O capitão da ordenança e de auxiliares Luís Machado de Miranda: perfil de um combatente

Do estimado amigo Carlos P. M. da Silva recebi um interessante artigo que, com a devida autorização do autor, a quem agradeço, passo a reproduzir aqui.

Aventuras do capitão Luís Machado de Miranda: perfil de um homem muito completo

Entre os nomes bem conhecidos, quase familiares, dos investigadores e genealogistas que frequentam a Guimarães seiscentista, e o eixo Guimarães-Famalicão, temos Luís Machado de Miranda (Guimarães S. Paio, 1620 – Vermoim, 1695). Amplamente referido nos livros paroquiais, como padrinho, testemunha ou como pai de meninos da freguesia, com seus irmãos da Casa da Breia (Vermoim); nos livros da Câmara de Guimarães, como homem da governança, vereador, e como capitão de ordenanças no período conturbado da Guerra da Aclamação. Junto dois documentos que revelam um perfil um pouco mais completo desta interessante e ativa personagem.

Aspecto intelectual:

muito lido e de grande memoria, foi o tombo das familias do Minho. Fonte: “Livro das genealogias nobres deste reino de Portugal” dos apelidos que pertencem à letra M” – ver Machados da Breia- folha 264.

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Estado de serviço na guerra:

serviços […] feitos em capitão de uma companhia da ordenança da vila de Guimarães do ano de 1640 até o de 1647 em que foi promovido a capitão de auxiliares na mesma comarca.

o ano de 1641 assistir de guarnição na praça de Melgaço por duas vezes provendo os soldados da sua companhia e indo a Ponte das Vargas rebater os inimigos com muito risco de sua pessoa acompanhando depois o capitão-mor de Guimarães ao castelo de Lindoso / Sendo dos primeiros que cometeu a trincheira e no saque de seis lugares na entranda do lugar de Lamas e queima de um reduto;

o ano de 1642 acompanhar com dois homens a sua custa um comboio de munições [da coroa], na entrada que se fez por Galiza em que se saquearam e queimaram muitos lugares ocupando os postos mais perigosos / Sendo dos primeiros que investiram e entraram a vila de Lobeira;

o de 1643 nos repetidos rencontros da passagem do Rio Lima e tomada de Salvaterra na entrada daquela praça gouvernou um troço de mosqueteiros e tornando o inimigo sobre ela se lhe encarregar um lanço de muralha que defendeu com valor;

o de 1644 na entrada do lugar de São Bartolomeu das Eiras aonde foi ferido com um chuço na braço esquerdo e na entrada do lugar de Tamuge;

o de 1646 na peleja sobre a trincheira de Salgoza;

e o de 1647 assistindo com sua companhia na praça de Salvaterra Se achar no encontro que houve com duas tropas inimigas adiantando-se a guardar o passo de uns valos em que pelejou com muito valor até o mandarem retirar;

e depois de ser nomeado capitão de auxiliares assistir do ano de 1648 até o de 1654 na raia da Portela do Homem aos rebates que se ofereceram e rebater a entradas do inimigo com dois criados e cavalo a sua custa.

Fonte : Diligência de habilitação para a Ordem de Cristo de João de Sequeira Monteiro.

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Documento também ilustrativo, talvez, do que podia ser a participação de tropas vimaranenses nas operações militares da fronteira do Minho durante a Guerra da Restauração (1640-1668).

Imagem: Combate de cavalaria; autor desconhecido, pintura a óleo, séc. XVII.

O combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645) e o quadro do Marquês de Leganés – 2.ª parte: a narrativa de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz)

Do sucesso do Marquês de Leganés também faz eco o memorialista Mateus Rodrigues. A sua unidade, comandada por D. João de Azevedo e Ataíde, esteve envolvida nas operações de intercepção da força espanhola – aliás, sem sucesso.

O episódio das Vendas de Alcaraviça é referido pelo memorialista, neste caso não por tê-lo testemunhado, mas provavelmente por dele ter ouvido contar a terceiros. Segue-se uma transcrição vertida para a grafia actual:

Estando o inimigo nestas competências, […] lhe veio um aviso de uma espia dobre [ou seja, um espião que fazia jogo duplo, dando informações para ambos os lados], […] que as ordenanças de Évora estavam em Estremoz, e que vinham para Elvas tal dia. […] Pois o aviso era tão certo […], porque a mesma noite que o inimigo saiu, essa mesma veio a gente [da ordenança] a dormir às Vendas d’Alcaraviça, que são duas léguas de Estremoz. E ao outro dia se haviam de vir para Elvas, que são 4 léguas, de maneira que o inimigo entrou com a cavalaria por entre Elvas e Juromenha, e logo foi sentido na entrada. Mas não que se soubesse o poder que levava, senão pela manhã, que ele ia em grande marcha pela estrada abaixo de Estremoz. A gente de Évora já se queria vir, que estava já fora das estalagens para marchar. Vinha com eles por cabo [ou seja, comandante] um sargento-mor mesmo de Évora. E como o inimigo foi logo sentido por aqueles campos, iam muitos lavradores fugindo em éguas, dando avisos do inimigo. E tanto que o sargento mor da gente ouviu dizer que vinha o inimigo, meteu toda a gente, que eram 600 homens, todos em uma grande tapada, que estava ao pé das estalagens, com parede à roda, que dava pelos peitos a um homem, que se fora gente paga não houvera de investir com eles o poder do mundo. Mas aquela canalha, não servem mais que de beber, que são uns bêbedos, e o sargento-mor que vinha com eles outro tal, e pior ainda.

Assim como o inimigo chegou a um cabecinho que está à vista das mesmas estalagens e já muito perto, logo viu toda a gente metida na tapada. E assim como a viu formou-se mui bem e manda tocar as trombetas a degolar, e vai investindo com eles por duas ou três partes. E assim como averbou com eles, não puderam logo saltar os cavalos a parede, mas apearam-se uns poucos de castelhanos e fizeram logo uns por todos, que passaram os batalhões formados, e a tudo isto os bêbedos ia[m] fugindo cada um por onde podia, mas que lhe importava isso, que dos 600 homens que eram não escaparam 100, que deu o inimigo neles e foi degolando todos os que iam encontrando, até que se enfadou de matar e os mais trouxe prisioneiros, que matou mais de 200 homens e trouxe prisioneiros perto de 300. (MMR, pgs. 134-136)

Embora os pormenores não sejam muito nítidos nas fotos disponibilizadas pelo Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén (veja-se a 1.ª parte deste artigo), o quadro corrobora a descrição feita por Mateus Rodrigues. A infantaria portuguesa encontra-se formada em dois pequenos esquadrões (designação coeva para as formações tácticas de infantaria),  cujos blocos são exclusivamente constituídos por piqueiros. Os atiradores (quase certamente munidos de arcabuzes, como era frequente entre a ordenança) estão dispostos ao longo do muro que delimita a tapada, disparando sobre o inimigo. Uma parte da força portuguesa já está em fuga, após o dispositivo ter sido penetrado pela cavalaria espanhola. Como cada companhia tinha uma bandeira e no quadro se podem ver quatro (duas delas levadas pelos alferes em fuga, as outras nos respectivos esquadrões ainda formados), é possível que o terço da ordenança fosse composto por quatro companhias de 150 homens cada, o que mais uma vez confirma o efectivo de 600 homens referido nas fontes – e desmente o número exagerado (1.000) apresentado na legenda do quadro.

Imagem: pormenor da legenda do quadro mandado pintar pelo vitorioso Marquês de Leganés, onde o número dos portugueses derrotados é superior ao que as fontes escritas referem. Mas este exagero de propósito laudatório era comum no período.

 

 

 

Organização do trabalho de fortificação das praças do partido de Riba Coa (província da Beira) nos inícios de 1657

Na sequência do que já aqui foi exposto sobre o partido de Riba Coa nos inícios de 1657 (material de guerra e situação das forças militares), vem a propósito referir as propostas do governador das armas, D. Rodrigo de Castro, para organizar o trabalho de fortificação das praças daquele partido.

Propunha o governador mobilizar a gente de guerra que ainda não tinha chamado aos terços de auxiliares e volantes (da ordenança, portanto, estes últimos) e que já não iam à guerra nem a outro serviço militar há mais de 8 anos, e que seriam 14.727 homens. Deviam trabalhar por turnos de 8 dias, de 400 homens cada turno, o que faria 117.816 homens de trabalho, necessários para cavar 12.515 braças cúbicas de terra, abrindo fossos para a defesa das praças. Dando a esta gente pão de munição como se estivesse em campanha, orçaria em 1.531.816 réis, o que, segundo D. Rodrigo de Castro, iria poupar à fazenda real dezoito contos, quatrocentos e noventa e seis mil, cento e dezoito réis, porque esta obra, fazendo-a os mestres e pagando-se-lhes na forma da estrutura que [se] tem feito, importa vinte contos e vinte e oito mil réis.

Para reserva de pão de munição destinado a dois meses, a nove mil rações para os que haviam de guarnecer as praças e para o pé de exército para o socorro delas, seriam necessários trezentos e trinta e três moios e vinte alqueires de trigo. O assentista não estava obrigado a dar este alimento pelo seu contrato, mas comprometeu-se a pô-lo em farinha nas praças, pelo que D. Rodrigo solicitou que o Rei lhe enviasse uma carta de agradecimento (na verdade, na menoridade de D. Afonso, seria D. Luísa de Gusmão, a Rainha regente, a fazê-lo).

Também os moradores foram persuadidos a colocar nas praças 2.400 carros de lenha sem despesa para a fazenda real. Solicitava igualmente D. Rodrigo que a Coroa mandasse colocar o que fosse necessário nas praças para alimento da gente delas. Não indo o inimigo atacar as praças, se poderia vender esse alimento, recuperando a fazenda real a despesa feita: 1.249 quintais de carne e outros tantos de peixe seco, 1.200 alqueires de legumes, 6.000 almudes de vinho, 200 de azeite, 550 de vinagre, que importariam 11.395.940 réis.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, carta de 14 de Março, anexa à consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: “Cerco de uma cidade flamenga por soldados espanhóis”, óleo de Joahnnes Lingelbach, década de 50 do século XVII.

Efectivos da província da Beira, partido de Penamacor, em 1648

Em Setembro de 1648, a propósito da insuficiência de dinheiro para pagamento de todas as forças da província da Beira, o governador das armas do partido de Penamacor (distrito militar – por vezes também referido como partido de Castelo Branco), D. Sancho Manuel de Vilhena, enviou ao Conselho de Guerra uma lista exaustiva dos efectivos de que dispunha. Através desse rol ficamos a conhecer o detalhe das unidades que serviam então no partido de Penamacor.

PRIMEIRA PLANA DA CORTE [mais do que um Estado Maior, era uma lista que abrangia todos os oficiais que tinham o privilégio de receberem em primeiro lugar a mesada destinada à província, mesmo que o que sobrasse não fosse suficiente para pagar aos restantes oficiais e praças das unidades; incluía oficiais sem unidade, mas com patente e privilégio passado por decreto régio, capitães-mores de algumas localidades do partido (mesmo de zonas afastadas da fronteira de guerra), “oficiais de pena”, ou seja, não combatentes, amanuenses, cirurgiões e outros]:

1 governador das armas; 1 tenente de mestre de campo general; 1 ajudante de tenente de mestre de campo general; 1 vedor geral; 1 pagador geral; 2 oficiais da Vedoria e da Contadoria Geral do exército; 1 guarda-livros da Vedoria e Contadoria Geral do exército; 1 ajudante do pagador geral; o mestre de campo Manuel Lopes Brandão; o capitão-mor da cidade de Coimbra; o capitão-mor da praça de Salvaterra [do Extremo]; 1 auditor geral; 1 administrador; 1 físico-mor [equivalente ao médico dos nossos dias]; 1 cirurgião-mor; 2 almoxarifes das armas e abastecimentos da praça de Penamacor; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Idanha a Nova; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Salvaterra [do Extremo]; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Segura;1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Rosmaninhal; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Zebreira; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Proença a Velha; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Monsanto; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Penha Garcia; e uma praça morta [pensão por invalidez] que se paga por alvará régio a Francisco Sanchez Bueço. TOTAL: 26 elementos.

