14 de Janeiro de 1659 – Batalha das Linhas de Elvas e morte de André de Albuquerque Ribafria

“[…] Amanheceu terça-feira, catorze de Janeiro do ano de mil seiscentos e cinquenta e nove, dia tão fausto à Nação Portuguesa, que até a si mesmo se fez feliz, por ser de séculos imemoráveis erradamente julgado por infausto; tomando a maior parte deste agoiro a família dos Meneses, de que era cabeça o Conde de Cantanhede, que conseguiu mais uma vitória na resolução de desvanecer esta superstição gentílica. […] [p. 215]

[…] E como em todo o decurso da sua vida não tolerou André de Albuquerque que os seus soldados voltassem as costas aos inimigos, arrojou o cavalo ao centro do esquadrão, exortou aos que se retiravam, e persuadindo-os a que voltassem as caras, os levou junto da estacada do forte, e tocando nas estacas com a bengala, os advertiu como haviam de arrancá-las; obedeceram os soldados, emendendando o erro antecedente. Acertou uma bala tirada do forte a André de Albuquerque, entrando por entre o extremo do braço direito e o princípio das armas [ou seja, da armadura, que consistia numa couraça completa para o tronco: corselete e braçais. A bala penetrou pela extremidade desprotegida, o que leva a crer que André de Albuquerque Ribafria usava apenas luvas de couro, na melhor das hipóteses, e não uma manopla de ferro a proteger todo o antebraço e mão] com efeito tão mortal que infelizmente caiu morto em terra […]. [p. 224]

[…] O Conde de Cantanhede, no dia seguinte ao que ganhou a batalha [quarta-feira, 15 de Janeiro], deu ordem à sepultura do corpo de André de Albuquerque com todas as fúnebres demonstrações militares, que merecia a memória de um varão de tão excelentes virtudes. Foi enterrado no Mosteiro de S. Francisco. [p. 232]

Fonte: D. Luís de Meneses, História de Portugal Restaurado, Parte II, Tomo III, Lisboa, 1751.

Imagem: Padrão comemorativo da Batalha das Linhas de Elvas. Foto de JPF.

“A Batalha de Montes Claros. Perspectiva de um Engenheiro Militar”, de José Paulo Berger

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O mais recente estudo sobre Montes Claros, da autoria do Coronel de Engenharia José Paulo Berger, é uma excelente análise interpretativa sobre a decisiva batalha da Guerra da Restauração. Assente numa minuciosa investigação do terreno e das suas características, trata-se de um trabalho inovador, cuidadosamente pesquisado e muitíssimo bem escrito, que vem enriquecer a historiografia militar portuguesa. A não perder!

350 anos da batalha de Montes Claros (17 de Junho de 1665)

Passam hoje 350 anos sobre uma das mais importantes batalhas da Guerra da Restauração. O exército português, comandado por D. António Luís de Meneses (Conde de Cantanhede e Marquês de Marialva) e pelo Conde de Schomberg. compreendendo contingentes ingleses e franceses, derrotou nas proximidades de Vila Viçosa o exército espanhol comandado pelo Marquês de Caracena. Não foi uma batalha decisiva no imediato, mas contribuiu para apressar o final de um longo conflito que opunha as duas Coroas peninsulares.

Em breve será construído um Centro de Interpretação da Batalha de Montes Claros. A seu tempo serão aqui dadas mais informações.

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Montes Claros revisitado – mais algumas fotos do campo de batalha na actualidade

Imagens do campo de batalha de Montes Claros, obtidas a partir do monte Mouro, à esquerda do dispositivo português formado em batalha. Nesta primeira foto, no lado direito da mesma e assinalado com um X, é visível o Convento da Luz, situado à retaguarda do exército português. Também assinalada na foto abaixo se encontra a elevação que foi ocupada pelos terços da vanguarda do exército, sobre a ala esquerda. A seta indica a direcção do dispositivo, de frente para o inimigo.

IMG_8679Nesta segunda foto, a partir do mesmo local da anterior, indica-se com a seta a vermelho o eixo de aproximação a Vila Viçosa inicialmente pretendido pelo Marquês de Marialva e pelo Conde de Schomberg, comandantes do exército português. Contudo, o surgimento do exército inimigo (cuja progressão está indicada a amarelo), que até então marchara a coberto da serra da Vigária, obrigou à alteração do plano inicial e à rápida disposição do exército em batalha.

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Fotos do autor.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (8ª e última parte)

(Q)Foto Q (acima) – Local onde se formaram as linhas da cavalaria portuguesa, na ala direita do dispositivo português. O caminho que se vê na fotografia passa pelo local onde provavelmente estariam formados os batalhões da terceira linha. Ao fundo é reconhecível a zona onde o batalhão do extremo da primeira linha ficou formado:

No lado direito em o fim da várzea, onde a serra de Ossa tem princípio por aquela parte, se assinalou posto ao primeiro batalhão de cavalaria, e era o terreno que corria para a mão direita tão embaraçado de sanjas e valados, que ficava a cavalaria segura de ser atacada por aquele flanco; porém, alterada a forma, ocupou inutilmente este terreno. Deste sítio para o lado esquerdo continuava a campanha rasa (…). (Ericeira, 1946, IV, pg. 294)

(R)Foto Q (acima) – Na retaguarda das linhas de infantaria do exército português, sensivelmente na zona onde ficou posicionada a reserva. O terreno em frente e para a direita desta foto foi muito disputado e terá sido aqui que se jogou a fase decisiva da batalha, quando a sorte das armas podia ainda pender para qualquer dos lados e o exército espanhol parecia em condições de derrotar o português.

(…) [Os espanhóis] investiram valorosamente o corpo da infantaria e cavalaria [portuguesa] que lhes ficava oposta e, rompendo-o, chegaram até à vanguarda da segunda linha da infantaria e da terceira da cavalaria. Acudiu Dinis de Melo com grande prontidão e valor ao remédio deste dano, reforçando a peleja com novos batalhões, sem perder terreno nem mudar forma. A mesma constância tiveram os terços de Tristão da Cunha, Francisco da Silva e João Furtado; porém, ainda que repetiram incessantes cargas [tiros], entraram mais de mil cavalos pelo claro dos terços de Tristão da Cunha e Francisco da Silva, onde estava o general da artilharia [D. Luís de Meneses] e o Conde de São João e, atropelando algumas mangas da guarnição do lado direito do terço de Francisco da Silva, deixaram ferido ao mestre de campo e mortos trinta oficiais e soldados. (…)

O Conde de Schomberg, vendo que nesta parte era mais vigoroso o conflito, acudiu a ela com tão perigosa resolução, (…) que lhe foi preciso romper pelos batalhões inimigos para chegar ao posto onde estava o Marquês de Marialva, (…) socorrido dos seus três valorosos filhos com seus batalhões, do Conde de Rosan com a sua companhia e do Conde de Maré com o seu regimento (…). Os inimigos, perplexos na resolução que deviam tomar, intentaram romper os batalhões a que assistia Pedro César [de Meneses], Francisco de Távora e Bernardino de Távora; porém, achando-os constantes e impenetráveis, voltaram, perdida a resolução e mortos muitos oficiais e soldados, pela mesma parte por onde haviam investido, entendendo que poderiam romper pela retaguarda os três terços que primeiro encontrararm. Porém, desvaneceu-lhes esta suposição o Conde de São João e o general da artilharia, por haverem dado ordem às três últimas fileiras que voltassem as caras à retaguarda, calada a picaria e prevenidas as bocas de fogo, o que prontamente executaram, animados dos mestres de campos e oficiais, com tão feliz efeito que obrigaram aos inimigos a voltarem com furiosa torrente pelo mesmo claro por onde haviam investido (…). (Ericeira, 1946, IV, pgs. 300-302)

Termina aqui esta série de artigos sobre o campo de batalha de Montes Claros, tal como se encontra na actualidade. Procurou-se assim dissipar as dúvidas acerca do verdadeiro local onde a peleja teve lugar, tarefa sempre difícil, mas que uma análise cuidadosa das fontes permite estabelecer com alguma segurança.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (7ª parte)

(O)Foto O (acima) – Na retaguarda do dispositivo português erguia-se uma outra elevação, muito semelhante à que foi ocupada, mais adiante, pelos terços e pela artilharia do exército do Marquês de Marialva e do Conde de Schomberg. Foi daqui que os dois generais, ainda com o exército português em marcha, descortinaram a chegada das primeiras tropas do Marquês de Caracena ao local onde se travaria a batalha.

