O assalto à ponte de Alcântara, 25 e 26 de Março de 1648 (2ª parte)

Na madrugada de 26 de Março, uma quinta-feira, D. Sancho Manuel reatou a investida contra a ponte de Alcântara. Duas horas antes do amanhecer, a força portuguesa logrou aproximar-se do objectivo, enganando os sentinelas ao falar-lhes em castelhano, dizendo que eram moradores de Zarza e que vinham pedir socorro, pois que D. Sancho Manuel tinha tomado a vila. Com este estratagema, os homens do terço do mestre de campo João Lopes Barbalho investiram de surpresa a ponte, rompendo três portas, duas estacadas e dois retrincheiramentos com três petardos, e o demais a braço dos infantes, estando de guarnição nelas duzentos e trinta infantes com três capitães e um sargento-mor por cabo, que havendo acudido à defesa com muito valor, não bastou para resistir ao com que os soldados de Vossa Majestade a trataram de ganhar, sobre que pudera dizer grandes encarecimentos, que não faço, porque a poderá melhor significar a consideração de que não era possível ganhar-se tanta fortificação sem demasiado valor, o que experimentaram os castelhanos à custa de muitas mortes, em que entraram pessoas de consideração. (Carta de D. Sancho Manuel).

Os defensores que estavam de guarda retiraram precipitadamente, oferecendo pouca resistência, até ao meio da ponte, onde se juntaram à companhia do capitão D. Rodrigo de Aponte y Zúñiga; recebendo reforços, a força defensora conseguiu parar a investida dos portugueses. De parte a parte houve muitos mortos e feridos, resultantes do encarniçado combate que se travou.

Impossibilitado de avançar mais, João Lopes Barbalho tratou de garantir o terreno já conquistado. (…) [G]anhada a metade da ponte, havendo favorecido muito poder do inimigo, tratou o mestre de campo de se cobrir com trincheiras, em que era noite, por escutar as ofensas que se lhe poderiam seguir, de amanhecer sem estar reparado, maiormente que se não necessitava mais para o intento de derrubar a ponte que o espaço dela que estava ganhada. E assim mandou abrir minas, nas quais se continuaram cinco dias com o cuidado que pedia a matéria, recrescendo no escuro (…) todas as horas socorros de consideração ao inimigo, que para estorvar o intento faziam empenhos que não foi possível conservar o posto sem uma contínua bateria, de que nos resultou perda de 30 mortos e 76 feridos, que recompensou bem o efeito que resultou da mina, que foi arrebentar um arco que tinha de largo cento e cinquenta palmos, e de arco de sessenta, com o que não somente se segue arruinar a Castela uma das maiores obras de seus Reinos, impossibilitar à vila de Alcântara lucro de suas fazendas, impedir à Zarza e aos mais lugares que ficam desta parte do Tejo os socorros que lhe vinham de Badajoz, senão ainda desafogar esta Província dos danos que padecia a este respeito. (Carta de D. Sancho Manuel)

Os alcantarenses tinham recebido reforços de várias partes e de toda a nobreza de Brozas e de Cáceres, mas optaram por não os empregar em operações de contra-ataque devido à duvidosa qualidade dos mesmos. Assim, assistiram impotentes ao derrube do arco da ponte, se bem que um manuscrito coevo, transcrito por Gervasio Velo y Nieto, refere que El daño que el rebelde hizo en el puente no fué tanto como se pensó, porque todo el arco que juzgó volar quedó firme en las claves y solamente de los lados padeció alguna ruina. No ha impedido el paso, antes hoy dice el ingeniero mayor del ejército, que aquí se halla, tiene la cortadura linda disposición para hacerse un puente levadizo, con que quedará más asegurada la defensa de esta plaza y del puente. (Velo y Nieto, pg. 78)

No mesmo manuscrito, elaborado pouco depois do combate, pode ler-se que o número de baixas dos portugueses era desconhecido, e que entre os defensores houve netre 12 e 15 mortos e mais de 300 feridos e queimados, entre eles um sobrinho do mestre de campo D. Simón de Castañiza, caído na ocasião do rebentamento do primeiro petardo português.

Já D. Sancho Manuel termina a sua carta com as considerações finais e as recomendações  dos que mais se tinham distinguido em combate:

E no último dia em que havíamos de dar fogo às minas acabou o inimigo de juntar todos seus socorros, com que fez muito maior número de cavalaria e infantaria do com que eu me achava. E porque me não perturbassem, ordenei ao comissário geral que com trezentos cavalos e cem infantes fosse a impedir-lhe a pasagem do rio Alagão e procurasse queimar-lhe as barcas, o que ele fez com grande bizarria, ocupando o vau e mandando ao ajudante da cavalaria João de Almeida de Loureiro que fosse ao porto das barcas a queimá-las, o que obrou com mui bom sucesso, com o que sem sobressaltos consegui o que pretendia. Estimara ser instrumento para que Vossa Majestade lograra outras maiores facções, se bem esta se deve avaliar por uma das maiores que se tem conseguido depois da feliz aclamação de Vossa Majestade. Nesta ocasião se houve o mestre de campo João Lopes Barbalho com a disposição e valor que as armas de Vossa Majestade têm experimentado de seu talento há muitos anos, assim nas guerras do Brasil como deste Reino, e foi-lhe bom companheiro o capitão António Soares da Costa, ajudante de tenente de mestre de campo general, que foi o primeiro que entrou às portas petardeadas; o capitão Pedro Craveiro de Campos, que nesta ocasião ocupou a vanguarda até ser ferido nela, na qual sucedendo os capitães Filipe do Vale Caldeira e Simão de Oliveira da Gama; que com muito valor pelejaram o ajudante Álvaro Saraiva, que governando uma companhia fez o mesmo; os ajudantes Manuel Machado Caldeira e Domingos da Silveira acudiram com particular satisfação às obrigações de seus cargos, e geralmente o fizeram todos, de maneira que devem ser admitidos em título dos melhores vassalos que logra a Coroa de Vossa Majestade, cuja Católica e Real Pessoa guarde Deus largos e felizes anos, como a Cristandade há mister. Idanha.

Em conclusão, o ambicioso plano de D. Sancho Manuel de Vilhena não pudera concretizar-se na tomada de Alcântara; todavia, restava ao cabo de guerra português demonstrar o seu zelo e  exaltar, do meio-sucesso obtido, um episódio de reputação para as armas régias, como aliás fazia frequentemente. As poucas linhas que dedica à operação o Conde de Ericeira (meia dúzia, literalmente, na edição de 1751, facsimile acessível online a partir de Google ebooks) são demonstrativas do pouco efeito prático que o rebentamento parcial da ponte teve, apesar do que D. Sancho Manuel sugere na sua carta. Mas para a pequena guerra de fronteira, mesmo sem pesar no quadro da estratégia global, foi mais uma ocasião de experiência de combate para as forças envolvidas.

