Dando continuidade à transcrição de alguns manuscritos portugueses do códice mss. 8187 da Biblioteca Nacional de Madrid – e prosseguindo também o que Juan Antonio Caro del Corral deixou aqui escrito a respeito do ano de 1646, que foi repleto de acontecimentos bélicos, passo a apresentar a transcrição de uma relação sobre as operações militares na província do Alentejo em Julho de 1646.
Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo padre Fr[ancisco?] do Teixozo, religioso capucho assistente na mesma cidade
Foram oitocentos cavalos e quatrocentos infantes a Santa Marta, seis léguas de Badajoz e sete de Olivença, atacaram a praça sem perigo, mandaram a gente que se fosse e derrubaram-lhe algumas casas, fizeram presa em alguns burros e outras coisas semelhantes, alguns deram com batacas [patacas] e outros com quartos [moedas espanholas de real] que espalharam, e outros com melhores coisas que calaram, o certo é que a ida foi de perda para Sua Majestade, e de nenhum proveito, porque a calma era grande e alguns cavalos abafaram e outros aguaram, e os inimigos com sua cavalaria tomaram os nossos nas serras de Valverde, os quais, por pelejar, largavam esse pouco que traziam, dos quais alguns foram mortos, porque não podendo marchar com a calma se ficavam às sombras. Um furriel nosso que os castelhanos mal feriram [ou seja, que feriram com gravidade] e deixaram por morto e despido porque não se quis render, depois se veio em camisa a Olivença, e escapa.
Quarta feira 24 de Julho, dia de Santiago, pelas seis horas da tarde, saiu Dom João [de] Mascarenhas com seiscentos cavalos, e André de Albuquerque com quatrocentos infantes, um é tenente-general da cavalaria e o outro general da artilharia, saíram pela porta dos banhos com suas mulas de carruagem, vieram entre o castelo e a ribeira de Chinchas e a passaram por baixo de Nossa Senhora, e logo a tornaram a passar para a cidade. E chegou toda esta gente onde foi a porta de Évora, por cima da Lameda, e dando sua salva de bastardas tornou a desavisar o mesmo caminho, e passou Chinchas pelo caminho de Portalegre, e tornou logo a voltar, ocupando o mesmo posto da porta de Évora, onde fez noite, e desapareceu sem saberem para onde. Na mesma noite se ajuntou no lugar que largou Dom João toda a mais gente da cidade, e a de Olivença com muita carruagem e quatro peças de campanha, e eu confesso que o mais do tempo depois de matinas estive à janela e que não ouvi reboliço algum, só por algumas vezes rinchar [relinchar] um cavalo. Pela manhã começou esta gente a marchar caminho de Arronches, que era o que tinha levado já Dom João a cavalaria, logo duas peças de campanha, muita infantaria, seguiam-se outras duas peças e logo a carruagem, que seriam quinhentas ou seiscentas cavalgaduras com dez mil pães, afora o biscoito, e por retaguarda a tropa de Dom Rodrigo [de Castro – ou seja, a companhia da guarda do governador da cavalaria]. Aquele dia chegaram a Arronches, e Dom João pelas onze da noite à Codiceira, e a sentinela em um cascalho que há antes de chegar sentiu os nossos, e quando chegaram lhe[s] perguntou quem eram e que fizessem alto. E lhe responderam em castelhano que amigos, e que se queriam chegar ao castelo porque o inimigo andava em campanha, repreendendo-os porque dormiam tanto. Neste tempo estavam pondo petardo, por isso o entretinham com palavras, e vindo outro nosso, e não querendo fazer alto, senão chegar-se aos outros, lhe tirou um com um mosquete e o matou, posto que também lhe falou em castelhano. Deu-se logo fogo ao petardo que foi posto no postigo, e o postigo foi fazer em pedaços a segunda porta que era de grade, e os nossos entraram e quebraram com os ombros outra porta de estacada, e encontraram já o capitão em ceroulas e descalço, que estava com a cria à ilharga. Nisto chegou toda a gente de Dom João, e não houve mais que outro morto nosso, de uma pedra que lançaram do muro, de muitas, e muito grandes, que por cima tinha. E com isto ficaram os nossos senhores do castelo e vila. Começava Joane Mendes [de Vasconcelos] a marchar de Arronches para a Codiceira quando lhe chegou nova do feito, escreveu a Sua Majestade se se havia de presidiar o castelo, mandou que fosse tido assolado. Levou dali gastadores e foi com toda a gente e o minou, e dando-lhe fogo não ficou pedra sobre pedra. Era o castelo quadrado e tinha quatro torres nos cantos, que descortinavam ao longo dos muros, e se os treze castelhanos estiveram alerta, não sei se o tomaram os nossos, porque logo lhe veio socorro de Albuquerque, que está uma légua, e não havendo canhões era muito forte. E os nossos, se não usaram da traça e os castelhanos não foram tão sonolentos, não se havia de chegar a pôr o petardo. O mesmo se fez à vila, tirando a igreja e casa do cura, que posto tinha muita fazenda, se não buliu nelas, e o Bispo de Badajoz mandou dizer ao cura que, se aqueles senhores quisessem presidiar o castelo e não trouxessem capelão, os servisse, e se o trouxessem, se fosse. Ficaram muito contentes com o bom quartel que se deu á gente. No castelo havia muitos panos, e nos pisões e moinhos, que tudo ficou assolado, e muito trigo pelas eiras, e nas hortas muita fruta, de que os de Arronches se aproveitaram. Vieram os nossos para Arronches e um soldado entrou numa horta, colheu um pepino, e levando-o à boca lhe tirou o senhor dela com uma espingarda e o matou; outro, por entrar numa vinha, foi escopeteado.
(continua)
Realce-se os curiosos factos narrados no final desta primeira parte – a defesa da propriedade privada por parte dos civis, qualquer que fosse a nacionalidade dos soldados que a violassem, chegando-se a extremos de violência e ao assassinato. Nos casos referidos, recorrendo a armas de caça (espingarda e escopeta). Este ódio entre civis e militares, tão característico da actividade bélica do século XVII (e de toda a Era Moderna, aliás), é ilustrado por muitos e variados exemplos nas fontes narrativas e documentais durante a Guerra da Restauração.
Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relação da tomada de Santa Marta, e Codeceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo P.e Fr. do Teixozo Religioso capucho assistente na mesma cidade”, fls. 74-76.
Imagem: “Soldados em repouso numa estalagem”, óleo de Jean Michelin (c. 1616-1670), Museu do Louvre.