Chegado o Conde de Schomberg à eminência que ocupava o Conde de São João e o general da artilharia, observaram que os batalhões da cavalaria inimiga sucessivamente vinham saindo à campanha, havendo estado cobertos com a serra da Vigaira, e se formavam com tanta pressa, que manifestamente descobriam a deliberação de pelejar, sendo o Conde de Schomberg o primeiro que teve por infalível este discurso. (Ericeira, 1946, IV, pg. 293)

PFoto P (acima) – A planície onde chocaram as cavalarias dos dois exércitos, sobre a ala direita do exército português, olhando na direcção do dispositivo espanhol.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (6ª parte)

(L)Foto L (acima) – Ala esquerda do dispositivo espanhol. olhando para o flanco esquerdo. Estas posições eram ocupadas pela cavalaria. Realce-se a natureza plana do terreno, propício à manobra da cavalaria.

(M)Foto M (acima) – Zona de progressão da infantaria espanhola, olhando na direcção das linhas portuguesas. Terá sido nas imediações deste local que chocaram dois regimentos, um suíço e outro inglês, num combate renhido a golpe de pique, mas no qual também chegaram a ser arremessadas as pedras caídas dos muros que por ali havia. O regimento suíço, comandado pelo coronel Clofs, estava ao serviço da coroa espanhola. O inglês, sob o comando efectivo do tenente-coronel William Sheldon, era o regimento nominalmente comandado pelo próprio Conde de Schomberg. O tenente-coronel Sheldon perdeu a vida neste combate, tendo o seu regimento sofrido entre 40 e 50 mortos e cerca de 100 feridos. Entre os mortos contavam-se os capitães Jones, Heatfield e Rust e o tenente Boone, e entre os feridos os capitães Stansby, Roch, Turner e Langley, os tenentes Newsome, Sandys e Sherwood e os alferes (ensign, em inglês) Turner, Porridge e Emerson e também o cirurgião John Leadger. Conseguiram capturar 4 bandeiras ao inimigo (Relacion Verdadera…, pgs. 37-38, com cruzamento de referências para os nomes em Childs, John, The Army of Charles II, London, Routledge & Kegan Paul, 1976, appendix B, pgs. 238-239; contudo, Childs não fornece uma relação completa dos oficiais que serviram nos regimentos ingleses de 1662-68, faltando vários nomes que surgem em documentos portugueses).

V(N) reduzFoto N (acima) – vista a partir da primeira linha do dispositivo português, sobre a ala direita, onde estava disposta a maior parte da cavalaria e também dois terços de infantaria. É quase certo que os muros que se vêem sobre a direita sejam os que serviram de abrigo a duas peças de artilharia ligeira e a um destacamento de 100 mosqueteiros, adiantados para essa posição por ordem do general da artilharia D. Luís de Meneses antes do início da batalha. O destacamento era comandado pelo tenente-general da artilharia Marco Raposo Figueira e foi desalojado das posições pelos ferozes ataques do inimigo, depois de oferecer muita resistência. Os canhões assim perdidos viriam a ser recapturados pelos portugueses mais tarde, num contra-ataque comandado pelo sargento-mor de batalha Diogo Gomes de Figueiredo (Relacion Verdadera…, pg. 35).

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (5ª parte)

(I) Detail of the close terrainFoto I1 (acima) – Detalhe do terreno irregular em frente da primeira linha da infantaria portuguesa. Coube aos auxiliares talarem obstáculos como este, que obstruíam o campo de visão e de tiro, tarefa que custou a vida a muitos.

(I)Foto I2 (acima) – Do mesmo local, mas olhando para a direita do dispositivo português (esquerda do espanhol). É notório o suave declive do terreno, afundando na direcção onde se bateu a cavalaria dos dois exércitos e também parte da infantaria portuguesa.

(J)Foto J (acima) – Zona do terreno em frente à primeira linha do dispositivo português, olhando na direcção do mesmo, sensivelmente na zona de charneira entre os últimos terços da primeira linha portuguesa e os primeiros batalhões da cavalaria (havia ainda dois terços mais para o lado esquerdo da foto, interpolados entre os batalhões de cavalos). Esta terá sido a perspectiva que tiveram os cavaleiros da vanguarda do exército de Caracena, quando carregaram a cavalaria portuguesa e também os terços de Tristão da Cunha e de Francisco da Silva de Moura. Local onde a sorte da batalha esteve indecisa, após a cavalaria do exército espanhol ter rompido as primeiras linhas da congénere portuguesa e isolado momentaneamente os terços atrás referidos.

Segundo a Relacion Verdadera, no início da refrega o mestre de campo Francisco da Silva de Moura adiantou-se com o seu terço, aparentemente por querer demonstrar o seu valor, destacando-se da linha inicial do dispositivo (atitudes destas, em que a impetuosidade de um comandante punha em cheque a coesão do conjunto das forças, aconteciam com alguma frequência na época). E por isso foram rompidos os seus mosqueteiros; todavia, com admiração de todos se reformou duas vezes entre o furor do conflito, e a firmeza das picas [ou seja, dos piques] a nenhum dos que entraram deixou sair. (traduzido do castelhano original, pgs. 28-29)

(K)Foto K (acima) – Um pouco mais distante do local da foto anterior, mais próximo da zona de progressão da cavalaria e da infantaria espanhola, olhando para a ala esquerda do mesmo exército. Pequenos muros de pedra como o que se vê na imagem são referidos nas narrativas da batalha.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (4ª parte)

V(F)Foto F (acima) – Vista a partir das posições da infantaria portuguesa, sensivelmente do local da segunda linha do dispositivo e já um pouco sobre a ala esquerda, olhando na direcção do centro e para o terreno ocupado pelo exército do Marquês de Caracena (ao longe). Apesar de existirem algumas pequenas diferenças de pormenor entre a Relacion verdadera e a História de Portugal Restaurado, sendo a primeira fonte narrativa mais precisa em detalhes, poderemos socorrer-nos do Conde de Ericeira para corroborar o local identificado na foto:

As três linhas de cavalaria e a segunda linha da infantaria foram ocupando, em terreno igual ao referido, os claros dos batalhões e terços da vanguarda. O primeiro terço do lado direito era o de Tristão da Cunha; seguia-se para o esquerdo Francisco da Silva e João Furtado, formados na campanha rasa. O mestre de campo Pedro César e os mais, que se continuavam conforme a ordem referida, ocupavam a colina, tornando a baixá-la até topar com as vinhas que ficavam ao lado esquerdo (…). (Ericeira, 1946, IV, pgs. 294-295)

V(G) Towards Portuguese infantry positionsFoto G (acima) – Se exceptuarmos os elementos que a acção humana introduziu de há cerca de 350 anos para cá, esta era a perspectiva que a infantaria do exército espanhol, dos terços comandados pelos mestres de campo Mojica, Cordoba e Carpio, colocados na ala direita do dispositivo de batalha de Caracena, teria das posições do exército português imediatamente em frente. A elevação ao fundo, à esquerda, é a que se apresenta na foto F. As vinhas do lado esquerdo do dispositivo português ficam aqui, logicamente, à direita, pois o terreno ainda hoje é usado para a viticultura.