Fontes e bibliografia:

ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, maço 8-A, carta de D. Sancho Manuel, anexa à consulta de 25 de Abril de 1648.

ERICEIRA, Conde de – História de Portugal Restaurado, Parte I, Livro X, edição de 1751, pg. 268; obra parcialmente disponível on-line.

VELO Y NIETO, Gervasio – Escaramuzas en la frontera cacereña, con ocasión de las guerras por la independencia de Portugal, Madrid, s.n., 1952.

Imagem: “Trabalhos de fogo”, pormenor de um quadro de 1645, de Joseph Furttenbach, Germanisches Nationalmuseum. Representa um engenheiro de fogos, armado de capacete, coura e com uma rodela para defesa pessoal, bem como o instrumento com que os artilheiros davam fogo à peça, com dois morrões acesos – e que era usado também para os petardos.

O assalto à ponte de Alcântara, 25 e 26 de Março de 1648 (1ª parte)

Em 25 e 26 de Março de 1648, o governador das armas do partido de Penamacor, província da Beira, D. Sancho Manuel de Vilhena, tentou um arrojado empreendimento militar contra a bem fortificada praça de Alcântara (Alcántara, em castelhano). O acontecimento mereceu uma menção não muito extensa do Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado (parte I, Livro X, pg. 268, da edição de 1751, parcialmente disponível on-line). Já no século XX, o historiador espanhol Gervasio Velo y Nieto dedicou ao assalto algumas páginas em Escaramuzas en la frontera cacereña, con ocasión de las guerras por la independencia de Portugal (Madrid, s.n., 1952, pgs. 74-77), embora tenha transcrito erradamente a data do acontecimento a partir de um documento coevo, situando-o em Maio. Este episódio da pequena guerra de fronteira, tão característica do conflito luso-espanhol, permanece hoje praticamente desconhecido. Tivesse sido o resultado favorável às forças de D. Sancho Manuel, a façanha teria sido certamente perpetuada de modo estrondoso. Mesmo assim, sem ter logrado o objectivo inicial, a operação militar não foi deslustrosa, de acordo com a valoração das atitudes militares da época. Por isso, o futuro Conde de Vila Flor enviou a D. João IV um relatório detalhado, se bem que algo confuso na redacção, onde se refere ao “glorioso sucesso” da ponte de Alcântara.

O delinear da operação enquadra-se no pensamento militar típico do período: ausência de uma estratégia concertada com as outras frentes de guerra, desejo de notabilização do comandante em chefe por meio do acrescento da reputação das armas de Sua Majestade (que, em caso de sucesso, poderia traduzir-se numa recompensa pecuniária e no acréscimo da reputação do cabo de guerra, por via das mercês régias), reacção a anteriores actividades de depredação levadas a cabo pelo inimigo através de uma operação punitiva. No caso vertente, D. Sancho Manuel não se limitou a preparar uma acção de pilhagem, mas apontou a um fim mais ambicioso: a tomada de uma importante praça. No cerne da sua resolução também se encontra um traço comum à prática da guerra na Era Moderna – a fraca consistência da informação obtida sobre o inimigo, o que neste caso levou D. Sancho a supor que a operação poderia ser coroada de êxito, como veremos pela transcrição da sua carta.

A preparação da acção dificilmente seria mantida em segredo, pois os efectivos mandados concentrar eram de tal número para aquela parte da fronteira, que não passariam despercebidas ao exército espanhol as necessárias movimentações militares. Foram mobilizados 1.000 infantes: o terço do mestre de campo João Lopes Barbalho, reforçado com 200 elementos do terço do mestre de campo Diego Sanchez del Pozo – castelhano que se notabilizou ao serviço de D. João IV – e 100 auxiliares; e 500 cavaleiros comandados pelo comissário geral Pierre Maurice Duquesne, em 9 companhias. Duas destas eram da ordenança, pois a cavalaria de auxiliares só tomaria forma em 1650, e uma  era do exército do Alentejo, enviada como reforço – a do holandês Manuel Cornellis. No regresso desta companhia ao Alentejo ocorreria o episódio já aqui tratado sob o título “Um crime em Abrantes”. Acompanhava esta força de infantaria e cavalaria um grande número de carros e carretas, com diverso material e o necessário equipamento de fogos (petardos para derrubar as portas da fortificação) e os respectivos engenheiros.

Velo y Nieto refere que era esperada uma operação de envergadura por parte dos portugueses, mas não se sabia qual seria o objectivo. Havia receios que fosse Zarza la Mayor, em vingança de alguns dissabores causados pela cavalaria de Zarza, os montados, semelhantes às companhias de cavalos pilhantes ou moradores de algumas localidades portuguesas da fronteira. Mas Alcântara parecia pouco provável:

La conquista de la misma resultaba en extremo difícil, porque para llegar a sus puertas era indispensable vadear el río Tajo o pasar el puente romano, y ambas empresas ofrecían serios peligros; la primera, porque los accidentes de sus orillas imposibilitaban o dificultaban en extremo el paso de la artillería y demás pertrechos, ya que el terreno que circunda a la plaza es escabroso y casi inaccesible; y la segunda, porque si se aventuraban a cruzar el puente, serían barridos con el fuego de los mosquetes y la artillería. (Velo y Nieto, pgs. 74-75)

A progressão da força portuguesa foi lenta e atabalhoada e o factor surpresa, se é que era possível mantê-lo, logo se perdeu. No entanto, os espanhóis tardaram a acreditar que o objectivo de D. Sancho Manuel fosse a praça de Alcântara. Pensaram que se tratava de uma manobra de diversão até que a evidência os desenganou. Seguiu-se um combate renhido. Passemos à narrativa de D. Sancho Manuel, vertida em português corrente:

Por esta dou conta a Vossa Majestade do glorioso sucesso que Deus foi servido dar às armas de Vossa Majestade nesta Província, por meio dos que nela nos desvelamos pelo real serviço, e foi que resolvendo-me a empreender o que mais convinha à reputação das armas de Vossa Majestade, à quietação desta Província e bem deste Reino, me fui aos 24 para os 25 deste mês sobre a ponte de Alcântara, para naquela madrugada a entreprender, facilitando-me a facção haver alcançado notícias da pouca guarda e apercebimento com que estava a ponte, se bem prevenida de fortificação considerável, que constava de uma estacada forte, a que se seguia uma trincheira de 25 palmos de alto com uma porta mui forte, e a esta se seguia outra ainda de mais consideração, a que sucediam dois retrincheiramentos; e a eles outra estacada com porta, e acabado isto se topava com uma torre que havia no meio da ponte, bem aparelhada no forte para a defesa. Para conseguir este intento levei quinhentos cavalos governados pelo comissário Pedro Maurício Duquesne, que constavam das companhias dos capitães Gaspar de Távora, Manuel Furtado de Mesquita, João de Melo Feio, Dom Francisco Naper, e duas da ordenança, de Henrique Leitão Rodrigues, governada pelo seu tenente Fernão da Guarda, e João Cordeiro, com mais as de Manuel Cornellis e Nuno da Cunha de Ataíde, a cujo cargo vieram estas duas companhias, e sem embargo de seus achaques se achou em tudo com grande zelo. Era a infantaria mil infantes, dos terços dos mestres de campo João Lopes Barbalho, em que marchariam setecentos homens das companhias dos capitães Filipe do Vale Caldeira, Simão de Oliveira da Gama, Manuel de Brito, Mateus Alves, Simão da Costa Feio, Simão Fernandes de Faria, Fernão Monteiro Fialho, Jorge Fagão e a do capitão Diogo Freire, governada pelo seu alferes Per André, e a do mestre de campo governada pelo seu sargento com mais três companhias de auxiliares dos capitães João de Elvas, António Estaco, Manuel Laranjo, e marchavam mais duzentos infantes do terço do mestre de campo Diogo Sanches del Poço, a quem chamei com eles para se achar nesta ocasião; eram dos capitães Paulo de Andrade, Bartolomeu de Azevedo e a companhia de Bernardo Pereira, governada pelo ajudante Álvaro Saraiva. Com esta gente, que me pareceu bastante, me saí da praça de Segura, e em razão de lhe tocar por seu turno, nomeei para o primeiro assalto ao mestre de campo Diogo Sanches com a sua gente, dando-lhe do outro terço a que me pareceu necessária e todos os apetrechos de fogo e engenheiros dele que convinha para a execução do intento, e para sua guia ao capitão João Cordeiro, pessoa que por se haver criado na praça de Segura, era mais prático naquele distrito. E nesta conformidade, dando ao mestre de campo a gente que lhe tocava para a facção, o despedi pelo caminho mais oculto por onde se poderia avizinhar a ponte. E eu com o resto do que me ficou, segui via direita a emboscar-me junto a ela, donde havia de arrebentar [ou seja, aparecer], tanto q se petardeasse a primeira porta. Mas sucedeu muito ao contrário do que se podia imaginar, e foi que João Cordeiro, nas duas léguas que há de distância de Segura [a] Alcântara, gastou toda a noite sem acabar de chegar, a cuja causa o tenho prezo por me parecer não podia ser sem culpa sua, e vendo eu que por ser já claro dia se ia perdendo a facção, mandei investir a ponte pelo mestre de campo João Lopes Barbalho, parecendo-me que não podia Diogo Sanches estar tão longe que às primeiras cargas não chegasse com os petardos e mais aparelho de escalar, com o que por esta via se poderia remediar a falta que com sua tardança se seguia. Mas nem por esta via se conseguiu por esta vez a facção, porque havendo o mestre de campo Diogo Lopes Barbalho petardado a ponte, e não entrando só por falta de instrumentos, chegou Diogo Sanches com eles a tempo que o inimigo estava refeito, em razão de haver tido mais de duas horas para se poder prevenir, com o que querendo Diogo Sanches avançar, lhe deu uma pelourada de que está fora de perigo; feriram mais ao capitão Manuel Correia de Mesquita com um mosquetaço, de que morreu, havendo procedido com muito valor; também se deu outro ao sargento-mor Manuel Pinto, que se houve na mesma conformidade, e outra em o capitão Paulo de Andrade. E por ver que não estava já a facção capaz de se lograr me tornei a retirar à praça de Segura, onde me ofereceu à consideração impossíveis para o intento o tornar a conseguir, em razão de haver entrado ao inimigo socorro (…) (carta sem data, anexa à consulta de 25 de Abril de 1648, na véspera do nascimento do infante D. Pedro, futuro D. Pedro II – ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, maço 8-A)

Segundo um documento da Biblioteca Nacional de Madrid, citado por Velo y Nieto (e no qual a força portuguesa de infantaria é ampliada para o triplo: 3.000 homens), habiendo avanzado el Maestre de Campo, Diego Sánchez, a una de las puertas de aquel puesto con el más florido de un tercio, lo rechazó matándole cuatro o seis, y entre ellos un alférez vivo, y el mismo Maestre de Campo se retiró herido y con él la manga que abía avanzado, que por haberse descubierto a las defensas que tiene el puente, recebió mucho daño y por esta causa dejó  de avanzar la otra manga por la puerta de San Lázaro. (Velo y Nieto, pg. 75)

D. Sancho Manuel retirou para Segura, mas os defensores de Alcântara recearam que o exército português fosse atacar Zarza la Mayor, pelo que foram para ali enviados reforços de Ceclavín e outras localidades. Todavia, no dia 26 estava de novo o exército português sobre a ponte de Alcântara.

(continua)

Agradeço ao estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral a disponibilização da obra de Velo y Nieto, de que me socorri para compor este pequeno artigo.

Imagem: A praça de Alcântara, sendo visível a ponte onde se travaram os combates. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Um exemplo de espionagem no contexto da Guerra da Restauração – Inácio de Herrera

A questão da espionagem no contexto da Guerra da Restauração foi tema de um interessante estudo do Professor Fernando Cortés Cortés, publicado em Portugal há mais de vinte anos – Espionagem e Contra-espionagem numa guerra peninsular (1640-1668), Lisboa, Livros Horizonte, 1989.

Nessa obra, Fernando Cortés Cortés categoriza as formas de obtenção de informação sobre o inimigo de acordo com os métodos utilizados. A primeira dessas formas é designada genericamente como métodos usuais, que podiam ser a informação visual, as notícias de navegantes e viajantes (com destaque para os mercadores), as notícias dos prisioneiros (com destaque particular para as “línguas”), as notícias dos repatriados e os informes dos desertores e a captura dos correios. A segunda forma era a espionagem organizada, a propósito da qual Fernando Cortés Cortés abordou a actuação de informadores e confidentes, os comportamentos do espião e o móbil económico da actividade de espionagem (Espionagem e Contra-espionagem…, pgs. 25-54).

No desenvolvimento desta segunda forma, a espionagem organizada, o autor refere a actuação de Ignácio de Herrera, espião castelhano ao serviço de Portugal, citando a propósito algumas passagens da carta que Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, escreveu a D. João IV em 19 de Julho de 1644, acompanhada do relatório do espião. Todavia, o relatório propriamente dito não é transcrito na obra de Cortés Cortés.