INFANTARIA

Terço do mestre de campo João Fialho

Primeira plana do terço: 1 mestre de campo, 1 sargento-mor, 2 ajudantes do número, 2 ajudantes supranumerários, 1 capitão de campanha [oficial de justiça], 1 furriel mor, 1 tambor mor. TOTAL: 9 elementos.

Companhia do mestre de campo: 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 1 capitão reformado, 3 alferes reformados, 1 sargento reformado [estes oficiais e sargentos reformados serviam como praças, recebendo um soldo inferior ao que correspondia à sua patente se estivessem providos nos respectivos postos; logo que vagassem postos numa companhia, poderiam vir a ocupá-los, tornando a receber o soldo correspondente à patente], 4 cabos de esquadra, 74 soldados. TOTAL: 89 elementos.

Companhia do capitão Paulo Craveiro: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 75 soldados. TOTAL: 87 elementos.

Companhia do capitão Simão da Costa Feio: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 46 soldados. TOTAL: 58 elementos.

Companhia do capitão Simão de Oliveira da Gama: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 67 soldados. TOTAL: 79 elementos.

Companhia do capitão Jorge Fagão: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 54 soldados. TOTAL: 66 elementos.

Companhia do capitão Mateus Álvares: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 45 soldados. TOTAL: 57 elementos.

Companhia do capitão Manuel de Brito: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 50 soldados. TOTAL: 62 elementos.

Companhia do capitão Diogo Freire: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 45 soldados. TOTAL: 57 elementos.

Companhia do capitão José de Oliveira: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 46 soldados. TOTAL: 58 elementos.

Companhia do capitão Manuel Correia: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 51 soldados. TOTAL: 63 elementos.

Companhia do capitão Fernão Monteiro: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 44 soldados. TOTAL: 56 elementos.

Companhia do capitão Domingos da Silveira: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 52 soldados. TOTAL: 64 elementos.

Companhia do capitão Simão Feitor: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 70 soldados. TOTAL: 82 elementos.

Efectivo total do terço do mestre de campo João Fialho: 887 homens (111 oficiais, sargentos e outros, fazendo parte da primeira plana do terço e das primeiras planas de cada companhia; 776 cabos de esquadra e soldados), em 13 companhias.

Companhias soltas de auxiliares (assistindo nas diversas praças da fronteira)

Companhia do capitão Manuel de Araújo: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 44 soldados. TOTAL: 55 elementos.

Companhia do capitão António Estaço da Costa: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 55 soldados. TOTAL: 66 elementos.

Companhia do capitão João de Elvas: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 56 soldados. TOTAL: 67 elementos.

Os oficiais e soldados das duas primeiras companhias, apesar de serem de auxiliares, recebiam o mesmo soldo que os seus congéneres do exército pago, o que constituía uma excepção; a companhia do capitão João de Elvas recebia apenas pão de munição por conta da fazenda real, como estava regulamentado para os auxiliares.

Efectivo total das três companhias auxiliares: 188 homens (21 oficiais e outros; 167 cabos de esquadra e soldados).

CAVALARIA

Por não haver na altura comissário geral da cavalaria naquele partido, toda a cavalaria (constituída inteiramente por arcabuzeiros a cavalo) era governada pelo capitão Gaspar de Távora e Brito. Existia, todavia, uma primeira plana da cavalaria.

Cavalaria paga

Primeira plana da cavalaria: 1 ajudante; 1 capelão mor. TOTAL: 2 elementos.

Companhia do capitão Gaspar de Távora e Brito: 1 capitão, 1 pajem, 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 47 soldados. Total: 59 elementos.

Companhia do capitão Manuel Furtado de Mesquita: 1 capitão, 1 pajem, 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 66 soldados. Total: 88 elementos.

Companhia que foi do comissário geral, governada pelo tenente João Colmar: 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 52 soldados. Total: 62 elementos.

Efectivo total das três companhias de cavalaria paga: 200 homens (23 oficiais e outros; 177 cabos de esquadra e soldados).

Cavalaria da ordenança

Companhia do capitão João Cordeiro: 1 capitão, 1 tenente, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 85 soldados. Total: 95 elementos.

Companhia do capitão Henrique Leitão Rodrigues: 1 capitão, 1 tenente, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 41 soldados. Total: 51 elementos.

Estas companhias recebiam apenas pão de munição e o centeio para o animais, por conta da fazenda real.

Efectivo total das duas companhias de cavalaria da ordenança: 146 homens (12 oficiais e outros; 134 cabos de esquadra e soldados).

O partido de Penamacor contava com 31 “Vigias do Largo” (montados, pois vêm referidos na parte correspondente à cavalaria), destinados dar o alerta de quaisquer entradas que o inimigo fizesse, os quais recebiam 160 réis por dia. Os cavalos deviam ser dos próprios e não recebiam qualquer provimento de cevada ou centeio para os animais nem pão de munição, pois nada consta a este respeito na minuciosa lista mandada elaborar por D. Sancho Manuel.

ARTILHARIA

Plana dos oficiais da artilharia: 1 capitão da artilharia, 1 gentil homem da artilharia, 2 condestáveis da artilharia, 10 artilheiros. Total: 14 elementos.

Como nota adicional, acrescente-se que a lista incluía nas despesas os gastos com 40 prisioneiros castelhanos, que recebiam cada mês um total de 1.200 pães de munição de um arrátel cada, as quantias com despesas secretas (destinadas a espionagem) e correios, e com 22 cavalos desmontados (provavelmente em adestramento para servirem nas companhias), os quais recebiam rações de centeio.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, mao 8-B, “Rellação da Gente de guerra, Infantaria, Caualaria e Artilharia, que assiste nesta Prouincia da Beira em o Partido das tres Comarcas Castelo Branco Viseu e Coimbra de que he Gouernador das Armaz D. Sancho Manuel…”, anexa à consulta de 11 de Dezembro de 1648.

Imagem: “Soldados numa aldeia” (1644), pintura de Joost Cornelisz (1586-1666).

O mestre de campo João Fialho

A propósito do mestre de campo João Fialho, acima referido como comandante do terço pago do partido de Penamacor, o leitor JCPort deixou aqui há algumas semanas comentários interessantes sobre aquele seu antepassado, que passo a reproduzir, agradecendo mais uma vez a sua colaboração:

João Fialho, natural de Alenquer, Vila Verde dos Francos, era Fidalgo da Casa Real por serviços prestados na sua acção durante a Guerra da Restauração, no comando de um terço de infantaria na zona fronteiriça do Alentejo [e principalmente na Beira, como é patente].

Conforme biografia incluída nos Livros de RGM – Ordens, nºs 2,7 e 10, na atribuição de duas Comendas na Ordem de Cristo entre 26-06-1644 e 15-02-1669 (S. Miguel do Outeiro e St.a Maria de Almendra), refere-se, na atribuição da Comenda de Sta. Maria de Almendra, que fora Mestre de Campo e Governador de Armas da Província da Beira no impedimento do proprietário [provavelmente por um breve período, como interino, pois não consta nas listas oficiais].

João Fialho teve um filho natural de nome Luís Fialho, que se destacou, como o pai, na defesa fronteiriça do Alentejo, e uma irmã Mariana, que casou com um João Correia (Felgueiras Gayo, título “Salinas”). Desconhece-se se eram filhos da mesma progenitora.

Espionagem e traição na fronteira da Beira, 1651 – o caso do capitão João Cordeiro

Ao capitão de cavalos da ordenança João Cordeiro já foi feita referência a propósito do assalto à ponte de Alcântara. Nascido ou pelo menos criado em Segura, tido como guia experiente, o capitão perdeu-se quando conduzia a força que devia executar o ataque à praça raiana, resultando daí o atraso no início das operações. Em consequência, D. Sancho Manuel mandou-o prender. Mais tarde, esclarecido o caso, o oficial foi libertado.

Quanto a espionagem e contra-espionagem, recentemente foi trazido aqui um exemplo a partir de um documento coevo. O capitão João Cordeiro também esteve relacionado com este campo particular da guerra de fronteira. A tal ponto que aí ficou traçado o seu destino.

Em 15 de Maio de 1651, uma consulta do Conselho de Guerra tratava de um acontecimento ocorrido – presume-se – na praça de Segura. A falta da carta de D. Sancho Manuel, que a consulta apenas resume, não permite saber ao certo. O que se passou naquela distante fronteira foi considerado assunto grave: o governador das armas dava a conhecer a traição que um castelhano da Sarça [Zarza la Mayor] (que por via do capitão João Cordeiro lhe dava alguns avisos, que se lhe pagavam com pontualidade) cometeu, matando o mesmo capitão João Cordeiro. Sendo o caso que, vindo-se este castelhano a descobrir com os seus oficiais [ou seja, a revelar o seu papel de espião], eles o persuadiram a que matasse o capitão João Cordeiro, como fez, e vindo na noite de 4 do presente comboiado pelas tropas inimigas, chegara à porta do capitão João Cordeiro, metendo-se por onde a praça ainda não estava fechada, sem ser sentido das sentinelas por não vir pelas avenidas; e dizendo ao capitão que lhe trazia um aviso para dar a ele Dom Sancho, se apartara o capitão João Cordeiro com ele, e estando sós lhe dera o castelhano um pistoletaço de que logo morreu, pondo-se o traidor logo em cobro, o que pôde fazer porque no mesmo tempo acometeram as tropas do inimigo às avenidas e se tocou arma, com o que teve lugar o traidor de se meter com os seus, que se retiraram ao som de trombetas, como se com sua traição conseguiram ganhar uma província.

Contava assim D. Sancho Manuel, despeitado, o triste fim do capitão da ordenança, de quem havia três anos desconfiara e mandara prender. Pela traição, sugere que o Rei mande que se não dê quartel a nenhum castelhano, e que permita que o próprio D. Sancho possa mandar executar os inventores desta maldade.

Os conselheiros opuseram-se de forma veemente a esta sugestão de D. Sancho, pois não se devia admitir nem praticar tal coisa, por não se usar entre cristãos o não dar quartel. Sugeriram ao Rei que mandasse D. Sancho acabar de cerrar a praça, para que ninguém pudesse entrar sem ser sentido – e se não pudesse ser com muralha, que fosse com trincheira e estacada. Quanto aos herdeiros do falecido capitão, consideraram ser merecedores de receber alguma mercê régia, em virtude de João Cordeiro ter sido um grande sujeito, bizarro e valente capitão.

Uma curiosidade: a título particular, acrescentaram à consulta D. Álvaro de Abranches e Jorge de Melo os seus pareceres, nos quais disseram que os moradores da Sarça são costumados a fazer traições, por onde já tiveram castigo, o que lhes parece que se encomende a Dom Sancho procure fazer o mesmo ao traidor.

