para dúvidas.

Fonte:  ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4, cx. 29, carta anexa ao doc. nº 75.

Imagem: “Assalto de militares a uma aldeia”; Sebastian Vrancx, meados do séc. XVII.

Música militar do período da Guerra da Restauração – Scotch March

Não será de todo improvável que esta marcha militar tenha sido ouvida em Portugal, tocada pelos tambores e pífaros dos regimentos de infantaria ingleses chegados em 1662. De facto, apesar de se chamar Scotch March, esta marcha que data do século XVI era popular no exército inglês. Além disso, recorde-se que os militares dos regimentos ingleses de infantaria enviados por Carlos II estiveram estacionados durante anos na Escócia, antes de embarcarem para Portugal. Samuel Pepys, Primeiro Secretário do Almirantado Britânico, ouviu a Scotch March ser tocada em Rochester, em 1667, pelos tambores do regimento de Lord George Douglas, que desfilava pelas ruas daquela cidade. Anotou este facto no seu diário – no qual, de resto, também faz algumas referências à guerra e à presença dos soldados ingleses em Portugal, bem como às notícias do seu desempenho em combate, como por exemplo na batalha do Ameixial (de cujo resultado Pepys só veio a ter conhecimento precisamente um mês depois do ocorrido).

Tenha ou não soado em Portugal, aqui fica a Scotch March.

Regimentos ingleses ao serviço da Coroa portuguesa (1662-1668)

casacas vermelhas

Na sequência do Tratado de Aliança celebrado entre Portugal e Inglaterra em Junho de 1661, ficou acordado que a Coroa inglesa enviaria para Portugal dois regimentos de cavalaria e dois regimentos de infantaria. Os primeiros teriam um efectivo de 500 homens cada e os segundos contariam, cada um, com 1.000 infantes. Uma força de 3.000 militares profissionais, assim se esperava.

Os efectivos totais enviados para Portugal ficaram abaixo do esperado. A cavalaria contou apenas com um regimento composto, inicialmente, por 8 companhias, num total de 400 homens. Uma força bastante heterogénea, com militares provenientes do antigo exército da Commonwealth de Oliver Cromwell e outros que se tinham batido no campo oposto – os Realistas – durante a Guerra Civil Inglesa, incluindo irlandeses. Aliás, o primeiro comandante do regimento foi um irlandês, o coronel Michael Dongan, que até 1661 tinha servido como mestre de campo no exército de Filipe IV. Já os dois regimentos de infantaria embarcaram para Portugal com um efectivo total de 2.200 homens, todos eles voluntários e antigos militares do exército de Cromwell. Após a restauração da monarquia em Inglaterra, Carlos II desmobilizou a maior parte das unidades criadas por Oliver Cromwell, mas algumas mantiveram-se ao serviço da monarquia. Era o caso de três regimentos que tinham a sua guarnição na Escócia, a partir dos quais se formaram os dois que viajaram para Portugal em 1662. A infantaria veio equipada com uniformes de cor vermelha (casaca, colete e calça), provavelmente com vivos nos canhões das mangas de cor diferente para cada regimento, como era usual na época. O vermelho tornara-se cor predominante (embora não a única utilizada) nos uniformes ingleses desde a criação do New Model Army em 1645. Em suma, o efectivo inicial do contingente inglês era de 2.600 militares (2.200 infantes e 400 cavaleiros).

A deserção e o atrito das campanhas fez oscilar grandemente os números ao longo dos anos da guerra, sempre com a tendência para a diminuição, pois as reposições das perdas foram escassas. Por exemplo, na batalha do Ameixial, em Junho de 1663, o contingente inglês compunha-se de 1.600 infantes, em dois regimentos, e 300 cavaleiros, num regimento a 6 companhias. Nos finais de 1666, o regimento de cavalaria mantinha cerca de 300 soldados nas fileiras (graças a um reforço de irlandeses), mas os dois regimentos de infantaria não conseguiam, em conjunto, alinhar mais do que 700 soldados. O contingente tinha então  pouco mais da terça parte do efectivo inicial.

Os ingleses bateram-se com brio e coragem em muitas ocasiões, sendo a sua experiência militar muitísismo importante para os sucessos alcançados na batalha do Ameixial (1663), tomada de Valência de Alcântara (1664) e batalha de Montes Claros (1665).

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este tema é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais. Aqui ficam os comandantes das unidades:

Comando do contingente: Murrough O’ Brien, Conde de Inchinquin (Julho-Novembro 1662); Christopher O’ Brien (Novembro 1662-Janeiro 1663); Conde de Schomberg (1663-1668).

1º Regimento de infantaria: Coronel James Apsley. A partir de 1665, o regimento passou para o comando pessoal do Conde de Schomberg, mas o comando efectivo foi delegado no tenente-coronel William Sheldon. Este oficial liderou o regimento na batalha de Montes Claros, em 1665, tendo morrido aí em combate.

