O forte de São João Baptista da Foz do Douro, cuja construção foi iniciada em 1571, durante o reinado de D. Sebastião, estava necessitado de obras de remodelação quando começou a Guerra da Restauração. O francês engenheiro-mor do reino Charles Lassart elaborou o traçado dos melhoramentos e ampliação do forte em 1642, tendo as obras ficado a cargo do engenheiro João Torriano. Contudo, os trabalhos foram sendo atrasados devido a problemas surgidos com a Câmara do Porto. Um dos muitos e frequentes episódios de conflito entre os poderes locais e as autoridades militares.
Em 1645, quando ocorreu o acontecimento narrado numa consulta do Conselho de Guerra e que vai ser aqui transcrito, as obras ainda não tinham começado. O choque entre o governador do forte e as autoridades eclesiásticas teve por causa próxima um incidente de costumes, mas não terá sido alheia a difícil relação entre civis e militares por motivos que transcendiam o que aqui vai ser apresentado. No entanto, todo o sucedido é demonstrativo de quanto o que hoje consideramos ser a esfera da vida privada estava sujeito ao escrutínio do público, ao nível da moral e dos costumes.
O cabido da Sé da cidade do Porto deu conta a Vossa Majestade dos excessos que diz haverem cometido Luís Pinto de Matos, capitão do castelo do lugar de São João da Foz, e seu filho e um sobrinho, de que indo os oficiais da justiça eclesiástica àquele lugar para notificar a uma mulher com que este capitão está publicamente amancebado, que aparecesse ante o vigário geral para ser admoestada na forma do Sagrado Concílio Tridentino, o dito capitão com seu filho e um sobrinho, e soldados do castelo, saíram aos oficiais e os espancaram, afrontaram e trataram muito mal, e que Vossa Majestade informado do caso, mandara a alguns ministros da Relação fizessem certa diligência e a remetessem a este Conselho. E por o capitão ser poderoso, se não fez obra no negócio, de que resultou fazerem a Vossa Majestade nova lembrança com a cópia dos autos que se fizeram dos ditos excessos para Vossa Majestade os mandar ver, e mandar acudir ao serviço de Deus com o castigo que merecem, pois os ministros eclesiásticos o não podem fazer, dizendo mais que este capitão tem a ocasião das portas dentro, e neste estado quer que o pároco o desobrigue da obrigação da Igreja, e lhe administre os sacramentos da confissão e sagrada comunhão.
Para se tomar resolução neste negócio, mandou Vossa Majestade por carta assinada de sua real mão ao chanceler da Relação do Porto, informasse do que passava neste caso, e ele o fez no papel incluso, no qual diz que viu os autos que o vigário geral e o cabido da Sé do Porto remeteu a Vossa Majestade com a queixa que faz do capitão Luís Pinto de Matos e de seu filho e de um parente seu, informando-se da verdade do caso achou o seguinte: Que o vigário geral compreendeu na visitação ao dito Luís Pinto por andar amancebado com uma moça solteira, e à mãe por consentidora, e conforme a isto quis proceder contra eles, e mandou ao lugar de São João da Foz a Jacinto de Almeida, escrivão seu, e a um meirinho eclesiástico, para as notificarem viessem por ante ele, e como foi o escrivão e o meirinho, entenderam estas mulheres as queriam prender, pelo que valendo-se do filho do capitão, foi ele com um parente seu e outro soldado à casa onde estavam pousados, sem outras armas mais que as ordinárias, e chamando o dito escrivão, saiu ele a falar-lhe e se descompuseram, de maneira que o filho do capitão levou da espada, e ele lhe foi fugindo, e lhe deu algumas espadeiradas de maneira que caiu, e lhe deram duas feridinhas, uma na cabeça e outra numa mão, de pouca consideração; e dando-se recado ao capitão que o filho brigava, porque até então não tinha sabido nada, acudiu com alguns soldados, e chegando à parte onde estavam os companheiros do escrivão, porque tudo já estava quieto por acudir gente, e juntamente o vigário da igreja, religioso de São Bento, e começou o dito Luís Pinto a descompor-se em palavras contra os que vinham fazer as ditas diligências, dizendo que eram atrevidos em virem àquele lugar fazerem diligências que lhe tocavam a sua honra sem a sua licença, com outras iguais a estas, de maneira que os oficiais se foram sem fazer a diligência; e isto era em suma o que se passou neste caso.
E que este capitão não tem ali sua mulher, e a tem nesta cidade de Lisboa. E tinha aquela mulher que se chama Maria Tavira em sua casa, e com ela diziam estava amancebado, e o consentia a mãe Isabel Fernandes, e posto que alguns dias depois que sucedeu o caso a lançou fora, agora lhe disseram que a tornara a recolher; e assim parece a ele, chanceler, que posto que nos soldados não é muito estranhar terem por amigas mulheres solteiras, contudo o excesso do filho do capitão foi grande, e não lhe consta que o pai soubesse do que o filho tinha feito quando acudiu, mas era obrigação sua recolhê-lo e estranhar-lhe o que havia feito, e não se descompor com palavras escandalosas contra os oficiais eclesiásticos. Pelo que lhe pareceu que Vossa Majestadedeve mandar que o filho do capitão não vença soldo pelo tempo que parecer a Vossa Majestade, e que o capitão mande ir perante o governador das armas Fernão Teles de Meneses, e asperamente o repreenda do excesso que fez, fazendo-lhe fazer termo com cominação que acontecendo outra o castigará Vossa Majestade com o rigor que for servido. E a moça Maria Tavira e a mãe que dizem que consente, sejam degredadas do lugar de São João da Foz dez léguas, para que assim se evite e se atalhe este pecado.
O Conselho, conformando-se com o Doutor Lourenço Coelho Leitão, é de parecer que Vossa Majestade mande que na mesma conformidade se proceda, e que o filho de Luís Pinto de Matos, por castigo da culpa que cometeu, não vença soldo por tempo de quatro meses; e porquanto o que resulta contra Isabel Fernandes em ser encobridora do amancebamento da filha toca à Relação do Porto, se deve advertir ao governador Fernão Teles de Meneses que por aquela via se proceda contra ela, e seja castigada como for justiça. Lisboa a 7 de Julho de 1645.
A resposta de D. João IV foi a seguinte:
Como parece ao chanceler, e o soldo que não há-de vencer o filho do capitão seja por quatro meses. Rei. 11 de Julho de 645. E a Luís Pinto obrigue o Conselho a que tenha sua mulher consigo.
O capitão viria a ser afastado do cargo em 1646, e só nesse ano se iniciariam as obras de ampliação e melhoramento da fortificação.
Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, mç. 5, consulta de 7 de Julho de 1645.
Imagem: “O trombeta, o oficial e a moça”, óleo de Gerard Terborch (1653).