Espionagem e contra-espionagem – mas também traições, castigos e vendettas. A fronteira da Beira parece ter sido terreno fértil nestes casos. O historiador Gastão de Melo de Matos, na sua obra Um soldado de fortuna do século XVII (Lisboa, s. n., 1939), narra o episódio de dúbios contornos do então sargento-mor António Soares da Costa, o Machuca, e o triste fim de D. Alfonso de Sande y Dávila. Mas, como costuma dizer Juan Antonio Caro del Corral, isso é outra história.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1651, maço 11, consulta de 15 de Maio de 1651.

Imagem: Pausa dos militares. Pintura de Simon Kick (1603-1652).

O cargo de capitão-mor

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Existe alguma confusão a respeito do cargo de capitão-mor, não sendo raro encontrar em obras publicadas, de divulgação ou mesmo trabalhos académicos de valor, a referência à designação de capitão-mor como posto militar no contexto da Guerra da Restauração. Tê-lo-á sido, mas antes de 1640.

O capitão-mor era o oficial responsável pelo recrutamento, treino e comando de tropas da ordenança numa dada localidade, fosse ela cidade, vila ou aldeia. Quando em 1570 D. Sebastião mandou que houvesse, em cada terra de Portugal, um capitão-mor, a função desempenhada por estes correspondia à de uma patente militar – ou seja, um posto. Segundo o Regimento dos capitães-mores, o capitão-mor seria responsável por uma companhia da ordenança. Em cada comarca haveria também um sargento-mor, a quem caberia o comando superior do conjunto das companhias dessa comarca, organizadas em terço da ordenança. A companhia era a unidade básica administrativa, o terço era uma unidade táctica. O grosso do exército que D. Sebastião objectivava constituir seria composto por elementos recrutados em cada terra pelo respectivo capitão-mor.

Com o passar dos tempos e o surgimento do exército pago, já no período da Guerra da Restauração, o capitão-mor transitou de posto militar para cargo que podia ser desempenhado por militar com qualquer patente, fosse ele do exército pago ou da milícia de ordenança. Esta milícia passou então a ser uma reserva de segunda linha, relegada até para terceira linha, quando em 1646 surgiram os milicianos auxiliares a pé, e em 1650 os auxiliares a cavalo. Não obstante, a capitania-mor manteve o prestígio de tempos anteriores, pois além das já referidas tarefas de recrutamento, treino e comando de tropas da ordenança, implicava também as funções de governo militar da localidade (caso não existisse um governador especificamente designado por entidades superiores). Em algumas terras esse governo podia caber a um sargento-mor (da ordenança), embora as funções primordiais deste fossem eminentemente militares.

Compreenderemos melhor o caso das capitanias-mores se virmos a listagem dos indivíduos que em 1646 desempenhavam tarefas de governo militar nas várias localidades no Alentejo. Encontramos nessa lista capitães-mores, sargentos-mores e governadores de praça propriamente ditos. O soldo que auferiam dizia respeito à patente militar que tinham (ou que passaram a ter) na altura da nomeação para o cargo. Vejamos (para aceder à lista, basta clicar no link abaixo):

Alentejo CM 1646

Como se pode verificar, o cargo de capitão-mor podia ser desempenhado por militares de variadas patentes. Num outro documento, respeitante à província da Beira e datado de 1663, é possível encontrar militares propostos (os quais seriam todos nomeados) para capitanias-mores cuja proveniência era igualmente diversa:

Para Castelo Rodrigo, o tenente de mestre de campo general António Ferreira Ferrão, que recebeu a patente e o soldo de mestre de campo.

Para Castelo Bom, o capitão de infantaria (pago) António de Figueiredo, um veterano do exército da monarquia dual na Flandres.

Para Segura, um Diogo Freire, que era capitão-mor de Idanha, mas que se dava muito mal com a população dessa localidade.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, maço 6, nº 303; e maço 23, consulta de 18 de Janeiro de 1663.

Imagem: Fortaleza de Juromenha. Foto de J. P. Freitas.

Regresso à “Passagem de Alcaraviça”

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A rematar o seu excelente artigo, o Sr. Santos Manoel interrogava-se sobre o destino do desafortunado sargento-mor da ordenança de Évora, João da Fonseca Barreto. Este oficial sobreviveu ao desaire, mas foi preso e julgado, tendo sido sentenciado em perda do cargo (note-se que, na ordenança, sargento-mor era um cargo que podia ser desempenhado por um militar com outra patente; o mesmo não se passava, contudo, entre as tropas pagas, onde sargento-mor era um posto). João da Fonseca Barreto foi substituído no cargo por João de Mesquita Pimentel, que era capitão-mor de Marvão, em 18 de Abril de 1648. (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, maço 10, consulta de 2 de Agosto, confirmando a situação de João de Mesquita Pimentel.)

Imagem: Philips Wouwerman, “Ataque a um comboio”, meados do séc. XVII, Kunsthistorische Museum, Viena. Uma situação comum na fronteira durante a Guerra da Restauração, onde os comboios de carros e carroças transportando víveres, munições ou até dinheiro eram um alvo apetecido para os beligerantes de ambos os lados.

Um escocês ao serviço de D. João IV – o mestre de campo David Caley (3ª parte)

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Nos finais de 1645, David Caley estava na província da Beira, em Penamacor. Um procedimento incorrecto da sua parte motivou uma advertência, conforme se pode ler num decreto régio de 22 de Novembro de 1645:

Pelo Conselho de Guerra se avise ao Governador das Armas da Província da Beira estranhe com demonstração ao Mestre de Campo David Caley o mau tratamento que em companhia dos reformados que levou de Lisboa fez, em Penamacor, aos oficiais que lhes foram fazer pagamento na forma das ordens que tinham minhas, e lhe advirta da minha parte, o respeito e decoro que é bem se guarde a semelhantes oficiais, e que do contrário me haverei por muito mal servido, e mandarei proceder na matéria com rigor. E ao Vedor geral da mesma Província encarregará mui particularmente a pontual observância do Regimento que lhe mandei dar. Montemor o Novo em 22 de Novembro de 1645.

Em Janeiro de 1646, nova advertência. Desta feita, o mestre de campo guardara para si a totalidade da venda do saque efectuado numa incursão a território inimigo, não entregando a quinta parte à fazenda real, como a lei determinava. Caley argumentou que o montante da presa (300.000 réis) era inferior ao total dos soldos que lhe eram devidos e cujo pagamento estava em atraso. Nesse ano, David Caley passou a comandar um dos dois terços pagos que aquartelavam em Olivença. Apesar do feitio algo difícil, o mestre de campo escocês era apreciado pela sua experiência e valor militar.

Todavia, o prestígio de Caley estava a baixar quando ocorreu o assalto espanhol à praça de Olivença, em 18 de Junho de 1648. Durante os combates travados nas ruas daquela localidade, D. João de Meneses, governador da vila, tombou gravemente ferido, e o mestre de campo D. António Ortiz de Mendonça, comandante do primeiro terço da guarnição, foi mortalmente atingido. Poucos dias depois do sucedido, o Conde de São Lourenço escreveu a D. João IV acerca do desempenho dos defensores durante o assalto:

Os capitães do terço de David Caley o fizeram mui honradamente, o mestre de campo muito mal, e é grande a murmuração que em todos os soldados e moradores de Olivença corre sobre este homem, porque sobre ser de pouco préstimo, ser fraco, não é coisa que se sofra, ocupando um posto tamanho, que em faltando o governador daquela praça lhe toca a ele.

O Conde de S. Lourenço não era muito apreciador de estrangeiros. Na sua correspondência, raramente algum lhe merecia encómios, enquanto as observações de desdém eram frequentes (na verdade, também muitos oficiais portugueses eram vítimas da soberba do governador das armas). Mas a reputação de David Caley já não era a mesma de anos anteriores, e o facto de D. João de Meneses, impossibilitado de governar a praça devido ao seu grave ferimento, não ter passado o governo interino ao mestre de campo escocês (o oficial mais graduado e mais antigo no exército do Alentejo, após a morte de D. António Ortiz), preferindo entragá-lo ao capitão de cavalos António Jacques de Paiva, é revelador do pouco crédito do oficial mercenário.

O Conde de S. Lourenço mandou de imediato levantar um inquérito (uma devassa, como então se dizia) ao alegado mau comportamento de David Caley durante o assalto à vila. Mas entre o ordenar e o executar, o tempo foi passando. Três meses mais tarde, em Setembro, a devassa ainda não tinha principiado. Os soldados do terço de Caley – os que ainda não tinham desertado – não queriam testemunhar contra o seu comandante. Afinal, talvez o mestre de campo estivesse a ser vítima de intrigas ou desavenças anteriores com outros oficiais. O próprio Rei D. João IV não autorizou que Caley fosse afastado do comando do terço até o inquérito estar concluído, apesar da insistência do Conde de S. Lourenço para que isso acontecesse, argumentando que o escocês poderia desertar para Espanha.

Em Outubro de 1648, com a devassa ainda por concluir, David Caley e a sua mulher deixaram Olivença e foram para Lisboa. Precisamente um ano mais tarde, um alvará régio mandava que se fizesse o ajuste das contas com o oficial entretanto despedido do serviço de El-Rei, para que se lhe pagasse o que era devido, de modo a que pudesse embarcar para a sua terra. Mas em Março de 1650 ainda se encontrava em Lisboa, miserável e doente, conforme refere numa petição enviada ao Conselho de Guerra: havia mais de ano e meio que não recebia nada do que lhe era devido, e além disso era injustamente acusado de não ter dado conta do equipamento militar que fora distribuído ao seu terço da ordenança na campanha de 1643! O Conselho de Guerra mostrou-se compreensivo para com o oficial estrangeiro:

(…) porque como é estrangeiro e ao tal tempo nem sabia a língua nem os estilos deste reino, tudo o sobredito recebeu e repartiu o seu sargento-mor João de Canton, que era prático, sabia a língua e havia servido no Brasil e tudo repartiu pelas companhias, que como eram soldados de três meses só para a campanha (…) se foram, além de que borrachas, mochilas, bândolas e balas, nenhuns soldados tornam a entregar, que lá gastam (…)

Os conselheiros estranharam que o mestre de campo fosse obrigado a dar conta do material, pois essa responsabilidade cabia aos comandantes das companhias do terço; e acrescentaram que seria de maior escândalo e sentimento se David Caley deixasse o Reino com mais esta ignomínia. No mês seguinte, em Abril de 1650, em nova consulta, o Conselho de Guerra esclareceu definitivamente o caso, com uma cópia da certidão de armas entregue, em 1643, pelo sargento-mor João de Canton. E concluiu que David Caley não estava em dívida, e que se lhe devia fazer o remate das contas para voltar para a sua terra, que é o prémio que pede do tempo que serviu Vossa Majestade tantos anos e não haver sido condenado.

Não há mais informações sobre David Caley, pelo que é muito provável que tenha deixado o Reino em meados de 1650. Pode entender-se, tanto pela recusa dos seus subordinados em deporem contra ele, como pela atitude favorável do Conselho de Guerra e pelo facto de não ter sido condenado, que o escocês terá tido problemas no Alentejo com elementos do topo da hierarquia militar e talvez com outras pessoas mais – aparentemente, Caley era, também ele, de trato difícil – mas que não terá havido fundamento para as graves acusações que sobre ele recaíram na ocasião do assalto a Olivença em Junho de 1648.

Bibliografia: o período de serviço de David Caley em Portugal foi abordado num artigo de minha autoria, “War abroad: English, Scot and Irish officers in the Portuguese Army, 1641 to 1657”, in Arquebusier, vol. XXIX/III, 2005, pp. 2-11. Para além da obra de Cristóvão Aires de Magalhães Sepúlveda, História Orgânica e Política do Exército Português – Provas, onde David Caley é referido entre muitos outros oficais estrangeiros, existe também uma transcrição de um documento relativo àquele oficial em JAYNE, M. S. , “State papers, Portugal, 89/4, Public Record Office, London”, in Congresso do Mundo Português, vol. VII, t. II, II sec., Lisboa, Publicações da Comissão Executiva dos Centenários, 1940, pp. 236-237.