2º Regimento de infantaria: Coronel Henry Pearson; o regimento foi comandado pelo tenente-coronel Thomas Hunt na batalha do Ameixial. Thomas Hunt morreu em 1664, no ataque a Valência de Alcântara, passando o regimento a ser comandado pelo major John Rumpsey. Foi este oficial que conduziu o regimento em 1665, na batalha de Montes Claros, pois Pearson continuava ausente em Inglaterra.

Regimento de cavalaria: Murrough O’ Brien, Conde de Inchinquin (Julho-Novembro 1662); Conde de Schomberg (comandante honorário. 1662-1668). O comando efectivo do regimento foi desempenhado pelo tenente coronel Michael Dongan, até à sua morte na batalha do Ameixial. Depois,  foi entregue ao major Lawrence Dempsey, e quando este morreu em 1664, coube ao Marquês de Schomberg, o filho mais velho do Conde, chefiar a unidade até ao final da guerra.

Bibliografia:

CHILDS, John – “The British Brigade in Portugal, 1661-1668”, in Journal of the Society for Army Historical Research, vol. LIII, 1975, pp. 135-147.

Id. – The Army of Charles II, London, Routledge & Kegan Paul, 1976. (O apêndice sobre o contingente inglês, no final do volume, contém erros a respeito das unidades em que os oficiais serviram)

HARDACRE, P. H. – “The English Contingent in Portugal, 1662-1668”, in Journal of the Society for Army Historical Research, vol. XXXVIII, 1960, pp. 112-125.

Imagem: Piqueiros ingleses do período da Guerra Civil. É pouco provável que em Portugal tenham usado peitos e espaldares – embora alguns oficiais os utilizassem: numa ocasião, foram as boas armas de corpo usadas por James Apsley que o salvaram de receber danos de armas de fogo. Também as casacas seriam de um modelo diferente, mais compridas, de acordo com a moda da década de 60. Foto de J. P. Freitas – Kelmarsh Hall, “History Day” 2007.

Espingardas e emboscadas

Guarda1

No século XVII, o termo espingarda designava uma arma de fogo com fecho de pederneira. À margem do meio militar, era muito utilizada por caçadores. Mas também tinha o seu emprego no meio castrense, apesar das armas de fogo pessoais mais utilizadas serem a pistola, o arcabuz de mecha e o mosquete de mecha.

O problema das armas de fogo de mecha era a necessidade de transportar o morrão aceso, de forma a provocar a ignição da pólvora e fazer o disparo. Quando se pretendia emboscar o inimigo à noite ou em zonas obscuras, o morrão aceso podia denunciar os soldados que preparavam a surpresa ao inimigo. Aliás, um estratagema conhecido, destinado a enganar o adversário à noite, era deixar morrões acesos num local – por exemplo, atrás de sebes ou mato – de forma a atrair o fogo inimigo, para depois mais facilmente o castigar com uma salva de tiros a partir de outra posição ou para o carregar, sem deixar tempo a que pudesse recarregar a arma ou ter outra reacção. Um exemplo deste tipo é referido por Aires Varela em 1644:

[Joane Mendes de Vasconcelos] (…) enviou desta cidade o coronel Til [Jan Willem van Til, holandês] com o seu regimento, e a Luís Mendes de Vasconcelos, para que em Campo Maior, com o capitão João de Saldanha da Gama, passassem a Vilar del Rey,  fizessem emboscada e dano que pudessem; ordenou que na madrugada de 9 de Fevereiro, em ue se havia de fazer, tocassem arma viva em Valverde, para o inimigo mandar pedir socorro a Badajoz, e obrar emboscada em Vilar del Rey sem risco. De Olivença passaram áquele lugar alguns soldados, e junto dele, por entre o arvoredo maquieiro e outro mato baixo, puseram quantidade de mechas acesas; e tocando arma, se meteu o Castelhano em confusão, e a nossa gente em lugar seguro. O inimigo correu às trincheiras, descobriu as mechas, e parecendo-lhe gente de guerra deu contra elas muitas cargas [tiros]; os nossos, seguros, as festejavam, e em amanhecendo se retiraram, e os Castelhanos descobriram a travessura e se acharam corridos [enganados]. (Aires Varela, Sucessos que houve nas fronteiras (…), o terceiro anno da Recuperação de Portugal, que começou em o 1º de Dezembro de 1643, Elvas, Typografia Progresso de António José Torres de Carvalho, 1900, pg. 13)

Isto era o que se podia fazer com morrões. Para outras surpresas nocturnas, as espingardas com fecho de pederneira eram fundamentais. Num documento de 1657, João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa, 2º Conde de Castelo Melhor e governador das armas de Entre Douro e Minho, pede que lhe sejam enviadas 200 espingardas para as emboscadas. No entanto, não se tratava de qualquer novidade. A espingarda datava do século XVI, e já Isidoro de Almeida se lhe referia quando recomendava que, de noite, para dar sinal da aproximação do inimigo (o tocar arma), se utilizasse o fuzil – entenda-se: arma com fecho de pederneira, como a espingarda – de forma a que o soldado de vigia não fosse denunciado pelo morrão aceso: Entre estas cumpre haver um arcabuzeiro para dar sinal de arma; outros o dão com fuzil, se é de noite. (“Quarto Livro das Instruções Militares de Isidoro de Almeida”, in Alberto Faria de Morais, Arte Militar Quinhentista, separata do Boletim do Arquivo Histórico Militar, Lisboa, s.n., 1953, pp. 144-145; edição original: Évora, em casa de André de Burgos, 1573)

Imagem: Guarda de piqueiros e mosqueteiros. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa em Old Sarum, Inglaterra. Foto de J. P. Freitas.

