14 de Janeiro de 1659 – Batalha das Linhas de Elvas e morte de André de Albuquerque Ribafria

“[…] Amanheceu terça-feira, catorze de Janeiro do ano de mil seiscentos e cinquenta e nove, dia tão fausto à Nação Portuguesa, que até a si mesmo se fez feliz, por ser de séculos imemoráveis erradamente julgado por infausto; tomando a maior parte deste agoiro a família dos Meneses, de que era cabeça o Conde de Cantanhede, que conseguiu mais uma vitória na resolução de desvanecer esta superstição gentílica. […] [p. 215]

[…] E como em todo o decurso da sua vida não tolerou André de Albuquerque que os seus soldados voltassem as costas aos inimigos, arrojou o cavalo ao centro do esquadrão, exortou aos que se retiravam, e persuadindo-os a que voltassem as caras, os levou junto da estacada do forte, e tocando nas estacas com a bengala, os advertiu como haviam de arrancá-las; obedeceram os soldados, emendendando o erro antecedente. Acertou uma bala tirada do forte a André de Albuquerque, entrando por entre o extremo do braço direito e o princípio das armas [ou seja, da armadura, que consistia numa couraça completa para o tronco: corselete e braçais. A bala penetrou pela extremidade desprotegida, o que leva a crer que André de Albuquerque Ribafria usava apenas luvas de couro, na melhor das hipóteses, e não uma manopla de ferro a proteger todo o antebraço e mão] com efeito tão mortal que infelizmente caiu morto em terra […]. [p. 224]

[…] O Conde de Cantanhede, no dia seguinte ao que ganhou a batalha [quarta-feira, 15 de Janeiro], deu ordem à sepultura do corpo de André de Albuquerque com todas as fúnebres demonstrações militares, que merecia a memória de um varão de tão excelentes virtudes. Foi enterrado no Mosteiro de S. Francisco. [p. 232]

Fonte: D. Luís de Meneses, História de Portugal Restaurado, Parte II, Tomo III, Lisboa, 1751.

Imagem: Padrão comemorativo da Batalha das Linhas de Elvas. Foto de JPF.

Lugares da Galiza rendidos a Portugal em Dezembro de 1667

Quase no final da Guerra da Restauração, na fronteira da província de Trás-os-Montes, uma sucessão de acções de guerra ofensiva por parte do exército português levou o receio aos moradores de muitas localidades da Galiza. Em consequência, os moradores de mais de 100 dessas localidades renderam-se a Portugal – ou, mais correctamente, foram coagidos a submeter-se às exigências do exército de Trás-os-Montes, permanecendo nas suas casas e terras, mas entregando uma parte de bens e haveres aos portugueses. Uma forma de estabelecer o modus vivendi em zonas de conflito muito comum, por exemplo, durante a Guerra dos 30 Anos.

A primeira incursão foi conduzida pelo sargento-mor de batalha Francisco de Távora, irmão do governador das armas de Trás-os-Montes, D. Luís Álvares de Távora, Conde de São João da Pesqueira (futuro 1.º Marquês de Távora, título que receberia em 1669). Estando o governador das armas ausente da província, mas com ordem dada para que o seu irmão avançasse com a operação, entrou Francisco de Távora 11 léguas Galiza adentro (cerca de 60 Km) até ao Vale de Lobeira, com 400 cavalos às ordens do tenente-general D. Miguel da Silveira e 500 infantes comandados pelo sargento-mor Luís de Barros Gavião. Por serem as povoações daquele vale riquíssimas (a expressão é do próprio sargento-mor de batalha, em carta enviada ao Conselho de Guerra), se trouxe dali presa e saque considerável. Seguiu-se uma segunda incursão, comandada pelo mestre de campo Duarte Ferreira Chaves, e uma terceira, a cargo do comissário geral da cavalaria João de Almada de Melo, ambas com bom sucesso.

Na carta enviada ao Conselho de Guerra por Francisco de Távora são descritos os motivos e os pormenores da incursão, bem como a listagem das localidades que se submeteram a Portugal.

Entendendo o Conde meu Irmão, Governador das Armas desta Província, que destruindo o país de Galiza não só segurava estas raias, mas sustentando as nossas tropas impossibilitava também aos inimigos, porque do dano que experimentavam aqueles moradores resultava à sua cavalaria a perda dos quartéis a falta dos mantimentos, procurou e conseguiu todo este ano que assim se executasse. E vendo os Galegos que se achavam forçados, ou a largar a pátria ou a viver debaixo de nosso consentimento, quiseram e escolheram comprar a assistência de suas casas a troco de seus cabedais, e assim se reduziram todos os lugares que contém o papel que envio a Vossa Majestade, a pagar uma contribuição (que se agora não é tamanha), tendo por certo que assim que se contarem os anos crescerá a quantia. Seguindo pois, Senhor, a máxima do Conde por lograr o mesmo fim, me resolvi sábado, que foram 10 do mês (tendo estas armas a meu cargo) a entrar (com quatrocentos cavalos mandados pelo tenente-general Dom Miguel da Silveira, e quinhentos mosqueteiros que governava o sargento-mor Luís de Barros Gavião) no Vale de Lobeira, onze léguas pelo interior, composto de dezanove riquíssimas e grandes povoações, aonde nunca haviam chegado os nossos soldados, e de que tiraram boa presa e grande saco. O mestre de campo Duarte Teixeira Chaves e o comissário geral João de Almada de Melo, a quem por diversas partes mandei fazer segunda e terceira invasão, tiveram a mesma felicidade, obrando-se tudo sem a menor resistência, como sucederá sempre que com o nome de Vossa Majestade intentemos outras empresas.

Guarde Deus a muito alta e poderosa Pessoa de Vossa Majestade […].

Chaves, 13 de Dezembro de 1667.

Segue-se uma extensa lista com os nomes das 112 localidades, alguns dos quais de difícil percepção devido à caligrafia:

Feris de Lima

Vila Maior de Gironda

São Milhão

Medeiros

São Cristóvão

Santa Vaia

Mandim

Valtar

Ninho d’Águia

Vila Maior da Boa Hora

São Paio da Badis

São Lourenço de Tozende

Sanenago

Rubias

São João

Mendim

Santiago de Baixo

Requiones

Vilar d’Alhos

Pedroza

Bouço

Graveliz

Lijões

Gumanriz

Eixames

Godem

Tamagelos

Tamangos

Alourazes

Mar

Tourem

Olmbra

Rozal

Bouzeins

Moinhos

Salcharens

Nogueira

Prado

Gomar

São Fernando

Prado Novo

Huetras

Larosa

Pijeires

Pijeiros

Pereiro

Sabuzedo

Parada

Covelos

Moreiros

Vilar de Lebres

Moimenta

Lobos

Tresmores

Coaledo

Vilaça

Ataes

Pivadaz

Nuzelos

Vilar de Servos

Herreros

a Madonelha

Sendim

São Martinho

Lubença

Asezedo

Carçosa

Vila de Rey

Soutelo

Santo António

Santo Antoninho

Alvaredos

Ababidis

Pinheira

Infesta

Santa Valha da Lima

Chamuzinhos

Pardieiros

Lovanzes

Soutelo da Limia

São Pedro da Limia

Rebordachã

Somis

Satharis

Lodozelo

Freixo

Pambre

Suzedo da Pena

Escarnabois

Coais

Souto Chão

Cherrande

Arsolá

Crastelo de Baixo

São Vicente

Dona Elvira

Vergunda

Riós

Vilarinho da Toussa

A Barreira

Vilar de Flor

Tameirão

Crastelos de Moterrey

Passos

Gueiçães

Covas

Fiães

Arsadagues

Salharinz

São Salvador

Barria

Covis

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1668, mç. 28, consulta de 11 de Janeiro de 1668.

Imagens: Castelo de Chaves, na actualidade; e retrato do governador das armas de Trás-os-Montes em 1667, o Conde de São João da Pesqueira, D. Luís Álvares de Távora.

Um “regresso” a Alcântara

Há cerca de oito anos foi publicado um artigo em duas partes, sobre a tentativa de tomada de Alcântara (Alcántara, em castelhano) pelas forças comandadas por D. Sancho Manuel de Vilhena, que viria a ser Conde de Vila Flor. A tentativa foi gorada, mas o assalto à ponte romana de Alcântara e a destruição parcial de um dos arcos da mesma foi descrita por fontes portuguesas e espanholas. Os combates tiveram lugar nos dias 25 e 26 de Março de 1648 (clique nas datas para aceder aos respectivos artigos).