Fontes:

ANTT, Conselho de Guerra, Decretos, 1642, maço 2, nº 43; 1643, maço 3, nº 103; 1644, maço 4, nº 24 e nº 26; 1645, maço 5, nº 110; Consultas, 1650, maço 10, conultas de 18 de Março e de 30 de Abril.

ARAÚJO, João Salgado de,  Successos Militares das Armas Portuguesas em suas fronteiras depois da Real acclamação contra Castella. Com a geografia das Prouincias, & nobreza dellas, Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1644, pgs. 183 v e 223.

Cartas de El-Rei D. João IV para diversas autoridades do Reino, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, pg. 26, carta régia de 27 de Janeiro de 1646.

Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, Vol. I,  pgs. 289, 318-319, 321-322, 325 e 333; Vol. II, pgs. 50, 63-64, 68 e 72.

Imagem: Alguns dos locais do Alentejo por onde se movimentou David Caley, no período em que serviu em Portugal. Novissima regnorum Portugalliae et Algarbiae descriptio, c. 1680, Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1681A.

Um escocês ao serviço de D. João IV – o mestre de campo David Caley (2ª parte)

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No início do ano de 1644, David Caley recebeu o comando de outro terço da ordenança de Lisboa, que devia ser formado com uma mescla de recrutas inexperientes e reformados (oficiais tornados excedentários devido à dissolução das suas unidades, os quais passavam a  receber uma pequena fracção do soldo e podiam ser incorporados de novo, mesmo como simples soldados). Estas unidades novas da ordenança, destinadas a combater nas fronteiras, eram constituídas apenas por um período de três meses, findo o qual oficiais e soldados eram desmobilizados. Em Fevereiro de 1644 ainda faltavam três companhias para completar o terço, que também necessitava de capitães e de um sargento-mor. Foi com este terço que, em Maio, Caley se bateu na batalha de Montijo, a qual provocou uma razia no exército do Alentejo. David Caley regressou a Lisboa para assumir o comando de um de três novos terços da ordenança, rapidamente levantados para suprir as baixas sofridas. Ainda com pouca instrução militar e sem armas, os cerca de 1.000 homens foram conduzidos pelo mestre de campo até Estremoz, onde finalmente receberam armas e munições capturadas aos espanhóis durante a campanha do ano anterior. Daí, partiram para Olivença, onde ficariam a fazer parte da guarnição.

David Caley conhecia agora muito bem o exército português, as suas características e principalmente as suas fraquezas. Ele e outros oficiais providenciavam instrução militar com regularidade aos soldados, mas tudo isso seria desperdiçado quando a unidade fosse desmobilizada, findos os três meses de serviço. Escreveu ao Conselho de Guerra a esse propósito e foi o próprio Rei que, em resposta à solicitação do escocês, enviou uma carta ao então governador das armas da província, Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete:

Conde de Alegrete amigo, Eu El-Rei vos envio muito saudar como aquele que amo. David Caley me pede em uma carta que me escreveu, mande que a gente do seu terço seja paga, pois se conhece que de o não ser resulta grande desserviço [ou seja, prejuízo] meu, servindo os oficiais da primeira plana só três meses do ano e estarem ociosos os nove restantes no castelo de Lisboa, e por outras razões que se deixam considerar, para que o ensino e exercício que se vai dando à gente de que hoje se compõe o terço, se não perca por se ir afeiçoando a este exercício, estando já hoje de sorte que os mais aceitarão o não sair dele, podendo-se também considerar grande conveniência em que se pode poupar o trabalho e gasto que se faz em novas levas, encomendo-vos que inteirado de tudo e mandando-vos informar por um tenente de mestre de campo general, ou por quem melhor vos parecer, se os soldados deste terço, sendo da leva dos três meses, se acomodarão de sua própria vontade a assentar praça e ficar servindo nele de soldados pagos, me avisais do que se vos oferecer sobre esta matéria para se tomar nela a resolução que mais convenha a meu serviço. Escrita em Alcântara a 30 de Junho de 1644. Rei. (ANTT, Secretaria de Guerra, Livro 5º, fl.153 – a ortografia foi actualizada; as restantes fontes e bibliografia serão referidas no final desta série de artigos.)

O terço foi elevado à categoria de tropas pagas, mas as previsões optimistas não se confirmaram. Muitos soldados acabaram por não se adaptar à vida na fronteira de guerra e as deserções foram aumentando. Em Março de 1645 o terço foi dissolvido. A próxima etapa na carreira de David Caley passaria pela província da Beira.

(continua)

Imagem: Infantaria do período da Guerra Civil Inglesa. Reconstituição histórica, Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. Freitas.

Cavalaria da ordenança da província da Beira (1650)

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Em artigos anteriores sobre as categorias militares do exército português e os tipos de cavalaria, foi já referido o modo de constituição das unidades da ordenança. As companhias desta categoria de milícia compreendiam homens de várias localidades de uma comarca. Nas zonas mais atingidas pela guerra, junto à fronteira, cedo se constituíram companhias da ordenança, para complementar a defesa levada a cabo pelas tropas pagas. Em outras regiões, menos sujeitas às incursões de depredação, tardaram a ser formadas estas companhias.

Na Beira, por exemplo, os habitantes das localidades mais afastadas da raia foram durante algum tempo poupados ao serviço na cavalaria da ordenança. A partir da década de 50, em particular durante o governo de D. Rodrigo de Castro, futuro Conde de Mesquitela, a preocupação com a força montada foi crescendo, de modo que novas unidades foram surgindo. Assim, em 7 de Janeiro de 1650, havia em formação quatro novas companhias da ordenança, a saber:

– Companhia do capitão Gaspar de Seixas de Almeida. Tinha perto de 40 efectivos, com gente de Trancoso e seus termos.

– Companhia do capitão António Veloso do Amaral. Devia ter 50 cavalos, mas só alguns estavam então operacionais. Os soldados vinham das localidades de S. João da Pesqueira, Távora, Sendim, Trevões, Nagozelo, Vilarouco, Riodades, Paredes, Ranhados, Ervedosa, Valença, Penela, Lousa, Valongo, Castanheiro, Soutelo, Souto e Cedovim.

– Companhia do capitão Diogo Pereira de Figueiredo. Devia ter  50 cavalos, mas só tinha alguns operacionais. Formada nas vilas de Fonte Arcada, Pena Verde, Fornos, Penedono, Casais do Monte, Carapito, Algodres, Matança, Aguiar da Beira e Sernancelhe.

– Companhia do capitão Manuel de Andrade Freire. Tal como as outras, dos 50 cavalos, só alguns estavam em condições de operar. Incluía gente das vilas de Pinhel, Marialva, Moreira, Aneloso, Casteição, Numão, Longroiva, Muxagata, Vila Nova, Horta,  Touça, Castelo Mendo, Lamegal e Meda.

Um dos problemas que afectavam a capacidade operacional das unidades era a falta de selas. Em Fevereiro de 1650, D. Rodrigo de Castro queixava-se de não lhe terem sido ainda entregues as selas pedidas e prometidas havia já meio ano. Por outro lado, advertia que o serviço continuado com selas velhas acabava por destruir os cavalos. Apesar de todas as dificuldades, nesse mesmo ano D. Rodrigo de Castro levou a cabo algumas operações onde a cavalaria da ordenança participou em número superior ao da cavalaria paga, e com sucesso.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, maço 10, nº 16, 36 e 46; e Secretaria de Guerra, Livro 14º, fls. 78-78 v.

Imagem: Soldados pilhando, quadro de Pieter Post, década de 30 do século XVII.

O episódio da «Passagem de Alcaraviça» – 2ª parte; artigo do Sr. Santos Manoel

Conclui-se hoje o interessante artigo artigo do Sr. Santos Manoel, cuja publicação foi iniciada no último post. Renovo aqui o meus agradecimentos pela permissão concedida pelo Autor para a publicação desta peça de investigação.

Os documentos

Como já foi dito atrás, as notícias de Cádis somadas à movimentação e entradas de Legañes, das quais a de Alcaraviça foi de particular gravidade, fizeram Rei e Conselho pensarem no pior, e o pior era a invasão estar iminente. D João decreta que a Rainha ficaria em Lisboa e passaria a despachar na sua ausência, enquanto ele passaria a Aldeia Galega do Ribatejo (o antigo nome do Montijo), uma posição bem estudada, suficientemente próxima de Lisboa mas dando-lhe campo aberto para começar de imediato a movimentar-se no interior do país caso a invasão começasse.

O trajecto de D João IV durante as operações nesse último trimestre de 1645, tendo por base os locais de emissão das suas cartas e Decretos, foi aproximadamente o seguinte:

– em 20 de Outubro ainda estava em Lisboa;

– a 27 atravessa o Tejo e parte para Aldeia Galega onde permanece pelo menos até 10 de Novembro;

– a 19 já escreve de Montemor-o-novo onde permanece pelo menos até 7 de Dezembro;

– em 11 já está em Setúbal inspeccionando arranjos de defesa;

– em 30 estava de regresso a Lisboa.

Quando passa o Tejo a 27 de Outubro, o episódio de Alcaraviça ainda não se teria dado, nem saberia nada das operações de Legañes em Olivença e da tomada da ponte uma vez que estavam a dar-se precisamente nesse dia. Nessa mesma data, quando escreve a Martim Afonso de Melo fá-lo como um alerta porque, segundo as informações de que podia dispor até esse dia, o inimigo depois de ter chegado a Badajoz inesperadamente parou, não avançou mais. Esse facto continha para D João, e na sua própria expressão, ‘algum mistério’, parecia ser um indício sério de que Legañes apenas fazia um compasso de espera para se retemperar enquanto a armada não se deslocasse. Estaria em marcha a mais ou menos esperada invasão do reino, qualquer coisa parecida com o que se deu em 1580: por terra, pelo Alentejo até Lisboa; por mar, a armada que estava em Puerto Santa Maria e Cádis – cujas manobras e exercícios já lhe tinham sido notificadas, como prova uma carta sua à vereação da Câmara de Lisboa de três dias depois, 30 de Outubro – avançando até à barra do Tejo. Aldeia Galega era um bom local para se aquartelar em caso de uma súbita ocupação naval de Lisboa, contra o quê pouco se podia fazer. A resistência, a confirmar-se o ataque, dar-se-ia no Alentejo.

Avaliando o Rei este estado de coisas, a 4 de Novembro, ainda em Aldeia Galega, escreve a Castelo Melhor aparentemente apenas por ter sido informado de um caso de má liderança de um capitão de uma praça de primeira linha. Pede-lhe que apure responsabilidades e aja em conformidade em relação ao que se passou perto de Vila Viçosa no dia 31 de Outubro, no que parece ter sido um recontro onde a absoluta falta de comando fez com que o capitão mandasse infantaria sem ao menos um cabo, pelo meio das vinhas, contra cavaleiros espanhóis que exploravam os arrabaldes em ‘Fradaga’, ‘Pexinhos’ e a N. Sª da Luz. Essa operação pífia causou a morte de 15 soldados, a captura de mais alguns e a perda de gado. Mas pior que isso, revelou que havia movimentações bem no interior do nosso território, que havia falhas graves de comandantes de praças onde essas falhas não podia ocorrer, e que o facto provocou um sentimento de insegurança em Estremoz, praça que sabia que estava no caminho do invasor para a capital. D João queria simultaneamente sondar o que realmente se estaria a passar na fronteira, que Castelo Melhor fizesse alguma coisa em relação aos comandos e que isso tivesse um efeito benéfico no moral de Estremoz. Nessa carta D João dá o primeiro sinal de foi informado de Alcaraviça: fala de outra desordem de que também foi informado.