A parte da carta do Conde de Alegrete que respeita a Ignácio – ou Inácio – de Herrera, bem como o relatório deste, são aqui apresentados, transcritos para português corrente para um mais fácil entendimento.

Inácio de Herrera, castelhano, que mandei a Sevilha, chegou aqui hoje havendo entrado por Noudar e ido por Mértola, e declara o que Vossa Majestade, sendo servido, poderá mandar ver do papel incluso. Outras espias hei metido para Badajoz, mas não hão vindo. Esta me parece pessoa de inteligência, e se Vossa Majestade for servido de que passe a Madrid o fará. E mandando Vossa Majestade que vá a alguma coisa particular, ou que faça outra diligência, lha encarregarei. E até aviso de Vossa Majestade o farei entreter em Estremoz, por não andar aqui onde possa ser conhecido. (…) Elvas, em 19 de Julho de 1644.

Por “coisa particular” pode entender-se algum negócio privado do monarca melómano, que mesmo em tempo de guerra conseguia obter do reino vizinho as obras e partituras com que enriquecia a sua notável colecção dedicada à música. E quanto ao relatório:

Inácio de Herrera diz que chegou a Sevilha a 4 deste [mês de Julho] e esteve 3 dias e passou a Écija, onde esteve um dia, e dali passou a Córdova, e esteve dia e meio. E dali se partiu e veio a Noudar, por onde entrou neste Reino.

O que alcançou foi que dia de S. Pedro houvera nova de uma refrega, em que os franceses perderam muita gente sobre Lérida; donde Monsieur de La Motta [Phillipe de La Mothe-Houdancourt, comandante das forças franco-catalãs que defendiam Lérida, cercada pelo exército de Filipe IV comandado por Felipe da Silva] se havia refazido [ou seja, refeito], e voltado sobre os castelhanos, e morto lhe muita gente [a forma correcta seria: lhes matado muita gente], e feito largar o sítio de Lérida [obviamente uma informação falsa: Lérida caiu em poder do exército espanhol em 30 de Julho de 1644]. E que viera ordem da Rainha ao Marquês de Belmar, Assistente de Sevilha, para que toda a gente de Andaluzia a alta estivesse pronta para segunda ordem, que se entende é para marchar para Catalunha, e que Andaluzia a baixa fizesse o mesmo; mas que não se sabia para onde.E que a cavalaria dos cavaleiros de Córdova tivera ordem para marchar para Catalunha; e que eles o não faziam, dizendo que dariam dinheiro, mas que com suas pessoas não podiam. E que em Sevilha se prendera o Marquês do Arenal, porque o mandavam vir com a gente que havia de vir para Badajoz, por ele não querer, e haviam preso mais cinco ou seis cavaleiros por não aceitarem ginetas de capitães desta mesma gente que havia de vir a Badajoz. E que a gente que se fazia eram 18 companhias, delas 10 haviam de ser pagas e as 8 da ordenança por conta de Sevilha; e que haveria 200 soldados feitos; e que entende que em dois meses não poderão chegar a Badajoz.

E que em Écija se não levantaria gente, porque já haviam saído quatro companhias dali, e de Palma para esta parte há dias. E que de Córdova também não havia mais gente que 1.400 soldados, que ali e em todo o seu Reino havia levantado o Ouvidor Dom Belchior de Arnero; há dias que esta gente viera para Badajoz, donde tinha fugido muita parte.

Que o governador de Ayamonte Dom Alonso de Castrejon o levaram preso; e que em seu lugar viera o mestre de campo Dom Francisco de Errada, e que para Ayamonte se faziam e levantavam 80 cavalos em Córdova.

Que diziam que Dom Rodrigo Girón, irmão bastardo do Duque de Osuna, vinha marchando com 400 homens da ordenança para Badajoz, e que se lhe tinham ido mais de a metade.

Que a armada havia já ido, e levara toda a gente que havia em Cádiz e em o Porto de Santa Maria; que uns diziam que para as Índias, e outros para Catalunha.

E que a Sevilha havia chegado um alcaide de Corte, e passava a Sanlúcar a fazer a informação do Senhor Duque de Medina-Sidonia. E que diziam que haviam preso de novo ao Conde-Duque por suspeição que se queria ausentar. E que o Duque de Medinaceli havia chegado a Sevilha e tomado posse do Ducado de Alcalá; e que se dizia que ia por General de Andaluzia, como o era o Senhor Duque de Medina-Sidonia.

Qur ouvira que estes 80 cavalos que se levantavam em Córdova para Ayamonte haviam de vir a residir em Paymogo e Alcairia. Que na alta Andaluzia se compravam 600 até 700 cavalos, sem exceptuar pessoa, para Catalunha; e que Dom Jerónimo de Sant Viter (?), Governador dos Milhões em Sevilha, os ia a ver e pagar.

Que os nossos prisioneiros os levaram para Granada [refere-se aos prisioneiros feitos na batalha de Montijo] por ostentar grandeza e animar aos povos e persuadi-los a que concorram para contra Portugal [sic]. E que ouvira que o Marquês de Mendejar tinha a seu cargo os nossos presos; e que ouvira que os mandariam a Catalunha ou a Orão.

Que o Marquês de Belmar, Assistente de Sevilha, passara mostra da gente portuguesa e alistara 14.000 – e que [sob] pena da vida mandara que nenhum tivesse arma de fogo.

Agente duplo ou não, Inácio de Herrera limitou-se a contar mais do que ouviu dizer, do que o que de facto observou. Tal como o seu falso depoimento sobre o levantamento do cerco de Lérida, também esta última informação, acerca dos milhares de prisioneiros portugueses que haviam sido alistados pelo Marquês de Belmar, é inverosímil. O móbil económico, como refere Cortés Cortés, constituía o principal motivo destes aventureiros que faziam da espionagem a ocupação ocasional. Mesmo que o seu papel não fosse desempenhado com inteira satisfação, seria difícil averiguar num curto prazo a veracidade total das suas informações, sobretudo se estas se reportavam a acontecimentos passados longe da fronteira de guerra.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4-B, consulta de 2 de Agosto de 1644 e documentos anexos.

Imagem: Recebendo uma mensagem – pintura de Thomas de Keyser.

Aos leitores/comentadores

Ontem, na sequência dos comentários sobre o artigo de Juan Antonio Caro del Corral, verifiquei que um deles, de Julián García Blanco, estava retido como “spam”. Consegui resgatá-lo e publicá-lo. Porém, na maior parte dos casos, o WordPress elimina comentários tidos como “spam” (mesmo que o não sejam) automaticamente, não me dando a possibilidade de lê-los. Pode ter acontecido, ao longo destes quase dois anos de blogue, que algum leitor tivesse enviado um comentário e que o detector de “spam” do WordPress o tivesse eliminado sem que eu tivesse conhecimento.