Trezentos e setenta anos decorridos sobre a investida portuguesa, o aspecto da ponte e dos lugares onde decorreram os combates, observados a partir da margem onde se situa Alcântara, são apresentados nas fotos acima. A ponte seria parcialmente destruída – e mais tarde reconstruída – em outras duas ocasiões: na Guerra da Sucessão de Espanha e durante as Invasões Francesas, que a historiografia espanhola denomina Guerra da Independência.

Fotos do autor do artigo.

A tentativa de tomada de Badajoz pelo 2º Conde de Castelo Melhor, segundo uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama (1645) – 2ª parte

Conclui-se aqui a transcrição da carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama:

Eu levava à minha conta pôr o petardo principal,e o efeito dele devia ser sinal para se investir pelas outras partes. E com estes fundamentos, que pareceram bastantes para se intentar a facção, deu o Conde de Castelo Melhor conta a Sua Majestade e lhe perguntou se queria que se obrasse. Sua Majestade respondeu que sim, escrevendo uma carta ao Conde e pondo quatro regras de sua mão. Dizia que tomando-se a cidade, ele partia logo de Lisboa com todo o socorro possível, e que da Beira, Trás-os-Montes, Entre-Douro-e-Minho e Algarve mandava vir gente paga, para que de tudo se formasse um exército capaz de defender Badajoz e fortificá-lo, e que por todo o Reino mandava fazer orações para o bom sucesso da jornada. Com a resolução de Sua Majestade se preveniu tudo para o último de Julho marcharmos, e ao amanhecer dar em Badajoz. Mandou-se ordem à gente de Olivença e à de Campo Maior, para que se ajuntasse em Telena, que [é] légua e meia desta praça e duas de Badajoz pelo caminho por onde íamos. Começámos a marchar desta praça para Telena e três peças de artilharia que levávamos, e outras carroças com ferramentas e as escadas, quebraram tantas vezes, que com as consertarem e passagem do rio, chegámos a Telena uma hora antemanhã [isto é, antes do amanhecer], e não poderíamos chegar a Badajoz senão com duas ou três de dia, e como a ordem de Sua Majestade era chegando de dia não acometêssemos a praça, nos retirámos cada um para a praça donde tinha saído. E Dom Rodrigo de Castro foi com a cavalaria a correr o campo de Xerez de los Caballeros, donde trouxe novecentas vacas.

Este é pontualmente o sucesso da jornada de Badajoz. os motivos com que se intentou e os defeitos por que se não executou. Os castelhanos não tiveram notícia nenhuma de nossa jornada, nem souberam que havíamos marchado senão a dois de Agosto, que acaso vieram a Telena e viram a trilha da gente que ali havia estado.Todos os que têm vindo de Badajoz depois disto, assim castelhanos como portugueses, dizem que tomávamos a praça sem dúvida nenhuma, e isto mesmo disse Jorge de Melo e Dom Diogo de Meneses e o Conde de Santa Cruz. Queira Deus termos guardado esta empresa para melhor ocasião. Os castelhanos depois disto têm crescido a infantaria, e têm seis mil homens e dois mil e quinhentos cavalos, e a nossa cavalaria consta só de mil e cento, com que nos levam uma grande vantagem.

Haverá sete dias que o capitão de cavalos Francisco Barreto, filho natural de Francisco Barreto, único filho do morgado de Quarteira, que estava alojado com a sua companhia em Arronches, fez uma emboscada a uma companhia de infantaria que de Albuquerque vem todos os meses mudar o presídio da Codiceira, e deu nela de repente e matou trinta castelhanos e trouxe dezanove prisioneiros com as armas de todos, e as cavalgaduras em que traziam a bagagem. Eles se quiseram vingar e nos vieram aqui armar uma emboscada da outra parte de Guadiana, ainda na sua terra, e mandaram vinte cavalos que viessem tomar o gado. A nossa companhia de cavalos que estava de guarda no campo mandou alguns atrás deles, os quais, contra a ordem que levavam, passaram o rio. O inimigo, em nos vendo da outra parte, carregou sobre eles, e como levavam os cavalos cansados de correr tanto, não se puderam livrar todos, e ficaram prisioneiros doze e o tenente de  Dom Vasco Coutinho. Ficaram mortos dois. E quando fomos saindo desta cidade, se foi o inimigo retirando logo.

De Olivença saíram oito soldados de cavalo a tomar língua, e encontrando-se com trinta soldados que iam para Badajoz de uma leva, os prenderam e trouxeram todos a Olivença.

Isto é o que por cá há estes dias, e do mais que houver avisarei a Vossa Mercê. A Relação da Índia folgarei muito de ver, ainda que é grande o mal que ali nos têm feito os holandeses.

Ao senhor Chantre beijo as mãos e a Vossa Majestade Deus guarde como desejo. Elvas, 12 de Setembro de 1645. João de Saldanha

A propósito de Francisco Barreto de Meneses, que João de Saldanha refere na parte final da sua carta, assinale-se o estudo de José Gerardo Barbosa Pereira, A Restauração de Portugal e do Brasil. A Figura de Francisco Barreto (ou Francisco Barreto de Menezes), texto policopiado, dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2001. Francisco Barreto partiria para o Brasil em 1647 e aí viria a comandar o exército que derrotou os holandeses nas duas batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), o que lhe valeu o epíteto de “Restaurador de Pernambuco”. Em Portugal, a sua participação na Guerra da Restauração decorreu no Alentejo e na Beira, como capitão de infantaria do terço do mestre de campo David Caley, tendo demonstrado valor para ser promovido a capitão de cavalaria em 13 de Abril de 1644 e posteriormente a mestre de campo. Distinguiu-se especialmente no ataque à praça de Valença de Alcântara onde recebeu vários ferimentos em combate.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Interpreza intentada contra Badajoz a 31 de Julho”, fls. 36-37 v.

Imagem:”Cerco de uma cidade”, óleo de Peter Snayers.

A tentativa de tomada de Badajoz pelo 2º Conde de Castelo Melhor, segundo uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama (1645) – 1ª parte

A fracassada tentativa de João de Vasconcelos e Sousa, 2º Conde de Castelo Melhor e governador das armas do Alentejo, de tomar Badajoz em 1645, é um episódio bem conhecido da Guerra da Restauração. Além da narrativa do Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado, outros documentos impressos, nomeadamente as Cartas dos Governadores da Província do Alentejo… publicadas em 1940 por P. M. Laranjo Coelho, se referem a esse empreendimento bélico frustrado (ou sabotado pelos inimigos internos do Conde) ainda na fase de aproximação ao objectivo – mais por malícia, que por descuido, segundo escreveu o Conde de Ericeira. Também o soldado Mateus Rodrigues se refere, nas suas memórias, à incompleta campanha do desafortunado Conde, na qual participou.

Uma outra descrição da operação manteve-se até agora inédita. Trata-se de uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama, comandante de um terço de infantaria, escrita ao chantre da Sé de Évora, Manuel Severim de Faria – não é referido o nome do destinatário na carta, mas o contexto dos restantes manuscritos permite identificá-lo, com razoável certeza. Uma cópia (treslado, na designação comum do período) da carta encontra-se na Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, que em boa hora o prezado amigo Julián García Blanco me fez chegar às mãos. É essa carta que aqui se apresenta, modernizada na grafia, e que por ser algo extensa ocupará dois artigos.

