O novo contrato com os mercenários holandeses, Julho de 1644 (1ª parte)

O tema que ora inicio está relacionado com assuntos já tratados aqui, aqui e aqui, respeitantes à presença do contingente holandês em Portugal, durante os primeiros anos da Guerra da Restauração.

O contrato estabelecido com os mercenários holandeses em Agosto de 1641 expirou passados três anos. Em Julho de 1644, apesar das reticências de D. João IV (ou de quem aconselhava particularmente o Rei) quanto a manter os holandeses ao seu serviço, tanto o Conde de Alegrete Matias de Albuquerque, governador das armas do Alentejo, como D. João da Costa, mestre de campo general, trataram de pressionar a Coroa no sentido de fazer um novo contrato com aqueles estrangeiros. Contrariando o mito – que se perpetuaria até aos nossos dias – da responsabilidade da cavalaria holandesa na derrocada inicial da batalha de Montijo, os experientes soldados das Províncias Unidas eram muito apreciados pelos comandantes que operavam no terreno. Havia, claro, o problema da religião, que dificultava as relações entre portugueses e holandeses – mesmo que D. João da Costa afirmasse que muitos oficiais e soldados do contingente eram católicos, a maioria era protestante, como se depreende de várias passagens das narrativas de guerra e de documentos oficiais, incluindo o próprio contrato que abaixo se apresenta; e a isto se juntava a sempre presente desconfiança em relação aos estrangeiros, um traço comum da mentalidade do período. Aliás, a tolerância em relação aos militares protestantes estava condicionada à discrição da sua conduta – só não “causando escândalo” ficariam ao abrigo de qualquer procedimento de natureza jurídica.

Não obstante estas contrariedades, a falta de efectivos experientes e capazes no exército português da província do Alentejo tornou imperioso manter ao serviço da Coroa portuguesa os profissionais holandeses. D. João IV acabou por dar o seu consentimento à elaboração de um novo contrato.

É o documento respeitante a esse contrato – ou capitulação, como então se designava um acordo deste género – que irei transcrever em duas partes, vertendo para português moderno a ortografia seiscentista original.

Capitulação feita com Sua Excelência o Conde Governador das Armas desta província em nome de Sua Majestade, com os poderes que para isso lhe deu o dito Senhor, entre o tenente-coronel Alexandre van Harten [no original está escrito Herten, mas o nome correcto é Harten, como se pode ver pela assinatura do próprio] e o dito Senhor Conde Governador, em razão de se formar um terço de cavalaria estrangeira [a designação terço aparece por vezes em lugar de regimento; o sistema regimental não existia ainda no exército português], que com o dito tenente-coronel hão-de servir nestas ditas fronteiras de Alentejo, ao qual deram os seus oficiais os poderes necessários para a dita capitulação na maneira seguinte:

Proposta antes da capitulação

O tenente-coronel e seus oficiais protestam a Sua Majestade com todo o ânimo e vontade em seu Real Serviço fazerem que os soldados e mais oficiais do Regimento Holandês fiquem no serviço do dito Senhor, fazendo-lhe toda a instância para que neste Reino sirvam na forma das capitulações abaixo:

Que sendo caso que os oficiais do Regimento Holandês que acaba em fim de Julho presente, por mal intencionados intentarem consigo levar para Holanda alguns dos ditos soldados, ou eles próprios soldados o fizerem por outro qualquer inconveniente, eles ditos tenente-coronel e oficiais não serão obrigados a perda e desserviço que nisto a Sua Majestade se fizer, mas antes o dito Senhor lhe remunerará o trabalho que na condução e levas tiverem feito, mandando-lhes tomar contas do dinheiro que tiverem recebido para o tal efeito, ficando depois desobrigados de toda a capitulação, e nesta conformidade os capítulos dela são os seguintes:

1. Que o dito tenente-coronel e oficiais e soldados que ficarem servindo neste terço o farão bem e fielmente, tomando todos juramento na forma acostumada, em mãos do dito Senhor Governador, para que em nome de Sua Majestade lhe tome a menagem, ficando obrigados a servirem contra todos os inimigos desta Coroa, sem distinção alguma, não sendo eles ditos tenente-coronel e oficiais e soldados obrigados a servirem em outra parte mais que pela defensa da terra firme e costa de Portugal.

2. Que o tenente-coronel, oficiais e soldados que houverem de ficar serão pagos de seus [soldos] atrasados, conforme a capitulação holandesa, na conformidade que o hão-de ser os demais oficiais e soldados que do Regimento Holandês se vão para Holanda. E recebendo estes ditos oficiais e soldados dinheiro em alguma parte dos ditos atrasados, entrarão eles ditos capitulantes na dita partilha, ficando pagos para que de novo comecem o dito contrato.

3. Que Sua Majestade terá respondido a proposta que o tenente-coronel lhe fizer para os oficiais que se houverem de criar no dito regimento, e não se farão de outro, havendo sujeitos capazes nele.

4. Que enquanto à administração da justiça, será conforme às leis e costumes militares deste Reino de Portugal.

5. Que os oficiais e soldados gozarão de todos os privilégios que gozam os vassalos desta Coroa, e morrendo na guerra ou de doença, até ao dia de sua morte ou de sua ausência se lhes pagarão seus soldos em mão dos seus capitães, ou de seus herdeiros. E sendo oficial, na do maior, não se metendo outra pessoa alguma nos ditos soldos e bens que ficarem dos defuntos, mais que os oficiais do próprio Regimento, os quais serão obrigados a fazer tudo aquilo que os restantes deixarem ordenado. E que os feridos, se lhe pagará seu soldo, na conformidade que aos mais soldados e oficiais.

6. Que se não procederá contra os oficiais e soldados por causa da religião, não procedendo com escândalo.

7. Que ao tenente-coronel e oficiais e soldados lhe serão dados cavalos necessários e de préstimo para poderem servir a Sua Majestade com todas as dependências para eles necessárias, como convém: armas, que constará de duas pistolas e uma carabina, peito e espaldar e murrião a cada soldado. E estas por uma vez somente, das quais darão conta seus oficiais ou o dito tenente-coronel, salvo os cavalos e armas que perderem nas batalhas, e outros casos extraordinários se lhes levará em conta na forma em que se fizer com todos os mais soldados portugueses e franceses.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4-B, documento anexo à consulta de 2 de Agosto.

Imagem: “Cavaleiros num acampamento militar”, pintura de Philips Wouwerman.

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