Armamento de fabrico sueco chegado a Portugal em finais de 1641

Uma relação publicada em 1642 dava conta do material de guerra que o embaixador D. Francisco de Sousa Coutinho trouxera da Suécia em três naus de guerra, chegadas em Dezembro do ano anterior. O panfleto, com evidente finalidade propagandística, divulgava assim, sem grandes floreados, um êxito diplomático: o reconhecimento do Reino de Portugal – recentemente separado da monarquia Hispânica – por parte de uma potência europeia com peso militar na Europa da primeira metade do século XVII. A isto juntava-se o objectivo de mostrar que o exército português estava a preparar-se convenientemente para a guerra.

O panfleto é aqui transcrito com ortografia corrigida para português actual.

Relação das armas que do reino de Suécia traz Francisco de Sousa Coutinho, Embaixador às partes Setentrionais, em três naus de guerra.

Armas que vêm com preço feito.

Quatro mil mosquetes com capacetes e bandoleiras, custou cada um mil e quarenta réis.

Cinco mil piques, cada um cento e noventa réis.

Dois mil corpos de armas brancas, cada um setecentos e vinte réis.

Cem peças de artilharia de ferro, cada arratel quatro réis.

Cem peças de artilharia de bronze, não se sabe o preço.

Mil pistolas com suas bolsas, cada uma oitocentos réis.

Armas que vêm da Rainha da Suécia, para se venderem neste Reino.

Oitenta peças de artilharia de bronze.

Cinquenta de ferro.

Mil piques.

Dois mil e quinhentos corpos de armas.

Dois mil mosquetes.

Mil e duzentas pistolas com suas bolsas.

Armas que vêm de mercadores para se venderem neste Reino.

Setenta peças de ferro.

Sessenta peças de artilharia de bronze.

Oitocentos e cinquenta corpos de armas.

Setecentos piques.

Mil e novecentas pistolas com suas bolsas.

Vêm mais trinta mastros grandes.

Uma embarcação carregada de pólvora.

E alguns cavalos.

(…)

Em Lisboa, por António Alvarez, Impressor d’El-Rei Nosso Senhor, ano de 1642.

(Biblioteca Nacional, secção de Reservados, microfilme, F.R. 131)

Imagem: “Cena de Batalha”, Joseph Parrocel, The Courtauld Gallery, Londres.

Necessidades de material de guerra na província de Entre-Douro-e-Minho, 1657

O 2º Conde de Castelo Melhor, governador das armas da província de Entre-Douro-e-Minho, expôs em duas cartas enviadas ao Conselho de Guerra, em 13 de Agosto e 24 de Setembro de 1657, as necessidades que o seu exército tinha para poder encetar uma campanha ofensiva na Galiza durante o Inverno de 1657-58. Fez acompanhar uma delas da lista exaustiva do material indispensável, que intitulou “Ramo das Couzas e aprestos do Trem da Artilheria que hé nesessario pêra Hum exercito de oito mil Infantes, noueçentos Cauallos, & dous mil gastadores, Campearem dous mezes, em tempo de Inuerno, e fazer acometimento de Praça“.

Contudo, os conselheiros não se mostraram muito entusiastas na apreciação do pedido. Somente em Janeiro de 1658 apreciaram as cartas e a relação do material, e solicitaram à Rainha Regente que ouvisse de novo o Conde sobre as necessidades de defesa da província. Foi dada prioridade às tarefas defensivas: os quatro conselheiros (Pedro César de Meneses, o Conde do Prado, Salvador Correia de Sá e Rui de Moura Teles) reconheciam o valor e a experiência de Castelo Melhor na defesa e conservação de Entre-Douro-e-Minho, mas só Pedro César de Meneses referiu a possibilidade de conduzir uma guerra ofensiva na Galiza. Havia, sobretudo, que não descurar o Alentejo e a Corte (ou seja, a capital do Reino) ao enviar reforços para a província setentrional. A Rainha, em decreto de 5 de Fevereiro de 1658, mandou que se aplicasse o parecer de Moura Teles, que era conforme ao da maioria dos conselheiros.

Sem pretender transcrever exaustivamente a lista, apresenta-se aqui algum do material de guerra nela referido, pois ajuda-nos a ter uma percepção mais concreta do equipamento do exército português do período. Deste modo, o governador das armas solicitava o seguinte:

Artilharia

– 4 meios-canhões de 24 libras de bala.

– 2 quartos-de-canhão, ou meias-colubrinas, de 12 libras de bala.

– 4 bastardas ou peças de campanha de 8 libras.

