O cerco de Vila Viçosa (9 a 17 de Junho de 1665), segundo um manuscrito coevo – 3ª e última parte

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Aos 16 se deu por nova que o nosso exército se acabava de perceber, com ele levantaram as barracas de um para outro posto, não cessando a cavalaria pelos olivais nem a infantaria pelos montes, aplicando-se a fazer trincheiras. A bateria deste dia se acendeu de modo que referirá o sucesso, porque chegando-lhe socorro de novo de cavalaria e infantaria, a quiseram festejar, com mandar o Marquês que a estacada se levasse a escala vista. Para isso avançou pela uma hora do dia o terço que estava de guarda pela mesma parte do pelourinho com feixes de faxina, tão denodadamente que chovendo sobre eles as balas, com um abrir de olhos já não parecia a estacada, porque se tinham coberto de faxinas junto a ela. Neste tempo bradamos pela Senhora da Conceição, fazendo-lhe muitos votos com os religiosos de São Paulo, porque dávamos a estacada por perdida, senão que sobre ela se levanta um Português, descoberto da cintura para cima, com a espada na mão com que afastava a faxina, e em a outra uma rodela com que aparava os golpes, bradando: “Aqui filhos! Aqui filhos!”, os quais logo o socorreram com partazanas, [e] panelas de fogo, e em pouco espaço de tempo vimos rodando os castelhanos pela escarpa da estacada abaixo, que era um prodígio vê-los cair.
Pelas 6 horas do mesmo dia 16, havendo sentimento em palácio da retirada, quiseram emendar o passo, tendo-se já chegado os valados de terra e atacado uma mina a estacada; lançando-lhe fogo rebentou para trás, de que lhe morreu muita gente. Mandou então o general que se dessem de novo 3 avançadas; concorreu inumerável gente de toda a sorte, levando cada um seu feixe, não já de oliveira, porque ardiam, mas de parras, castanheiros, buxos, murtas, troviscos e outras coisas verdes, o que tudo notamos por nos passar pela porta. Deu-se a primeira avançada ao diamante da praça e ao mesmo tempo se deu outra a brecha do muro velho, com tal ímpeto que logo se fizeram senhores de uma e outra coisa. Muitos saltaram logo na primeira cava mas não saíram, porque os nossos de cima dos baluartes os abrasaram com fogo. Cobriram-se os mais com faxinas junto à estacada, mas os nossos se retiraram às cortaduras delas defendendo a cava para que não entrassem. E como os Castelhanos estavam por aquela escarpa em uma esquina, pelas costas lhe tiravam os nossos da Torre do Relógio, e do lado esquerdo, de cima do muro velho, com que receberam grande dano.
Os da brecha se fizeram senhores do posto até o templo da Conceição, aonde até a sepultura dos mortos revolveram. Em este tempo se dava a terceira avançada pela parte da Esperança e tiveram o mesmo sucesso, porque pela muita gente que lhe morresse, era mais a que avançava. Durou a contenda perto de 5 horas, sem sossego, e durou toda a noite a bateria; as bombas que lançavam dentro eram sem número e poucas caíam fora, houve muita festa em palácio com esta nova, se bem não ignoravam que lhes restava muito que vencer para renderem a fortaleza. O nosso governador e dois mestres de campo ficaram feridos aquela noite, e na mesma noite levantou facho o governador do castelo, Manuel Lobato [Pinto], por ser sinal que tinha dado ao sr. general de ser rendida a estacada.
Pela manhã de 17 do mês houve cessação de armas por espaço de meia hora, por mandar um bolatim o Marquês, dizendo que a bom partido se rendesse, porque já não tinham água. Mandou-lhe em resposta que tinham, além do poço, uma cisterna grande de água muito fresca, que podiam repartir com sua excelência, que lá havia gente muito brava que se não havia de render nem com a morte. Continuou-se a bateria frouxamente. Começou seu exército sair a campo, pelo que entendemos ser chegada a nossa gente. Quando pelas 9 horas do dia começámos a ouvir a nossa artilharia, logo retiraram a bagagem a toda a pressa, como quem não andava em si pelas novas que da batalha lhe vinham. Daí a nada os vimos vir fugindo descompostamente, mandaram ordem a 3 terços que tinham ficado com os ataques que se retirassem; e eles o fizeram de tal sorte, que os nossos de cima do baluarte lhe davam vaias, e saindo fora da estacada como leões, os trouxeram às cutiladas pelas ruas abaixo, não dando quartel a ninguém. E logo entraram em a igreja de Bartolomeu e em outras casas onde os Castelhanos tinham estado e acharam muitas riquezas; e com isto se deu fim a este sítio. Morreram dos nossos 23 ou 24 homens. Os feridos passaram de 300, entre soldados, mulheres e meninos; na mesma tarde entraram os senhores generais vitoriosos em esta vila, tendo saído em o mesmo dia da praça de Estremoz; podendo-se dizer do nosso general: Veni vidi vici, como de César.
Queria pôr aqui o rol dos prisioneiros, principalmente dos fidalgos; mas porque já estão em essa cidade o não faço. Só digo uma coisa, que é a melhor relação que se pode dar, e foi o que disse o Marquês a um nosso: que ficaram ao inimigo em Portugal passante de onze mil homens.
(pgs. 103-105)

Imagem: Equipamento defensivo de cavalaria, séc. XVII: capacete do tipo zischagge, couraça laminada sobre casaca de couro, braçais e manoplas. Pode ver-se, à esquerda, um estoque de cavalaria. Este equipamento raramente era usado de forma tão completa, excepto por oficiais superiores e generais ou por alguns militares das suas companhias de escolta. Foto de JPF, Musée Militaire des Invalides, Paris.