
Nos finais de 1645, David Caley estava na província da Beira, em Penamacor. Um procedimento incorrecto da sua parte motivou uma advertência, conforme se pode ler num decreto régio de 22 de Novembro de 1645:
Pelo Conselho de Guerra se avise ao Governador das Armas da Província da Beira estranhe com demonstração ao Mestre de Campo David Caley o mau tratamento que em companhia dos reformados que levou de Lisboa fez, em Penamacor, aos oficiais que lhes foram fazer pagamento na forma das ordens que tinham minhas, e lhe advirta da minha parte, o respeito e decoro que é bem se guarde a semelhantes oficiais, e que do contrário me haverei por muito mal servido, e mandarei proceder na matéria com rigor. E ao Vedor geral da mesma Província encarregará mui particularmente a pontual observância do Regimento que lhe mandei dar. Montemor o Novo em 22 de Novembro de 1645.
Em Janeiro de 1646, nova advertência. Desta feita, o mestre de campo guardara para si a totalidade da venda do saque efectuado numa incursão a território inimigo, não entregando a quinta parte à fazenda real, como a lei determinava. Caley argumentou que o montante da presa (300.000 réis) era inferior ao total dos soldos que lhe eram devidos e cujo pagamento estava em atraso. Nesse ano, David Caley passou a comandar um dos dois terços pagos que aquartelavam em Olivença. Apesar do feitio algo difícil, o mestre de campo escocês era apreciado pela sua experiência e valor militar.
Todavia, o prestígio de Caley estava a baixar quando ocorreu o assalto espanhol à praça de Olivença, em 18 de Junho de 1648. Durante os combates travados nas ruas daquela localidade, D. João de Meneses, governador da vila, tombou gravemente ferido, e o mestre de campo D. António Ortiz de Mendonça, comandante do primeiro terço da guarnição, foi mortalmente atingido. Poucos dias depois do sucedido, o Conde de São Lourenço escreveu a D. João IV acerca do desempenho dos defensores durante o assalto:
Os capitães do terço de David Caley o fizeram mui honradamente, o mestre de campo muito mal, e é grande a murmuração que em todos os soldados e moradores de Olivença corre sobre este homem, porque sobre ser de pouco préstimo, ser fraco, não é coisa que se sofra, ocupando um posto tamanho, que em faltando o governador daquela praça lhe toca a ele.
O Conde de S. Lourenço não era muito apreciador de estrangeiros. Na sua correspondência, raramente algum lhe merecia encómios, enquanto as observações de desdém eram frequentes (na verdade, também muitos oficiais portugueses eram vítimas da soberba do governador das armas). Mas a reputação de David Caley já não era a mesma de anos anteriores, e o facto de D. João de Meneses, impossibilitado de governar a praça devido ao seu grave ferimento, não ter passado o governo interino ao mestre de campo escocês (o oficial mais graduado e mais antigo no exército do Alentejo, após a morte de D. António Ortiz), preferindo entragá-lo ao capitão de cavalos António Jacques de Paiva, é revelador do pouco crédito do oficial mercenário.
O Conde de S. Lourenço mandou de imediato levantar um inquérito (uma devassa, como então se dizia) ao alegado mau comportamento de David Caley durante o assalto à vila. Mas entre o ordenar e o executar, o tempo foi passando. Três meses mais tarde, em Setembro, a devassa ainda não tinha principiado. Os soldados do terço de Caley – os que ainda não tinham desertado – não queriam testemunhar contra o seu comandante. Afinal, talvez o mestre de campo estivesse a ser vítima de intrigas ou desavenças anteriores com outros oficiais. O próprio Rei D. João IV não autorizou que Caley fosse afastado do comando do terço até o inquérito estar concluído, apesar da insistência do Conde de S. Lourenço para que isso acontecesse, argumentando que o escocês poderia desertar para Espanha.
