Continuando um dos episódios recordados pelo soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz). Um recontro de cavalaria nas proximidades de Badajoz, vertido para português (livre do chamado “acordo ortográfico”).
Avançam as famosas 4 tropas ao inimigo, o qual teve mão com grande valor por estar diante deles o seu general. Mas como as nossas 4 tropas tinham muito valentes capitães e soldados e avançaram com boa vontade, em poucos tempos fizeram pôr aqueles em fugida, ficando-lhe logo ali dois capitães mortos, grandes soldados, e assim como o inimigo se pôs em fugida carregam sobre ele as 4 tropas até junto dos olivais, e a tudo isto sempre cuidando que a outra nossa cavalaria ia fazendo o mesmo e eles estavam já de nós mais de duas léguas, que foi o maior milagre e ventura o livrarem[-se] as 4 tropas que jamais se viu. Mas como o inimigo não sabia que a nossa cavalaria era fugida, quando viu retirar-se tão pouca gente lá de baixo, dos olivais, entendia que estava detrás dos outeiros a nossa cavalaria toda, e assim que não ousavam a sair-se dos olivais. E as mesmas nossas 4 tropas, quando voltámos lá de baixo, sempre imaginámos que as nossas tropas estivessem detrás dos outeiros, mas assim como chegámos a elas que demos vista de toda a campanha e não vimos cavalaria alguma senão daí duas léguas, toda espalhada pela campanha como ovelhas sem pastor, que o nosso tenente-general, como viu fugir a cavalaria sem lhe poder valer, ficou arreado sem saber o que fizesse nem para onde fosse. E assim se pôs à borda do mato com coisa de 30 cavalos, pasmado ali, sem se determinar para onde fosse. E não sabia até àquele tempo de que tais 4 tropas haviam feito uma tão heróica acção como foi aquela ventura, e assim como viu aquela gente em os altos e que vinham para baixo mandou lá a reconhecer-nos, e achando que era gente sua ficou mais contente e se foi a nós com grande alegria, abraçando a todos os capitães e dando-lhe grandes louvores e a todos os soldados por lhe suceder tal ocasião, que se não lhe sucedera aquilo, que ficava ele afrontado, de modo que não havia de entrar em Elvas diante dos seus generais.
Incorporados e juntos muito bem esta gente que teve esta vitória, que suposto que não havia mais tropas que as 4, vinham também ali muitos soldados e oficiais das outras companhias que haviam fugido, que seriam 300 cavalos, veio-se o tenente-general com eles retirando a bom passo de longo de Guadiana, aonde passámos à outra banda da nossa campanha de Elvas sem perigo algum. Apenas nós tínhamos passado o porto quando nós vemos o inimigo em os altos da sua atalaia, todo junto. E assim como ele nos viu da banda de além e tão pouca gente, sabendo da sua atalaia que a nossa cavalaria fugira logo dali, porque dera bem fé de tudo, ficou o inimigo sentidíssimo de lhe suceder tal desgraça, vendo que tão pouca gente como aquela fora bastante para alcançar tão rara vitória, que suposto que houve fugida ficámos nós com a vitória, pois metemos ao inimigo pelas portas dentro às pancadas e assim nos retirámos a Elvas com grande gosto. E os que fugiram não ousavam a entrar em Elvas, vendo a vergonha que havia passado por eles. Porém houve grandes castigos e prisões em muitos oficiais, e reformações, por que não houvesse outro dia semelhante. De modo que a perda que tivemos de maior sentimento foi a do capitão Sancho Dias de Saldanha. É suposto que houve mais mortos de outros soldados, mas não chegaram a 20. O inimigo perdeu 6 capitães de cavalos, 2 mortos e 4 cativos, e perderia 20 cavalos, que para o que foi, não foi pouco, que pouca gente não pode fazer muito dano. Mas não há dúvida que se fora o nosso general da cavalaria com ela, que lhe dava Deus um bom dia para seu crédito e reputação, porque havia de dispor a ocasião com grande sentido e descanso e não lhe podia suceder mal. E na verdade quem teve a maior parte da culpa foi o comissário, em ser origem de fugir a cavalaria, porque já ele tinha aberto o caminho com a sua, que ele levava lá diante quando pelejou com o inimigo que veio fugindo pelos outeiros abaixo, que isso foi causa de se conseguir depois tamanha desordem como depois disso sucedeu.
Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, pp. 307-310.
Imagem: Elvas: vista parcial do castelo. Foto de JPF.