Todas as peças deviam estar aparelhadas de todo o material necessário, incluindo sobresselentes. E recomendava o Conde: Estas dez peças acima hão-de ser de cano seguido, e de metal de toda a conta.

Munições para a artilharia e armas de fogo individuais

– Para as peças de 24 libras: 192 quintais de pólvora e 1.536 balas. (Um quintal equivalia a 4 arrobas, ou seja, um total aproximado de 45 quilos)

– Para as peças de 12 libras: 77 quintais de pólvora e 1.152 balas.

– Para as peças de 8 libras: 135 quintais de pólvora e 3.840 balas.

– Para se encherem 300 bombas de morteiro e para se encherem 1.000 granadas de mão: 25 quintais de pólvora.

– Para 5.000 armas de fogo necessárias para equipar 8.000 infantes: 300 quintais de pólvora.

– Para as 5.000 armas de fogo: 400 cunhetes de balas de chumbo de mosquetes biscaínhos e holandeses.

– Para as mesmas armas de fogo e para a artilharia: 250 quintais de morrão.

– Para os 900 soldados de cavalos propostos: 8 quintais de pólvora fina.

– Para a cavalaria: 10 cunhetes de bala miúda para pistola.

São ao todo 737 quintais de pólvora, 410 cunhetes de balas, 250 quintais de morrão, 6.528 balas de artilharia.

Armas e equipamento para a infantaria e cavalaria

– Armas de sobresselente para a infantaria e a cavalaria: 800, entre mosquetes e arcabuzes biscaínhos e holandeses, com suas forquilhas e frascos.

– 1.200 piques.

– 100 pares de pistolas com suas bolsas.

– 50 carabinas com suas bandolas.

– 50 selas e freios para cavalos.

– 2.000 pederneiras (para as pistolas da cavalaria).

– 200 pares de esporas.

– 50 corpos de armas com murriões (ou seja, peito, espaldar e capacete, equipamento defensivo para os cavaleiros).

– 50 alabardas (para os sargentos).

– 50 rodelas de ferro e outras tantas espadas largas cortadeiras (para os capitães das companhias de infantaria, ou para os voluntários em operações especiais).

– 60 borrachas grandes para levar, cada uma delas, uma arroba de pólvora (uma arroba: cerca de 11 quilos).

– 4.000 estribos pequenos para a cavalaria.

– 4.000 ferraduras de cavalos.

– 20.000 cravos para as ferraduras.

Fonte:  ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1658, mç. 18, consulta de 31 de Janeiro de 1658.

Imagem: Granada de mão (século XVII). Utilizada no combate próximo de infantaria, principalmente no assalto a fortificações ou em zonas urbanas. Foto de Jorge P. Freitas.

“Guerra y revolución militar en la Iberia del siglo XVII” – artigo online, pela Dra. Lorraine White

Excelente artigo da Dr.a Lorraine White, publicado originalmente em Manuscrits: Revista d’història moderna, Bellaterra, Servei de Publicacions de la Universitat Autònoma de Barcelona, N. 21 (2003).

Pode ser lido online aqui.

Imagem: Cerco de Badajoz pelo exército português (1658), gravura existente num arquivo francês. Não disponho da referência completa da gravura, que me foi enviada pelo Sr. Carlos Sanchéz. Compare-se com a que foi aqui apresentada, da autoria de João Tomás Correia, existente na Biblioteca Nacional de Lisboa.

O outro Jacques Talonneau de la Popelinière, oficial francês de cavalaria ao serviço de Portugal (1646-1658)

Aelber

O primeiro Jacques Talonneau de la Popelinière foi um oficial francês que chegou a Portugal em Setembro de 1641, na armada do Marquês de Brézé, fazendo parte do regimento de cavalaria ligeira do coronel Sebastian de Mahé de la Souche. É indubitável a chegada de Popelinière nesta data, pois o seu nome é referido em diversos documentos, alguns dos quais relações dos oficiais franceses e respectivos regimentos. Quando Mahé de la Souche deixou Portugal em Maio de 1642 e o seu regimento foi dissolvido, Jacques de la Popelinière seguiu com a sua companhia para a Beira, onde logo foi nomeado comissário geral (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, vol. I, pg. 387, edição de 1945). Em 1644, aquele oficial é dado como morto em combate – e é assim que o reporto no meu estudo O Combatente durante a Guerra da Restauração, ainda que referindo que o seu último posto foi o de tenente-general da cavalaria na província de Trás-os-Montes.