Em Outubro de 1648, com a devassa ainda por concluir, David Caley e a sua mulher deixaram Olivença e foram para Lisboa. Precisamente um ano mais tarde, um alvará régio mandava que se fizesse o ajuste das contas com o oficial entretanto despedido do serviço de El-Rei, para que se lhe pagasse o que era devido, de modo a que pudesse embarcar para a sua terra. Mas em Março de 1650 ainda se encontrava em Lisboa, miserável e doente, conforme refere numa petição enviada ao Conselho de Guerra: havia mais de ano e meio que não recebia nada do que lhe era devido, e além disso era injustamente acusado de não ter dado conta do equipamento militar que fora distribuído ao seu terço da ordenança na campanha de 1643! O Conselho de Guerra mostrou-se compreensivo para com o oficial estrangeiro:
(…) porque como é estrangeiro e ao tal tempo nem sabia a língua nem os estilos deste reino, tudo o sobredito recebeu e repartiu o seu sargento-mor João de Canton, que era prático, sabia a língua e havia servido no Brasil e tudo repartiu pelas companhias, que como eram soldados de três meses só para a campanha (…) se foram, além de que borrachas, mochilas, bândolas e balas, nenhuns soldados tornam a entregar, que lá gastam (…)
Os conselheiros estranharam que o mestre de campo fosse obrigado a dar conta do material, pois essa responsabilidade cabia aos comandantes das companhias do terço; e acrescentaram que seria de maior escândalo e sentimento se David Caley deixasse o Reino com mais esta ignomínia. No mês seguinte, em Abril de 1650, em nova consulta, o Conselho de Guerra esclareceu definitivamente o caso, com uma cópia da certidão de armas entregue, em 1643, pelo sargento-mor João de Canton. E concluiu que David Caley não estava em dívida, e que se lhe devia fazer o remate das contas para voltar para a sua terra, que é o prémio que pede do tempo que serviu Vossa Majestade tantos anos e não haver sido condenado.
Não há mais informações sobre David Caley, pelo que é muito provável que tenha deixado o Reino em meados de 1650. Pode entender-se, tanto pela recusa dos seus subordinados em deporem contra ele, como pela atitude favorável do Conselho de Guerra e pelo facto de não ter sido condenado, que o escocês terá tido problemas no Alentejo com elementos do topo da hierarquia militar e talvez com outras pessoas mais – aparentemente, Caley era, também ele, de trato difícil – mas que não terá havido fundamento para as graves acusações que sobre ele recaíram na ocasião do assalto a Olivença em Junho de 1648.
Bibliografia: o período de serviço de David Caley em Portugal foi abordado num artigo de minha autoria, “War abroad: English, Scot and Irish officers in the Portuguese Army, 1641 to 1657”, in Arquebusier, vol. XXIX/III, 2005, pp. 2-11. Para além da obra de Cristóvão Aires de Magalhães Sepúlveda, História Orgânica e Política do Exército Português – Provas, onde David Caley é referido entre muitos outros oficais estrangeiros, existe também uma transcrição de um documento relativo àquele oficial em JAYNE, M. S. , “State papers, Portugal, 89/4, Public Record Office, London”, in Congresso do Mundo Português, vol. VII, t. II, II sec., Lisboa, Publicações da Comissão Executiva dos Centenários, 1940, pp. 236-237.
Fontes:
ANTT, Conselho de Guerra, Decretos, 1642, maço 2, nº 43; 1643, maço 3, nº 103; 1644, maço 4, nº 24 e nº 26; 1645, maço 5, nº 110; Consultas, 1650, maço 10, conultas de 18 de Março e de 30 de Abril.
ARAÚJO, João Salgado de, Successos Militares das Armas Portuguesas em suas fronteiras depois da Real acclamação contra Castella. Com a geografia das Prouincias, & nobreza dellas, Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1644, pgs. 183 v e 223.
Cartas de El-Rei D. João IV para diversas autoridades do Reino, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, pg. 26, carta régia de 27 de Janeiro de 1646.
Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, Vol. I, pgs. 289, 318-319, 321-322, 325 e 333; Vol. II, pgs. 50, 63-64, 68 e 72.
Imagem: Alguns dos locais do Alentejo por onde se movimentou David Caley, no período em que serviu em Portugal. Novissima regnorum Portugalliae et Algarbiae descriptio, c. 1680, Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1681A.