Beijo a mão a Vossa Mercê pela mercê que me faz nesta sua carta, pois além do interesse que tenho de boas novas suas, me mostra o caminho de as procurar, o que farei sempre como tão interessado nelas, e com a certeza deste portador não se perderão as cartas, como devia suceder à que escrevi a Vossa Mercê sobre Badajoz, pois não chegou às suas mãos, e assim torno a referir a Vossa Mercê os motivos que houve para se intentar a jornada. Badajoz é uma praça de grande circuito, tinha quatrocentos soldados pagos e os moradores da cidade faziam as guardas das portas e as sentinelas da muralha, os quais ordinariamente as não fazem com o cuidado necessário. Havia mais quatrocentos cavalos. O Marquês de Leganés estava doente. As portas da cidade eram direitas, e só com uma porta singela e sem rastilho, todas eram nove, quatro grandes e cinco pequenas que caíam para a parte do rio. A muralha toda sem flancos e pela parte por onde havíamos de cometer muito baixo. Dentro nela grande quantidade de moradores portugueses, e muitas mulheres e gente inútil. Todas estas coisas, e o desunido e segurança com que estava o inimigo ajudavam a se poder conseguir a entrepresa. As notícias de tudo isto se souberam por diferentes pessoas, línguas que se tomaram, prisioneiros que vieram, um português que ali vivia há muitos anos, que se passou para nós e um capitão castelhano, que por uma morte que lá fez se veio também a esta praça. E para maior segurança de tudo, foi daqui um sargento nosso feito almocreve a reconhecer tudo muito bem, e também um criado meu entrou lá do mesmo modo, e reconheceu as portas e o corpo da guarda, e fez as plantas de tudo. Também um engenheiro francês que ficou prisioneiro na batalha de Montijo, esteve prisioneiro sete meses sem saberem que era engenheiro, nos deu notícia de tudo. Nós tínhamos seis mil homens nestas três praças de Elvas, Olivença e Campo Maior, e mil cavalos que se podiam ajuntar com grande segredo, como se fez. Havíamos de cometer por três partes, com o grosso da gente por duas partes com os petardos, e pela muralha baixa com as esquadras; e pelas outras cinco partes da muralha se haviam de tocar armas mui rijas, para que não soubessem os de dentro por que parte lhe haviam de entrar. E como eram tão poucos, não podiam guarnecer as muralhas, ainda estando todos prevenidos, e quanto mais tomando-os nós nas camas sem sermos sentidos.

(continua)

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Interpreza intentada contra Badajoz a 31 de Julho”, fls. 36-37 v.

Imagem: Porta de Palmas, em Badajoz. Foi provavelmente por esta porta que passaram os espiões disfarçados de almocreves, a fazer o reconhecimento para a intentada operação de tomada da cidade. Fotografia retirada do blog Puertas de Badajoz, de Julián García Blanco.

Ainda a emboscada na Atalaia da Terrinha em Março de 1646

Na série relativa à campanha de Telena, foi aqui apresentado o incidente que, de certo modo, serviu de prólogo à campanha: uma emboscada sofrida pela cavalaria portuguesa às ordens do comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde. a qual foi descrita, em pormenor, por Mateus Rodrigues nas suas memórias, e também referida pelo Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado. Contudo, tal como em outras partes da narrativa do soldado de cavalos, escrita oito anos depois deste particular incidente, há pequenos detalhes que apresentam alguma inexactidão.

No caso vertente, foi referido por Mateus Rodrigues que um seu camarada de armas, da companhia onde servia (a do próprio comissário geral), um tal Gaspar Rodrigues, soldado veterano de Elvas, fora morto a sangue frio pelos seus captores. Tal pode ter acontecido, de facto, mas o certo é que não aparece nenhuma indicação na breve nota manuscrita por D. João de Azevedo e Ataíde, que se encontra anexa a uma carta de Joane Mendes de Vasconcelos a propósito do incidente, e esta inclusa numa consulta do Conselho de Guerra. Do mesmo modo, Mateus Rodrigues parece ter inflacionado o número de cavalos levados pelo inimigo (60); segundo a nota de D. João de Ataíde, terão sido 21, ou seja, cerca de um terço do sugerido pelo seu subordinado. No entanto, em tudo o mais há consonância entre as várias fontes documentais, de origens diversas, que ao incidente se reportam.

Transcritos para português moderno, aqui ficam o texto da consulta, a decisão régia e a nota do comissário geral a propósito do desaire de Março de 1646 na Atalaia da Terrinha.

Na carta inclusa dá conta a Vossa Majestade Joane Mendes de Vasconcelos, mestre de campo general do Exército e Província de Alentejo, de como na madrugada de 20 deste mês teve aviso que haviam entrado alguns cavalos do inimigo nos nossos campos. E mandando sair com a cavalaria que se achava naquela praça, ao comissário geral Dom João de Ataíde, que chegou até à Terrinha, e ali deixou misturar com as suas tropas as do inimigo, que estavam de emboscada nas barrancas de Caia para a parte de Telena, onde perdemos os cavalos e soldados da memória que juntamente vai com a carta, examinada com todo o cuidado e diligência, e diz que a perda não é grande, mas é coisa muito considerável a falta de ânimo e disciplina com que obra a nossa cavalaria em algumas ocasiões, e estas, e maiores desordens haverá enquanto Vossa Majestade for servido que ela esteja no estado em que se acha de presente.

Ao Conselho pareceu dar conta a Vossa Majestade do que avisa o mestre de campo general acerca deste sucesso, para que seja presente a Vossa Majestade. Lembrando de novo a Vossa Majestade quanto convém a seu Real serviço não dilatar mais nomear generais da Cavalaria e Artilharia para o Exército de Alentejo, pelos inconvenientes que do conteúdo resulta.

Lisboa, 28 de Março de 1646.

[Resolução régia]

Nomeio para governador da cavalaria do exército de Alentejo a Dom Rodrigo de Castro, e para tenente-general dela a Dom João Mascarenhas [ilegível, tinta apagada devido à humidade – mas pode ser: e assim se dê] logo a cada um deles [ilegível, tinta apagada devido à humidade] lhe despachos com toda a brevidade. Lisboa, a 13 de Abril de 1646.

E vencerá Dom Rodrigo o mesmo soldo de general.

[Nota anexa de D. João de Ataíde]

Cavalos e soldados que faltaram na ocasião da Terrinha.

Da companhia do comissário geral faltaram soldados quatro.

Cavalos, entre mortos e que levaram o inimigo, sete.

Da companhia do capitão Gil Vaz, soldados dez.

Mais dez cavalos destes soldados, que ficaram desmontados.

Do regimento de Jaco[b] Nolano [irlandês].

Um cavalo.

Companhia de António de Saldanha.

Os que faltam dará rol à parte deste.

Quatro soldados cativos e trombeta, mais três cavalos de soldados que vieram desmontados.

Destes homens há sete feridos e nenhum morto [refere-se ao total de perdas].

Dom João de Ataíde

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1646, maço 6, consulta de 28 de Março de 1646.

Imagem: Couraça e capacete de cavalaria, séc. XVII. Museu Militar de Estocolmo. Fotografia de JPF.

A destruição parcial da ponte de São Felizes, 20 a 23 de Fevereiro de 1646, e outras operações na província da Beira

Depois de um interregno superior a um mês, o mais longo desde que iniciei o blogue, aqui regresso com um par de testemunhos da pequena guerra de fronteira, ambos aludindo a um acontecimento menor, mas de muita importância para a vivência das populações da raia. Trata-se do assalto e destruição parcial da ponte de São Felizes, um cenário do teatro de operações da província da Beira.

O episódio não mereceu mais do que duas linhas ao Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado, tendo certamente consultado para o efeito a breve notícia inserida na Relaçam geral de tvdo o svccedido nas fronteiras de Portugal o mes de Julho, & Agosto, com a tomada da Codiceira, & da Põte de Saõ Felizes na Beira, Em Lisboa, Na Officina de Domingos Lopes Rosa, Anno 1646. Este ano de 1646, em termos de operações bélicas, foi dominado pela última grande campanha ofensiva em vida de D. João IV, a partir do Alentejo, que culminaria nos combates de Codiceira e Telena. Todos os recursos materiais e financeiros foram mobilizados para aquela província, de modo que as restantes ficaram reduzidas ao preparo defensivo e às limitadas actividades da pequena guerra, que de resto caracterizariam o conflito nos dez anos seguintes. Há, no entanto, outras fontes que apresentam mais pormenores sobre este obscuro acontecimento.

A cópia de um manuscrito que em boa hora o amigo Julián García Blanco – a quem eu renovo os meus agradecimentos – me fez chegar às mãos, pertencente ao espólio da Biblioteca Nacional de Madrid, inclui duas cartas (na verdade, cópias coevas das cartas originais, para registo de arquivo, à semelhança das que se podem encontrar nos Livros de Registo da Secretaria de Guerra, em Lisboa) onde é feita menção à operação. A primeira delas, sem data, mas com o registo à margem de Fevereiro de 1646, foi enviada pelo Conde Marechal (D. Francisco de Mascarenhas, Conde de Serém e governador das armas) ao Rei. A outra carta não reporta em primeira mão, tendo sido escrita em Lisboa em 7 de Março de 1646 pelo padre António de Amaral, mas refere no seu conteúdo o que o doutor António Cabral de Castelo Branco, morador em Celorico, escreveu ao padre sobre o assalto à ponte de São Felizes. Dado o interesse de ambos os documentos, passo a transcrevê-los, vertendo-os para português corrente para melhor entendimento.