Ainda os “cavalinhos de pau”

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O estimado amigo e investigador Julián García Blanco, a propósito do artigo sobre os “cavalinhos de pau”, enviou-me cópias de dois documentos impressos em Espanha durante a Guerra da Restauração, nos quais é feita menção àquele engenho que a infantaria portuguesa utilizava para se proteger da cavalaria inimiga. Obstáculos deste tipo eram usados desde a Idade Média e algumas variantes foram utilizadas durante a Guerra dos 30 Anos, como por exemplo o  jocosamente denominado por “Penas Suecas”, ou “Penas de Porco” – uma forquilha para mosquete, na qual estava incorporado um espigão para a defesa do infante atirador contra a cavalaria. No entanto, no contexto da guerra entre os vizinhos ibéricos, pelas referências até agora encontradas, parece ter sido de uso exclusivo dos portugueses, embora os obstáculos do género fossem bem conhecidos pelos militares espanhóis.

Na Verdadera Relación de la famosa Batalla, y vitoria que han tenido las armas Catolicas contra Portugal, viniendo a sitiar la Ciudad de Badajoz, de 1646, há uma passagem em que se demonstra a eficácia dos “cavalinhos de pau”. De acordo com o autor espanhol da Relación:

Nuestra cavalleria apretava fuertemente la contraria, y ella peleava siempre opuesta para salvar su infanteria. (…) Viendo el Marqués [de Molinguen] que el enemigo llegava ya al esguazo, dexando la mitad de la cavalleria de reten con la otra mitad, y con determinada, y no vista resolucion embistio la del enemigo hasta hazerla bolver las espaldas, y huir a su infanteria, que corriera la misma fortuna, si llegando a ella, no la toparan los nuestros guarnecida con un frente de crizos (que aqui llaman cavallos de palo) todos encadenados, y puestos a modo de peynes, de donde no pudo passar nuestra cavalleria, antes le fue fuerza retirarse de las muchas, y menudas cargas de mosqueteria que le dava el enemigo, logrando la ocasion que le dava el estorvo referido (…).

A descrição dos “cavalinhos de pau” corresponde à que o soldado Mateus Rodrigues deixou (com um detalhe mais minucioso) nas suas memórias sobre a campanha do forte de Telena e que aqui foi reproduzida.

Referência que se repete em outro documento, uma carta enviada pelo Marquês de Molinguen a Filipe IV de Espanha sobre a mesma campanha, entre 15 e 21 de Setembro de 1646, na qual, a dado passo, se descreve a disposição do exército português:

En 18 por la mañana amanecio en batalla, y su carruage y demas bagaje puesto en ordenança entre el esguazo del rio Guadiana y el fuerte de Telena, que dista menos de un tiro de cañon, deixandolo cubierto por el costado derecho de los vallados y viñas, que los ay desde el fuerte hasta el mesmo esguazo, y por el izquierdo le guarnecio de una hilera de carros, y otra de puerco espines, que ellos llaman cauallos de palo.

Note-se a designação de “porco-espinhos” aos obstáculos. Na relação, também impressa, do Marquês de Molinguen sobre a composição do exército português, pode ler-se que havia “quinientos cavallos de palo” entre o material de guerra do exército comandado por Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete.

Fontes:

Copia de carta del Marques de Molinguen General del Exercito de Badajoz, escrita al Sñor Don Iuan de Santelizes e Guevara, del Consejo de Su Magestad en el Real de Castilla, y Governador de là Audiencia de Sevilla, su fecha en 21 de Setiembre deste año de 1646, en que se le dà quenta de lo sucedido en el Campo de Telena desde 15 del dicho mes, hasta los dichos 21. En que se incluye otra copia de la Relacion que el dicho Marques de Molinguen embió a Su Magestad sobre lo mismo, cuyo tenor es como se sigue, Sevilla, Juan Gomez de Ilas, 1646.

Verdadera Relación de la famosa Batalla, y vitoria que han tenido las armas Catolicas contra Portugal, viniendo a sitiar la Ciudad de Badajoz, Madrid, Carlos Sanchez Bravo, 1646.

Imagem: Planta de Telena, c. 1655, publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Com um grande obrigado ao amigo Julián García Blanco.

O Teatro de Operações Transmontano: artigo online na Revista Militar

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A Guerra da Restauração (1640-1668) no Teatro de Operações Transmontano”. Um interessante artigo do Sr. Tenente-General José Lopes Alves, na edição on-line da Revista Militar.

Imagem: Província de Trás-os-Montes, pormenor de um mapa de 1700. Posterior à Guerra da Restauração, mas elucidativo da dimensão da província e daquela que foi a fronteira de guerra. Biblioteca Nacional de Lisboa, Cartografia, CC164P.