A tentativa de tomada de Badajoz pelo 2º Conde de Castelo Melhor, segundo uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama (1645) – 1ª parte

A fracassada tentativa de João de Vasconcelos e Sousa, 2º Conde de Castelo Melhor e governador das armas do Alentejo, de tomar Badajoz em 1645, é um episódio bem conhecido da Guerra da Restauração. Além da narrativa do Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado, outros documentos impressos, nomeadamente as Cartas dos Governadores da Província do Alentejo… publicadas em 1940 por P. M. Laranjo Coelho, se referem a esse empreendimento bélico frustrado (ou sabotado pelos inimigos internos do Conde) ainda na fase de aproximação ao objectivo – mais por malícia, que por descuido, segundo escreveu o Conde de Ericeira. Também o soldado Mateus Rodrigues se refere, nas suas memórias, à incompleta campanha do desafortunado Conde, na qual participou.

Uma outra descrição da operação manteve-se até agora inédita. Trata-se de uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama, comandante de um terço de infantaria, escrita ao chantre da Sé de Évora, Manuel Severim de Faria – não é referido o nome do destinatário na carta, mas o contexto dos restantes manuscritos permite identificá-lo, com razoável certeza. Uma cópia (treslado, na designação comum do período) da carta encontra-se na Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, que em boa hora o prezado amigo Julián García Blanco me fez chegar às mãos. É essa carta que aqui se apresenta, modernizada na grafia, e que por ser algo extensa ocupará dois artigos.

Beijo a mão a Vossa Mercê pela mercê que me faz nesta sua carta, pois além do interesse que tenho de boas novas suas, me mostra o caminho de as procurar, o que farei sempre como tão interessado nelas, e com a certeza deste portador não se perderão as cartas, como devia suceder à que escrevi a Vossa Mercê sobre Badajoz, pois não chegou às suas mãos, e assim torno a referir a Vossa Mercê os motivos que houve para se intentar a jornada. Badajoz é uma praça de grande circuito, tinha quatrocentos soldados pagos e os moradores da cidade faziam as guardas das portas e as sentinelas da muralha, os quais ordinariamente as não fazem com o cuidado necessário. Havia mais quatrocentos cavalos. O Marquês de Leganés estava doente. As portas da cidade eram direitas, e só com uma porta singela e sem rastilho, todas eram nove, quatro grandes e cinco pequenas que caíam para a parte do rio. A muralha toda sem flancos e pela parte por onde havíamos de cometer muito baixo. Dentro nela grande quantidade de moradores portugueses, e muitas mulheres e gente inútil. Todas estas coisas, e o desunido e segurança com que estava o inimigo ajudavam a se poder conseguir a entrepresa. As notícias de tudo isto se souberam por diferentes pessoas, línguas que se tomaram, prisioneiros que vieram, um português que ali vivia há muitos anos, que se passou para nós e um capitão castelhano, que por uma morte que lá fez se veio também a esta praça. E para maior segurança de tudo, foi daqui um sargento nosso feito almocreve a reconhecer tudo muito bem, e também um criado meu entrou lá do mesmo modo, e reconheceu as portas e o corpo da guarda, e fez as plantas de tudo. Também um engenheiro francês que ficou prisioneiro na batalha de Montijo, esteve prisioneiro sete meses sem saberem que era engenheiro, nos deu notícia de tudo. Nós tínhamos seis mil homens nestas três praças de Elvas, Olivença e Campo Maior, e mil cavalos que se podiam ajuntar com grande segredo, como se fez. Havíamos de cometer por três partes, com o grosso da gente por duas partes com os petardos, e pela muralha baixa com as esquadras; e pelas outras cinco partes da muralha se haviam de tocar armas mui rijas, para que não soubessem os de dentro por que parte lhe haviam de entrar. E como eram tão poucos, não podiam guarnecer as muralhas, ainda estando todos prevenidos, e quanto mais tomando-os nós nas camas sem sermos sentidos.

(continua)

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Interpreza intentada contra Badajoz a 31 de Julho”, fls. 36-37 v.

Imagem: Porta de Palmas, em Badajoz. Foi provavelmente por esta porta que passaram os espiões disfarçados de almocreves, a fazer o reconhecimento para a intentada operação de tomada da cidade. Fotografia retirada do blog Puertas de Badajoz, de Julián García Blanco.

As relações entre militares e civis e um caso de justiça em 1645

Não era somente devido às acções de guerra e depredação efectuadas pelos exércitos inimigos que as populações civis das fronteiras sofriam. Os próprios exércitos provinciais, em particular no Alentejo (por ser a província mais devastada pelas operações militares e aquela onde estacionaram mais efectivos durante o conflito) eram uma constante fonte de preocupações para as populações que tinham de aboletar e sustentar os oficiais e soldados. Aliás, as tensas relações entre civis e militares durante os conflitos da Era Moderna eram uma constante e o assunto foi abordado, para o caso português, num capítulo d’O Combatente durante a Guerra da Restauração.