Cópia da carta para Sua Majestade, do Conde Marechal, sobre a Ponte de São Felizes

Em 20 do corrente mandei intentar a entrepresa da ponte de São Felizes, conforme a ordem de Vossa Majestade. Encarreguei esta facção ao sargento-mor Agostinho de Andrade Freire, soldado de mui boa satisfação. Levou a seu cargo 600 infantes e três companhias de cavalos, e com o favor de Deus se investiu com a ponte somente pela parte deste Reino, por se não poder vadear o rio. Avançou a nossa gente a uma torre forte que havia no meio da ponte, se ganhou com facilidade, logo se passou a gente necessária à parte de Castela [para] ocupar uma colina, posto muito importante para se trabalhar com seguridade, e para impedir o dano que por aquela parte o inimigo nos podia fazer. Julgou-se por tempo necessário um dia para se derrubar a ponte, e não se pôde conseguir em menos de três dias pela grandeza e fortaleza de sua fábrica, desta detença se resultou grande glória, com grande reputação às armas de Vossa Majestade.

O inimigo juntou tudo quanto pôde nestes dias e não ousou acometer a nossa gente, por termos postos avantajados e retirada segura, e só usou de tocar arma de noite em Almeida, entendendo se disparasse a artilharia com que se divertisse a nossa gente [ou seja, procurou fazer soar o alarme para que os portugueses retirassem da ponte e fossem socorrer Almeida], o que lhe não sucedeu por se entender que este era o seu desígnio.

A nossa gente está fortificando o lugar de Vermiosa, e com intento de se fazer atalaia no Cabeço das Mesadas, com que se julga ficarão os lugares de Riba de Coa com quietação e sossego.

Filipe Bandeira de Melo, governador da praça de Almeida, se houve com muito boa disposição e diligência nos aprestos de socorros de mantimentos e munições todos os três dias, com tanto cuidado que me obrigou a lembrar a Vossa Majestade seus procedimentos. Isto é em suma o que tenho sabido deste bom sucesso, de que me pareceu avisar a Vossa Majestade para o ter entendido. (…)

O segundo documento é mais breve, mas reporta uma outra acção, além da ponte de São Felizes.

Novas da Beira em carta de Lisboa do padre António de Amaral,  de sete de Março de 1646

Chegou carta do padre António Cabral de Castelo Branco, morador em Celorico, em que conta a facção da ponte de São Felizes na forma seguinte. O capitão Brás de Amaral, levando até mil soldados, acometeu a ponte e o castelejo, onde achou até 30 soldados castelhanos, os quais, querendo se defender, foram mortos pelos nossos; que vencido este primeiro encontro, passaram fazendo rosto ao lugar de São Felizes de Galegos, deixando oficiais fazendo minas na ponte, que constava de cinco fortes olhões, e tendo-lhe metida a pólvora nas minas, se mandou voltar os nossos e que passassem a ponte, à qual mandou dar fogo e fez voar pelos ares. Ficaram da nossa parte três ou quatro lugares dos castelhanos; com isto ficamos seguros deles poderem passar a nossas terras em Inverno; nelas andam já os nossos semeando os tremoços.

A segunda facção foi em 26 do passado, saíram da Sarça e da parte de Alcântara 40 cavaleiros a roubar-nos as terras das Idanhas, colheu-os da nossa banda a cheia dos rios. Saíram-lhe os nossos e cativaram trinta, os dez que os guiavam e eram portugueses traidores, temendo que, se os cativassem os nossos, haviam de ser arcabuzeados, se lançaram ao rio e nele se afogaram todos. (…)

Estes dois documentos complementam-se nas informações que dão sobre a destruição parcial da ponte de São Felizes. O limitado objectivo estratégico foi – como muitas vezes na pequena guerra de fronteira – o de proteger as populações das incursões predatórias do inimigo. Num pormenor diferem as duas cartas: o comando das operações. Enquanto o governador das armas refere ter atribuído o comando ao sargento-mor Agostinho de Andrade Freire, já as informações recebidas pelo padre de Lisboa indicam o capitão Brás de Amaral Pimentel – provavelmente o oficial que comandou as forças no terreno durante o assalto à ponte. Por outras fontes do período da Guerra da Restauração, sabe-se que Agostinho de Andrade Freire, apesar da sua reputação de soldado experiente, não gostava muito de expor a sua pessoa a riscos desnecessários. Quanto a Brás de Amaral Pimentel, viria a ser capitão-mor de Almeida nos inícios da década de 50, e nesse cargo teve alguns contratempos pessoais. Mas isso fica para outra ocasião.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646”.

Imagem: Vista parcial do perímetro defensivo da praça de Almeida, na actualidade. À direita, os quartéis de cavalaria, datando do século XVIII. Foto de JPF.

A”Passagem de Alcaraviça” – mais um contributo sobre este episódio da Guerra da Restauração, por Julián García Blanco

Há cerca de ano e meio, o Sr. Santos Manoel publicou aqui uma interessante narrativa sobre o combate das Vendas de Alcaraviça em 1645, em duas partes. Posteriormente, acrescentei uma pequena adenda sobre o destino de um dos militares envolvidos nesse episódio. Hoje é a vez do amigo e investigador Julián García Blanco nos trazer um documento que respeita à mesma acção. A parte introdutória foi por mim traduzida e adaptada.

Trata-se de um relato da autoria de Luis de Villarroel y Sandoval, que na altura era ajudante de cavalaria e testemunhou o combate, dirigido, em carta datada de 16 de Novembro de 1645 e escrita em Telena, a Melchor Cabrera, advogado dos Reales Consejos.

Nessa carta se diz que em 20 de Outubro tinha saído de Badajoz o Marquês de Leganés com 6.500 infantes e 1.800 cavalos. Às 4 da tarde de 20 de Outubro, um sábado, chegaram a Telena, onde fizeram alto, para depois seguirem até à ponte de Nossa Senhora da Ajuda (ponte de Olivença). O documento faz uma descrição minuciosa das operações para tomar o torreão situado no centro da ponte e o forte que defendia a entrada da ponte desde a margem esquerda do Guadiana (operações que são também apresentadas nas memórias de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz),  aqui transcritas). Uma vez ganho o forte, o Marquês mandou destruir a ponte. Nesta operação gastaram-se 19 dias, e enquanto uma parte das forças se esforçava nas operações abrindo minas, o Marquês de Leganés enviou Sancho de Monroy para que, com 1.000 infantes escolhidos e 400 cavalos sob o comando do comissário geral Gregório de Ibarra, tentasse tomar Juromenha. A operação foi bem executada e as tropas castelhanas tomaram as trincheiras que defendiam o casario, porém vizinhos e soldados retiraram para o castelo, onde se fortificaram. Sancho de Monroy teve de retirar, pois não conseguiu que os seus homens pusessem um petardo para fazer voar a porta, nem contava com artilharia.