Tenho por norma de moderação publicar todos os comentários; só uma vez não o fiz, optando por escrever directamente ao comentador, pois a sua observação era de índole marcadamente política e escapava ao âmbito deste blogue, que é a divulgação de um tema específico da história militar, norteado pelos princípios de isenção e rigor da ciência histórica.

Deste modo, no caso de algum leitor enviar um comentário e este não tiver sido publicado dentro das 48 horas seguintes, peço o favor de entrar em contacto comigo pelo seguinte endereço de email: 001jorgef (arroba) gmail.com.

O Marquês de Torrecuso – por Juan Antonio Caro del Corral

No seguimento da listagem dos capitães-generais da província de Extremadura (Espanha), Juan Antonio Caro del Corral fez um longo comentário a propósito do Marquês de Torrecuso que, pelo seu interesse, é aqui destacado em artigo próprio. No final, acrescentei uma pequena transcrição do Manuscrito de Matheus Roiz a respeito do mesmo general.

Muy eficaz el listado de Capitanes Generales de Extremadura. A fin de profundizar algo más en la figura de aquellos soldados, sirva este ligero apunte sobre el Marqués de Torrecuso.

MARQUES DE TORRECUSO, CAPITAN GENERAL DE EXTREMADURA

Gerolamo Maria Caracciolo, III marqués de Torrecuso. Natural del Reino de Nápoles, fue un afamado militar que estuvo a las órdenes de la monarquía castellana, ocupando puestos de responsabilidad al frente del ejército imperial. Antes de llegar a Extremadura, destaco en la Guerra de Cataluña, dónde perdió a uno de sus hijos. También estuvo presente en el conflicto de los Treinta Años, llegando a vencer a las tropas francesas en la batalla de Fuenterrabía, librada en 1638.

Dada su condición italiana, no es de extrañar que junto a Torrecuso, llegaran muchos soldados de la misma nacionalidad. Entre estos cabe citar a Giovanni Giacomo Mazzacani-Maza, más conocido entre la tropa con el nombre castellanizado de Mazacan. Fue destinado al distrito cacereño de Alcántara-Sierra de Gata, tomando bajo su mando directo la guarnición existente en Zarza la Mayor.

Volviendo a los rasgos biográficos de nuestro personaje principal, fue el 8 de marzo de 1644 cuando Torrecuso hizo entrada en la ciudad de Badajoz, para hacerse cargo, con el pomposo título de Capitán General, de la defensa de toda la frontera extremeña.

Sustituyó al odiado Marqués de Santisteban, cuyo gobierno había provocado gran rechazo no sólo entre la tropa, sino en los propios habitantes de la región.

Torrecuso venía precedido de una aureola de gran militar y estratega, siendo su nombramiento del agrado de la mayoría de oficiales del ejército, el cual se encontraba en una situación bastante penosa, pues sus anteriores responsables se habían ocupado más de enriquecerse personalmente que de dirigir a la soldada.

Por el motivo anterior, el primer empeño del Marqués fue realizar una reforma general con la cual buscaba organizar adecuadamente a sus subordinados. En este sentido fue el primero que incluyo compañías de infantería a caballo, creando también el puesto de sargentía menor en cada uno de los tercios que componían el llamado Ejército de Extremadura.

Con estas labores pronto se gano la simpatía general y, en comparación con su predecesor, se llegó a decir “… i quanto a su antecesor el Conde de Santisteban desestimauan por su facilidad, tamto al Torrecuxo temian i respetauan por su entereça i valor…”.

Fue mucho el trabajo que el nuevo gobernador militar tuvo en su tiempo de mandato. La guerra en 1644 se recrudeció bastante, y las noticias de escaramuzas portuguesas en tierras extremeñas no dejaron de llegar, día a día, a la sede central de Badajoz.

Ejemplo de aquellos sucesos cotidianos para la gente de frontera los encontramos en la zona norte de la Raya, colindante con la Beira Baixa. Fue aquí dónde poblaciones como Membrío y Zarza la Mayor conocieron la crudeza de la guerra, al ser atacados en los meses de abril y mayo respectivamente.

Las armas castellanas de Torrecuso respondieron a aquellas y otras agresiones, con entradas en territorio lusitano, siendo la frontera pacense el escenario elegido para ello. Así, sitios como Ouguela vieron correr por sus campos a la caballería extremeña en más de una ocasión.

Sin duda alguna el momento álgido del gobierno de Torrecuso acaeció el día del Corpús, 26 de mayo, junto a las llanuras de la localidad de Montijo, muy cerca de Badajoz, lugar en el que se libró la que se considera primera batalla de la Guerra de Restauración.

El resultado del combate fue ambiguo, pues los dos bandos enfrentados se apropiaron de la victoria final. En todo caso parece que la batalla tuvo dos momentos clave, dominados cada uno de ellos, respectivamente, por sendas facciones. De hay la eterna duda de quien fue vencedor general.

Torrecuso no estuvo presente en el famoso lance, enviando en su lugar, como máxima autoridad de la tropa castellana, al Barón de Molinghem.

El año siguiente, 1645, continuo la misma tónica. Constantes alarmas y salidas cuyo fin básico era el ganado, realizar rapiña, incendiar poblados, desabastecer al contrario… En definitiva, la forma usual de realizar la guerra en una frontera muy extensa, defendida por un ejército poco profesional, pese a la laboriosidad de Torrecuso por mantener siempre el buen orden y disciplina.

Elvas, Campo-Maior, Jérez de los Caballeros y otros tantos lugares del sur, de nuevo se tornaron en escenario de encuentros campales entre fuerzas portuguesas y castellanas. Mientras tanto al norte, los vecinos de Zarza la Mayor, para vengar el ataque sufrido el año anterior, organizaron un nutrido grupo de jinetes voluntarios, los llamados Montados, semejantes a las compañías pilhantes de Portugal, con el cual batieron varias veces la comarca de Castelo Branco, quemando aldeas como Sao Miguel D´Acha, Ladoeiro, Alcafozes, Zebreira…

Debido a un permanente estado de tensión militar y la noticia de varias derrotas, la buena estrella de Torrecuso se fue apagando. También tuvo buena parte de culpa las rencillas internas, pues entre sus propios oficiales surgieron voces en contra, muy críticas con la forma de dirigir el ejército utilizada por el Marqués.

Él noble napolitano comprendió lo difícil de su situación, y no queriendo perder más crédito en la frontera extremeña, solicitó ser relevado de su cargo, cosa que ocurrió rápido, pues también en la corte de Madrid deseaban ver lejos al italiano.