Continuando com a descrição do Conde de Ericeira: (…) e no alto desta eminência plantou o general da artilharia [D. Luís de Meneses] quatro peças ligeiras, que, começando a jogar logo que apareceram os primeiros batalhões castelhanos, ainda que a distância era larga, por ordem do general da artilharia se conseguiram ao mesmo tempo dois grandes efeitos: o primeiro, que ouvindo-se em todo o exército o estrondo desta militar tormenta, todos se aplicaram a buscar os postos que antecipadamente se lhes haviam sinalado, sem dependerem das ordens dos oficiais maiores (…); o segundo, servir de alento aos soldados, que não podiam examinar as distâncias, entenderem que os castelhanos começavam a receber o dano da artilharia (…). (Ericeira, 1946, IV, pg. 295)

(H)Foto H (acima) – Pormenor da “terra de ninguém”, um pouco mais para a esquerda do local da foto G, olhando na direcção do dispositivo português. Esta parte da paisagem foi modificada pela acção humana em anos recentes, todavia a zona de terreno era originalmente bastante irregular nesta zona, como se verá na próxima entrada.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (3ª parte)

Quando se procede à interpretação de uma batalha, para além da aferição e da comparação da plausibilidade das narrativas gerais ou parcelares sobre o evento, há que ter em consideração que as concepções tácticas e os alcances efectivos e práticos das armas do período estudado (estou a referir-me especificamente ao século XVII, mas é igualmente válido para outras eras) eram muito diferentes das actuais. A apreciação do terreno de batalha, se ele não estiver muito modificado em relação ao que serviu de palco à acção estudada, deve ter em conta esse princípio básico. Recordo que no tempo da batalha de Montes Claros, o alcance prático de um mosquete era inferior a 100 metros, o de um arcabuz ainda menos, o de uma pistola menos de 10 metros (contra couraças havia que disparar à queima-roupa para garantir maior probabilidade de penetração). E que na maior parte dos casos os combates se resolviam à arma branca. Portanto, a distância que separava as primeiras linhas de duas forças dispostas em batalha no início de uma refrega era relativamente reduzida (entre 300 a 400 metros, ou até menos), pois permitia a evolução das tropas a uma distância ainda segura, no caso da infantaria, e os preparativos para o lançamento ou recepção da carga (e do escaramuçar prévio com carabinas) por parte da cavalaria. A extensão de cada uma das linhas dependia do número das unidades e dos efectivos que as constituíam. Convém lembrar que os terços, no terreno, se formavam em esquadrões de 10 filas de profundidade, contando nestas as de mosqueteiros (normalmente as duas ou três primeiras fileiras de cada esquadrão, o qual continha nas alas mais 4 a 5 filas de arcabuzeiros – sobre o significado específico desta terminologia, consulte-se este artigo). E que, na verdade, cada esquadrão podia conter elementos de mais do que um terço, ou destacar mangas de atiradores para outros esquadrões, ou para serem interpolados com a cavalaria, ou para defenderem um ponto específico do terreno, actuando assim como pequenas unidades independentes.

O cálculo da extensão de cada uma das linhas deve levar em conta que os efectivos dos terços variavam muito, mas que cada esquadrão teria em média, no caso concreto da batalha de Montes Claros, entre 500 e 600 homens. Sem esquecer os claros, ou seja, os intervalos entre os esquadrões de infantaria ou os batalhões de cavalaria formados no terreno. Seguindo à risca o que estava determinado nos tratados militares, os claros deviam ter espaço suficiente para permitir a manobra de um esquadrão ou batalhão, o seu avanço ou recuo sem se embaraçar com as unidades amigas que estavam na sua frente ou retaguarda. Mas nem sempre assim acontecia, ou porque a natureza do terreno não o permitia, ou por motivos de coesão das próprias linhas. Foi precisamente o que aconteceu com os batalhões da cavalaria do exército espanhol em Montes Claros, que na sua carga sobre a ala direita portuguesa vieram reforçados, mas com prejuízo do intervalo entre as unidades. Após o sucesso inicial, em que desbarataram as primeiras linhas da cavalaria do exército português, não conseguiram reorganizar-se e foram derrotados pelo contra-ataque levado a cabo pelos portugueses.

Continuemos o nosso passeio pelo campo de batalha, passando às fotografias.

Foto C – A partir da ala direita do dispositivo espanhol (posição ocupada pelos terços de infantaria), olhando para o flanco esquerdo (no terreno mais ao fundo progrediria a cavalaria). À distância, a serra da Ossa. Note-se a natureza relativamente plana do terreno, mas com alguns espaços mais fechados, com pedras, árvores de pequeno porte e matagal, não muito diferente do que é descrito nas fontes narrativas. Foi por causa deste tipo de terreno que o Conde de Schomberg mandou formar um destacamento na vanguarda do exército, comandado pelo mestre de campo António de Saldanha, dos auxiliares da comarca de Tomar, com quinhentos infantes de todos os terços de auxiliares, que levavam ferramentas para abaterem os valados e facilitarem os passos dificultosos. (Ericeira, 1946, IV, pg. 290)

V(C) Spanish initial positionsFoto D – Vista sobre as posições espanholas, a partir do terreno em frente da primeira linha da cavalaria portuguesa, na ala direita do dispositivo (que contava com dois terços de infantaria de reforço nessa primeira linha, os dos mestres de campo José de Sousa Cid e Matias da Cunha, interpolados com seis batalhões de cavalaria). Foi através deste terreno que a cavalaria do exército espanhol progrediu para carregar congénere a portuguesa e os terços atrás mencionados, obtendo algum sucesso inicial.

(D)Foto E – Vista a partir das linhas intermédias e retaguarda do dispositivo espanhol, olhando para o flanco esquerdo, ocupado pela cavalaria. O pequeno lago que se pode ver na foto não existia em 1665.

V(E)

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (2ª parte)

As fontes narrativas de que dispomos para o estudo da batalha de Montes Claros são as seguintes:

– D’ABLANCOURT, Frémont (1701), Mémoires De Monsieur D’Ablancourt Envoyé de la Magesté Trés-Chrétienne Louis XIV, en Portugal; Contenant L’Histoire de Portugal, Depuis le Traité des Pyrenées de 1659, jusqu’à 1668, Amsterdam, J. Louis De Lorme.

– ERICEIRA, Conde de (1946), História de Portugal Restaurado, edição anotada e prefaciada por António Álvaro da Silva Dória, Porto, Livraria Civilização, vol. IV.

Relacion verdadera, y pontval, de la gloriosissima victoria que en la famosa batalla de Montes Claros alcançò el Exercito delRey de Portugal, de qve es Capitan General Don Antonio Luis de Meneses Marquez de Marialua, Conde de Cantañede, contra el Exercito delRey de Castilla, de qve era Capitan General el Marquez de Caracena, El dia diez y siete de Iunio de 1665. Con la admirable defensa de la plaça de Villa Viciosa, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliuera, 1665.

A estas, que definiria como principais, poderia juntar ainda duas outras:

– “A Relation of the last summers Campagne in the Kingdome of Portugall, 1665”, anonymous (by an officer of an English Regiment of Horse), 23 June 1665, The National Archives, London, State Papers Portugal, SP 89/7

– DUMOURIEZ, Charles François (1807), Campagnes du Maréchal de Schomberg en Portugal, depuis l’année 1662 jusqu’en 1668, Londres, De l’Imprimerie de Cox, Fils, et Baylis.

Estas são muito diferentes entre si. A obra de Dumouriez (que não é memorialista nem historiador, mas aventureiro e militar de carreira – um dos generais vencedores da batalha de Valmy em 1792, caído em desgraça perante a Convenção e que passou a servir os ingleses) navega muito à vista de D’Ablancourt e do Conde de Ericeira, não podendo por isso ser considerada fonte primária. Já a relação anónima de um oficial inglês de cavalaria é um manuscrito que traduzi para português num artigo publicado em 2009 (Lusíada, série II, nº 5/6, pgs. 341-355). Devido ao relato muito marcado pelo “nevoeiro de guerra” e ao discurso fortemente laudatório da participação inglesa na batalha, não é uma fonte que possibilite uma percepção geral dos acontecimentos, embora seja muito interessante como memória particular.