A outra desordem é seguramente o desastre da passagem de Alcaraviça, muito pior e mais grave, mas difícil para nós de saber se foi anterior ou posterior ao de Vila Viçosa. Por isso situarmo-lo vagamente na semana entre 27 de Outubro, dia do ataque à ponte e forte de Olivença, e cerca de dois a três dias antes de D João ter escrito a carta de dia 4 de Novembro, tempo mínimo para que a notícia chegasse a Aldeia Galega.

No mesmo dia 4, quando pelos vistos já sabendo da dimensão do que se passou nas Vendas de Alcaraviça, faz Conselho de Estado onde decide e envia ordem a 8 para Pedro Vieira da Silva mandar duas pessoas de qualidade às localidades de onde eram os soldados. A missão era apoiar com ânimo e consolo, mas também com dinheiro as famílias dos que faleceram e foram capturados, bem como com cirurgiões os feridos que necessitassem de cuidados. Ficamos assim a saber que a tropa da Ordenança da Comarca de Évora destroçada pelos espanhóis, contava com um bom número de filhos de Évora, mas também de outra localidade importante a seguir a Estremoz no caminho para Lisboa: da Vila de Arraiolos. Ficamos a saber também que se houve feridos a precisar ser tratados, houve quem escapasse ao massacre. Um deles não foi infelizmente Francisco Gomes de Araújo. Filho de João Gomes de Araújo e de Catarina Jorge de Sousa (ela de Alcácer do Sal), Francisco era um alferes de Évora que morreu no comando de uma companhia ‘na rota de Alcaraviça’, abraçado à bandeira nacional. O alferes e o episódio da sua morte são citados nos ‘Sanches de Vila Viçosa’, que se deu sem margem para dúvidas no episódio de que trata nesta memória.

No dia 10 de Novembro, dois dias após a carta que ordena a transmissão dos sentimentos reais e as ajudas materiais às vítimas e famílias, D João escreve aos juízes, procuradores e vereadores da Câmara de Arraiolos. Alude a uma carta que estes lhe tinham escrito no dia 4 falando do sofrimento que por ali corria pelo que já sabiam ter acontecido à sua gente em Alcaraviça. Esta carta traz um elemento de confirmação dos relatos históricos: o corpo de infantaria era de facto um reforço enviado de Estremoz para Elvas. Assim, acentua-se a impressão de que o corpo de infantaria seguia pela estrada em rota batida e pode ter sido simplesmente emboscado pelo corpo a cavalo espanhol, não tendo tido tempo de se defender ou fortificar-se numa tapada como rezam os cronistas.

Quase um mês depois, a 7 de Dezembro, já em Montemor-o-novo, feitas as diligências junto das famílias e recebendo D João o retorno de informações que entretanto foram colhidas, escreve a Castelo Melhor enviando-lhe petições de familiares dos cativos na refrega e pede-lhe que tente obter as suas libertações pelos meios mais convenientes. As peticionárias que solicitavam prisioneiros espanhóis para troca e eram: D Juliana de Salgado, mulher do Capitão Manuel da Cunha, Antónia de Azevedo, mulher do Alferes Sebastião Rodrigues Francisco e Paula Rodrigues, de Domingos Fernandes, trabalhador. A referência ao estatuto social do preso seria relevante para a escolha dos prisioneiros a trocar.

A 11, D João já está em Setúbal e a 30 de Dezembro de 1645 em Lisboa. Não se encontram mais referências ao caso até 11 de Janeiro de 46. Ignora-se que fim teve a diligência para a troca de presos, mas nessa última data são remetidos ao Dr. João Pinheiro uma carta de Castelo Melhor e outra do Auditor Geral do Exército a acompanhar o dossier da investigação que se fez ao procedimento do Sargento-mor João da Fonseca Barreto ‘quando a gente de Évora e Arraiolos foi morta e aprisionada em Alcaraviça’. O Rei pede que lhe seja enviado o processo para que se formule (ou não, presumo) uma acusação e que se leve a Conselho para se sentenciar.

Ignora-se o teor da relação apresentada, o que se sentenciou sobre o caso e o que se passou a seguir relacionado com ele. Ignora-se mesmo de João da Fonseca Barreto pereceu com os seus ou se sobreviveu. A documentação tem os seus limites. O investigador amador também.

Conclusão

Este episódio de guerra, triste sem dúvida pelas vítimas a lamentar como em todos os episódios de qualquer guerra, se à partida mais utilidade não teria senão permitir que D João regozijasse per opositum com a notícia do feito dos 16 da Atalaia da Terrinha, serviu pelo menos para que o Rei mandasse Joane Mendes de Vasconcelos como Mestre de Campo General para Estremoz, onde segundo os documentos do Conselho chegou de facto a 14 de Novembro. As suas atribuições já previamente definidas tiveram uma adição explícita: receber, treinar e exercitar as levas novas de tropas e conduzi-las a Elvas em segurança. Não se podia repetir o que, certa ou erradamente, ficou na memória da época como um exemplo evitável e absolutamente dispensável de imprudência suicida, explicada pelos dois cronistas por outro problema crónico a somar à escassez de abastecimentos: a inexperiência ou falta de preparação dos comandos.

Imagem: Infantaria do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648). Gravura de Jacques Callot.

O episódio da «Passagem de Alcaraviça», 1645 – 1ª parte; artigo do Sr. Santos Manoel

Do estimado amigo e investigador Sr. Santos Manoel recebi um muito interessante artigo, que aqui será publicado na íntegra, em duas partes. Agradeço a gentileza do Autor e a sua permissão para aqui partilhar o resultado da sua investigação com os caríssimos leitores.

O episódio da «Passagem de Alcaraviça»

Entre as batalhas de Montijo – em cuja discussão sobre se vitória ou derrota dos portugueses peço licença para não entrar, embora hoje pareça consensual que se tratou de uma das ‘derrotas mais vitoriosamente celebradas’ dos nossos exércitos – e de Montes Claros, o conflito entre portugueses e espanhóis por os primeiros terem reafirmado a sua independência, permaneceu em estado pouco mais que de tensão fronteiriça, interrompida por algumas entradas de parte a parte nos territórios alheios para causar algum dano pontual, colher alguma glória para soldados mais sedentos desse tipo de despojo ou mesmo para o roubo de algum mantimento, em falta crónica de ambos os lados. Esta memória procura resgatar um desses episódios de encontros entre forças opostas nas regiões fronteiriças, porventura um dos que os portugueses não saíram de cabeça erguida, mas que acabou por resultar numa iniciativa de reforço do treino militar, princípio básico da boa preparação dos exércitos.

O episódio foi citado como o ‘sucesso’ (no sentido de ‘acontecimento’, claro está), a ‘ocasião’, o ‘desastre’ da ‘passagem’ ou da ‘rota’ de Alcaraviça, e deu-se em data incerta entre 27 de Outubro e 2 de Novembro de 1645.

As crónicas

Na ‘História Geral de Portugal e Suas Conquistas’ de Damião A L Faria de Castro publicado um século e meio depois, o capítulo que narra este episódio começa com o título pouco prometedor de ‘Continuam os sucessos do Reino no ano de 1645′, como se de uma continuação enfadonha se tratasse, e imediatamente avança para um exórdio francamente desanimador, que não está muito longe do parágrafo com que comecei este texto, pelo menos para o ano em questão. Diz Faria e Castro que ‘Pouco dignos de narração dilatada são, na Província do Alentejo, os sucessos do ano que entro a escrever’. Vejamos.

D João não sabia o que fazer para atrair para o comando das forças do Alentejo uma mente capaz, à qual seria também bem-vindo juntar-se alguma sorte nas armas. O Cde. de Alegrete, relator coberto de glória da meia vitória portuguesa em Montijo, no meio de um ataque de orgulho ferido, tinha-se demitido quando no fim de 44 D João mandou Joane Mendes de Vasconcelos para o comando das forças em campo para libertar Elvas do sítio que lhe punha o Marquês de Torrecusa. Agora que (por razões que ficam para outra memória …) Joane Mendes se revelava uma escolha de difícil manutenção, D João voltava-se para o Cde. de Castelo Melhor. De notar que do lado espanhol as coisas não estavam diferentes. Incomodada pela pouca acção de Torrecusa, a liderança de Castela substituiu-o pelo Marquês de Legañes, com maiores forças e bem mais experimentadas nos campos do que é hoje o norte de Itália.

Dois novos comandos em ambos os lados da fronteira, só por si, fariam adivinhar novos combates quanto mais não fosse para experimentar mutuamente as têmperas e tácticas. Mas o que se segue nas discussões do Conselho de Estado e Guerra demonstra que D João poderia estar menos interessado em apoiar arroubos de bravura que em esperar para ver. Castelo Melhor tentara atacar Badajoz, mas teve tantos percalços no transporte da artilharia que se atrasou, expôs os movimentos e perdeu o elemento surpresa, abortando-se a operação. Castelo Melhor insistia numa acção ofensiva, e com Cosmander congeminou e apresentou no Conselho de Guerra a tomada do Forte de S. Cristóvão para melhor preparar um ataque a Badajoz. No entanto na corte as expectativas, provavelmente baseadas em informação que Castelo Melhor não tinha, viravam-se mais para a preparação de defesas. A presença de um exército experimentado na fronteira, simultaneamente com uma armada em Cádis assim o impunham.

O Conselho recusou o ataque ao forte de S. Cristóvão, próximo de Badajoz. E o Rei sai de Lisboa.

O receio do desencadear para breve do grande ataque conjunto por terra e mar era tal que D João chegou mesmo a nomear a 2 de Novembro de 45 a D Jorge Mascarenhas, Marquês de Montalvão, do Conselho de Estado e Guerra, seu Vedor da Fazenda e presidente do Conselho Ultramarino, como Mestre de Campo General «junto à pessoa d’el Rei», uma espécie de intendência da sua segurança privada, chefia da sua guarda pessoal.

Mas voltemos ao Alentejo, onde neste ambiente de perigo iminente está prestes a dar-se o caso de Alcaraviça.

É um grupo das forças de Legañes que entra pelo território português até próximo do que na altura se chamavam as Vendas de Alcaraviça, não a actual povoação de Alcaraviça, mais a Sul, mas o que é hoje a localidade da Orada, a Norte de Borba (curioso entretanto que nas duas descrições conhecidas e nos documentos da época não se faça nunca referência à ermida da Srª da Orada ou à povoação actualmente com esse nome). As Vendas de Alcaraviça ficavam à beira da estrada ancestral entre Elvas e Estremoz, a que vem por Vila Boim e passa pela Orada e S Lourenço de Mamporcão. A importância dessa via à época confirma-se por ser também a que Filipe III de Espanha fez quando veio visitar Portugal, perdendo na passagem da fronteira um ‘I’ que o seu filho voltou a encontrar. Em 23 de Março de 1619 o rei Filipe envia cartas ao presidente da câmara de Lisboa e ao Marquês de Alenquer descrevendo o seu trajecto a partir de Elvas, onde iria comer, onde iria dormir, quantas léguas a percorrer em cada troço, tudo como o seu pai tinha feito quando veio a Portugal em 1581: «… A comer – de Vila Boim às Vendas de Alcaraviça – duas léguas e meia; A dormir – destas Vendas a Estremoz – duas léguas e meia; …». As Vendas seriam de facto isso, locais de paragem para viajantes com venda de comida a meia jornada entre dois locais maiores capazes para dar dormida. Pelos vistos o lote de personagens ilustres que se refastelou com os cozinhados da Alcaraviça chegou a incluir pelo menos dois reis castelhanos. Pena é que também tenha assistido ao sacrifício de uns tantos bravos defensores do Reino.