Cinco ou seis dias após este sucesso, um alferes de cavalaria da companhia de Alonso Cabrera informou que:

“…Al enemigo le benia de socorro vn tercio de ynfantería y que marchaba de estremoz a yelbes esto fue alarma de la noche a las dos salieron con mis (sic) caballos los dos comisarios jenerales Pedro Pardo de arguello y don gregorio de Ybarra romperlos y hallamoslos que los encontraron junto a las ventas de alcarauica vna legua y media destremoz auiendo corrido siete leguas a una parte y otra para alcanzarlos que sin ponerse en defensa biniedo todos armados dieron a huir y nuestra caualleria con todo desconçierto a seguirlos finalmte se degollaron mas de 350 trajeron prisioneros160 todos los demas se quedaron escondidos entre la espesura del terreno  y a lo que entiendo heridos los mas = entre los prisioneros binieron 4 capitanes y algunas vanderas que segun se diçe benian diez con ellos = esto ha de dar gran campanada en lisboa por ser la jente de miliçia de ebora y montemor escojido()y tan zercana a aquella ciudad = tengo por infalible que en el Ronpimiento de estos 700 hombres quiso dios  azer un milagro con nuestra caualleria siendo el ynstrumento del don gregorio de ybarra mi comisario general y fue que de las  diez y ocho tropas de caballos que llebauamos hiço haçer alto a ocho de ellas  en una cuesta y desde alli tocando llamadas apenas se podia recoger vn hombre  porque todos embebidos en el saco no tratauan codiçiosos de Retirarse estando esparçidos  por las caseri (os) del contorno en tanto estremo que el comisario general  Pedro Pardo llego casi solo Como los demas capitanes y offiçailes de las conpañias que faltauan = cosa que suçede siempre en esta caualleria por la mala disciplina deli()sados  que son sumamente ladrones = apenas se auian yncorporado  las tropas  quando al llegar al monte de la tapada del du(que) nos enbistio el enemigo por la Retaguardia con 650 caballos de Refresco pero en tierra tan estrecha que solo  con sus caballos dragones nos hacia daño y como nos vio ya incorpora(dos) nos dexo sin atreberse a esperarnos en lo llano si bien  lo pudieran haçer porquel mexor caballo nuestrono se pod(ia) mober y casi estaban todos Rendidos= y como digo ari() a benir media hora Antes nos coje esparçidos cada un(o) por su parte y se le perdiera al Rey la fuerça con que açe la gu(erra) a Portugal y el sr Marques de leganes no se y como se Ret(istio)

Escribo esto porque la mayor haçaña en las vitorias es saber vsar dellas dexando vatallones de Reparo cosa que a aqui no se a podido conseguir asta oy y asi puedo decir con verdad quel mayor serbiçio que echo ni tengo de açer al Rey el auer ayudado a don gregorio de Ybarra a juntar la jente que sin duda se vbiera perdido…”

A acção decorreu nos finais de Outubro de 1645, perto das Vendas de Alcaraviça.

Decidi publicar este documento tal como Julián García Blanco o tomou do original, devido ao interesse do seu conteúdo. No entanto, providencio seguidamente uma tradução:

…Ao inimigo vinha-lhe de socorro um  terço de infantaria, que marchava de Estremoz para Elvas, isto foi alarme da noite. Às duas saíram com os meus cavalos os dois comissários gerais, Pedro Pardo de Arguello e Dom Gregorio de Ibarra, a derrotá-los. Encontraram-nos junto às Vendas de Alcaraviça, uma légua e meia de Estremoz, havendo corrido sete léguas de uma parte e outra para os alcançar, que sem se porem em defesa, vindo todos armados, deram em fugir, e a nossa cavalaria, com todo o desconcerto, a segui-los. Por fim se degolaram mais de 350, trouxeram prisioneiros 160, todos os demais ficaram escondidos entre a espessura do terreno, ao que entendo feridos na maior parte. Entre os prisioneiros vieram 4 capitães e algumas bandeiras, que segundo se disse vinham dez com eles. Isto há-de dar grande falatório em Lisboa, por ser a gente de milícia de Évora e Montemor, escolhida e tão próxima daquela cidade. Tenho por infalível que na derrota destes 700 homens quis Deus fazer um milagre com a nossa cavalaria, sendo o instrumento dele Dom Gregorio de Ibarra, meu comissário geral, e foi que das  dezoito tropas de cavalos que levávamos fez fazer alto a oito delas  em uma encosta, e desde ali tocando chamadas apenas se pôde recolher um homem,  porque todos imersos no saque não tratavam, codiciosos, de retirar-se, estando espalhados pelo casario do local em tanto extremo que o comissário geral  Pedro Pardo chegou quase só, como os demais capitães e oficiais das companhias que faltavam, coisa que sucede sempre em esta cavalaria pela má disciplina dos soldados que são sumamente ladrões. Apenas se haviam incorporado as tropas quando, ao chegar ao monte da Tapada do Duque, nos investiu o inimigo pela retaguarda com 650 cavalos de reforço, porém em terra tão estreita que só com seus cavalos dragões nos fazia dano, e como nos viu já incorporados nos deixou sem atrever-se a esperar-nos na planície, se bem o pudesse fazer, porque o melhor cavalo nosso não se podia mover e quase estavam todos rendidos. E como digo, [tivesse o inimigo] chegado meia hora antes, nos colhia espalhados cada um por sua parte, e se perderia ao Rei a força com que faz a guerra a Portugal, e o Senhor Marquês de Leganés não sei como resistiria.

Escrevo isto porque a maior façanha nas vitórias é saber usar delas, deixando batalhões de reserva, coisa que aqui não se pôde conseguir até hoje, e assim posso dizer com verdade que o maior serviço que fiz e tenho de fazer ao Rei é o haver ajudado a Dom Gregorio de Ibarra a juntar a gente, que siem dúvida se teria perdido…

Imagem: “O saque de uma aldeia”, pintura de Philips Wouwerman.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (5ª e última parte)

André de Albuquerque Ribafria enviou uma mensagem a D. Manuel de Melo, para que este mandasse dois oficiais do seu terço, dos mais experientes e sagazes, ao castelo de Oliva, a fim de concretizarem os termos da capitulação com o governador. O mestre de campo escolheu o alferes da sua companhia, Manuel Francisco Canais, e o capitão Manuel de Almeida. Os espanhóis enviaram dois elementos para servirem como reféns junto do general da cavalaria – uma prática de etiqueta neste género de situações.

Os ajustes da capitulação não diferiram do que era prática corrente em situações semelhantes: os soldados sitiados saíriam com as armas às costas, e as de fogo carregadas com bala, mas somente até 200 passos da vila – depois, teriam de as entregar; as mulheres poderiam carregar tudo o que conseguissem, de pertences individuais, à cabeça, mas o mesmo não era permitido aos homens.

Segundo Mateus Rodrigues, quando os dois oficiais portugueses regressaram vinham mui bem aproveitados de coisas boas de dentro do castelo, que confessou um deles que lhe rendera a ida lá dentro bons cem mil réis. (MMR, pg. 384)

Seguiram-se então os procedimentos habituais. Os mestres de campo D. Manuel de Melo e Manuel de Saldanha, acompanhados de outros militares, foram ao castelo organizar a evacuação dos moradores e dos soldados. Mateus Rodrigues escreveu, a este respeito, algumas das páginas mais sentidas das suas memórias:

(…) Foi uma confusão notável entre as mulheres, porque além de ver que as faziam sair da sua pátria [ou seja, local de onde eram naturais], para nunca jamais a tornar a ver, por outra parte tinham tanto que levar cada uma que não podiam levar o que desejavam. Vejam bem como se apartariam de boa mente de sua pátria, (…) vendo ficar os maridos mortos, e outras os filhos e irmãos. Assim que não havia quem as fizesse apartar dali. Contudo, como era força fazê-lo, começaram a ir fazendo trouxas, cada uma o que podia levar à cabeça, mas algumas com paixão não levavam nada, senão tudo era prantos e gritos. Finalmente começaram a sair (…) pouco a pouco. (MMR, pg. 384)

Mateus Rodrigues formou, como a restante cavalaria e os infantes do terço de Olivença, em duas alas, de cada lado da estrada por onde a procissão dos desalojados e rendidos iria passar, debaixo de intensa chuva. O resto já aqui foi descrito num artigo anterior, pelo que evito repetir a narrativa do soldado de cavalos a este respeito.

A capitulação previa que as gentes de Oliva fossem escoltadas, a partir de certa altura, por um destacamento de cavalaria de Jerez de los Caballeros, cidade que seria o seu destino. Vieram de Jerez 100 cavalos meia légua de nós, em comboio desta gente (…), e posto que assim se ordenou de lá e de cá, que estavam em Jerez 200 cavalos que se haviam juntado aí, do regimento de Rosalles [Juan de Rosalles, comissário geral]. (MMR, pg. 385)

Após a saída do moradores, vieram os militares (200 homens), de armas às costas. Respeitando as cerimónias usuais nestes casos, e conforme estava combinado na capitulação, os portugueses saudaram os espanhóis com uma salva de mosquetes. Recolhidas as armas após a saída da guarnição, trataram os soldados portugueses de entrar na vila. A cena descrita por Mateus Rodrigues é típica de qualquer conflito da Era Moderna:

(…) Quis Deus que, como demos pelas casas da vila, começamos a fazer grandes fogos com as caixas, cadeiras e portas das casas de onde nos metíamos, que quando amanheceu já não havia ninguém que não estivesse muito bem enxuto e bem farto de carne, que não faltava na vila, assim morta como porcos vivos que na vila havia. (MMR, pg. 387)

Na vila ficou o capitão Manuel de Almeida comandando uma guarnição de 200 homens. Entre a partida  e o regresso da força portuguesa a Elvas e a Olivença passaram-se nove dias. Mateus Rodrigues refere que as perdas portuguesas foram cerca de 150 homens – só no terço de D. Manuel de Melo houve mais de 120 baixas, entre mortos e feridos; o terço de Olivença, de Manuel de Saldanha, não chegou a combater. As perdas dos defensores de Oliva ascenderam a mais de 60 mortos.