Voltando às fotografias publicadas no anterior artigo, comecemos pela primeira, em que se traçou a rota do exército português até ao campo onde se travou a batalha, e se indicou a rota que o mesmo deveria seguir até Vila Viçosa, não fora a chegada do exército espanhol. O Conde de Ericeira refere o seguinte:

(…) se assentou que o exército se pusesse em marcha  quarta-feira dezassete de Junho, com ordem que se tomasse o primeiro alojamento no sítio de Montes Claros, uma légua distante de Estremoz, outra de Vila Viçosa, considerando-se que nele se apartavam dois caminhos que iam demandar: o da mão direita, à serra de Lavra de Noite; o da mão esquerda, o outeiro da Mina, porque, com esta resolução, obrigávamos aos castelhanos, confusos na perplexidade do nosso intento, a dividirem o exército em defesa dos dois fortes que haviam fabricado. E para que a nossa marcha ficasse menos perigosa, na mesma noite de quarta-feira havia de ocupar um troço do exército a serra da Vigaira, que ficava eminente ao outeiro da Mina, e conseguido este intento, ganhar-se na mesma noite a serra de Barradas, distante da Vigaira um tiro de pistola, porque, ocupados estes dois postos, não parecia dificultoso socorrer a praça (…).

O dia antecedente havia dado ordem o Conde de Schomberg ao comissário geral Bartolomeu de Barros [Caminha], que aquela noite saísse com seis batalhões [unidades tácticas de cavalaria] e ocupasse a serra da Vigaira e outras quaisquer eminências mais vizinhas ao exército que lhe fosse possível, e prontamente fosse mandando avisos de todos os movimentos que observasse; porém, a ordem se distribuiu tão confusamente, que Bartolomeu de Barros não saiu de Estremoz senão ao amanhecer do mesmo dia da batalha (…)

Neste tempo marchava, avançado do exército, o comissário geral Bartolomeu de Barros, levando os seis batalhões (…), pretendendo observar os movimentos dos castelhanos de algumas das eminências superiores àquela campanha, sem reparar que haviam ocupado o alto da serra da Vigaira as companhias da guarda do Marquês de Caracena. (Ericeira, 1946, IV, pgs. 288-291)

O comissário geral recebeu então ordem do Conde de S. João para que fizesse alto, e não se expusesse demasiado ao perigo. No entanto, a narrativa do Conde da Ericeira parece estar depurada, no que toca a este episódio, de uma eventual responsabilidade do general da cavalaria Dinis de Melo de Castro. Segundo D’Ablancourt, teria sido o general o responsável por enviar apenas 30 cavaleiros em reconhecimento à serra da Vigaira, tendo estes recuado quando viram a eminência ocupada pelo Marquês de Caracena. O Conde de Schomberg repreendeu Dinis de Melo pelo facto de não ter cumprido as ordens escritas, pois devia ter enviado os seis batalhões de cavalaria na noite anterior, o que não fez (D’Ablancourt, 1701, pg. 239).

Onde ambas as fontes coincidem é no facto de o terreno onde se desenrolou a batalha ser aquele que se estende pela planície irregular, com pequenas elevações, vinhedos e zonas de vegetação densa, em frente da serra da Vigaira.

Chegado o Conde de Schomberg à eminência que ocupava o Conde de S. João e o general da artilharia [D. Luís de Meneses], observaram que os batalhões da cavalaria inimiga sucessivamente vinham saindo à campanha, havendo estado cobertos com a serra da Vigaira. (Ericeira, 1946, IV, pg. 293)

Neste tempo vimos aparecer dez esquadrões castelhanos [D’Ablancourt utiliza o termo “esquadrão” para a unidade táctica da cavalaria, que ao tempo, entre portugueses e espanhóis, era designada por batalhão], que saíam por um vale que vinha por detrás da montanha de Montes Claros [a serra da Vigaira]; dez outros seguiam-se e em pouco tempo vimos duas linhas formadas que preenchiam toda a frente do vale, que iam aumentando do lado dos portugueses, cada linha tinha 22 esquadrões e estava distante da direita dos portugueses um tiro de canhão. (D’Ablancourt, 1701, pgs. 239-240; tradução minha)

Note-se que quando o exército espanhol iniciou o seu desdobramento, o exército português ainda estava formado em duas linhas, em marcha de costado, e com a vanguarda na direcção de Vila Viçosa, seguindo a rota que pretendia tomar para aquela localidade.

Para as fotos que a seguir são apresentadas, tome-se como referência a fotografia de satélite publicada no artigo anterior.

Foto A – Local onde se ergue o padrão comemorativo da batalha, um pouco à frente da primeira linha do exército espanhol, sobre o lado direito (onde estava disposta a infantaria).

V(A) Montes Claros MemorialFoto B1 – Vista a partir de um local adiantado ao flanco direito do dispositivo espanhol; tal como em 1665, toda a zona se encontra preenchida por vinhas.

V(B) Spanish rightFoto B2 – Do mesmo local, mas olhando para a serra da Vigaira, que em 1665 provavelmente não apresentaria vegetação tão densa como a que hoje a cobre.

V(B) Vigaira on the background

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (1ª parte)

O objectivo desta pequena série de artigos é dar a conhecer o estado actual do campo onde se travou a batalha de Montes Claros. Recentemente considerado património nacional, graças ao empenho do Dr. Alexandre Patrício Gouveia e da Fundação Batalha de Aljubarrota, fica assegurada a sua preservação e abrem-se boas perspectivas para a construção de um núcleo museológico e interpretativo, a exemplo do que já existe em S. Jorge (batalha de Aljubarrota).

Todavia, muito está ainda por fazer quanto à interpretação da batalha. O estudo mais recente (Gabriel Espírito Santo, Montes Claros, 1665 – A Vitória Decisiva, Lisboa, Tribuna da História, 2005), conquanto tenha os seus méritos na maneira como procura integrar o acontecimento no contexto histórico-militar do período, falha precisamente no essencial: a identificação do terreno e a disposição das forças em confronto. Infelizmente, em alguma historiografia militar portuguesa tem existido a tendência para seguir à letra determinadas fontes narrativas sem as questionar, e descurando a pesquisa arquivística e o confronto com fontes históricas mais diversas. O resultado é a perpetuação de erros e mitos, que só um trabalho meticuloso de análise permite corrigir e desmontar.

Com este pequeno périplo pelo campo de batalha de Montes Claros, encetado no terreno há pouco mais de dois anos, tentarei justificar a minha interpretação acerca de onde e como se desenrolou a maior e mais importante batalha da Guerra da Restauração. Para estimular a curiosidade, deixo aqui, de momento, somente as primeiras fotografias, (retiradas do programa Google Earth). Os textos explicativos e a fundamentação do que aqui apresento irão sendo introduzidos a seu tempo.

Na primeira foto (Google Earth) assinalei a verde a marcha de aproximação do exército português comandado pelo Marquês de Marialva. A amarelo, a marcha que este general tencionava fazer com o mesmo exército rumo a Vila Viçosa, então cercada pelo exército espanhol sob o comando do Marquês de Caracena. Etapa que não chegou a efectuar-se, porque o Marquês de Caracena se antecipou na manobra e saiu ao encontro dos portugueses.

1 Route of approach of the Port Army (GoogleEarth)Na segunda foto, também de satélite, assinala-se:

– a amarelo, a marcha do exército espanhol comandado por Caracena, vindo de Vila Viçosa;

– a azul e a vermelho, as primeiras linhas do desdobramento inicial dos dispositivos português e espanhol, respectivamente (aqui apresentadas a título informativo, sem detalhe quanto às unidades ou à disposição da infantaria, cavalaria e artilharia, e omitindo as restantes linhas);

– o ponto vermelho assinala (aproximadamente, pois é impossível fazê-lo com exactidão) o local que o Marquês de Caracena escolheu para permanecer durante a batalha, na serra da Vigaira – à rectaguarda e sobre a direita do dispositivo espanhol; daí tinha uma excelente visão do campo de batalha, mas sem possibilidade de intervir prontamente e em pessoa na refrega, ao contrário do que sucederia com o Marquês de Marialva e o Conde de Schomberg;

– com letras, a referência dos locais por mim fotografados e que serão aqui publicados e identificados nas próximas entradas.