A ‘História’ de Faria de Castro (Tomo 18, Livro 47, Cap. V, Ano de 1645) narra o episódio de forma breve como a maior das pequenas acções que Legañes executou durante o seu comando, narração quase que frustrada por um exército de 15000 homens não ter feito muito mais que tomar o forte da Ponte de Olivença e deitar abaixo alguns arcos da dita para cortar as comunicações da praça. Diz esse historiador que um Major (sic) João da Fonseca Barreto, tratado pejorativamente como ‘inconsiderado’, com 400 infantes encontrou-se com um corpo de tropas espanholas próximo à Venda de Alcaraviça. Ao invés de se fortificar e esperar socorro da cavalaria de D Rodrigo de Castro que supostamente o seguia, atacou, e foi destroçado.

Faria de Castro diz que o Rei sentiu essa ‘pequena desgraça’, mas foi compensado com um acto de bravura de 15 soldados e um alferes na Atalaia da Terrinha, que se defenderam contra 2000 infantes e 1000 cavaleiros de Castela, tendo-se perdido alguns e salvado outros após rendição.

No ‘Portugal Restaurado’, de 1751, a narrativa de Ericeira é ligeiramente mais desenvolvida. Os 15000 homens de Legañes eram em pormenor 12000 a pé e 3000 a cavalo, apoiados por dez peças de artilharia.

Fica aqui atestado que o episódio da Terrinha descrito em Faria de Castro, a ter os números por certos, contou então com nada menos que um sexto dos infantes! e a terça parte da cavalaria inimiga!, parcela essa a necessária para derrotar os tais 16 portugueses … As descrições dos cronistas fazem-nos concluir que Legañes, tendo dificuldades em combater pessoas, em alternativa virou-se para as estruturas, no caso os arcos da ponte de Olivença. Enfim, dados os devidos descontos, continuemos com Ericeira cuja descrição segue.

Foi a 25 de Outubro que o marquês espanhol saiu com os seus 15000 de Badajoz e chegou à vista da ponte da Ajuda, onde após dois dias de bombardeio, tomou o forte de Stº António e o pequeno castelo da ponte, e minou-lhe os arcos. Castelo Melhor resolveu mandar socorros a Olivença uma vez que pensava que Legañes a queria sitiar. No entanto desde que este se instalara na zona da ponte que toda a região ficava sob perigo de emboscadas. O terreno ondulado permitia que corpos de tropas de dimensão considerável se movimentassem e posicionassem nos fundos dos vales sem serem detectados, o que tornava muito arriscada a jornada de cerca de seis léguas entre Estremoz e Elvas pela tal estrada de visitas reais. A táctica recomendada para lidar com estas condições de terreno seria mandar batedores pelos cabeços a verificar a presença de tropas inimigas, avaliá-las e por conseguinte garantir a segurança do trajecto, fosse ou não dar-se-lhes combate.

Um corpo de 400 infantes (soldados a pé) da Comarca de Évora chefiados pelo Sargento-mor (sic) João da Fonseca Barreto sai de Estremoz e avista próximo à Venda da Alcaraviça 600 castelhanos a cavalo que tinham saído da ponte na noite anterior com a intenção precisa de praticar acções de emboscada na dita estrada, que sabiam crucial para comunicações entre as duas maiores praças da fronteira e para o abastecimento de Elvas.

Fonseca Barreto ou seria um soldado pouco experimentado e pusilânime, como insinua Ericeira, ou apenas alguém que num dia de pouca inspiração e mau conselho toma uma decisão errada. Ao invés de ocupar uma tapada de parapeito alto, uma das muitas que há na zona, e guarnecê-la, parece ter dado ordem de ataque ou de receber a carga em campo aberto. Fica para o segredo da história se foi como insinua Ericeira ou se Barreto terá sido por sua vez surpreendido e atacado tão rapidamente que nem teve tempo de se refugiar. O resultado foi uma carnificina em que pereceram quase todos os soldados de infantaria da Comarca que o acompanhavam. Ericeira também refere que ‘se’ ao menos Fonseca Barreto se fortificasse, e ‘se’ tivesse conseguido mandar mensageiros a D Rodrigo que vinha de Elvas para Vila Viçosa com 700 cavalos, ao que eu junto ‘se’ Barreto estivesse informado dessa deslocação, ‘se’ o mensageiro conseguisse vencer as duas léguas até encontrar D Rodrigo num ponto qualquer entre Elvas e Vila Viçosa que teria obviamente de adivinhar qual seria, ‘se’ D Rodrigo saísse imediatamente e conseguisse chegar a tempo, entre outros ‘ses’ (junte também o seu: agora, como na época em que Ericeira escreveu, pouca diferença faz).

Terá tudo isso ficado por aí? ‘Enterrar os mortos e cuidar dos vivos’, como sempre que se pôde se fez, bem antes de Pombal o ter glosado? Deixando os relatos históricos e passando aos documentos, alguns Decretos do Conselho da Guerra indicam que não. D João não deixou passar o evento em branco, e os textos adiante permitem esclarecer alguns pontos, revelar alguns detalhes relevantes e medir a justa importância do episódio considerado o mais relevante no quadro geral das operações do Outono desse ano.

(continua)

Imagens: Em cima, Orada (a antiga Venda de Alcaraviça) na actualidade. Fotografia extraída do programa Google Earth. Em baixo, reconstituição de um combate envolvendo tropas de infantaria, Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. de Freitas.

Postos do exército português (13) – o mestre de campo

Os mestres de campo ou são feitos por grande qualidade [fidalguia] ou por grandes serviços [desempenhados na guerra].

(carta de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, 22 de Agosto de 1644, in Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, publicadas e prefaciadas por P. M. Laranjo Coelho, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. II, pgs. 57-58).

O posto de mestre de campo tinha grande prestígio. Ao tempo da Guerra da Restauração existia também nos exércitos espanhol e francês. Encontrava-se apenas na infantaria e correspondia ao posto de coronel, designação que em épocas posteriores iria substituir por completo a de mestre de campo. Em rigor, havia coronéis no exército português em simultâneo com mestres de campo, pois por tradição as grandes unidades da ordenança de Lisboa eram designadas regimentos (e não terços, embora este nome surja de vez em quando nos documentos, um pequeno erro gerado pelo hábito).

De facto, atendendo ao que exigiam as regras militares, reflectidas no projecto de Ordenanças Militares de 1643, para se ascender ao posto de mestre de campo era necessário ter servido durante 12 anos em cenário de guerra, dos quais 4 no posto de capitão. Desta conformidade estavam isentas as pessoas de qualidade e nobreza, o que na prática significava que os terços podiam por ser entregues a elementos da fidalguia sem a necessária experiência militar. Sobre o sargento-mor recaía então uma responsabilidade maior.

De qualquer modo, se exceptuarmos os primeiros anos da guerra, esta situação foi relativamente rara. Houve fidalgos que se revelaram bons mestres de campo. Ao posto ascenderam também vários soldados de fortuna, com tirocínio feito nos escalões inferiores, vários deles estrangeiros. Isto no exército pago, pois nos auxiliares e na ordenança era frequente o sargento-mor ter de desempenhar o comando efectivo do terço, dado o absentismo dos mestres de campo, ou a sua inexperiência militar.

O mestre de campo dispunha de um cavalo, se bem que houvesse quem preferisse desmontar e munir-se de espada e rodela, combatendo a pé no calor da refrega.

Imagem: Combate de infantaria. Recriação histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor. Reorganizar o esquadrão de infantaria depois da confusão do choque era uma tarefa difícil, mesmo que se rompesse o contacto com alguma ordem. A maioria dos mestres de campo confiava na experiência dos seus sargentos-mores para esse fim.

Postos do exército português (12) – o sargento-mor

O sargento-mor era o segundo-comandante de um terço de infantaria. A designação do posto mudaria para major já no século XVIII, bem como as responsabilidades de comando. Na verdade, apesar de em alguns exércitos europeus – como o inglês, por exemplo – existir o posto de major, as atribuições daquele oficial eram então diferentes daquelas que viria a ter mais tarde, quando se tornaria comandante de um batalhão (e este passaria a ser uma sub-unidade do regimento). A respeito da evolução de sargento-mor para major, veja-se este artigo de Lagos Militar.

No período da Guerra da Restauração, o sargento-mor tinha funções muito técnicas, as quais já foram abordadas neste artigo. Vejamos o que dizia o projecto de Ordenanças Militares de 1643 a respeito deste posto:

Os cargos de sargentos-mores se hão-de prover em capitães de muita teórica, prática e valor, e quando se façam de terços já formados, se há-de procurar elegê-los dos mesmos capitães que neles houver; há-de ter dois ajudantes cada um, e ajudam aos mestres de campo imediatos a eles, no governo dos terços e a quem toca formá-los, receber as ordens e dá-las, e fazer que se observem todas as mais que devem guardar os oficiais e soldados de cada terço (…). (AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 62-63).

A necessidade de haver sargentos-mores experientes nos terços (experiência que podia faltar aos mestres de campo, ou por serem de recente promoção a partir de capitães de cavalos, ou por serem providos no posto devido à sua nobreza, mas sem conhecimento profundo da guerra viva) fazia com que a maioria destes oficiais fosse de origem plebeia. Eram chamados soldados de fortuna, isto é, profissionais das armas, e como tal podiam ser estrangeiros, ainda que súbditos do rei de Portugal. Alguns destacaram-se pela sua qualidade e competência, como os espanhóis Antonio Gallo (reformado em 1643, já idoso e com pouca saúde) e Antonio Sanchez del Pozo (que morreu em combate). Muitas vezes, os terços eram comandados pelos sargentos-mores, devido à ausência dos respectivos mestres de campo. Isto era mais frequene entre as forças milicianas de auxiliares e da ordenança.

É precisamente da obra Regimiento Militar de Antonio Gallo que se retira esta passagem:

El Sargento mayor traerà un baston de quatro palmos y medio, que es el terreno, que el soldado en escuadron ocupa de costado a costado, y le puede servir quando quisiere medir un terreno justo, y no es necessario que el baston tienga hierro, que no agravia al soldado, castigandole con el, que es su insignia. (pg. 28 v)

Já perto do final da Guerra da Restauração, um relatório inglês elogiava a competência e combatividade dos sargentos-mores portugueses. O elogio é de salientar, numa época em que a apreciação (ou depreciação) dos estrangeiros era condicionada por muitos preconceitos e algum desprezo.

Imagem: Infantaria em progressão. O controlo da formação no terreno era uma das tarefas do sargento-mor. Reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Postos do exército português (9) – o capitão de cavalaria

De todos os postos militares, aquele que maior peso tinha no imaginário seiscentista era o de capitão de cavalos. Associado aos valores herdados da nobreza medieval, do capitão de cavalos se esperava, no mínimo, que servisse com a honradez que os ancestrais pergaminhos exigiam. E por isso, a ideia de que o posto devia ser confiado apenas a pessoas de nobre nascimento ainda prevaleceu nas mentes mais conservadoras de alguns, pelo menos nos anos iniciais do conflito. A realidade, todavia, encarregar-se-ia de demonstrar que era preciso muito mais do que uma ascendência fidalga para encabeçar uma companhia de cavalos. A evolução dos modos de fazer a guerra não se compadecia com alguns arcaísmos que teimavam em subsistir. Mas num aspecto o mundo material não desenganava a concepção imaginada das qualidades do posto: os capitães de cavalos eram responsáveis pelas suas companhias ao ponto de garantirem, do seu próprio bolso, a aquisição e manutenção das montadas. A Coroa nunca conseguiu cumprir pontualmente as suas obrigações com os soldos e outras despesas necessárias à manutenção das companhias de cavaria. Isto explica, em parte, o grau de autonomia dos capitães de cavalos e a não introdução do sistema de regimentos no exército português (aliás, também não o havia no exército espanhol).