O memorialista frisou que a tomada da vila e castelo de Oliva fora a jornada de maior proveito para Portugal em mais de 10 anos. No imaginário castrense, a conquista de uma povoação, pela sua raridade, conferia um prestígio superior a qualquer usual operação de rapina ou combate renhido. No entanto, com esta façanha Mateus Rodrigues colocou um ponto final em 13 anos de serviço ininterrupto no exército do Alentejo. Ainda lá voltaria por um breve período, mas somente passados três anos, durante os quais aproveitou para redigir a maior parte das suas memórias.

Imagem: “Dividindo os despojos”. Pintura de Jacob Duck. Museu do Louvre, Paris.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (4ª parte)

Após o fracasso dos petardos, Mateus Rodrigues refere a acção de um frade que, segundo o soldado, pode ter sido determinante para a tomada do castelo de Oliva de la Frontera. No entanto, a narrativa do soldado de cavalos é também, a certa altura, um importante testemunho da violência e terror que as operações de guerra exerciam sobre os civis, que não aparece registado em nenhum outro relato deste acontecimento.

Em esta vila estava um frade trino [ou seja, da Ordem da Santíssima Trindade] castelhano e natural da vila, que tinha ali um irmão e havia vindo a vê-lo. E quando viu que íamos a tomar a vila, não se quis meter dentro do castelo, senão ficar de fora para pedir ao general que (…) não bulissem na casa de seu irmão. (…) O general mandou logo ao frade que fosse ensinar [onde ficava] a casa, que mandava lá pôr sentinelas [para] que ninguém lá fosse e que lhe dava sua palavra que lhe não havia de falta dela coisa alguma. Agradeceu-lhe o frade grandemente o favor (…) e se foi o frade com o general para as casas e nunca de lá saiu, a não ser ao que diante se verá, que pode ter sido a causa de se tomar o castelo. (MMR, pgs. 377-378)

Entretanto, as minas iam progredindo pouco em direcção ao castelo, pois a terra era muito dura e difícil de escavar, e sobre isto avisou D. Manuel de Melo o general da cavalaria. Seriam precisos muitos dias até que as galerias subterrâneas chegassem à muralha do castelo. Porém, André de Albuquerque não se demoveu do seu intento. Tinha vindo até ali para tomar o castelo de Oliva e não partiria sem o fazer, apesar da proximidade da cidade de Jerez de los Caballeros e da possibilidade dos espanhóis enviarem um exército de socorro.

De maneira que, como o frade assistia sempre com o general, ouvia dar as ordens, e ouvindo falar em minas, perguntou o que era aquilo. Disse-lhe então o general que mandava fazer duas minas, uma que havia de ir até à torre que tinha o castelo no meio, e a outra havia de ir parar à muralha, e assim como estivessem já acabadas, que vissem que já lá tinham chegado, haviam de atacá-los com muita pólvora e dar-lhe fogo, para que voasse a torre para o ar e quem estivesse nela, e logo a da muralha havia de abrir uma grande brecha, por onde haveria de mandar avançar mangas de mosquetaria e rodeleiros, para que fossem degolando tudo quanto estava dentro. Tanto que o frade ouviu isto ao general, pediu que o deixasse ir ver aquelas minas. Mandou logo o general que fossem a mostrar as minas ao frade, as quais ele foi ver logo, e assim como as viu ficou parvo. E logo pediu muito ao general que lhe desse sua senhoria licença, que queria ir dentro ao castelo falar com o governador. Que, como o frade tinha lá dentro sua irmã e sobrinhas, não podia levar em paciência o dizerem que o castelo havia de voar e quem estava nele. (…) Como o general viu que nunca a ida do frade ao castelo lhe podia resultar em (…) dano, senão em proveito, deu licença ao frade (…), mas disse-lhe o nosso general que havia de volver com resposta, senão, que lhe havia de pesar. O frade lhe deu sua palavra de tornar. (MMR, pgs. 378-379)

O frade dirigiu-se ao castelo, onde entrou por um postigo falso que tinha a muralha, pois a porta principal estava terraplanada no interior, até ao cimo da muralha. Em conversa com o governador, tentou fazer com que este se rendesse, a fim de poupar as vidas de tanta gente que estava no castelo, contando-lhe acerca das minas e da disposição dos portugueses em as fazer explodir e degolar toda a gente.

A proposta, todavia, teve o efeito contrário ao pretendido. Assim como os habitantes souberam dela, zangaram-se e expulsaram o padre, dizendo que preferiam voar com o castelo a renderem-se. Regressado para junto dos portugueses, o frade não contou a André de Albuquerque como fora infrutífero o seu esforço para salvar as vidas dos habitantes de Oliva. Pelo contrário, deu alguma esperança ao general, pois referiu que o governador do castelo nunca lhe dissera que não se renderia, mas que o tempo lhe daria lugar a decidir o que haveria de fazer. Era este governador homem já avançado em anos, e segundo o frade era desejo do bom velho entregar-se, pois tinha duas filhas donzelas no castelo e elas lho pediam que assim fizesse. O impasse, no entanto, manteve-se.

(…) Em a vila havia uma igreja muito forte, a qual estava perto do castelo; pelo menos ficava-lhe no descoberto de toda a mosquetaria, que não podiam ir à igreja sem que do castelo não fizessem muito dano. E nesta igreja ficaram muitas mulheres, e com 50 homens que pelejavam da torre da igreja infinito, e tinham fazenda dentro dela. E aonde estava a nossa gente pelejando ficava-lhe a igreja junto deles, mas não podiam lá ir senão com muito risco.

Mandou o general (…) um aviso, se se queriam entregar, senão que os haviam de degolar, ao qual aviso eles fizeram pouco caso. Mandou logo o general que fosse uma manta à igreja com um petardo, e que em abrindo as portas, avançassem por elas dentro mangas de mosqueteiros, e que não dessem quartel a castelhano nenhum, só às mulheres não agravassem [ou seja, não fizessem mal]. E preparada a manta, foi o soldado com ela e com o petardo diante, e chegando a uma porta travessa que ficava mais resguardada do castelo, deu fogo ao petardo e logo lançou as portas dentro. E no mesmo tempo avançaram os mosqueteiros por ela dentro, matando a todos os castelhanos que lá estavam, ressalvando as mulheres. E assim como os nossos entraram, era tanta a confusão e gritaria das mulheres que lá estavam, que pareciam os diabos. (…) E em breves palavras estavam todos os castelhanos da igreja estirados na rua, mortos, à vista do castelo, para que os outros os vissem, para pôr medo. E logo tomaram as mulheres todas, que eram 50, e botaram-nas fora para a rua, dizendo-lhe[s] que se fossem para o castelo. E vendo-se elas naquele estado, foram-se ao pé do castelo com grandes gritarias de choros, que as recolhessem para dentro, mas o governador, nem os mais, não as quiseram recolher …). Vendo-se as pobres desta sorte, tornaram-se para a igreja, que não haviam de estar aos pelouros nas ruas. E quando os nossos entraram na igreja não tiveram mais que três homens que morreram, mas os 50 homens que lá estavam todos morreram, e os nossos se aproveitaram de muito bom fato que lá tinham os castelhanos metido.