Na verdade, documentos que posteriormente consultei sugerem ter havido um outro Jacques Talonneau de la Popelinière (casos de homónimos eram raros, mas não impossíveis: houve o exemplo, também entre cavaleiros franceses ao serviço de Portugal na mesma época, dos primos Henri de la Morlaye, um morto em Outubro de 1642, outro em Maio de 1649, ambos em combate). Este Popelinière é que ocupou, como último posto, o de tenente-general da província de Trás-os-Montes. Chegou a Portugal em 1646, portanto já após a morte do primeiro, e também combateu nos mesmos teatros de operações antes de ser promovido a comissário geral na província de Trás-os-Montes, em Janeiro de 1658.

A necessidade de nomeação de um comissário geral da cavalaria para Trás-os-Montes deveu-se ao facto do posto estar vago, por promoção de Domingos da Ponte, o Galego, a tenente-general naquela mesma província. Na consulta do Conselho de Guerra onde são feitas as propostas de sujeitos para o posto vago pode ler-se a respeito do até então capitão Jacques Talonneau de la Popelinière (texto vertido para português corrente):

Jacques Talonneau de la Popelinière, pessoa de qualidade, de nação francês, que serve a Vossa Majestade há quase doze anos, ocupando os postos, depois de soldado, de alferes, tenente, e de capitão de cavalos, que serve em Trás-os-Montes há seis anos, um mês, e quinze dias, e o mais tempo parte dele na Beira, e outro nas fronteiras de Alentejo, achando-se nelas na maior parte das ocasiões que naquele tempo se ofereceram, e particularmente no encontro que houve em vinte seis de Março de seiscentos quarenta e sete, com vinte quatro tropas na passagem de Cantilhana, na escaramuça que depois se teve com outras tropas de Badajoz, ficando prisioneiro entre elas, e tornando de Castela em sua liberdade, se achou na emboscada que se fez junto a Badajoz em Setembro de quarenta e nove; no encontro que houve com sete tropas em Albufeira, indo mais de uma légua no seguimento delas; e se achou na peleja que a nossa cavalaria teve com a que saiu de Montijo, na correria da campanha de Xerês. E sair de Olivença a pelejar com o inimigo, que se veio emboscar junto da muralha da mesma praça, em Maio de seiscentos e cinquenta, desmontando um castelhano lhe deu uma cutilada no rosto. Na oposição que em treze de Fevereiro de seiscentos cinquenta e um se fez ao inimigo vindo com grosso de sua cavalaria a correr a campanha de Olivença, saiu ferido num braço com bala de pistola. E o mesmo ano se achou na entrada de Salvaterra, e o mesmo ano passou a Trás-os-Montes, onde por ordem do Conde de Atouguia, que governava as armas, por não haver cabo, governou a cavalaria que assistia em Chaves, achando-se nas duas entradas que se fizeram em Castela, e na ausência do capitão-mor da cidade de Miranda a ficou governando, acudindo com grande zelo às fortificações dela, e ultimamente se assinalou, matando e ferindo e rendendo a muitos do inimigo. E na entrada que em dois de Maio de seiscentos cinquenta e cinco se fez, pelas terras de Trás-os-Montes com quatrocentos e quarenta cavalos, tendo-se-lhe encarregado investisse o inimigo, como fez com valor indo em seu seguimento, e da mesma maneira obrar nas ocasiões referidas. Depois delas, acompanhou o mestre de campo António Jacques de Paiva, e achando-se em Miranda, nas entradas que fez em Galiza onze léguas pela terra dentro, saqueando-lhe mais de  setenta lugares, e as Vilas de Pino, Távora e Carvalhosa. E pretendendo o inimigo desquitar-se, vindo com quinhentos infantes pagos e outros tantos milicianos, e cento e quarenta cavalos, achando-se o mestre de campo na campanha com duzentos e três infantes e oitenta cavalos à ordem de Jacques Talonneau, investiu o inimigo com tal resolução, que matando-lhe muita gente e aprisionando-lhe duzentos trinta e sete soldados, com vinte e oito cavalos, e ganhando-lhe as munições e bagagem, e finalmente restaurando a presa que levava se recolheram, assinalando-se este capitão com particular valor, pelejando à espada, rendendo, ferindo e matando muitos castelhanos. Em outra ocasião, por ordem do tenente-general Luís de Figueiredo Bandeira, saiu com a sua companhia, e outra mais, governando-as, por haver o inimigo dado rebate à praça de Bragança, e encontrado-se com ele, pelejou com tal resolução que o pôs em fugida, trazendo ainda alguns prisioneiros do inimigo. Foi de socorro com sua companhia e a mais cavalaria de Trás-os-Montes à fronteira do Minho na ocasião que o inimigo a entrou com exército, e em todo o tempo que ali assistiram, se houve com grande valor nas pelejas, emboscadas e encontros que se teve com o inimigo, em que recebeu muito grande perda de gente morta, ferida, prisioneiros, e de cavalos que se lhe tomaram. Acabada a campanha, tornou para Trás-os-Montes. E vindo a esta Corte a tratar de seu requerimento, escreveu a favor deste capitão Joane Mendes de Vasconcelos, governando as armas naquela província, a Vossa Majestade que lhe devia Vossa Majestade de mandar deferir, assim por seu grande valor, como por ser o capitão mais antigo dela. E havendo Vossa Majestade despachado por seus serviços com o hábito de Santiago, foi servido se lhe mudasse ao de Cristo, com uma comenda de lote de duzentos mil réis.