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Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – de 9 a 11 de Junho

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Ao amanhecer de 9 de Julho partiu o general da cavalaria Dinis de Melo de Castro com 1.500 cavalos para o local por onde se retirou o inimigo, a recolher os despojos da campanha. Naquele dia, depois de todos darem graças a Deus pela vitória, começou-se a dar sepultura aos defuntos, que foram 7.033, o que levou António Álvares da Cunha a afirmar que muitos anos há se não viu em batalha na Europa tanto número de mortos (pg. 53). Destes, 1.500 portugueses. Foram imensos os despojos que repartiram entre si os soldados.

Não salvou D. João de Áustria desta batalha mais do que 2.000 cavalos e pouco mais de 500 infantes. A maior parte dos seus cabos foram muitos dias reputados por mortos, porque cada um se salvou por onde pôde, e apareceram em Badajoz dias depois.

D. Jerónimo Mascarenhas refere números diferentes para as perdas espanholas: O número dos soldados [feridos e capturados], bem contra o que publicaram os portugueses em suas relações, não passaram de mil, e quase igual foi o dos mortos, os mais [deles] da infantaria, como se pode coligir de uma mostra que três dias depois se tomou ao exército de Espanha nos campos de Arronches (fl. 37).

Terminadas as cerimónias da vitória, nesse mesmo dia 9 acampou o Conde de Vila Flor com seu exército junto às fortificações de Estremoz, onde permaneceu até dia 13. A notícia da batalha chegou a Lisboa na manhã de 10 de Junho, levada por Jerónimo de Mendonça Furtado. Deram-se graças a Deus em solenes procissões e sufrágios pelos mortos na contenda. Na Casa da Misericórdia fizeram-se as exéquias por todos.

Imagem: Fortificações de Estremoz, junto às quais acampou o exército português após a vitória na batalha do Ameixial. Foto de JPF.

Há 350 anos… Batalha do Ameixial, 8 de Junho de 1663

Não é este o espaço para tratar em profundidade uma das raras e mais importantes batalhas da Guerra da Restauração, sobre a qual decorrem hoje 350 anos. Continuo a trabalhar sobre a campanha de 1663, da qual a batalha do Canal ou do Ameixial (por vezes também recordada como batalha de Estremoz, sobretudo em documentos estrangeiros) constituiu o clímax, mas que não deve fazer esquecer a importância da tomada de Évora – então uma das principais cidades do Reino – por D. Juan de Áustria e a subsequente recuperação da urbe, após novo cerco, pelo exército português. Ao invés da repetição de narrativas de história-batalha respigadas das crónicas coevas, com pouca ou nenhuma investigação arquivística e nenhum esforço interpretativo, como infelizmente se pode encontrar em obras recentes, prefiro deixar maturar um trabalho que esteve para ir para o prelo há uns anos, continuando a ampliá-lo e a problematizá-lo com fontes nunca exploradas e bibliografia espanhola recente. A seu tempo voltarei a este assunto.

Será mais apropriado para o propósito de divulgação deixar aqui os escritos da época, pela pena de António Álvares da Cunha e D. Jerónimo Mascarenhas.

Começo pela narrativa de Cunha (pgs. 42-53, numa transcrição abreviada):

Era a campanha entre a vilas de Estremoz e a do Cano distante uma légua de ambas, não plana, porque quase toda por aquela parte é montanhosa. Ocupou o inimigo com a sua infantaria duas colinas e a pouca planície que havia entre uma e outra. Pelos costados estendeu a sua cavalaria, e a esta fomentavam alguns esquadrões de infantaria, que se formaram nas ladeiras das colinas que caíam para aqueles lados; entre esta infantaria acrescentava o número à vista, ainda que não ao proveito, um esquadrão na reserva, de três mil prisioneiros portugueses que saíram rendidos de Évora, os quais tiveram sempre metidos na Cartuxa, não curando mandá-los para Castela como eram as capitulações a respeito do nosso exercito vizinho.

O exército inimigo mudou a forma devido à falta da gente com que guarneceu Évora, e assim a 1ª linha da infantaria não tinha mais do que 7 esquadrões, o de D. Anielo de Gusmão e D. Luís de Frias tinha o corno direito, seguia-se-lhe o Conde de Escalante, a cujo cargo estava também o terço de D. Gonçalo de Córdova, morto no Degebe. O 3º era o de D. Rodrigo Moxica. O 4º de D. João Henriques e D. Lopo de Abreu. O 5º do Conde de Charni e do Conde de Losestain. O 6º do Marquês de Casin. O 7º de D. António Guindaço e D. Camilo de Dura.

Da cavalaria tinha a 1ª linha do corno direito da vanguarda 20 batalhões, os 4 das guardas dos generais e do tenente-general D. Diego Correa, 5 com o comissário geral D. Miguel Ramona, 5 com o comissário geral D. Luís de Sey e 5 com o comissário geral D. António Montenegro. A 2ª ala deste corno estava à ordem do tenente-general D. Belchior Porticarrero, tinha com a sua companhia 15 batalhões, porque 6 mandava o comissário geral D. João de Novales, 4 D. Josef de la Reatagui e 4 D. João de Ribera. A 1ª ala do corno esquerdo tinha o mesmo número que o direito, com o tenente-general D. António Moreira e os comissários gerais João Ângelo Valador e D. Francisco de Aguiar. A 2ª linha tinha a mesma igualdade que a do corno direito a que correspondia, a cargo do tenente-general D. Juan Jacome Mazacan e do comissário geral D. Hieronimo Garcia. Na reserva, que também tinha cuidado dos rendidos de Évora, estavam 12 batalhões com o comissário geral D. João Cortéz de Linhen.

Oito peças de artilharia em 4 postos coroavam as eminências; a retaguarda do exército cobria inumerável carriagem.

Imagem: Local onde se colocou, em formação de batalha, a maior parte da cavalaria de D. Juan de Áustria, na ala direita do exército, junto ao monte onde estava disposta a infantaria. A foto foi obtida no ponto por onde se estenderia a 1ª linha da cavalaria. As elevações eram, à época, totalmente desprovidas de arvoredo, como aliás ainda o eram no início do século XX. A densa vegetação que hoje cobre o terreno impede que se tenha uma percepção clara do espaço de cerca de 500 metros que separava os dois exércitos – a colina onde se formou em batalha a infantaria portuguesa mal é visível nesta foto, ao fundo, sobre o lado direito. Foto de JPF.

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Pouco diferente sítio coube ao nosso exército, pois sobre ganhar uma colina não eminente às do exército contrário, mas quase igual, se contendeu a maior parte da manhã, e à viva força chegaram a ocupá-la pelas 11.00 do dia o mestre de campo João Furtado de Mendonça com o seu terço, e o coronel James Apsley com o seu regimento. Nesta e nas planícies que se estendem por seus lados formámos o nosso exército sem mais alteração, que por ser a campanha pelo corno direito dele asperíssima, impossibilitando o manejo da cavalaria, se incorporou toda no corno esquerdo, ficando no direito só 5 batalhões à ordem do comissário geral Matias da Cunha. E porque se tinha tirado da 1ª linha para interpolar com a cavalaria o terço do mestre de campo Lourenço de Sousa, que depois ao dar da batalha tornou ao seu posto, puxaram da 2ª para aquele lugar com o seu terço ao mestre de campo D. Diogo de Faro e Sousa.

A mesma dificuldade de terreno achou o inimigo e usou da mesma união da cavalaria, deixando porém com menos número o seu corno esquerdo.

E por ser chegado ao exército o terço do mestre de campo Bernardo de Miranda, depois de o formar o reservou para a sua pessoa o Conde de Vila Flor, para o empregar aonde fosse maior a necessidade, e se incorporou na reserva. Era a crescença do dia, e a calma [grande calor] afadigava tanto aos soldados, que pareceu a todos não começar por então a atacar a batalha.

Estavam os exércitos propícios à contenda, quando D. João de Áustria mandou intimar por um papel aos seus cabos, e que eles o fizeram manifesto aos seus soldados, mostrando-lhe nele a razão que tinham pelejarem com aquela constância que esperava dos corações espanhóis, e como deviam entrar na contenda com as esperanças em Deus, e para que lhes fosse favorável encomendava a todos o interior arrependimento dos vícios, e a exterior satisfação deles, e como a causa era justa, assim esperava de justiça a vitória. Persuadia mais o papel a observância das ordens militares, e algumas não piedosas, pois ordenava se não desse quartel a ninguém na batalha, mais que ao general português [Conde de Vila Flor], dando sinais de sua pessoa, e prometendo premiosa sua prisão.