Em Portugal, as companhias de cavalos do exército pago ou das milícias da ordenança, auxiliares, pilhantes ou moradores eram sempre comandadas por capitães. Exceptuavam-se as companhias dos oficiais superiores, que na prática estavam a cargo dos respectivos tenentes. Havia, no entanto, uma distinção entre os capitães de couraças e os capitães de cavalos arcabuzeiros. As disputas quanto à primazia de uns sobre outros foram motivo para quezílias e mal-entendidos. Só em 1651 ficou assente que os capitães de couraças seriam considerados superiores, na hierarquia militar, aos de cavalos arcabuzeiros, pois até essa data valia a antiguidade das cartas de patente de cada um, o que causava ressentimentos entre os capitães de couraças, cujas companhias eram mais prestigiadas.

Mas o que seria de esperar de um capitão de cavalos? Alguém que passou pelo posto sem grande experiência prévia, nem brilhantismo no desempenho, apesar de possuir a qualidade da nobreza associada à condução de uma companhia, deixou assim escrito no seu esboço de tratado:

O posto de capitão de cavalos, por ser de tanta autoridade e reputação em Espanha, foi sempre pretendido e requisitado de Príncipes e Senhores grandes, em que ainda ordinariamente e assim se devia sempre de prover, não deixando contudo de fora aos soldados de nome e de merecimentos, entendendo-se que na guerra o valor se iguala à melhor nobreza, que só por si não basta para fazer a um capitão perfeito sem ser acompanhada com alguma prática e experiência das armas (…).

Pelo que o capitão que não tiver de guerra muita experiência procurará trazer junto a si algum bom oficial ou soldado velho de suficiência, para que faça menos faltas ou lhe encubra algumas (…).

(…) Os capitães são todos livres administradores de suas companhias e provêem os cargos delas como lhes parece absolutamente, como é tenente, alferes e os outros todos, podendo-os dispor e despedir na mesma forma, dando conta ao general ou ao seu lugar-tenente em sua ausência, que devem deixar aos capitães em sua liberdade, por ser esta a sua preeminência.

Uma visão que reflecte uma noção mais assente na realidade da guerra no terreno. Foi D. João de Azevedo de Ataíde que assim escreveu, a páginas 34 até 37 do seu tratado de cavalaria, entre os anos de 1644 e 1647.

Imagem: Oficiais de cavalaria. Pormenor do painel de azulejos relativo ao último combate da Guerra da Restauração na fronteira de Trás-os-Montes. “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira.

Postos do exército português (8) – o capitão de infantaria

O capitão de infantaria comandava uma companhia. A insígnia do seu posto era uma gineta, espontão rematado com borlas na parte superior da haste. Em combate, o capitão podia encarregar o seu pajem do transporte da gineta e armar-se com um pique, um mosquete ou (o que era mais vulgar) combater com espada e rodela. O posto de capitão de infantaria era considerado inferior ao de capitão de cavalos, todavia era um posto de grande consideração na hierarquia militar seiscentista. Sobre a maneira de prover os capitães das companhias, tanto das tropas pagas como das milicianas, esclarece o título 9 do projecto de Ordenanças Militares de 1643:

Para capitães das companhias de infantaria se elegerão alferes reformados e ajudantes, em que uns e outros hajam servido oito anos na guerra com praça assentada debaixo de bandeira, que tenham as partes necessárias para exercitarem com prática e experiência o muito que a cada um deles se oferece e encarrega cada hora que exercitar, e os que forem de mais serviços e aprovados merecimentos nas ocasiões para maiores riscos e empenhos, precederão para serem escolhidos (…).

Porém, como em muitas outras passagens das Ordenanças Militares de 1643, Joane Mendes de Vasconcelos discordou de pormenores do projecto. No caso dos capitães de infantaria, a proposta ia contra a prática assente e instituída de facto, pelo que o experiente cabo de guerra contrapôs:

Nos terços fazem vantagem aos alferes reformados e vivos [isto é, no activo] os que são actualmente da companhia do mestre de campo, porque como governam (de ordinário) a melhor companhia deles, têm maior capacidade a este respeito que os outros, escusa consultarem-se a segunda companhia, que vaga em seu tempo, como também nos esquadrões a segunda manga de bocas de fogo do corno direito se lhes entrega firme. [Note-se, na parte final deste comentário, a referência à disposição e comando táctico.]

Também se devem admitir os alferes vivos para capitães de infantaria, toca também ao alferes entrar em capitão quando em ocasião de peleja morre o capitão da companhia, achando-se o tal alferes na mesma ocasião e proceder nela conforme as suas obrigações, e em sua pessoa concorrem as partes e requisitos convenientes.

As observações de Joane Mendes de Vasconcelos foram todas dirigidas à promoção dos alferes ao posto de capitão nas companhias de infantaria, pois que as funções inerentes ao posto eram bastante claras e sabidas, nem sendo sequer focadas no projecto – excepto no que respeitava aos ditames de ordem comportamental e moral que o capitão devia seguir. Mas aí, a resposta de Mendes de Vasconcelos foi clara:

A repreensão dos vícios que contém este capítulo toca a todos os postos, e assim me parece que se devia encomendar em título particular a conta que hão-de ter os conselheiros e os generais e não proporem a Vossa Majestade para os cargos militares pessoas conhecidas perniciosas, com escândalo.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 55-56.

Imagem: Nesta foto de uma reconstituição histórica levada a cabo pela English Civil War Society, representando uma força de infantaria do New Model Army de Oliver Cromwell, é visível em primeiro plano, à direita, com gola de aço (protecção para o peito), um capitão carregando a gineta (sem borlas). Repare-se na diferença entre a gineta e as alabardas dos sargentos que marcham na primeira fileira da formação, mais atrás.

Postos do exército português (5) – o sargento

O posto de sargento só existia nos terços de infantaria do exército pago e nos terços milicianos de auxiliares e da ordenança (que em Lisboa tinham a designação tradicional de regimentos).

Sobre o sargento especificava o projecto de Ordenanças Militares de 1643 no título 24, aqui transcrito em português actual:

Os sargentos hão-de nomear os seus capitães [entenda-se: os capitães hão-de nomear os seus sargentos] de cabos de esquadra ou soldados, de partes, e valor, e que hajam servido na guerra quatro anos, e aprovados na mesma forma que os alferes; (…) e os ditos sargentos ajudam aos mesmos capitães, em todo o governo e meneio das companhias, e neles vem a consistir a maior parte da observância das ordens militares.

Ao que Joane Mendes de Vasconcelos respondeu nos seus comentários:

Os sargentos devem ser eleitos com os mesmos anos de serviços e considerações que se disse dos alferes sobre o seu título [quatro anos de guerra viva – ou seja, servindo em zonas de combate – ou seis debaixo de bandeira, mesmo sem participar em acções militares].

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 65.

Imagem: Armas de infantaria usadas pelos sargentos: na vertical, uma alabarda, arma pessoal e insígnia do posto. Vê-se também um capacete ou murrião (ambos os termos eram comuns na época e designavam qualquer tipo de protecção metálica para a cabeça), um peito de armas (peitoral, como se diria mais tarde) e um estoque. Foto do autor, Museu da Escola Prática de Infantaria, Mafra.

Organização do exército português (4) – Cavalaria: a estrutura das companhias

A companhia era a unidade administrativa básica da cavalaria portuguesa, quer para as forças pagas (exército profissional), quer para as milícias da ordenança, auxiliares, moradores e pilhantes ou amunicionados. Em 1661 houve uma proposta do Conde de Schomberg para que a cavalaria portuguesa passasse a adoptar o sistema regimental. Nada se concretizou devido às fortes resistências encontradas, entre outros motivos porque essa alteração implicaria a perda de prerrogativas sociomilitares dos capitães, muito arreigadas na tradição. O mais que se conseguiu, a partir de 1664, foi a introdução de troços, agrupamentos regulares de companhias sob o comando de um comissário geral. Na verdade, antes daquela data já existiam troços, visto que era a designação em uso para qualquer agrupamento de companhias, mas só depois assumiram um carácter normativo: oito companhias por troço, incluindo a do comissário geral. No entanto, não eram unidades permanentes, uma vez que só em período de campanha se formavam os troços.

O número de efectivos previstos por companhia do exército profissional variou muito ao longo da guerra. O máximo de 100 militares fixado no início do conflito desceu pouco tempo depois para 80, voltou aos 100, de novo aos 80, depois 60, outra vez 100 e regressou aos 80, tudo isto entre o início de 1641 e os finais de 1648. A influência do Conde de Schomberg levou à fixação de 65 militares por companhia, a partir de Novembro de 1661. Mas uma coisa era a força prevista no papel e outra a que realmente era possível apresentar no terreno. Deste modo, tanto era possível encontrar companhias com cerca de duas dezenas de cavalos, como outras, mais raras, com efectivos acima da centena! O mais vulgar, no entanto, era alinharem entre 30 e 60 cavalos. O efectivo teórico das companhias de auxiliares foi estabelecido em 50, logo no ano da criação daquela força miliciana montada (1650). A cavalaria da ordenança e as companhias de moradores e pilhantes não tinham um efectivo estipulado, embora fosse esperado que imitassem a dotação das forças pagas.

Qualquer que fosse o seu total de efectivos, uma companhia compunha-se de uma primeira plana com capitão, tenente, alferes (embora oficialmente não existissem nas companhias de arcabuzeiros a cavalo, muitas tinham-nos), furriel, capelão, dois trombetas, ferrador e um pagem por cada oficial. O restante efectivo era repartido em esquadras de 20 a 25 soldados, cada uma comandada por um cabo de esquadra. Esta organização era idêntica para o exército profissional e para todo o tipo de forças milicianas. No entanto, até nas forças pagas era difícil dotar as companhias de capelão e ferrador, e muitas só tinham um trombeta.

O capitão, cuja patente era atribuída por decreto régio, nomeava os restantes oficiais e os cabos de esquadra. No caso das companhias da ordenança, eram as câmaras que nomeavam ou elegiam os capitães. Os oficiais das companhias de auxiliares podiam provir das forças pagas, mas nesse caso recebiam um soldo mais reduzido. Pelo menos uma companhia de pilhantes chegou a ser comandada, no início da década de 50, por um oficial estrangeiro (francês) proveniente das forças pagas.

Imagem: Companhias portuguesas de cavalos arcabuzeiros, também designadas por arcabuzeiros a cavalo, carabinas, cravinas ou clavinas. Painel representativo da Batalha do Ameixial (1663), “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira. Foto do Comandante Augusto Salgado.

