André de Albuquerque Ribafria e a incursão a Valência de Alcântara (Junho de 1651) – parte 2

Continuando a transcrição da narrativa:

De maneira que fomos marchando aquela noite, e quando amanhecia já nós todos estavamos emboscados [a] um quarto de légua do lugar [cerca de 1.200 metros]. E o capitão Duarte Lobo da Gama foi com a sua tropa, que eram 100 cavalos, por outra parte, para avançar à vila quando chegassem as horas apontadas. De modo que depois de nós estarmos ali já descansados uma hora, já tínhamos dado de comer aos cavalos, chamou o general André de Albuquerque ao meu capitão Francisco Pacheco Mascarenhas, a quem era muito afeiçoado por seu valor e prudência, e lhe disse que, de todos os capitães que consigo tinha, não tinha de quem confiar aquela ocasião senão dele. E assim que lhe ordenava que, quando […] a ele lhe parecessem horas de meio-dia, que poderia já a gente então estar fora nas eiras, havia de ir com sua tropa a rédea solta direito às portas. E que se as achasse abertas, se metesse por dentro delas e as defendesse com todo o risco, para que o inimigo as não fechasse, porque logo nas suas costas haviam de ir cem cavalos para ficarem aí da banda de dentro, em seu lugar. E assim como estes 100 cavalos chegassem, fosse logo direito às portas do castelo e as defendesse também, para que não entrasse ninguém lá dentro. E em caso que as portas da vila estivessem fechadas, aguardasse aí até que chegasse a nossa infantaria, que logo havia de ir nas nossas costas com grande passo. E haviam de levar um petardo para lhe porem às portas e entrar tudo junto dentro.

De modo que se averiguava não haver jamais em guerra alguma quem semelhante ordem desse, nem quem tal jornada como aquela por aqueles modos desse, porque era tão certa a perdição, que não havia quem fizesse conta da vida. Porque assim como o meu capitão ouviu as ordens ao general, lhe respondeu: “Eu hei-de fazer o que Vossa Senhoria me manda, mas também lhe lembro a Vossa Senhoria que vou a botar a minha companhia num passo sem remédio de esperanças de a tornar a ver mais, porque ainda que na vila não haja mais que 50 mulheres com pedras, bastam para me consumir toda a companhia antes que siga a demais gente, e se eu achar fechada muito mais depressa a perderei. Mas contudo o que se oferecer hei-de dar cumprimento às ordens que Vossa Senhoria me dá”.

Assim como o meu capitão se despediu do general, veio a falar com todos os soldados e dizer-lhe[s] da ordem que trazia. Que cada qual de nós tratasse de se confessar e pôr-se bem com Deus, porque podiam fazer pouca conta da vida, que de nenhum modo lhe sentia remédio, pois o risco era tão certo. Não houve soldado que logo se não fosse a confessar a uns frades de São Francisco que ali iam connosco, e o nosso capitão também e todos os mais. De sorte que o capitão que esta jornada traçou estava uma meia légua [cerca de 2,5 quilómetros] de nós para avançar a uma das portas, que eram duas, e a mesma ordem que a minha companhia tinha também ele lá onde estava havia de fazer o mesmo, que já levava a ordem quando se apartou de nós.

Estavamos já aguardando pela desgraçada hora para avançarmos quando nisto vem um soldado, dos que lá tinha Duarte Lobo onde estava. E assim como nós o vimos vir, logo ficámos mais alegres, por nos parecer haveria alguma novidade que nos servisse de bem. E assim como chegou a nós, trazia um rapaz castelhano na garupa do cavalo, e buscando logo ao general, lhe entregou o rapaz, para que lhe perguntasse o que havia na vila de novo. O qual rapaz o devia de mandar ali Deus Nosso Senhor para nos trazer tão boas novas, que se não o apanhavam, tudo se perdia sem remédio. O que o rapaz disse ao general foi que havia três ou quatro dias que havia fugido um trombeta de Marvão para lá, e disse que estando em Castelo de Vide ouvira dizer que o terço estava aparelhado, aguardando por gente, que haviam de vir a Valença, e assim que logo se preveniram até ver em que parava aquela nova. E que não estava ninguém fora nas eiras nem em todo o campo. Que ele havia ficado aquela noite fora, para ir pela manhã a restrigar as estrigas do trigo segado e que não achariam mais pessoa alguma fora, em razão da nova.

Assim como o general ouviu o rapaz, sentiu muito as novas por uma parte, e por outra a estimou muito mais, por ver que havia de perder a maior parte da gente que levava. E assim não houve soldado nem capitão que não dissesse que não foi o rapaz, senão algum anjo que nos trouxe tais novas. Mandou logo o general aviso [a] Duarte Lobo que, se pudesse retirar-se de modo que não o vissem do lugar, se viesse logo, e quando não, que viesse à vista dele. Mas que não botasse nem um cavalo a vila. Assim como Duarte Lobo saiu donde estava, logo foi visto da vila e lhe atiraram duas peças, mas não lhe fizeram nada. E assim como veio, logo o general se pôs em marcha com a gente na via de Castelo de Vide. e nós viemos para Elvas mui enfadados da marcha, porque andámos no decurso dela 29 léguas [cerca de 145 quilómetros], que como era em Junho faziam muito grandes calmas [ou seja, calor] e vinha a cavalaria destroçada e a infantaria acabada.

E com esta jornada são três as que se deram a Valença, e com as primeiras duas serem bem más, muito pior havia esta de ser, se não fora a fortuna de acharmos o rapaz que nos livrou, com as novas, de um grande perigo como era o em que nos havíamos de ver. E assim que imagino que já os nossos governadores se têm desenganado com Valença, pois lhe há dado muitos desgostos e perda de muita gente.

Fonte: MMR, pgs. 207-273.

Imagem: Valência de Alcântara (foto de JPF).