Para sustituirle entró al mando el Marqués de Leganés, dº Diego Mesia Felipez de Guzmán. Las cosas con él tampoco cambiaron en exceso. Buena prueba es que, a poco de llegar al mando, se produjo el choque llamado posteriormente Ventas de Alcarabica.
Pero eso es otra historia.

Juan Antonio Caro del Corral

(Sobre o combate de Alcaraviça, veja-se o artigo gentilmente enviado pelo Sr. Santos Manoel, publicado aqui e aqui – com um acrescento de minha parte aqui).

A propósito do Marquês de Torrecuso, escreveu nas suas memórias o soldado de cavalos Mateus Rodrigues:

Agora falarei do grande soldado que era o Torrecruz [Torrecuso], que não havia em Espanha soldado como ele. Que a sua guerra foi a mais limpa que nenhum até hoje fez, porque nunca jamais quis que a cavalaria fosse às pilhagens, que as podia fazer mui boas, e também nunca quis derrubar os arcos da Amoreira [referia-se ao aqueduto que abastecia a cidade de Elvas], por onde ia a água à cidade, coisa que [a] havia de pôr em grande aperto, mas dizia ele que esas cosas no las hasian sino picaros. (MMR, pg. 91)

Mateus Rodrigues terá escrito esta passagem por volta de 1657. Se a sua memória em relação ao general espanhol não é muito exacta no que toca às operações de pilhagem, já o respeito que demonstra pelo comandante inimigo revela o legado de fama que Torrecuso deixou entre os soldados portugueses.

Imagem: “Soldados equipando-se”, pintura de Jacob Duck, Minneapolis Institute of Arts. Um detalhe deste quadro já foi incluído num artigo anterior. Note-se o equipamento dos soldados de infantaria (e do dragão que coloca a bandola com os “12 apóstolos” – veja-se as esporas, o que demonstra tratar-se de infantaria montada) e, como curiosidade, o modo de acordar o soldado adormecido, fazendo cócegas com uma espiga no nariz; um pormenor que é possível encontrar noutra pintura do mesmo autor.

Postos do exército português (21) – O gentil homem da artilharia e o condestável

O gentil homem da artilharia era o responsável por um determinado número de peças de artilharia do respectivo trem na marcha do exército, ou tinha a seu cargo uma bateria constituída por um número variável de peças, quando estas eram dispostas em campanha ou num cerco. Segundo se pode ler  no título 23 da proposta de Ordenanças Militares de 1643,

Os gentis homens da artilharia hão-de ser eleitos de capitão de gastadores ou sargentos reformados; e hão-de exercitar o meneio e carruagem de seis peças, e assistir no marchar, alojar e plantar as baterias, fazendo que se conduza e haja tudo o necessário para elas.

Note-se que a as seis peças por gentil homem acima referidas não eram necessariamente uma dotação fixa, sendo a composição da artilharia num exército variável de acordo com os fins pretendidos e as disponibilidades materiais. Isso mesmo é observado num comentário por Joane Mendes de Vasconcelos a propósito de um outro título das Ordenanças, o 47, que pretendia regulamentar a distribuição da artilharia em proporção ao efectivo total de infantaria e cavalaria. Conforme apontou o reputado general, a artilharia se regula com as facções [ou seja, com a natureza das operações], e não com o número, e assim não é matéria para Vossa Majestade decidir em Ordenanças Militares. A propósito dos gentis homens da artilharia e do título 23, Joane Mendes mostrou algumas reservas a propósito da intenção régia (ou de quem aconselhou em privado o Rei nesse ponto) de fazer ascender ao posto os capitães de gastadores e sargentos reformados:

Se (…) tiverem suficiência para ocupar este cargo (…), se poderá eleger deles, quando não de condestáveis práticos e autorizados, sendo este um dos postos que se deve prover mais pela prática que por outro algum merecimento.

O posto de condestável não tinha nada que ver com o prestigioso cargo militar do período medieval. Era o chefe de peça, sendo também um deles o ajudante do gentil homem da artilharia.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 65 e 83-84.

Imagem: Artilheiros em acção. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa. Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. Freitas.

Capitães-Generais – Espanha – Província de Extremadura

À semelhança do que foi aqui publicado a respeito dos Governadores das Armas das diversas províncias do Reino de Portugal, apresento agora a lista das personalidades que ocuparam o posto equivalente – Capitão-General – na província de Extremadura.

1641 – Manuel de Acevedo y Zúñiga, Conde de Monterrey.

1641-1643 – Juan de Garay Otañez y Rada.

1643-1644 – Conde de Santiesteban.

1644-1645 – Gerolamo Maria Caracciolo, Marquês de Torrecuso (napolitano; aparece referido em alguns documentos portugueses como “Marquês de Torrecusa”).

1645-1647 – Diego Mesía Felipez de Guzmán, Marquês de Leganés.

1647-1648 – Enrique Pimentel, Marquês de Tavara.

1648-1650 – Diego Mesía Felipez de Guzmán, Marquês de Leganés.

1650-1661 – Francisco de Tutavila y del Tuffo, Duque de San Germán.

1661-1664 – D. Juan José de Áustria.

1665-1667 – Luis de Benavides y Carrillo, Marquês de Caracena.

Bibliografia: TEODORO, Álvaro Meléndez – Apuntes para la Historia Militar de Extremadura, Badajoz, Editorial 4 Gatos, 2008, pgs. 105-123.

Imagem: D. Juan José de Áustria, filho ilegítimo de Filipe IV. Comandou o exército espanhol nas bem sucedidas campanhas do Alentejo de 1661 e 1662. Chegou a conquistar Évora em Maio de 1663, mas acabou por ser derrotado na batalha do Ameixial, em 8 de Junho do mesmo ano. Retrato de 1655-1660, Museu do Prado, Madrid.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (9) – Fortaleza de Peniche

Com esta nona parte encerra-se a transcrição do documento relativo ao estado das fortalezas da barra de Lisboa, de Setúbal e de Peniche em 1644. Recordo que já aqui tinha sido publicada uma entrada sobre a Fortaleza de Peniche relativa ao mesmo ano de 1644, mas acerca de outro assunto, que complementa a informação aqui deixada.

Fortaleza de Peniche

Há nesta fortaleza sete peças de bronze, a saber:

Três meios-canhões reforçados de 15 libras, com suas carretas novas, mas não estão alcatroadas por não haver alcatrão.

Uma meia-colubrina de dez libras com sua carreta.

Outra meia-colubrina bastarda de 14 libras.

Um sacre acolubrinado de 3 libras.

Um sacre de cinco libras.