Organização do exército português (3) – os tipos de cavalaria

A maioria da cavalaria existente em Portugal durante a Guerra da Restauração era do tipo ligeiro, designada de diversos modos: arcabuzeiros a cavalo, cavalos arcabuzeiros, clavinas, cravinas ou carabinas. Era semelhante à cavalaria mais vulgarmente encontrada na Europa central e ocidental. Os militares estavam equipados ofensivamente com espada, um par de pistolas e uma carabina de fecho de pederneira (e nunca o arcabuz, se bem que a designação tenha sido herdada das origens quinhentistas, quando então, sim, o arcabuz de mecha era a arma utilizada). Defensivamente, usavam peito e espaldar de aço sobre um colete ou casaca de couro (ou só esta última protecção) e um capacete (este termo era utilizado na época, embora o nome mais vulgar fosse murrião), que frequentemente era substituído por um chapéu de aba larga.

A maioria das companhias do exército pago (profissional) era de cavalos arcabuzeiros; as unidades milicianas de auxiliares (criadas a partir de 1650) e da ordenança eram todas deste tipo. Uma hipotética excepção pode ter ocorrido no Reino do Algarve (designação tradicional da província mais meridional de Portugal) durante o primeiro ano da guerra, onde a cavalaria da ordenança poderá ter prolongado por algum tempo o uso de lança e adarga – como se usava ainda nas praças portuguesas do Norte de África -, equipamento registado num arrolamento de efectivos em 1639. Havia ainda companhias milicianas de moradores, cavalos pilhantes ou amunicionadas, que começaram a ser criadas em 1647 – antes dos auxiliares, mas contemporâneas da cavalaria da ordenança. A diferença entre estes cavalos arcabuzeiros milicianos e os restantes é que as suas unidades eram formadas voluntariamente, enquanto os efectivos para a ordenança e os auxiliares eram recrutados compulsoriamente.

A partir de Setembro de 1644, no seguimento da experiência colhida na batalha de Montijo, foi introduzido um outro tipo de cavalaria: os couraceiros (ou cavalos couraças). Estes existiam antes daquela data na designação honorífica no papel (havia companhias de couraceiros, mas sem qualquer diferença no equipamento em relação aos cavalos arcabuzeiros). O seu equipamento ofensivo era semelhante ao da cavalaria ligeira, excepto (em teoria, que na prática nem sempre foi assim) a carabina. O equipamento defensivo era mais completo, com celada (elmo fechado), peito e espaldar sobre colete de couro, guarda-rins, coxotes, braçais e manoplas, ou pelo menos uma manopla para a mão que segurava a rédea. Todavia, ainda na década de 40 os couraceiros foram aligeirando o seu equipamento defensivo, ao ponto de muitas companhias não se distinguirem dos cavalos arcabuzeiros, regressando assim às origens meramente honoríficas. Só existiam unidades de couraceiros no exército pago, pois eram consideradas tropas de elite – mas não se confunda com o conceito actual, pois mais do que à capacidade operacional da unidade, era sobretudo ao prestígio individual do comandante que se atendia na distinção.

Gravuras: Arcabuzeiro a Cavalo e Couraceiro, imagens extraídas do tratado militar de John Cruso, Militarie Instructions for the Cavall’rie, Kineton, The Roundwood Press, 1972 (fac-simile da edição de 1632; comentada e anotada pelo Brigadeiro Peter Young).

Organização do exército português (2) – Infantaria: o equipamento das companhias

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Além da organização em terços, a infantaria portuguesa também compreendia companhias independentes (soltas, como então se dizia). No exército profissional eram raras e normalmente de curta duração, acabando quase sempre absorvidas por um dos terços existentes. O mesmo sucedia entre a milícia de auxiliares. Já na milícia de ordenanças, a companhia era a estrutura básica de organização, pois os terços eram formados ad hoc, isto é, para uma operação ou uma campanha específica.

Em qualquer dos casos, a organização interna das companhias seguia o previsto no projecto de Ordenanças Militares de 1643 (já aqui referido), que por sua vez reflectia a prática existente nos exércitos português e espanhol. De um modo geral, a proporção entre os soldados atiradores equipados com mosquete (de mecha) ou arcabuz (também de mecha)  e os soldados armados de pique não se afastava muito do que o projecto de 1943 preconizava. Tudo dependia da escassez temporária de determinado tipo de armamento – sobretudo, das armas de fogo – mas, ainda assim, os desvios não eram muito significativos. Os registos de certidões de contas de armas existentes para o período 1647-1654 no Arquivo Histórico Militar mostram que havia, em média, equipamento ofensivo para 90 a 100 soldados por companhia, sendo que a proporção dos mosquetes oscilava entre os 33% (mínimo) e os 49,5% (máximo), a dos arcabuzes entre 20,2% e 32,5%, e a dos piques entre 30,3% e 34,5%.

As companhias da ordenança eram equipadas com arcabuzes e piques, numa proporção de 2 para 1. Mas era possível encontrar companhias totalmente equipadas com arcabuzes. Sendo o mosquete mais pesado do que o arcabuz (e também com maior alcance efectivo, e mais potente), esta arma de fogo era encaminhada preferencialmente para as companhias de tropas pagas.

O equipamento defensivo referido nos registos mostra que o uso de cossoletes compostos por peito e espaldar (ou espaldas, como se dizia na época) era uma raridade entre a infantaria. Só os oficiais e os piqueiros tinham direito a este tipo de protecção, mas as proporções são baixíssimas em relação ao armamento ofensivo existente em cada companhia. Os peitos e espaldares variam entre 0,4% (mínimo) e 7,6% (máximo), os morriões entre 0,4% e 8,3% (e este máximo só é atingido em 1647, sendo cada vez mais escassos nos anos posteriores), as rodelas (escudos redondos utilizados pelos capitães) entre 0,2% e 0,4% e as golas (gorgeiras) entre 0,1% e 0,3%. No caso das rodelas e das golas, o uso exclusivo destas pela oficialidade justifica o reduzido número encontrado nas listas, mas ainda assim eram muito raras. Os capitães podiam optar por combater com pique ou com espada e rodela, ou com mosquete ou arcabuz, se assim preferissem.

O abandono de qualquer protecção metálica para o corpo era uma tendência evidente na infantaria. O Conde da Ericeira refere que cerca de 3.000 cossoletes de infantaria foram adaptados para couraças da cavalaria em 1663, por já não serem usados pelos infantes [História de Portugal Restaurado, 1945-46, vol. IV, pg. 101]. Por outro lado, o uso de couras (coletes ou casacas de couro) pela infantaria dependia da capacidade de cada militar se abastecer – por exemplo, despindo os mortos, feridos e prisioneiros inimigos, principalmente os cavaleiros e os oficiais. Não existe qualquer referência a este tipo de protecção nos registos, pois não era fornecida aos militares por conta da fazenda real.

Outro material que era fornecido e que constava nos registos eram as forquilhas (apoio para os mosquetes), os frascos (polvorinhos) e as bândolas (bandoleira de onde pendiam frasquinhos de madeira contendo o cartucho com a bala e a pólvora necessária para um tiro; normalmente cada bandoleira tinha 12 frasquinhos, daí serem conhecidas em Inglaterra por “doze apóstolos”). Havia forquilhas para mais de metade dos mosquetes, na maior parte dos casos; os frascos chegavam para cerca de 2/3 dos atiradores (os restantes teriam de providenciar os seus próprios polvorinhos ou utilizar o de um camarada, provavelmente); já as bândolas eram mais raras, na maior parte dos casos nem a terça parte dos atiradores as usavam.

Cada companhia tinha uma bandeira e duas caixas de guerra (tambores), mas algumas companhias só dispunham de uma caixa de guerra.

Os vestidos de munição (casaca, camisa, calças e meias), bem como chapéus e sapatos, eram entregues aos soldados uma vez por ano, contra desconto no soldo. Era à vedoria geral do exército de cada província que cabia esta tarefa. As espadas também eram entregues aos soldados pela vedoria, não sendo contabilizadas nos registos das companhias.

A companhia era uma unidade administrativa, não uma unidade táctica. Devido à composição heterogénea das companhias, estas eram desarticuladas quando os terços formavam em esquadrão (formação táctica, também designada por batalhão). Este assunto será tratado em breve.

 Fotos do autor (não mostram forças portuguesas ou espanholas, mas sim tropas inglesas do New Model Army; todavia, o equipamento era muito semelhante em qualquer exército da época): em cima, em primeiro plano, soldados atiradores transportando ao ombro um tipo mais leve de mosquete, o qual dispensava forquilha;  note-se o polvorinho, as bandoleiras com os “doze apóstolos” e a variedade de mochilas (o termo era empregue na época para designar os sacos de lona usados a tiracolo) e bornais, bem como o modo de segurar a mecha (segundo soldado a contar da esquerda); em baixo, piqueiros em marcha, protegidos por cossoletes sem escarcelas e usando morriões; vê-se ainda um sargento com alabarda a fechar a coluna e, mais atrás, um oficial (provavelmente um capitão); ambos usam golas. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa (conflito contemporâneo da primeira década da Guerra da Restauração),  levada a cabo em Kellmarsh Hall em Agosto de 2007.

Categorias militares do exército português

Piqueiro

O exército português reconstruído após o rompimento da monarquia dual em 1640 compreendia duas categorias militares:

a) Os militares pagos. Estando sujeitos a prestação de serviço militar todos os homens válidos do reino entre os 15 e os 60 anos, salvo isenção relacionada com a actividade profissional ou outra particular, eram recrutados como soldados pagos para o exército profissional os filhos segundos ou aqueles que não tivessem a seu cargo quaisquer dependentes. Inicialmente eram chamados apenas os homens solteiros, mas ainda na década de 40 começaram a ser admitidos os casados. As levas eram efectuadas de tempos a tempos, quase sempre por pessoas de categoria elevada na hierarquia sociomilitar, sendo os abusos e desrespeito pela legislação frequentes. Os soldados pagos começaram por servir por um período indeterminado (na prática, para sempre), mas a partir de 1654 ficou estabelecido que deviam servir continuamente durante 8 anos, findos os quais poderiam regressar a suas casas. Nos anos 40 e primeira metade da década de 50, entre os militares que constituíam as forças pagas contavam-se muitos veteranos das guerras no Império ultramarino português, com destaque para o Brasil, ou que haviam servido nas campanhas europeias integrados no exército espanhol ou no dos seus aliados do Sacro Império.

b) Os milicianos, categoria que compreendia a ordenança e os auxiliares. Esta segunda força miliciana foi constituída em 1646 para a infantaria e somente em 1650 para a cavalaria. Na ordenança eram obrigatoriamente alistados todos os homens válidos entre os 15 e os 60 anos que não fossem recrutáveis como soldados pagos, sendo organizados em companhias (uma ou mais companhias de infantaria por comarca, havendo também algumas de cavalaria). Parte da gente da ordenança passou a servir nos auxiliares quando esta força foi criada (um terço e uma companhia de cavalaria em cada comarca). Em teoria, apenas os milicianos  auxiliares deviam prestar serviço nas fronteiras de guerra, pois para isso tinham privilégios semelhantes aos dos soldados pagos. A partir de 1657 passaram a receber metade do soldo que se pagava áqueles, quando partiam em campanha. Todavia, não era raro encontrar unidades da ordenança empregues em guerra viva, mesmo depois de 1646 e até fora da província de origem. Havia ainda uma subcategoria da ordenança, a dos volantes, que era composta por gente escolhida e que se destinava a formar unidades itinerantes. Com o surgimento dos auxiliares, estas unidades tornaram-se mais raras.

 Foto: piqueiro português do início da guerra, armado com pique e protegido por couraça composta por peito, espaldar e escarcelas, além do característico morrião. Apenas uma pequena parte dos piqueiros usava este equipamento defensivo. Os restantes não tinham qualquer tipo de protecção para o corpo, sendo designados por piques secos. Figurino do Museu Militar de Elvas.