No caso concreto da mulher, cujo estatuto era inferior ao do homem em qualquer estrato social, a fragilidade da sua segurança era evidenciada, por vezes de forma brutal, na forma como era tratada pelos militares, qualquer que fosse a patente destes. Se a justiça régia procurava pôr cobro aos abusos mais evidentes ou mais “escandalosos” (isto é, que eram mais notórios), a verdade é que não era fácil romper as barreiras impostas por interesses e privilégios particulares, nem lidar com o usual fechar de olhos a certos excessos da soldadesca. O caso que se passou em 1645 em Évora e que foi exposto ao Conselho de Guerra é um dos vários exemplos de abusos sofridos pelas mulheres e da dificuldade das queixosas em conseguirem aceder à justiça.

A transcrição que aqui se faz da consulta de Junho de 1645 ilustra o que acima fica referido.

Helena da Cruz e sua filha Mariana Correia, moradoras na cidade de Évora fizeram petição neste Conselho, relatando que por decreto de Vossa Majestade acusam a Rodrigo Franco, soldado pago, por haver desonrado a ela, Mariana Correia, e lhes haver levado sua fazenda, e se deu sentença pelo corregedor da dita cidade de Évora, a qual veio por apelação, e estando distribuída ao desembargador Francisco de Leão de Macedo, ouvidor das apelações crimes, se passou carta pelo desembargador conservador do Estanco das cartas de jogar, por o pai do delinquente ser requerente do contrato do Estanco. Pelo que as suplicantes recorreram a Vossa Majestade, que remeteu a causa a este Conselho de Guerra, e nele se pôs despacho, requeresse ao desembargador João Pinheiro, que conhecendo da causa, mandou passar duas cartas para se lhe remeterem os autos a que o conservador não deu cumprimento, sendo que ela, Helena da Cruz, anda nesta corte passando muitos trabalhos, e gastando seu remédio, e pedem a Vossa Majestade lhe faça mercê mandar, que o conservador do Estanco se não intrometa na causa, e remeta os autos ao Conselho de Guerra em comprimento das cartas que se lhe passaram.

Pela Informação que se houve do desembargador João Pinheiro constou que o conservador do Estanco não deu cumprimento às duas cartas, que como juiz dado por Vossa Majestade para as causas dos soldados pagos, lhe passou, deprecando-lhe as cumprisse, e remetesse as culpas para em seu juízo se dar livramento e satisfação à justiça, por ser só o competente por comissão e regimento de Vossa Majestade. E não somente não deu cumprimento a tais cartas, mas nem despacho pôs em que desse a razão de as não cumprir, em grande moléstia e opressão das suplicantes que requerem justiça, pois sendo o culpado soldado pago como se relata, a este Conselho de Guerra privativamente compete o conhecimento desta apelação; maiormente quando se relata que o réu não é o requerente do contrato do Estanco das cartas, senão seu pai, por cuja cabeça quer participar do privilégio do Estanco das cartas, sendo que ele por si é soldado pago, e assim por sua cabeça sujeito a este juízo da guerra, de que se não pode, nem deve isentar pela comunicação e participação do privilégio de seu pai, quando ele por si, e por sua cabeça, como soldado pago tem seu juiz privativo, que é este Conselho, e toda a contraria pretensão não pode ser justificada

E assim pareceu representar a Vossa Majestade a queixa das suplicantes para que seja servido ordenar ao conservador do Estanco dê cumprimento às cartas precatórias que se lhe passaram, ou de a razão por que as não cumpre, para Vossa Majestade mandar o que mais houver por seu Real serviço e satisfação da justiça.

Lisboa, 14 de Junho de 1645

Do seguimento desta consulta apenas se conhece o decreto régio, dado em 30 de Julho de 1645, que manda proceder “como parece” ao Conselho de Guerra.

Deve esclarecer-se que o contrato de Estanco das cartas de jogar concedia o monopólio da emissão das cartas de jogar (detido pela Coroa) a um particular – no caso, o pai do soldado prevaricador. Apesar das leis que proibiam o jogos de cartas (entre outros jogos de azar), na realidade aqueles eram tolerados dentro de certas condições, e eram muito populares entre oficiais e soldados, que jogavam cartas e dados a dinheiro.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, consulta de 14 de Junho de 1645.

Imagem: “Jogadores de cartas”, de Gerard Terborch.