Há mais nesta fortaleza quinze peças de ferro que tiram a sete, seis, cinco, e três libras. Uma só peça destas tem carreta nova, as demais velhas e de mui pouco serviço.

Necessita de mais vinte peças de bronze com suas colheres, atacadores e lanadas; e para todas as mais peças.

E de balas enramadas [ou seja, de grilhão ou cadeia] de toda a sorte.

Cada peça necessita de duas outras carretas de sobresselente.

Há nesta fortaleza cinquenta barris de pólvora, que levam 40 quintais.

Balas de até seis libras, cento e sessenta.

De sete libras, 35.

De dez libras, 133.

De doze libras, 200.

De catorze libras, 50.

Há mais mil balas de seis e cinco libras que estão misturadas.

Quinze cagetas de pelouros de mosquete e arcabuz.

Trinta e um quintais de morrão.

E enxadas 150, mas muitas delas rotas.

Picaretas 100, mas muitas que se não pode trabalhar trabalhar com elas.

Camartelos, 4.

Alavancas, 6.

Necessita também de mais pólvora.

E de pelouros e de morrão em grande quantidade, para que havendo alguma ocasião não faltem.

E de grande quantidade de serrinhas pequenas, que não há nenhuma.

E de capas e paus, para que se possam entrincheirar no posto que se lhe mandar ocupar.

Há nesta fortaleza trinta quintais de arroz em três pipas.

Um quarto de duas arrobas de açúcar.

Meia pipa de azeite.

Seis alqueires de ameixas e seis de lentilhas.

Necessita de pão, vinho e legumes, e que disto se lhe meta a quantidade a respeito da gente que houver de assistir naquela praça.

Que será conveniente haver nela seis companhias de guarnição, que se poderão tirar das duas comarcas de Leiria e Torres Vedras.

Fonte: “Relação da gente paga, artelharia armas munições carretas mantimentos e mais cousas que ha nas fortalezas da barra desta cidade e nas de Setuual, e do que necessita cada huã dellas”, anexa à consulta do Conselho de Guerra de 12 de Agosto de 1644 (ANTT, CG, Consultas, 1644, maço 4-B).

Imagem: Vista parcial da Fortaleza de Peniche na actualidade. Fotos de Jorge P. de Freitas.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (8) – Fortaleza de São Sebastião da Caparica

O historial da Fortaleza de São Sebastião da Caparica (também conhecida por Torre de São Sebastião ou Torre Velha) pode ser encontrado num artigo bastante interessante e fiável da Wikipédia, pelo que dispenso acrescentar mais pormenores. O relatório de 1644 referia o seguinte:

Fortaleza de São Sebastião de Caparica

Há nesta fortaleza seis peças de artilharia, a saber: dois canhões de 44 libras; um pedreiro acamarado de 30 libras de pedra; uma colubrina de 14 libras; um meio-canhão de 24 e um falconete de duas, em que se ensinam os artilheiros. Necessita de duas colubrinas de 16 até 18 libras.

Estas peças estão todas encarretadas. Necessitam de uma carreta cada uma de sobresselente.

Balas de artilharia

Tem a colubrina 163 balas. Necessita de 200 mais.

O pedreiro, 120. Necessita de outras 200 mais.

Os dois canhões, 400. Necessitam de 200 mais.

O meio-canhão, 200. Necessita de outras 200.

O meio-falconete [sic], 100. Necessita de 200 mais.

Há mais nesta fortaleza 100 balas de cadeia, cinquenta de 24 libras e cinquenta de 14.

Armas

Há nesta fortaleza cinquenta mosquetes. Necessita de outros 50 mosquetes.

20 arcabuzes, 16 piques e 9 chuços.

Para os mosquetes há três quintais e meio de balas, para os arcabuzes 4 quintais. Necessita de outra tanta quantidade.

Pólvora

Há 20 quintais de pólvora em 18 barris. Necessita de outros 20 quintais dela.

Mantimentos

Há nesta fortaleza 40 quintais de biscoito.

10 de arroz.

Quatro pipas e vinho.

Seis almudes de azeite.

Duas arrobas de açúcar.

Seis alqueires de lentilhas.

E seis de ameixas.

Havia mais nesta fortaleza 60 arrobas de toucinho, dois moios de feijões, um de chicharros e meio de favas, que por terem recebido algum dano, e se não perderem e corromperem de todo, se deram por ordem do Conselho da Fazenda para a galé, e agora se anda requerendo nele se lhe restituam.

E por estes mantimentos, para cinquenta pessoas de ração que há na dita fortaleza, não bastarem mais que para dois meses, convirá que se metam nela mantimentos para quatro.

Necessita esta fortaleza de uma cisterna dentro, porque não tem nenhuma água.

E que se lhe acabe a ponte que está começada, pois tem a madeira para isso já dentro.

Fonte: “Relação da gente paga, artelharia armas munições carretas mantimentos e mais cousas que ha nas fortalezas da barra desta cidade e nas de Setuual, e do que necessita cada huã dellas”, anexa à consulta do Conselho de Guerra de 12 de Agosto de 1644 (ANTT, CG, Consultas, 1644, maço 4-B).

Imagem: A Fortaleza de São Sebastião da Caparica (ou o que resta dela) na actualidade. Foi nesta “Torre Velha” que esteve preso D. Francisco Manuel de Melo. Foto de Pateb, reproduzida de acordo com a licença em vigor, a partir daqui.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (7) – Fortaleza de São Filipe de Setúbal

A Fortaleza de São Filipe de Setúbal – também conhecida por Forte de São Filipe e por Castelo de São Filipe (esta última designação era frequente no período da Guerra da Restauração) – foi mandada edificar por Filipe II de Espanha e I de Portugal, e destinava-se a controlar a entrada da barra do rio Sado e o acesso à então vila de Setúbal. As obras iniciaram-se em 1582, tendo ficado concluídas em 1600. Entre 1649 e 1655 (portanto, já em plena Guerra da Restauração, mas em período posterior à descrição que aqui se transcreve), a fortaleza recebeu melhoramentos, de modo a que a artilharia pudesse cobrir com maior eficácia o porto de Setúbal.

Fortaleza de São Filipe de Setúbal

Há nesta fortaleza nove peças de artilharia de diferentes calibres, a saber: quatro canhões, duas colubrinas, um pedreiro e duas peças mais. Necessita de nove peças mais, de artilharia miúda.

E de alçaprimas e lanadas.

E de cartuchos, por ter poucos.

E de se lagearem duas praças, para correr melhor a artilharia.

Dos canhões, um é encampanado, e o outro rendido pelos munhões.

Esta artilharia está encavalgada. Necessita de reparos de sobresselente.

Há algumas rodas por ferrar, e havendo coronhas e eixos se poderão fazer quatro ou cinco reparos.