Feita esta diligência se continuava grandemente com as minas, porém com poucas esperanças de elas chegarem lá devagar, contudo continuava-se com elas. E quando o nosso general soube que já a igreja estava tomada e que estavam lá 50 mulheres, deu uma ordem à vista do frade castelhano: que se mandassem escolher 300 soldados da cavalaria, todos soldados velhos e homens de satisfação, e que haviam todos de trazer cravinas. E quando a mina da muralha estivesse para dar fogo a ela, que haviam de avançar estes 300 soldados pelas brechas dentro, (…) e logo detrás deles mangas de mosquetaria. Mas quando os homens da cavalaria avançassem haviam de levar 50 soldados, os que fossem diante, daquelas que estavam na igreja para amparo dos seus corpos, que se os castelhanos lhe atirassem, matassem primeiro as mulheres. Brava ordem. Mas a verdade é todas estas confusões fazia o general à vista do frade para que, vendo estas coisas, o movesse a querer volver ao castelo a falar com os castelhanos. o que não foi necessário, porque assim como o inimigo, do castelo, viu aquela lástima dos mortos da igreja pela rua e as mulheres com as gritarias, parece que lhe quebrou o coração a todos, e houve entre eles logo um rumor e uma bulha, que se conformaram a mandar pedir quartel ao nosso general. (MMR, pgs. 380-382)

As condições foram recusadas, porém. André de Albuquerque não estava disposto a permitir que os espanhóis permanecessem no castelo até terem recolhido os trigos que tinham semeado pelos campos. Despediu o emissário do governador dizendo que se espantava muito de como em os espanhóis havia tal rudeza e pouco discurso (MMR, pg. 382); que pelejassem o que pudessem, que não fazia concessão nenhuma naqueles termos.

Mas os castelhanos não ficaram muito contentes (…) do que havia trazido o aviso. E quando veio este aviso era no sábado, mas no domingo de madrugada tornaram logo com outro, (…) de como se queriam entregar, mas que lhe haviam de deixar sair com suas armas às costas e bala em boca, e que levariam as mulheres o fato que pudessem levar à cabeça para se remediarem. (MMR, pgs. 382-383)

André de Albuquerque ficou contente com este pedido de capitulação. Sabia que seria impossível tomar o castelo sem a artilharia que havia ficado em Mourão, pois na altura achara que não seria necessária. Assim, tratou de negociar as capitulações.

D. João da Costa, na sua carta, imagina combates a que não assistiu: Prevenindo eu este acidente, mandei levantar mantas e mineiros, e tudo o mais necessário para forçar o castelo, o que se começou a fazer com estes instrumentos, de maneira que o inimigo se viu obrigado a render-se, como o fez ontem às dez horas da manhã. (Livro 2º…, carta de D. João da Costa, Conde de Soure, para D. João IV, datada de 12 de Janeiro de 1654).

(continua)

Imagem: Soldados confraternizando com mulheres. Pintura de Jacob Duck (1600-1667).

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (3ª parte)

Sem saber que tinham sido detectados, os portugueses avançaram sobre Oliva de la Frontera.

Cercada a vila com a cavalaria toda, chegou a infantaria e o nosso general diante dela. Chegaram à trincheira sem ouvirem dentro rumor nenhum, como que não havia ali gente nenhuma. E a esquadra que estava à porta não quis dar tiro nenhum à nossa gente até que eles os não viram subir pela trincheira acima, pelas escadas, e assim como os nossos foram subindo, dá-lhe a esquadra uma carga que logo ali caíram onze homens. Assim como o inimigo deu esta carga logo desamparou a porta e a trincheira e se foram de carreira meter no castelo, porque aquela esquadra não a pôs o inimigo ali para defender a trincheira, senão para que os do castelo soubessem quando nós chegávamos, para se prevenirem. (MMR, pg. 374)

Estes detalhes são omitidos na carta de D. João da Costa para D. João IV. A riqueza do texto de Mateus Rodrigues reside na perspectiva que este tem das operações, à escala das preocupações do homem comum, com pormenores que escapam às mais elaboradas narrativas produzidas com fins informativos e propagandísticos. Esclareça-se que o termo “trincheira” empregue por Mateus Rodrigues correspondia a um baluarte provisório, erigido com terra e eventualmente reforçado com madeira no interior, destinado a proteger as entradas de uma localidade e a reforçar as defesas já existentes.

Depois de terem sofrido as baixas repentinamente, devido à salva disparada de surpresa e à queima-roupa, o ânimo dos soldados portugueses esfriou. Como o nosso general viu isto, pareceu-lhe que os soldados estavam já com medo e que seria necessário muito tornar a fazê-los avançar. E assim disse a Manuel de Melo e ao mestre de campo Manuel de Saldanha (…) que seria necessário eles fazerem exemplo aos soldados, em subirem diante eles pela trincheira, para que os soldados não duvidassem, e apenas tinha dito isto (…) já ele ia subindo pela trincheira com uma rodela e uma espada na mão, seguindo-o logo as duas pessoas nomeadas e assim mais todos os soldados. (…) Contudo, assim como o inimigo, do castelo, os sentiu dentro [da trincheira], eram tantas as balas que botava dele que parecia que botavam como saraiva, porque todas quantas ruas tem e tinha a vila, todas as lavava o castelo com sua mosquetaria. E como fazia grande luar, dava muita ajuda ao inimigo, e foi a coisa de modo que não tiveram os nossos outro remédio para ficarem dentro da vila, senão irem minando as casas por dentro, pelas paredes, e meteram-se dentro, em as casas, todo o terço de Manuel de Melo, em uma rua que ficava bem defronte do castelo; porque, como vinha já amanhecendo, não era possível aparecer ninguém onde chegasse arma de fogo do castelo, porque assim que aparecia algum nosso onde o inimigo lhe chegasse, já ele estava morto; que, de 200 homens que no castelo estavam, não havia um só que não fosse caçador do ar [caçadores de aves], e assim nunca jamais erravam tiro que fizessem. De modo que antes que fosse manhã, já o terço todo estava metido dentro das casas de uma rua fronteira do castelo, e o inimigo mui bem soube logo que a nossa gente estava metida naquela rua, porém pelejava-se grandemente de ambas as partes, mas da nossa com pouco proveito, em razão que como os castelhanos estavam dentro do castelo, não lhes podiam os nossos fazer tanto dano como eles a nós, que nos [a]tiravam de dentro de umas ameias do castelo, e nós não lhe podíamos fazer mal nenhum, porque a nossa infantaria não podia pelejar senão de dentro das casas, que faziam uns buracos por dentro das paredes que ficassem bem defronte do castelo, e metiam por os buracos os mosquetes. E assim como viam assomar algum castelhano, atiravam-lhe; assim como os castelhanos viam atirar, logo atiravam para aquela parte (…). E bem viam os buracos, porque a distância do [desde o] castelo a[té] onde os nossos estavam era coisa pouca. O nosso general logo mandou tomar umas casas em entrando dentro da vila para ele estar, mas não ficava da parte donde o inimigo lhe fizesse dano. E dali não saiu até que a vila e castelo se não tomou. Dali mandava as ordens do que se havia de fazer ao mestre de campo Manuel de Melo, que estava com o seu terço dentro das casas para dar ordem ao terço a pelejar e para mandar fazer as minas (…). (MMR, pgs. 375-376)

O terço de Olivença comandado por Manuel de Saldanha, bem como toda a cavalaria e a bagagem, permaneciam longe da vista dos moradores de Oliva, ocultados em outeiros e vales. Os soldados, desocupados de qualquer acção de combate, aproveitavam a lenha que podiam recolher livremente para se aquecerem com os grandes fogos que faziam, pois o frio era intenso. Entretanto, na vila prosseguia o tiroteio entre os defensores do castelo e o terço de D. Manuel de Melo. Os do castelo apupavam os portugueses, chamando-lhes “galegos” e  gritando-lhes que tinham escolhido mal o dia e “que levassem as casas da vila às costas” (as casas estavam completamente vazias, como refere Mateus Rodrigues; nada havia que pudesse ser pilhado); havia uma enorme confiança entre os defensores de Oliva acerca da inexpugnabilidade do castelo.

André de Albuquerque recebeu uma mensagem de D. Manuel de Melo: a pouco e pouco os soldados do seu terço iam consumindo as munições e alguns tombando, sem que se pudesse fazer qualquer dano aos castelhanos – aguardava, pois, instruções sobre o que fazer. André de Albuquerque mandou então que os mineiros começassem a abrir minas e mandou avançar as mantas. Curiosamente, na carta enviada ao Rei, D. João da Costa afirma que partiram dele estas ordens – mas o mestre de campo general não fez parte da expedição. Aliás, tanto o Conde de Ericeira como Mateus Rodrigues são claros quanto a quem comandou toda a operação, e o soldado de cavalos fez parte da força que nela participou.