O outro nome proposto foi o de Manuel da Costa Pessoa, que servia há treze anos, dois meses e vinte dias, tendo começado a servir em Setúbal em Setembro de 1640, na companhia de infantaria do Duque de Aveiro que devia ir à Catalunha; serviu 5 anos no Alentejo como soldado de infantaria e da cavalaria, foi cabo de esquadra e furriel e depois alferes de infantaria; participou na campanha de 1643 e nas duas campanhas de Montijo (como soldado de cavalos). Passou a Trás-os-Montes como alferes reformado, assim permanecendo 5 meses e 17 dias, mas depois, 3 anos e 27 dias de ajudante e como capitão de cavalos 4 anos, 7 meses e 11 dias.

O capitão francês acabou por ser provido no posto de comissário geral por decreto de 21 de Janeiro de 1658.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1658, mç. 18, consulta de 9 de Janeiro de 1658.

Imagem: Aelbert Cuyp, “Descanso no acampamento”, c. 1660, Musée des Beaux Arts, Rennes.

Postos do exército português (20) – o preboste geral

A sentinela Carl Fabritius 1654

O termo preboste deriva do latim proepositus. A designação corresponde ao oficial responsável pelo policiamento, aplicação e execução da justiça militar. Conforme escrevia Bartolomé Scarion de Pavia na sua Doctrina Militar… (1598), es cargo muy odioso y poco ó nada honroso. Esta afirmação releva das obrigações pouco simpáticas do preboste geral, que tinha de mandar enforcar, por vezes, os soldados que infringiam a disciplina militar. Em certos casos, nem os oficiais escapavam ao cumprimento da ordem de detenção levada a cabo por este seu camarada. Ascendia-se a preboste geral a partir do posto de capitão de infantaria, de acordo com o projecto de Ordenanças Militares de 1643, embora Joane Mendes de Vasconcelos, nos seus comentários, advertisse que considerando o humor dos portugueses [ou seja, o carácter], me parece bastará serem eleitos de ajudantes de infantaria. Referia ainda o general português que o preboste geral tem uma companhia de cavalos com patente de arcabuzeiros, dois tenentes e um capelão, que o acompanham com o verdugo, porque tudo é necessário para a breve execução da justiça. A companhia do preboste geral (uma das que, depois da reforma da cavalaria portuguesa de 1664, se manteve independente, isto é, não enquadrada em troços semi-permanentes) devia compreender um mínimo de 40 soldados. As Ordenanças Militares de 1643, no título 36, explicitavam que o exercício do cargo implicava a verificação da execução das ordens e bandos (editais militares), policiamento dos caminhos e atribuição dos lugares dos vivandeiros no acampamento. Estas funções não são totalmente estranhas às que passaram a ser desempenhadas pelas unidades de polícia militar em épocas posteriores.

Bibliografia:

AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 78.

ALMIRANTE, José, “Preboste”, in Diccionario Militar, Madrid, Ministerio de Defensa, 1989, vol. II, pg. 871.

Imagem: “A sentinela”, quadro de Carl Fabritius (1654). Vencido pelo sono, o mosqueteiro estará metido em grandes sarilhos se calha o preboste geral passar por ali…

O ataque ao Vale de Matamoros, 25 de Novembro de 1653 – Parte 3

Gerard

Continuemos com a narrativa de Mateus Rodrigues:

[L]á pela tardezinha [hoje dir-se-ia “lá pela tardinha”], (…) já se ia o sol posto quando a nossa infantaria veio aparecendo a um alto, à vista da vila. Assim como os castelhanos viram a infantaria, ficaram arreados, mas contudo sempre com ânimo dos diabos, que bem se viu no que pelejaram sem terem coisa donde se fizessem fortes, mais que de uma igreja que tinham.

