Relação diária dos sucessos ocorridos entre os anos 1655 a 1656 na fronteira da Extremadura espanhola (parte 2)

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Prosseguindo a transcrição/tradução para português do manuscrito, ano de 1655, refere-se aqui a tentativa de tomada pela traição de Salvaterra do Extremo. Acerca deste peculiar episódio da Guerra da Restauração veja-se também os estudos de Gastão de Melo de Matos (“Soldados da Guerra da Aclamação. O General de artilharia Antonio Suares «O Machuca»”, in Anais da Academia Portuguesa da História, I série, vol. VI, 1942, pp. 131-250) e Juan Antonio Caro del Corral (“La frontera cacereña ante la Guerra de Restauración de Portugal: Organización defensiva y sucesos de armas (1640-1668), in Revista de Estudios Extremeños, 2012, Tomo LXVIII, Número I, pp. 187-226), este último publicado aqui.

Por estes dias houve algumas partidas em que se tomaram cavalos de uma parte e outra, ocasionado tudo não tanto da indústria de quem os tomava, quanto do descuido de quem os perdia, que por se escusar prolixidade não se referem.

Pelos fins de Junho saiu desta praça o Senhor Don Francisco Tutavila, publicando [no sentido de “tornando público”] ia a Guadalupe a ver-se com seu irmão Don Vicêncio Tutavila, que havia de ir ali da Corte. Mas como de Mérida tomou a volta de Cáceres, se deixou com publicidade que ia a surpreender Salvaterra [do Extremo, em Portugal] por trato, como era a verdade, havendo conversado com o governador daquela praça, que se dizia o sargento-mor António Soares da Costa, um fidalgo de Ceclavin chamado D. Afonso de Sande, pessoa inteligente e letrado, o qual, havendo falado diversas vezes com o tal sargento-mor em trajo de contrabandista, e dado conta de tudo a Don Luís de Haro, primeiro-ministro de Sua Majestade, se ajustou que lhe dariam 4.000 ducados de renda, um hábito [não especificado, mas referindo-se provavelmente a um colar em ouro de uma ordem religioso-militar, em uso na época] e outras mercês que pediu, e que [n]o dia de São Pedro entregaria aquele castelo. A disposição era que aquele dia haviam de entrar com o Sande até 30 em pequenos grupos de quatro e cinco com suas mercadorias, que uma partida nossa neste tempo havia de arrimar-se à praça e levar o gado que topasse, que o governador arrolaria a guarnição até à ribeira, e que então se apoderariam os nossos do castelo [em] que estavam dentro, e 100 cavalos e 150 infantes que haviam de estar emboscados junto à praça cortassem a guarnição quando saíssem sobre a partida, e depois entrassem no castelo, onde também havia quantidade de mercadorias. Não deu disposição o governador a que se executasse [n]o dia assinalado, se bem prometeu que prestes avisaria o dia. Com isto o Senhor Don Francisco, sem arrimar-se a Alcântara, passou ao largo, pelas barcas de Alconétar a Plasência, e dali aos lugares que havia comprado, onde se entreteve mais de 15 dias aguardando o dia. Assinalando-lhe o governador para 15 de Julho, em tempo que o Duque permanecia em Jaraíz, sem embargo procurou apressar-se para estar em Ceclavín no dia assinalado. Mas quando chegou já havia marchado o Sande com os seus 28 companheiros, todos vizinhos de Ceclavín e seus amigos, e entre eles o alferes Don Juan Flores, cavaleiro de Alcântara que estava ali casado com manteúda do Sande, o qual, persuadido da boa fortuna que esperava, não quis senão participá-la aos seus. Entrou em Salvaterra na forma ajustada, e das línguas se supôs depois que assim como iam entrando as partidas, os iam degolando, e ao Sande por último o botaram em uma peça, que era a senha que havia posto o governador para que arremetesse a nossa emboscada. Mas não se moveu nada, porque sem a senha tinham outra contra-senha o cabo da emboscada e o Sande, que era uma luva cortada em duas partes, e a que levou o Sande havia de enviar com um dos seus. Por isto não logrou o governador o dano que pensou fazer, tendo toda sua gente disposta na muralha, e as peças apontadas à porta com bala de mosquete [ou seja, cartuchos repletos de balas de mosquete para efectuar “tiro de metralha” a curta distância] para quando se aproximassem os nossos, mas não supôs a contra-senha. E o cabo da emboscada, havendo esperado algumas horas depois que se disparou a peça, como não lhe vinha a meia luva, suspeitando logo foi. Depois de dar parte ao governador de Alcântara, a Zarza se retirou com sua gente. Escandalizou a crueldade que se fez com os da surpresa, e se estranhou muitíssimo que se tivesse intentado, depois de estar tão pública, que até as línguas [ou seja, civis e militares capturados a fim de obter informações] que se traziam de Elvas e Campo Maior sabiam disto. Mas o haver sido disposição de Don Luís de Haro e a confiança que o Sande tinha do governador e do bom sucesso, e a instância que fez para a execução, foi causa que se atropelasse tudo, temendo quiçá o Senhor Don Francisco o culpassem na Corte, à sua frouxidão ou sua malícia, se não a executara.

(continua)

Fonte: “Relación diaria de los sucesos acaecidos entre los años 1655 a 1656” (Biblioteca Nacional de Madrid, Sala Cervantes, Colección Mascareñas, Manuscrito nº 2384, fls. 251-252)

Imagem: O que resta dos panos de muralha do castelo de Salvaterra do Extremo: somente partes que estão inseridas em casas de habitação particulares, na actualidade.