Sobre o capitão holandês Manuel Cornellis e a sua companhia de cavalos

A respeito do capitão Manuel Cornellis, oficial holandês que serviu vários anos a Coroa portuguesa, já foi publicada uma série de artigos. No último destes, foi feita uma abordagem sucinta ao processo judicial decorrido entre 1648 e 1649, que determinaria a perda de privilégios por parte do capitão de cavalos e o seu afastamento, ainda que provisório, do comando da companhia. A escassez de referências a Cornellis nos documentos de anos subsequentes tinham-me levado a crer que o capitão tivesse deixado o serviço por volta de 1654. Todavia, uma consulta do Conselho de Guerra de 1657 mostra que, nesta data mais avançada, o oficial holandês não só se mantinha em Portugal, como se encontrava de novo no comando da sua companhia.

A consulta aborda uma petição de Manuel Cornellis. Nela, o capitão de cavalos refere ter necessidade de gente na sua companhia, e explica que, tendo tido informação de que um António Correia de Sequeira tinha sido condenado em três anos de degredo para um dos lugares de África, por ter sido encontrado de noite com uma pistola pelo meirinho da correição de Elvas, e sabendo que o dito soldado tinha já satisfeito as condenações pecuniárias, o persuadiu a assentar praça na sua companhia como soldado durante três anos, não recebendo soldo até que o Rei lhe fizesse mercê de tal. Expõe também que António Correia de Sequeira é soldado de muito préstimo, havendo já servido 10 anos na cavalaria com muita satisfação, e servido de guia em incursões a Castela.

A petição de comutação da pena encontrou o apoio do Conselho de Guerra, que mandou primeiro remeter a dita petição ao Dr. Jorge da Silva Mascarenhas, Juiz Assessor. Como a culpa não foi “escandalosa” (ou seja, de muita gravidade), o Conselho de Guerra deu o parecer favorável à petição, por ser mais preciso e de maior utilidade o serviço que podia fazer o soldado neste Reino, do que nos lugares de África.

O decreto régio de 20 de Março de 1657 manda aplicar o parecer do Conselho de Guerra.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, consulta de 16 de Março de 1657.

Imagem: Soldado de cavalaria armado de carabina, meados do século XVII.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 7 e última – Bemposta e Freixo de Espada à Cinta)

A vila de Bemposta é muito pequena e aberta, dificulta o Douro a passagem que o inimigo tem se quiser saqueá-la, nem tem riqueza com que se apeteça, mas para maior segurança se há-de fazer pelos moradores uma atalaia que assegure o melhor aquele ruim passo.

A vila de Freixo de Espada à Cinta tem um castelo capaz de se defenderem nele todos os moradores dela. É também assegurada do rio Douro, a que cercam por ali penhas tão altas e continuadas, que é impossível trazer o inimigo artilharia, nem carruagens. Só em dois passos (algum ano seco em o estio) dá passo à infantaria à desfilada, e trabalhosamente da mesma sorte à cavalaria. Para impedir estes dois passos, se deve cobrir cada um deles com sua atalaia forte, que tocando a sentinela arma, há largo tempo para da gente da vila lhes entrar a guarnição com que o inimigo não passe, e quando a troco de sua perda o faça, valerá mais do que pode interessar em queimar algumas casas.

Douro abaixo, até onde esta província se encontra com a da Beira, há nele outros dois, tão dificultosos passos, que também se devem assegurar com outras duas atalaias, que hão-de ser guarnecidas pelos mesmos moradores dos lugares que lhe ficam vizinhos, termo da mesma vila. Com o referido está reconhecida e ponderada toda a raia de uma à outra extremidade desta província.

E assim termina o relatório enviado por D. Rodrigo de Castro, Conde de Mesquitela, ao Conselho de Guerra.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Soldado com mosquete, estudo de Adam-Frans van der Meulen.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 6 – Miranda do Douro)

A praça de Miranda está edificada, e o seu castelo em sítio tão forte, que com pouca obra será inexpugnável sua fortificação. Coroa o alto de uma eminência de uma penha superior às mais que se lhe chegam, nela não se lhe poderão abrir aproxes, nem profundar minas. Quase toda esta povoação cerca os rios Douro e Fresno, que impedem o inimigo poder levar por ali artilharia, em razão dos ruins passos e aspereza que tem para se baixar e subir deles. Está fechada esta cidade e o seu castelo com muralha que, se antiga, a melhor que naquele tempo devia fazer-se, com sua barbacã, e pela parte que olha ao Douro e alguma do Fresno, onde devia parecer que pelo intratável não necessitava dela, se lhe tem feito parede, com uma forte estacada. Ao lado, que estes rios não acabam de cerrar, uma pequena parte desta cidade e castelo tem duas eminências, que de uma à outra se caminha à muralha; a mais próxima dela é capaz de poucas peças para bateria; a outra mais distante e eminente, é a largo tiro de mosquete da muralha, não só capaz de muita artilharia, mas cobre um vale em que o inimigo pode aquartelar grosso de gente. necessita esta praça de que, ao uso moderno, se descortine a muralha feita por dois meios baluartes e três meias-luas, e que em lugar de fosso no de estrada encoberta se lhe faça um parapeito de pedra, com estacada em meio dele.

Deve fazer-se uma obra corna com sua meia-lua naquela eminência que descortina o vale, tira o quartel ao inimigo e lhe impede a única parte que tem para trazer artilharia, e dentro dos ramais desta obra fica cerrada a outra em eminência inferior a esta.

Só com estas pequenas obras ficará esta a mais defensável praça que a meu ver há neste Reino.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Planta de Miranda, década de 40 do século XVII. Publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 5 – Outeiro e Vimioso)

 

 

 

A vila de Outeiro (que está da raia meia légua) consiste a defensa daqueles moradores em o seu castelo, que está a menos de tiro de mosquete, situado em uma eminência tão consideravelmente levantada, que de nenhuma outra receberá ofensa. De uma parte do castelo sai muralha que torna a cerrar nele, cobrindo mais da metade da do castelo; vem em forma circular, não tem casas em meio, nem as há no castelo, senão as em que vive quem o governa, e algumas que servem de quartéis. Deve derrubar-se a muralha que não é do castelo, e ele ficar em meio de um quadrado paralelogramo, a que três lados defenderão meias-luas, e o outro a que vem subindo uns penhascos, uma tanalha. Esta é a fortificação que, segundo o sítio, pede o castelo, que convém assegurar-se pela importância dele.

A vila do Vimioso dista légua e meia da raia, tem um pequeno castelo, mas bastante a qualquer incidente recolherem-se os moradores dela, e defendendo-se dele ofenderem ao inimigo que entrar a saquear as casas, porque descortina as ruas. Não deve fazer-se fortificação que o feche, porque não está em parte conveniente para que o inimigo queira ocupá-la para ali se sustentar, mas porque é abundante de gados, convém na eminência do Facho, que fica a tiro de mosquete do castelo, fazer uma atalaia forte, cercada ao largo de estacada com parapeito, onde, recolhidos os gados dele, peleja a gente a favor da atalaia, porque [para que] o inimigo lhos não leve; obra que farão por sua conta os moradores, pela utilidade que se lhes segue.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Filme: “Como se disparava um mosquete de mecha”, pequeno documentário em inglês (English Heritage).