Balas de artilharia há em abundância para tirarem 20 peças de artilharia.

Mosquetes biscaínhos, noventa e tantos.

Arcabuzes, cento e quarenta e tantos.

Trezentos piques.

Morrão em abundância.

De pólvora, sessenta barris, que parecem ser de duas arrobas.

Soldados, oitenta, pouco mais ou menos, que é a lotação desta fortaleza.

Nove artilheiros. Necessita de mais, havendo mais artilharia.

Tem bastantes ferramentas.

É necessário argamassar toda esta praça, e retelhar os quartéis dos soldados, porque chove em tudo.

Há mister duas estacadas, cordas e cabos e pedras pelas muralhas, por ser a melhor defesa que há em castelos roqueiros.

Bastimentos [mantimentos] tem nenhuns.

E diz António de Barros Cardoso, governador desta fortaleza, que em mão de Brás Aranha há cento e oitenta mil réis procedidos dos bastimentos passados, e que tem por arrecadar coisa de cinquenta mil réis dos soldos que devem os soldados, para arrecadação dos quais há mister tempo. E que o dinheiro que está feito bastará para azeite, vinho e legumes, e com Sua Majestade dar biscoito ficará esta praça abastecida.

E que tem esta fortaleza quarenta e tantos mil réis para as obras em mão do tenente Sanches.

Fonte: Veja-se a 1ª parte desta série.

Imagem: A Fortaleza de São Filipe numa planta de cerca de 1700. Biblioteca Nacional, Iconografia, E3962P.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (6) – Fortaleza de Cascais

Fortaleza de Cascais

Há nesta fortaleza sete peças de artilharia de diferentes calibres com seus encavalgamentos novos e o mais tocante a elas. Necessita de mais artilharia e de pólvora, e morrão, porque há muito pouco e mau. E também de lanadas e tacos para a artilharia.

Pelouros de canhão, 450.

De colubrina, 170.

De meia-colubrina, 130.

Pelouros de pedra de pedreiro, 60.

Trezentos e quarenta arcabuzes com 20 frascos de pouco serviço. Necessita de dez frascos de arcabuzes.

26 mosquetes com 20 frascos, e os seis desmanchados. Necessita de mais 29 com seus frascos.

Dez quintais de pelouros de chumbo de mosquete e arcabuz, onde entram quatro pastas de chumbo.

Dezanove piques velhos, a metade sem ferro e carunchoso. Necessita de cinquenta chuços.

Há nesta fortaleza vinte e três pipas de vinho.

50 quintais de biscoito.

30 de toucinho.

23 de arroz.

Quatro moios de legumes sorteados.

Um quarto com seis alqueires de lentilhas.

Outro com duas arrobas de açúcar.

Outro com seis cântaros de azeite.

Outro de seis almudes cheio de ameixas.

Necessita também de um sino para a sentinela e de um cabo para guindar a artilharia.

Fonte: Veja-se a 1ª parte desta série.

Imagem: Fortaleza de Cascais na actualidade. Foto de Carlos Luís M. C. da Cruz, reproduzida de acordo com a licença em vigor, a partir daqui.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (5) – Forte de Santo António da Barra


Forte de Santo António da Barra

Há neste forte três canhões de bronze de 36 libras de bala. Uma colubrina de dezoito. Duas meias-colubrinas de dez. Todas estas peças são de bronze e estão encavalgadas com seus reparos novos.

Há três caixas velhas, e delas há uma só que pode servir pondo-se-lhe rodas novas, e a ferragem das outras poderá servir para outras novas de sobresselente.

Há para os três canhões 481 balas.

Para a colubrina 158 balas.

Para as duas [meias-]colubrinas 56 balas. É necessário quantidade de balas para estas duas peças.

Há mais 54 balas de 12 até 13 libras e 359 de seis até oito libras, que não servem para esta artilharia.

Para os três canhões há duas colheres. É necessária outra.

Para a colubrina há outra colher.

Para as duas [meias-]colubrinas há uma colher. É necessária outra.

Há sete soquetes com suas lanadas. São poucas.

Um martinete com seu fuso.

Uma escaleta com seu perno.

Dois banquinhos.

Três alçapremas. São necessárias mais.

Seis pés de cabra.

Quarenta espeques.

Oitenta e dois cartuchos para os dois canhões. São necessários mais.

Vinte e dois cartuchos para a colubrina. São necessários mais.

Quarente e sete cartuchos para as duas meias-colubrinas. São necessários mais.

Dezasseis pães de chumbo grandes.

Doze bombas muito velhas.

Sete sotroços.

Armas

Três esmerilhões com suas bandeirolas.

Vinte e cinco mosquetes de pinçote [suporte para encaixar na muralha]. São necessárias bandeirolas para eles, que as não têm.

Vinte e um mosquetes biscaínhos aparelhados.

45 arcabuzes com vinte e seis frascos. São necessárias bandeirolas para os mais.

Há mais nove frascos biscaínhos.

Há em três barris quantidade de balas de mosquete e arcabuz.

Há sessenta formas para se fazerem balas de mosquete e arcabuz.

Vinte e três piques.

Catorze chuços com cabos e sem eles.

Três enxadas. São poucas.

Dezoito picões. Sessenta e oito picaretas. Cento e cinquenta e quatro pás de ferro. Para todas estas coisas são necessários cabos, que os não há.

Morrão e pólvora

De morrão haverá cinco quintais, pouco mais ou menos, e muito antigos e algum podre da humidade. É necessário mais.

Mantimentos que se meteram em Julho 1643

50 quintais de biscoito.

25 quintais de arroz.

30 quintais de carne de porco.

Seis cântaros de azeite.

Seis alqueires de ameixas passadas.

Seis de lentilhas.

Duas arrobas de açúcar.

Oito pipas de vinho.

Há quantidade de lenha de pinho.

De legumes sorteados, feijões, chicharros, favas, grãos e lentilhas poderá haver quatro moios e meio, pouco mais ou menos, e estes estão maltratados, por haver três anos que se meteram.

Necessita este forte de Santo António de uma cancela na primeira porta, por ser podre a que tem e não ter ferrolho, e a porta levadiça da porta da ponte está no mesmo estado. O rastilho necessita também de conserto. E é necessário, para serviço da artilharia, de ferramentas, como é machado, enxó e serra, porque as não há.

Fonte: Veja-se a 1ª parte desta série.

Imagem: “Ciudad de Lisboa, 1661, a 4 de febrero. Verdadera Relación del porto de Lisboa y sus fortificaciones modernas que aún non están acabadas”. Mapa das defesas costeiras da barra de Lisboa e de Setúbal, elaborado por um espião ao serviço de Filipe IV de Espanha, e publicado em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.