O que D. João de Áustria fez por um papel, obrou o Conde de Vila Flor por sua pessoa, e a esquadrão por esquadrão assegurou a todos a vitória, e animou à peleja, ainda que foi supérflua esta segunda persuasão, porque cada soldado se exortava a si próprio ao combate; mostrou-lhes a justiça que defendiam para ter propícia a vontade divina; a liberdade que nos usurpavam, para que fosse constante a peleja; os companheiros cativos, para que com ânsia os resgatassem; a campanha destruída, para que com raiva se satisfizesse; os despojos que levavam, para que o desejo os incitasse; as vezes que foram por nós vencidos, para que os desbaratassem com confiança. A estas razões exortatórias se seguiram as ordens militares, e dado o nome, que mais nos podia assegurar a vitória que muitas ordenanças, pois foi o da purissima Conceição da Virgem Santa, nossa padroeira e protectora deste Reino. Valorosa e porfiadamente esperavam todos o sinal da batalha.

Às três da tarde começou o exército inimigo dar mostras de querer retirar-se, e o podia fazer pelo caminho de Veiros a Arronches, deixando o nosso exército pelo lado direito; mas o Conde de Vila Flor entendendo esta resolução, mandou aos generais da cavalaria Dinis de Melo e Manuel Freire, começassem a atacar a batalha, que recebiam mais a ordem como alvitre aos seus desejos, que preceito a suas obediências. Opôs-se o inimigo valorosamente à resistência, e passando os nossos uma pequena sanja, começaram a travar a peleja. Era dobrado o número da cavalaria inimiga, assim foi forçoso que os generais fossem o maior exemplo para os soldados. Assistiam nesta refrega todos os cabos da cavalaria e demais a pessoa do mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, e todos eram necessários, porque se pelejava pessoa por pessoa, esquadrão por esquadrão, linha por linha.

Não sucedia o mesmo à cavalaria castelhana, porque lhe faltava a pessoa do seu general, que como temos dito, exercia juntamente o posto de mestre de campo general; e enquanto assistia por este ofício à ordem do exército, faltava ao outro no combate da cavalaria, e se quisesse acudir a esta, áquele poderia suceder se desordenasse. Não sei a que attribua isto que seguem os mais dos governos do mundo, julgando um sujeito capaz de muitos lugares e os mais deles encontrados [quer dizer: contrários, em contradição].

Intercalo aqui a narrativa de D. Jerónimo Mascarenhas, vertida para português (o original encontra-se em castelhano):

Marcharam contra os espanhóis, com muito sossego, os seis batalhões [de cavalaria inglesa e francesa, pois foram os primeiros a entrar em acção] referidos, e com a própria gravidade as duas linhas que os seguiam, talvez para não cansar com o trote os infantes das mangas [isto é, as mangas de mosqueteiros e arcabuzeiros que os portugueses intercalaram entre os seis batalhões de cavalaria da vanguarda], e atacando os primeiros a outros tantos batalhões espanhóis do corno direito, que era o mais luzido da primeira linha (pois entravam neles as guardas de couraças e arcabuzeiros do Senhor Don Juan, compostas na maior parte de reformados escolhidos e soldados de satisfação), ao passar das armas de fogo às espadas logo se descompuseram. Culparam alguns da desordem a pouca prática do Marquês de Espinardo, seu capitão, que ainda que procurou luzir os brios do seu sangue e a circunstância de haver começado a militar com aquele emprego, não o pôde lograr senão com feridas mortais e perda de seu cavalo, ficando desbaratadas as suas tropas.

Com a mesma fatalidade e exemplar ao momento que com bem breve intervalo carregou a primeira linha dos portugueses, que seguiam os seis batalhões, toda a dos espanhóis caiu posta em fuga sobre a segunda e a desbaratou completamente. O Duque de San Germán via atónito este mau princípio desde o alto da colina, detrás do esquadrão do mestre de campo Don Anielo de Guzmán, que era o primeiro da vanguarda do corno direito, e querendo-o remediar, despachou de imediato um tenente de mestre de campo general, mandando que um terço só da infantaria italiana, que ocupava a retaguarda, baixasse a deter o ímpeto dos vencedores. E como ele destacou um terço só de um esquadrão que se compunha de diferentes terços, era operação que requeria mais tempo do que o apresto necessitava, voltou o mesmo [Duque de San Germán] a todo o galope para ordená-lo com mais eficácia em pessoa. Mas persuadindo-o a confusão que via de caminho naquelas tropas, que o caso não tinha remédio, tomou sem parar (senão para perguntar por guias) o caminho de Arronches, acompanhando-o o tenente de mestre de campo general Don Luís de Venegas, e alcançando-o pouco depois um mestre de campo e outros oficiais de menor esfera.

Imagem: A mesma colina, vista da planície onde se deu o choque das cavalarias, olhando a partir da ala direita para o centro do dispositivo inicial do exército espanhol. Sobre a esquerda, no alto da colina, estava o Duque de San Germán. Foi por esta encosta que desceu, em confusão, o terço de italianos. Para o lado direito desta foto, numa outra colina, ficavam as posições iniciais da infantaria portuguesa. Foto de JPF.

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Voltando ao texto de António Álvares da Cunha:

Enquanto as cavalarias contendiam tão fortemente, não estava ociosa a infantaria, nem a artilharia que a fazia empregar com todo o excesso o seu general D. Luís de Meneses. Era a 1ª linha muito larga, pela qual razão necessitava de mais cabos que a levassem em ordem, e por isso se encomendou o corno direito dela ao Conde da Torre, que governava a segunda, ficando governando o esquerdo André Furtado, que aquela manhã tinha chegado de Estremoz, para onde o tinha mandado o general na noite de 5, quando o inimigo se alojou no Espinheiro depois do recontro do Degebe, persuadindo-se poderiam os castelhanos ir com algum troço áquela praça, que estava a seu cargo. Em ambas as jornadas o acompanharam o mestre de campo Manuel de Sousa de Castro e Jerónimo de Mendonça Furtado.

Com a sobredita ordem abalou o Conde Schomberg à 1ª linha, e se resolveram os esquadrões a trepar pelas ásperas colinas donde estava formado o inimigo, e começaram pica a pica e corpo a corpo os portugueses a investir, e os castelhanos a defender. E vendo que em largas horas de combate se não conhecia diferença de vitória a favorecer ambas as partes, se abalaram ambas as segundas linhas, e porque a campanha era asperíssima, não conservavam aquela primeira forma estas batalhas, porque chegavam a contender primeiro aqueles esquadrões que acharam menos impedimento nos penedos, para não o acharem nos combates, com o que os esquadrões que governavam o Conde da Torre, que eram dos mestres de campo Sebastião Correia, Lourenço de Sousa de Meneses, Miguel Barbosa da Franca e D. Diogo de Faro e Simão de Sousa. Começaram a coroar a colina em que estava a artilharia inimiga, sendo o mestre de campo Simão de Sousa o primeiro que lhe pôs as mãos, donde saiu ferido de uma rigorosa bala, que quis com o seu sangue este dia esmaltar este sucesso, assim como com o seu voto sempre motivar esta vitória. E porque a 2ª linha castelhana, que estava favorecendo aquela parte, poderia ocasionar algum destroço, a carregou os batalhões que comandava o comissário geral Matias da Cunha, e esta cavalaria, com a infantaria que o Conde da Torre governava, achando pouca resistência na cavalaria inimiga que cobria aquele lado, obrigou a voltar as espaldas aos castelhanos, que os rompeu até à última fileira da sua segunda linha, sem resistir a esta fúria a mesma pessoa do seu generalíssimo, que por vezes se pôs a pé a ser companheiro de seus soldados. Estavam os nossos por esta parte tão avançados, que se enganavam os oficiais castelhanos, e muitos se aprisionaram, mandando por suas as nossas mangas, e um deles se chegou tanto ao Conde da Torre, que desconhecendo-o, o mandava como soldado seu, mas a obediência que esperava, foi contenda em que perecera se se não valera mais dos pés do cavalo, que dos braços próprios. Foi conhecido, e confessado pelos seus por tão grande pessoa, que se dissera neste papel o seu nome, a não se haver já dito a retirada.

