Organização do trabalho de fortificação das praças do partido de Riba Coa (província da Beira) nos inícios de 1657

Na sequência do que já aqui foi exposto sobre o partido de Riba Coa nos inícios de 1657 (material de guerra e situação das forças militares), vem a propósito referir as propostas do governador das armas, D. Rodrigo de Castro, para organizar o trabalho de fortificação das praças daquele partido.

Propunha o governador mobilizar a gente de guerra que ainda não tinha chamado aos terços de auxiliares e volantes (da ordenança, portanto, estes últimos) e que já não iam à guerra nem a outro serviço militar há mais de 8 anos, e que seriam 14.727 homens. Deviam trabalhar por turnos de 8 dias, de 400 homens cada turno, o que faria 117.816 homens de trabalho, necessários para cavar 12.515 braças cúbicas de terra, abrindo fossos para a defesa das praças. Dando a esta gente pão de munição como se estivesse em campanha, orçaria em 1.531.816 réis, o que, segundo D. Rodrigo de Castro, iria poupar à fazenda real dezoito contos, quatrocentos e noventa e seis mil, cento e dezoito réis, porque esta obra, fazendo-a os mestres e pagando-se-lhes na forma da estrutura que [se] tem feito, importa vinte contos e vinte e oito mil réis.

Para reserva de pão de munição destinado a dois meses, a nove mil rações para os que haviam de guarnecer as praças e para o pé de exército para o socorro delas, seriam necessários trezentos e trinta e três moios e vinte alqueires de trigo. O assentista não estava obrigado a dar este alimento pelo seu contrato, mas comprometeu-se a pô-lo em farinha nas praças, pelo que D. Rodrigo solicitou que o Rei lhe enviasse uma carta de agradecimento (na verdade, na menoridade de D. Afonso, seria D. Luísa de Gusmão, a Rainha regente, a fazê-lo).

Também os moradores foram persuadidos a colocar nas praças 2.400 carros de lenha sem despesa para a fazenda real. Solicitava igualmente D. Rodrigo que a Coroa mandasse colocar o que fosse necessário nas praças para alimento da gente delas. Não indo o inimigo atacar as praças, se poderia vender esse alimento, recuperando a fazenda real a despesa feita: 1.249 quintais de carne e outros tantos de peixe seco, 1.200 alqueires de legumes, 6.000 almudes de vinho, 200 de azeite, 550 de vinagre, que importariam 11.395.940 réis.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, carta de 14 de Março, anexa à consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: “Cerco de uma cidade flamenga por soldados espanhóis”, óleo de Joahnnes Lingelbach, década de 50 do século XVII.

Uma escaramuça no Carrascal de Mourão (24 de Julho de 1651)

Por motivo de afazeres vários, já há algum tempo que não trazia aqui uma narrativa de acção, e há muito tempo mesmo que não fazia uma incursão pelas memórias de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz, na forma abreviada do seu nome). O que hoje respigo da pena do memorialista é um recontro menor, dos muitos que as fronteiras conheceram. Acontecimento sem importância de maior, excepto no que concerne à implicação pessoal dos acidentes da guerra. O que aconteceu ao soldado naquele dia 24 de Julho de 1651 levá-lo-ia a recordar, anos depois, os pormenores de um serviço de ronda que seria tão rotineiro como muitos outros que fez ao longo da sua carreira militar, excepto que…

Nesse dia, saiu a companhia de Mateus Rodrigues a fazer a ronda pelos campos de Elvas, pela parte da atalaia do Mexia. Já fora dos olivais de Elvas, ouviram-se muitos tiros para os lados das terras do Sequeiro, no caminho de Arronches, local onde o inimigo fazia com frequência incursões – e sendo da parte da manhã, era muito provável que assim fosse.

E assim apressou o meu capitão [Francisco Pacheco Mascarenhas] com a companhia pelos altos do lago e de Perdigão, que dão vista de toda a campanha de onde se imagina haver inimigo, e quando a minha companhia ia correndo para saber o que era, já o capitão Lopo de Sequeira ia também correndo pela estrada de Campo Maior com a sua companhia.

Nesse dia, o mestre de campo general D. João da Costa preparava-se para ir a Campo Maior, daí ter enviado aquela companhia a fazer o reconhecimento do caminho. Ouvindo os tiros, o capitão Lopo de Sequeira enviou um grupo de 15 cavaleiros da sua companhia para as torres, para averiguar sobre quem atiravam, enquanto se posicionou com o resto junto da atalaia do Perdigão. Tendo as duas companhias portuguesas tomado conhecimento uma da outra, através dos respectivos batedores, solicitou o capitão Lopo de Sequeira a Pacheco Mascarenhas que este fosse com a sua juntar-se à dele, junto da atalaia. E assim foi feito.

Entretanto, da atalaia verificaram que havia um grupo de cavaleiros inimigos a um terço de légua dali (cerca de quilómetro e meio, pouco mais), correndo pela estrada, sem que estes pudessem detectar os portugueses do local onde se encontravam. Como esta pequena força espanhola teria de tomar o caminho de regresso pela mesma estrada, ordenou o capitão Pacheco de Mascarenhas ao seu alferes Feliciano Gomes, irmão de Mateus Rodrigues, que escolhesse 15 entre os melhores soldados da companhia e que com eles se fosse posicionar em local de onde pudesse interceptar o inimigo e o corresse até aos altos da ribeira de Caia, mas que daí não passasse, pois sempre que um destacamento daquela dimensão (uma partida, como então se dizia) aparecia, era certo haver emboscada inimiga preparada.