Assim como a infantaria esteve toda junta, formou-se em dois batalhões com suas mangas grossas de mosquetaria diante, e vieram-se chegando para a vila tocando-lhe as caixas [de guerra] a degolar, e a cavalaria toda, por todas as partes também arrimando-se à vila, tocando as trombetas a degolar, que parecia tudo uma notável confusão. As mangas de mosqueteiros que iam diante sempre iam lançando de si muita bala para a vila. O inimigo de dentro da vila choviam [mais correctamente, o autor deveria ter escrito “fazia chover”] balas sobre nós; contudo, assim como se arrimaram às trincheiras foram logo entrando por cima delas, apesar do inimigo. E já a este tempo eram Avé Marias [a hora litúrgica das Vésperas, após o sol posto], que nisso havia ainda mais confusão por ser de noite, que havia tão grande gritaria dentro que se ouvia duas léguas, e já neste tempo estava toda a gente dentro da vila, porém os tiros não cessavam, que até meia-noite houve muitos tiros. O inimigo não tinha donde se fizesse forte senão na igreja, além de que tinham lá a sua fazenda metida, que na vila não havia mais que gado e porcos, muitos, e carne de porco, que havia tanta de porcos vivos e mortos. Tinha este lugar mais de dez mil arrobas de carne, que tratavam ali de fazer chacina [carne conservada em sal] para venderem para fora.

Os defensores refugiaram-se na igreja, sem se quererem render. Só quando viram que os portugueses se preparavam para fazer saltar as portas com um petardo, e sob ameaça de serem todos degolados, decidiram aceitar a capitulação concedida pelo tenente-general Tamericurt, que foi a de poderem sair da vila com todos os bens que pudessem carregar às costas. Para desgosto de Mateus Rodrigues e dos outros soldados, que já contavam com a sua parte da pilhagem,  os cabos maiores do exército entraram no lugar de culto, onde estava reunida a parte mais valiosa dos bens dos moradores, puseram sentinelas à porta e não deixaram entrar os soldados. Logo que os habitantes de Vale de Matamoros saíram com o que puderam carregar, os oficiais trataram de fazer o inventário do valioso saque, pois se o lugar era pequeno, era mui rico, que tinha 200 vizinhos, era o mais fresco lugar de águas e frutas que havia em toda Castela.

Nessa mesma noite puseram fogo a todas as casas. Quando amanheceu, não havia nenhuma que o fogo não tivesse devorado. E foi ao amanhecer que os soldados se puseram em marcha, de regresso às respectivas praças. Mateus Rodrigues refere a desgraça dos feridos: não houve nenhum ferido por coisa pouca que levasse que não morresse, que tinha esta canalha deste lugar tão más entranhas que tinham todas as balas ervadas [untadas com um preparo à base de ervas venenosas – uma prática que, apesar de proibida entre cristãos, ocorria de quando em vez desde a Idade Média, neste caso com as pontas das flechas e dos virotes] e não tinha cura mais senão encomendar a Deus.

Apesar da vila ter sido destruída pelo fogo, a operação custou 200 homens aos portugueses. Nas suas memórias, Mateus Rodrigues recrimina o tenente-general Tamericurt por ter iniciado o ataque ao anoitecer, quando o inimigo estava alerta e ainda podia ver a força atacante. Se tivesse atacado duas horas antes do amanhecer, assevera o memorialista, teria apanhado o inimigo de surpresa e a reacção não seria tão forte. O desprezo que os oficiais demonstraram pela vida dos seus subordinados nesta operação, a desigualdade tremenda na hora de repartir o saque, um sentimento acumulado de injustiça, tudo isto fez crescer  em Mateus Rodrigues – ainda a convalescer da ferida recebida no combate de Arronches – a determinação de deixar o exército e regressar à sua terra de Águeda, ao cabo de mais de 12 anos de serviço.

A queima da vila de Matamoros foi uma pequena operação, que não mereceu mais do que umas breves linhas na monumental obra do Conde de Ericeira. Para o quase desconhecido soldado de cavalos português, autor de um escrito não menos valioso para o estudo da época, tratou-se de um ponto importante de viragem na sua vida. Tomou aí uma decisão: a deserção. Mas ainda antes de a pôr em prática, ver-se-ia envolvido numa outra operação militar, esta de maior envergadura e maior nomeada: a tomada de Oliva. A seu tempo será aqui tratada.

Bibliografia: veja-se a Parte 1 deste artigo.

Imagem: Gerard Terborch, “Oficial ditando uma carta”, c. 1655, National Gallery, Londres. Compare-se este quadro com outro do mesmo autor, já publicado aqui.