Seguiam ao Conde da Torre em todas estas árduas contendas D. Pedro Mascarenhas e o mestre de campo Roque da Costa, já convalescido, cujo terço foi rendido em Évora, e nelas mataram o cavalo a D. Pedro, que entre todo o risco recobrou outro para continuar nos progressos da vitória.

Achou mais resistência a parte que mandava Afonso Furtado, que como tinha o seu lado coberto com a sua cavalaria, só pela frente era o combate. Os mestres de campo que contendiam por aquela banda eram Fernão Macarenhas, Tristão da Cunha, Francisco da Silva de Moura, João Furtado de Mendonça e o coronel James Apsley, que com o seu regimento sofrendo uma carga de um terço de espanhóis, que lhe ficou por frente, com o calor [ou seja: apoio] que lhe dava o mestre de campo Paulo Freire de Andrade com o seu terço, que pela razão sobredita se tinha adiantado da reserva, o degolou todo, sem que nenhum pudesse dar conta do sucesso. Contendiam os demais porfiadamente, e com o favor da nossa segunda, e terceira linha, ganhadas ambas as colinas e a artilharia delas, a mandou logo voltar contra o inimigo o general D. Luís de Meneses, que em toda a parte estava, e começaram a sentir a sua perda dos mesmos instrumentos que traziam para suas vitórias.

Desbaratadas de todo as primeiras linhas da cavalaria com perda considerável do regimento inglês, e com a morte do seu tenente-coronel Michael Dongan, puxou o general Dinis de Melo (que bem mostrou na fúria do combate o valor com que defendia o seu parecer, que foi sempre de que se esse esta batalha, e o mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, já ferido em uma mão) pelo restante dela, e com valor e constância os meteram na peleja. Estava já ferido mortalmente pela cabeça com uma bala o general Manuel Freire, que lhe havia tirado de todo a fala, e ainda assim com os acenos mandava, e morreu 3 dias depois da batalha em Estremoz (tendo estado na campanha os tendo dias necessários à segurança dela).

Não havia já corpo de cavalaria de uma e de outra parte formado, mais que os batalhões da reserva, que mandava o tenente-general D. Manuel de Ataíde e os comissários gerais João do Crato e Gonçalo da Costa de Meneses, que ficando muitas vezes entre o inimigo, não descompondo nunca a forma, foi sempre ganhando terreno.

As tropas inglesas e francesas, obrando maravilhas, se avantajavam às portuguesas, senão no excesso do combate, na razão da peleja, que se os portugueses pelejavam pela vitória, também defendiam a liberdade, e eles só pela vitória contendiam, e tão bizarramente com o exemplo do Barão de Schomberg e seu irmão [filhos do Conde de Schomberg], nos quais se verificou aquele provérbio, que as águias não produzem pombas.

Obrou esta cavalaria e estes cabos e os fidalgos portugueses que assistiam naquele exército acções nunca vistas em nenhuma batalha, pois repetidas vezes os soldados soltos e desbaratados os encorporavam diante da reserva, e tornavam á contenda; e esta é a razão porque tão pouco número prevaleceu contra quase dobrada gente, pois foi cada batalhão várias vezes novo com multiplicadas forças.

Estava já o dia nas últimas horas quando o general Dinis de Melo, que desde as primeiras da batalha até aquelas estvera sempre diante dos seus batalhões, fazendo pelejar a todos, para concluir de todo com a vitória, ordenou ao tenente-general D. Manuel de Ataíde cerrasse com os três batalhões que conservava, com sete que ainda o inimigo tinha formados. E vendo o Conde de Vila Flor a disparidade do número, mandou o mestre de campo Bernardo de Miranda com o seu terço, conduzido pelo sargento-mor de batalha Diogo Gomes de Figueiredo, a quem havia dito por vezes que aquele terço lhe havia de dar a vitória, que carregasse rijamente aquela cavalaria. O que fez a tão bom tempo e com tão bom sucesso, que as cargas do terço, e a fúria com que o tenente-general os carregou, os obrigou a deixar o campo e a declarar-se a vitória por Portugal, a qual por espaço de meia légua foi aclamando o tenente-general entre os mesmos inimigos. Esta foi a celebrada vitória do Canal, que assim se chamava o lugar donde se conseguiu, tanto antes esperada dos portugueses; na qual os castelhanos perderam toda a sua infantaria, bagagem e artilharia, quarenta bandeiras, vinte estandartes, entre eles o do generalíssimo [D. Juan de Áustria], que um francês valorosamente tomou, apesar de quem o defendia (costumada é esta nação a alcançar estes troféus).

Imagem: Vista para a retaguarda do exército espanhol, a partir da planície (ala direita do exército espanhol, esquerda do português). A extensa carriagem de D. Juan de Áustria seguia pela estrada que serpenteava por entre as elevações que se vêem ao fundo, bem como os prisioneiros portugueses trazidos de Évora, que acabariam por ser libertados na confusão da fuga do que restava das forças invasoras. Foto de JPF.

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Imagem final: O monumento que marca o local onde se travou a batalha, na planície onde chocaram as cavalarias de ambos os exércitos, tal como hoje se encontra. Estando grande parte do terreno de batalha preservado – ou seja, não urbanizado -, é lamentável que não exista sequer um núcleo museológico ou um centro de interpretação.

No entanto, é com imenso gosto que actualizo a informação aqui constante: graças ao empenho pessoal do Dr. Alexandre Patrício Gouveia, da Fundação Batalha de Aljubarrota, os campos de batalha do Ameixial, Montes Claros e Linhas de Elvas foram classificados oficialmente como Património Nacional. Está assegurada assim a sua preservação e decerto surgirão aí, no futuro, os núcleos museológicos a que acima me referi.

Foto de JPF.

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“O papel da batalha: a disputa pela vitória de Montijo na publicística do século XVII” – um estudo colectivo de grande interesse

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Merece destaque o muito interessante artigo da autoria dos Drs. Carlos Ziller Camenietzki, Daniel Magalhães Porto Saraiva e Pedro Paulo de Figueiredo Silva, publicado na revista Topoi, vol. 13, nº 24, Janeiro-Junho 2012, pgs. 10-28. Aqui fica a ligação:

O papel da batalha: a disputa pela vitória de Montijo na publicística do século XVII

Imagem: “Batalha de Montijo”, pormenor de um painel do biombo dos Marqueses de Fonte Arcada (séc. XVII). Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

Batalha de Montijo – 365 anos depois

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Neste aniversário do primeiro grande recontro da Guerra da Restauração, remeto para o que escrevi há um ano. Apreciem, entretanto, a magnífica ilustração apresentada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII. O rigor da disposição das tropas pode ser questionável, mas trata-se, acima de tudo, de um extraordinário exemplar de representação de batalha.

Batalha das Linhas de Elvas, 14 de Janeiro de 1659

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Passam hoje 350 anos sobre a batalha das Linhas de Elvas.

Aqui fica um breve resumo do evento. Um exército de socorro (8.000 infantes, 2.900 cavaleiros e 7 peças de artilharia), sob as ordens do Conde de Cantanhede, D. António Luís de Meneses, foi enviado para tentar pôr fim ao cerco de Elvas, que o exército espanhol comandado por D. Luís de Haro (inicialmente, 14.000 infantes, 5.000 cavaleiros e 19 peças de artilharia) mantinha desde Outubro de 1658. A 14 de Janeiro, pelas 8 horas da manhã, beneficiando do denso nevoeiro que cobriu a aproximação da força, e também do erro de julgamento de D. Luís de Haro, o exército português rompeu as linhas de cerco inimigas e desbaratou os sitiantes, os quais fugiram precipitadamente, imitando o seu comandante-em-chefe. Ao mesmo tempo, D. Sancho Manuel, comandante das forças sitiadas, fez uma surtida para ajudar ao êxito das forças portuguesas. Somente cerca de 5.000 infantes e 300 cavaleiros das forças sitiantes conseguiram chegar a Badajoz. Para trás deixaram toda a artilharia, o depósito de munições, mantimentos e os pertences de D. Luís de Haro, incluindo toda a secretaria com importantíssima documentação. As baixas portuguesas também foram pesadas, com saliência para a morte de André de Albuquerque Ribafria, general da cavalaria.

