A definição das fronteiras de actuação da justiça, quando os crimes eram praticados por militares e as vítimas elementos da população civil, era algo muito difícil de estabelecer. Dada a situação de guerra pela qual o Reino passava e a necessidade de não derrogar os privilégios dos militares, a fim de não os desmotivar ainda mais perante as necessidades e perigos que tinham de enfrentar, os processos podiam arrastar-se anos, mesmo quando eram perpetrados em zonas distantes da fronteira de guerra.
O caso que aqui se exemplifica reporta-se a 1650, embora o crime em si tenha ocorrido anos antes. Os contornos exactos não são revelados nos documentos existentes, mas envolveu militares e membros do clero e, como causa primeira, a violação de uma mulher – um acontecimento muito frequente à época.
A consulta do Conselho de Guerra refere uma carta do desembargador João Carneiro de Morais, que o rei enviara ao Conselho de Guerra, sobre um caso passado em Óbidos, havia algum tempo já (a julgar por outras referências inclusas, antes de 11 de Junho, seguramente). Nela se refere que fora feita uma nova devassa “do arrombamento do castelo e cadeia da vila de Óbidos, sem embargo de que na primeira devassa não constou dos delinquentes, contudo averiguara claramente que foram seis soldados do presídio de Peniche, os quais comprados por dinheiro, induzidos de uns clérigos, com ajuda e favor do seu capitão Domingos Freire de Brito, cometeram o dito crime com as maiores circunstâncias de indolência que podia ser, a fim de tirarem um preso que o estava por desflorar uma moça em um lugar ermo, com grande violência”. O caso é complicado, pois mostra alguma hesitação do juiz desembargador em remeter ao Conselho de Guerra estas culpas (ou seja, o processo), uma vez que fora praticado há muito tempo, fora da milícia, e era considerado de lesa-majestade. Refere ainda o juiz os trâmites do processo, o facto de não terem sido remetidas culpas ao capitão, por causa de uma indefinição quanto aos juízos em que o processo deveria correr. O réu teria de ser conduzido à sua presença, o que não acontecera, e o crime era punível com pena de morte (Ordenação, lvº 5, tít. 48, § V). Estando o caso como estava, não podia o juiz fazer nada sem ordem firmada pela mão do Rei. E acrescenta que “estes soldados residem alguns no presídio de Peniche publicamente com grande escândalo e são mui facinorosos; e que contra quatro deles há prova na devassa bastante para a pena ordinária (…) que em tão insolente caso são indignos de todo o favor, e que é cousa infalível que se neste caso não houver um exemplar castigo, cada dia escalarão as cadeias, e que bem notória é a facilidade com que o fazem, pois naquela alçada tem três casos desta qualidade”. O juiz solicita que o Conde de Ericeira faça prender logo o capitão e soldados “que serão três ou quatro somente, os que hoje ali assistem”, e que a carta escrita ao Rei seja remetida ao Conselho de Guerra, para que se determine o que se há-de fazer, pois os processos destes soldados estão quase, afinal, à sua revelia.
O Conselho de Guerra, considerando que “(…) maiormente no tempo presente, em que não só as razões de direito e justiça, mas também as de conveniência obrigam a conservar os tais privilégios [dos soldados] e não os derrogar, com notório perigo de desgostar os soldados, que não tanto com os soldos, mas com o foro dos tais privilégios se animam a arriscar ainda em defensão do Reino, em tempo que as guerras estão tão vizinhas e tanto à porta”. O Conselho de Guerra procurou, na resposta, demonstrar que o juiz desembargador não tinha razão em querer julgar aquele caso, o qual devia ser tratado pelo próprio Conselho, uma vez que não tinha sido revogado o privilégio de que o capitão se valia (nem seria conveniente fazê-lo).
Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, mç. 10, consulta de 29 de Agosto de 1650.
Imagem: “Soldados e camponeses em frente de uma taberna”, óleo de Jan Steen.