Mateus Rodrigues foi um dos escolhidos. Sob o comando do seu irmão, foi o destacamento progredindo pela estrada. A certo momento detectaram, numa elevação, um grupo de cavaleiros, 27 ao todo. Pareceu-lhes serem todos inimigos, mas na verdade tratava-se de uma escaramuça travada corpo-a-corpo entre o grupo enviado previamente por Lopo de Sequeira e o destacamento espanhol.  Os cavaleiros já estavam misturados, vindo a descer na direcção da estrada. O alferes Feliciano Gomes hesitou em avançar ao encontro deste grupo, dada a desproporção de forças. Quando finalmente percebeu que se tratava de uma escaramuça e deu pelo erro, a cavalaria inimiga ia já ganhando terreno aos perseguidores.

Rapidamente se juntou Feliciano Gomes com os seus homens ao grupo que ia no encalço dos cavaleiros espanhóis e logo foram caindo sobre eles. Os 12 inimigos que tentavam escapar iam sendo capturados ou abatidos um a um, até só restarem três. Chegada a força perseguidora aos barrancos do Caia, o alferes mandou fazer alto. Mas, dada a correria e a diferença de capacidades dos cavalos, iam todos muito separados uns dos outros. A Mateus Rodrigues e a três cabos de esquadra da companhia de Lopo de Sequeira, pareceu-lhes que seria possível capturar os restantes fugitivos, e que seria desonroso parar a perseguição no momento em que estavam quase sobre eles, de modo que prosseguiram a correria e entraram pela ribeira, desobedecendo ao alferes. Escreveu posteriormente Mateus Rodrigues, para justificar a sua atitude, que na ânsia de alcançar os inimigos não reparara que o seu irmão tinha ficado na margem, acrescentando que, dos prisioneiros capturados previamente, nenhum falara em emboscada preparada.

Foi, no entanto, o que acabou por acontecer. A dada altura, os três inimigos suspendem a fuga e não fazem mais que virar-se a nós com cada um sua pistola na mão, e já neste tempo nós iríamos dois tiros de espingarda deles. E assim como os vimos virar a nós, entendemos que o faziam já de perdidos, que levariam os cavalos muito cansados e por isso não queriam pelejar, vendo que nos não podiam escapar. E suposto que nós levávamos as espadas na mão, deixámo-las cair nos cordões metidos pelos pulsos dos braços e sacamos as pistolas dos coldres e vamo-nos a eles com boa vontade. Quando estavam já próximos dos inimigos, Mateus Rodrigues e os cabos de esquadra viram surgir 500 cavalos (pelo menos assim o refere o memorialista): tinham caído numa emboscada. Com os cavalos cansados depois de terem corrido mais de uma légua (cerca de 5 Km – também aqui pode haver algum exagero do soldado). Logo tratou cada um de nós de seu livramento, e o inimigo, assim como saiu, botou 50 cavalos ligeiros diante, com um tenente, o de Dom Diogo Queixada, por alcunha o Lechuga, que estes foram os que nos apanharam logo (…). E assim como o inimigo saiu da ribeira, logo foi visto do meu alferes que estava ali ainda em um alto, aguardando pelos que via ir ainda correndo ao inimigo; mas assim que viu o inimigo, logo se pôs em retirada para a atalaia do Perdigão, onde estavam as nossas duas companhias que também viam o inimigo. Mas como o meu alferes tinha ainda um grande pedaço de terra para chegar às companhias que estavam ao pé da atalaia (…), deu o inimigo atrás dele, e pelo decurso da carreira ainda lhe apanhou três soldados. E o inimigo foi correndo com toda aquela cavalaria até aos altos dos Carrascais de Mourão, e uma partida sua de 30 cavalos chegou à estrada de Campo Maior.

Assim como o inimigo nos apanhou, logo nos perguntou a novidade de ver as duas companhias juntas àquelas horas [pois apenas era habitual ir uma companhia a cada atalaia]. (…) Dissemos-lhe então que, como o mestre de campo general ia nesse dia a Campo Maior, ia aquela companhia a descobrir a campanha (…). Assim como o tenente general Vivera, que era o cabo que ali vinha, ouviu dizer que ia o governador a Campo Maior, logo se pôs em retirada, parecendo-lhe que estariam as tropas de Elvas já montadas para vir com ele, e que não teria ali cavalaria com que pudesse pelejar se acaso sucedesse o irem as nossas tropas a buscá-lo. E assim se foi embora para Badajoz levando sete cavalos nossos, onde entravam quatro que valiam 250 mil réis, mas também lhe ficavam cá 8 seus muito bons, que veio a ficar uma coisa pela outra (…).

Os 5 soldados que fomos prisioneiros não estivemos lá mais de 4 dias e logo nos mandaram para Elvas, aonde achámos os nossos capitães muito sentidos por perderem tão bons cavalos, mas aí não há grandes trutas e bragas enxutas, e assim que se lhe sucede um dia bom, também tem outro bem mau.

Como nota curiosa à narrativa, o ditado popular que hoje parece ter caído no esquecimento (“não há grandes trutas e bragas enxutas”, sendo bragas o mesmo que calças), significando aproximadamente o mesmo que o actual “não há bela sem senão”. No que respeita ao curto cativeiro de Mateus Rodrigues, deve esclarecer-se que os oficiais permaneciam mais tempo sob prisão quando eram capturados, procedendo-se a trocas que podiam ser muito demoradas entre ambos os lados. Os soldados eram normalmente devolvidos à procedência num prazo mais curto (questão de dias, no caso de uma escaramuça como esta, ou semanas ou meses, caso se tratasse de uma campanha).

Fonte: Memorial de Matheus Roiz, pgs. 273-278.

Imagem: Peter Snayers, Combate de cavalaria (detalhe)