Apesar desta vitória portuguesa, que apagou a lembrança do tremendo fracasso que tinha sido o cerco de Badajoz no ano anterior, a iniciativa da guerra continuou a pertencer ao exército de Filipe IV. Só as derrotas espanholas nas batalhas campais da década seguinte (1663, Ameixial, e 1665, Montes Claros) levariam a uma inversão dos papéis, até à ratificação da paz no início de 1668.

Imagem: Cerco de Elvas, 1659, por Pedro de Santa Colomba. Biblioteca Nacional, Iconografia, E1090V.

Linhas de Elvas, 14 de Janeiro de 1659 (água-forte de Dirk Stoop)

Já aqui tinham sido apresentados pormenores desta água-forte de Dirk Stoop, agora mostrada na totalidade, embora com prejuízo do detalhe devido à escala de redução. Não obstante, trata-se de uma excelente representação de um combate durante a batalha das Linhas de Elvas, 14 de Janeiro de 1659.

Biblioteca Nacional, Iconografia, E 648 A.

Representações de batalhas – Montes Claros, 1665

As gravuras de época constituem muitas vezes boas fontes documentais. No entanto, as que pretendem mostrar o desenrolar de uma batalha no seu conjunto foram frequentemente objecto de demasiada “liberdade artística”, quer na composição formal da cena, quer nos pormenores que representam. Um bom exemplo dessa distorção é esta gravura italiana que pretende representar a batalha de Montes Claros (ou de Vila Viçosa, como também ficou conhecida), em 17 de Junho de 1665. Nela se encontram características comuns neste tipo de documento iconográfico: pouco realismo ou fantasia total na representação dos pormenores geográficos do campo de batalha, estilização da representação das unidades, aglomeração das formações militares, conferindo um aspecto bastante congestionado ao campo de batalha.

Imagem: Batalha de Vila Viçosa. Gravura italiana, c. 1665. Biblioteca Nacional, Iconografia, E1053V

Palcos de operações (4) – Ameixial, 8 de Junho de 1663

Visão do campo de batalha do Ameixial a partir da posição do flanco direito da infantaria espanhola, sobre a planície onde se enfrentaram as cavalarias dos dois exércitos. Foto do autor.

Batalha de Montijo, 26 de Maio de 1644

Comemora-se hoje o 364º aniversário da batalha de Montijo, travada nas proximidades da localidade com aquele nome, na província de Badajoz. Resultou de uma incursão levada a cabo pelo exército do Alentejo, comandado pelo governador das armas Matias de Albuquerque. Não se tratou de uma simples entrada para pilhagem, embora esse fosse também um móbil importante. O futuro Conde de Alegrete levou consigo praticamente todo o exército da província, oito terços pagos com cerca de 6.000 infantes e a cavalaria com 1.100 efectivos, o trem de artilharia com dois meios-canhões de 24 libras, quatro peças de campanha de 7 libras e uma extensa cauda de 205 carros de bois, carretas e 1.000 machos e mulas. Para trás, a guarnecer as praças, ficaram somente duas companhias de cavalaria e as unidades de infantaria da ordenança provincial e as que tinham vindo de Lisboa e de Coimbra. Saiu esta força de Elvas a 16 de Maio. Dez dias depois, após várias escaramuças e depredações, envolvia-se em confronto com o exército da Extremadura, comandado pelo Barão de Mollingen, com 7.000 infantes e 2.500 cavalos, entre os quais várias companhias de caballos corazas, os couraceiros que não existiam ainda entre a cavalaria portuguesa. O choque deu-se sob um intenso temporal, com muito vento e chuva forte, o que impediu a utilização efectiva das armas de fogo.

Não irei fazer aqui a descrição da batalha, pois há diversas relações sobre a mesma, recontadas ao longo dos séculos seguintes. A historiografia portuguesa tem tradicionalmente feito eco da propaganda impressa da época, evocando a vitória obtida por Matias de Albuquerque, que num arremedo de bravura reagrupa a infantaria e vinga a derrocada inicial do exército português, precipitada pela fuga precoce da sua cavalaria. Para os portugueses, Montijo foi uma vitória do exército de D. João IV, a primeira obtida numa batalha campal desde o início do conflito. Todavia, para a historiografia espanhola, a batalha de Montijo é apresentada como uma vitória do exército de Filipe IV, que destroçou o exército inimigo, não obstante o que sucedeu posteriormente. Fixa-se na memória e no imaginário, deste modo, a guerra de palavras a papel e tinta, depois da guerra dos actos, a ferro, fogo e sangue…

A ciência histórica é hoje mais rigorosa nos seus métodos de análise e exigente na interpretação. Revisitar a batalha de Montijo significa afastar os mitos que a encobrem, procurando em fontes esquecidas ou descuradas a resposta para diversas incongruências das narrativas panegíricas. Esta arqueologia da realidade possível tem revelado um cenário diverso e muito interessante em várias perspectivas de análise – mas ainda é cedo para a divulgação, neste caso, pois o estudo ainda está em curso.

Para além do combate propagandístico que ambos os lados levaram a cabo e que ainda marca o nosso imaginário, houve um outro, o ponto de partida bem concreto e terrível, que há mais de três séculos e meio teve lugar nos campos de Montijo. Em memória dos que ali se bateram relembramos o dia 26 de Maio.

Algumas narrativas sobre a batalha de Montijo:

ARAÚJO, João Salgado de, Successos Militares… (veja-se o capítulo XXIV, pgs. 228 v – 231)

AZEVEDO, Luís Marinho de, Apologia militar en defensa de la victoria de Montiio. Contra las relaciones de Castilla, y gazeta de Genoba, que la calumniaron mordaces, y la usurpan maliciosas, Lisboa, en la emprenta de Lorenço de Anveres, 1644.

Relaçam dos gloriosos svccessos, qve as armas de Sua Magestade ElRey D. Joam IV N. S. tiuerão nas terras de Castella, neste anno de 1644. atè a memorauel victoria de Montijo, Lisboa, Antonio Alvarez, 1644.

Relação da entrada que fes o gouernador das Armas Matthias de Albuquerque em Castella, e sucesso da batalha que os Exercitos Portugues e Castelhano gouernados pellos Generaes Matthias de Albuquerque e Barão de Mulingen tiuerão em quinta feira de Corpus dos des do dia ate as quatro da tarde nos campos do Montijo em 26 de Maio de 1644, transcrito in SANTOS, Horácio Madureira dos, Cartas e outros documentos da época da Guerra da Aclamação, Lisboa, Estado Maior do Exército, 1973, pgs. 171-176.

Relacion verdadera do qve lo svcedio en veinte y seis de Mayo passado, en el reencuentro que tuvieron las armas de su Magestad con las del Rebelde Portugues en la campaña de Montijo, Madrid, Carlos Sanchez, sem data [provavelmente 1644].

Estudos sobre a batalha de Montijo:

BARATA, Maria do Rosário Themudo, “Estudo Evocativo sobre a Batalha de Montijo”, in Revista Militar, nº 12, 1994, pgs. 1141-1166.

PIMENTA, Belisário, A Batalha de Montijo, Coimbra, Coimbra Editora, 1945.

Imagem: Poderia ser o cenário de um outro campo de batalha, o das Relações de feitos de armas durante a Guerra da Restauração, onde o combatente da propaganda empunha a sua arma, a pena de escrever. Os apetrechos eram os mesmos que aqui estão retratados. Foto do autor, casa-museu de Oliver Cromwell, Ely, Inglaterra.