(…) Mandaram logo preparar as mantas, que eram duas, que levava cada uma um petardo (…), e lançaram-nas por uma porta grande que estava em uma das casas. Assim como o inimigo as viu sair eram tantas as balas que se cobria o ar com elas. (…) As mantas são de prova de mosquete [ou seja, à prova de mosquete] e mui fortes, contudo lançou o inimigo uma ameia do muro abaixo e botando-a em cima de uma das mantas, a fez numa pasta, que como era grande altura e [a] ameia pesava mais de dez quintais, não pôde a manta sustentar o peso da pedra. E a outra deu fogo à muralha com o petardo, mas não fez nada, que estava já o soldado debaixo dela com grande medo, vendo o fim que a outra teve, e assim como deu fogo ao petardo, vendo que não obrava nada, veio-se embora com a manta, e o inimigo fazendo grande risada e galhofa (…). (MMR, pgs. 376-377)

A carta-relatório de D. João da Costa é muito prosaica a este respeito:

(…) Se arrimou um petardo à porta, e dando-se-lhe fogo três vezes, não tomou, pela humidade do tempo o impedir, até que com as pedras quebraram os castelhanos  as estacas em que se sustentam os petardos. (Livro 2º…, pg. 42)

Mais um ponto em que o discurso de D. João da Costa se afasta do que Mateus Rodrigues viu e escreveu.

(continua)

Léxico:

Manta – protecção de madeira, colectiva ou individual, revestida de peles de animais, sob a qual se abrigavam os soldados que deviam aproximar-se das muralhas ou portas para colocar o petardo.

Petardo – engenho explosivo em forma de sino que se fixava contra uma porta ou uma muralha, a fim de as rebentar.

Imagem: Modo de colocar um petardo. Gravura do século XVII, via The Artillery Garden.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (2ª parte)

A propósito de Oliva de la Frontera, Juan Antonio Caro del Corral enviou esta ligação para um artigo online de Alfonso Gil Soto, intitulado “El impacto de la Guerra de Secesion Portuguesa (1640-1668) en los territorios de la Extremeña: el caso de Oliva de la Frontera” (in Alcántara, 2001, pgs. 53-54):

http://ab.dip-caceres.org/alcantara/alcantara_online/53_54/53_54_006a.htm

Ao amigo Juan Antonio agradeço, mais uma vez, a sua oportuna colaboração.

Prossigamos a narrativa, seguindo as memórias de Mateus Rodrigues. Com tudo acertado para a operação, o terço de Moura começou a reunir mantimentos para 8 dias. Todas as bestas da vila de Moura, em número de 1.000, foram requisitadas para puxarem as carroças e transportarem os mantimentos e as munições, para além das que os soldados levariam em mochilas (designação dada na altura a grossos sacos usados a tiracolo). Tudo isto foi feito com o sigilo possível, para não despertar qualquer desconfiança no inimigo. O ponto de reunião das forças de cavalaria com a infantaria de Moura seria a vila de Mourão.

Dia de Reis, que foi em 6 de Janeiro de 1654, saiu o nosso general André de Albuquerque da cidade de Elvas pela manhã, pela porta da esquina fora, com duas companhias de cavalo, que era a sua e a minha (…), e com duas peças de artilharia de 24 libras cada uma, e quando saímos (…) não havia ninguém que soubesse para onde marchávamos (…). Havia um rumor de que levávamos aquelas peças para o castelo de Vila Viçosa e que ia lá o general para as mandar pôr, (…) e quando lá chegámos já não havia quem não soubesse que íamos a Castela, mas não adonde.

No dia 7, pela manhã, as duas companhias de cavalos formaram em frente à estalagem onde o general tinha pernoitado, e daí seguiram para Mourão, onde chegaram já de noite e onde já se encontrava D. Manuel de Melo com o seu terço. Os soldados de cavalos tiveram de suportar uma noite bem fria e chuvosa de Inverno, muito mal acomodados ou ao relento, pois os alojamentos (as casas dos moradores da vila) estavam já todos ocupados pelos soldados de infantaria e as cavalariças pelas bestas de carga do terço.

Na manhã do dia 8, a força seguiu pela estrada de Vilanova de Portugal (Villanueva del Fresno), percorrendo duas léguas até se reunir ao terço de Manuel de Saldanha e à cavalaria de Olivença. Segundo Mateus Rodrigues, o total das cavalgaduras que acompanhava o pequeno exército era de 3.000, mais do que o número de tropas pagas que ali marchava – uma cauda logística bem extensa. Em Vilanova tiveram pouco tempo para descansar e comer, pois a etapa até Oliva, onde tinham de chegar antes do amanhecer, ainda era longa (mais de 4 léguas e mau caminho para a infantaria, que não podia ir formada, nem a cavalaria tampouco). A coluna demorou bastante tempo a formar; a cavalaria toda na vanguarda (1.400, segundo Mateus Rodrigues, mais cem do que D. João da Costa aponta na sua carta), a infantaria (1.500 homens) na retaguarda, e toda a carriagem e cavalgaduras no meio. Em grande silêncio prosseguiu a marcha, passando a ribeira de Alcarrache, uma légua depois de Vilanova, e continuando por azinhais. A precaução destinava-se a não serem sentidos, mas bem podíamos ir com toda a galhofa e bulha, pois o inimigo estava de aviso. Com efeito, na sua carta o Conde de Soure refere que no dia 8 tinha o inimigo uma partida sobre Mourão, a qual, vendo marchar a nossa gente, avisou a sua, com o que nos esperavam recolhidos no castelo com as armas nas mãos. Mateus Rodrigues acrescenta mais detalhes: tinha sido o tenente Marim, com 10 cavaleiros, quem tinha detectado a força portuguesa, e à rédea solta correra a avisar as gentes de Oliva. E suposto que o inimigo já tinha parte do fato metido no castelo, assim como o tenente chegou e deu aquela triste nova, enquanto tiveram tempo meteram tudo quanto puderam no castelo, e deixaram as casas só com as paredes e alguma caixa vazia, e (…) meteu-se toda a gente dentro no castelo, e não deixaram fora mais que trinta homens e a companhia de cavalos que estava na terra. O capitão, que Rodrigues reputa de grande soldado, e antigo, tinha ido comandar as companhias de Talavera (até nisto foi o nosso general bem afortunado, pois se este capitão não tivesse sido transferido e estivesse dentro do castelo, nem o poder do mundo o havia de tomar, porque era homem do diabo e muito valente, chamava-se D. Diego Quexada). Mas era agora o tenente Marim que comandava a cavalaria. Este, logo que caiu a noite, meteu a sua mulher na igreja com as demais mulheres da vila e partiu com os seus soldados para uma ermida de Nosso Senhor que fica em um outeirinho junto da mesma vila, e daí lançou sentinelas para detectar a progressão da força portuguesa.

A um quarto de légua de Oliva, André de Albuquerque fez adiantar a cavalaria, para que fossem tomadas todas as vias de entrada e saída da vila. O general da cavalaria pensava que havia duas companhias de cavalos em Oliva, mas de facto, apenas ali servia a do tenente Marim – e mesmo essa fez o oficial espanhol retirar para Jerez de los Caballeros, não sem antes alertar os soldados que estavam de guarda na trincheira de que os portugueses se aproximavam.

(continua)

Bibliografia: Livro 2º…, pgs. 41-42; MMR, pgs. 369-374; veja-se a 1ª parte desta série para as referências completas.

Imagem: Oliva. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII. O outeiro onde se situa a ermida referida no texto é visível no canto superior direito da planta. Ao contrário do que eu tinha aqui escrito ontem, a colina visível no canto superior direito do mapa não se trata do outeiro da ermida, mas sim de “el Moriscote”. Veja-se o comentário nº 1, do Sr. Andrés Francisco Perez Cuecas (a quem eu agradeço a colaboração), para o completo esclarecimento.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (1ª parte)

Após o sucesso no combate de Arronches em 8 de Novembro de 1653 e da incursão ao Vale de Matamoros em 25 de Novembro do mesmo ano, o mestre de campo general e governador das armas interino do Alentejo, D. João da Costa, Conde de Soure, decidiu lançar um assalto à vila extremenha de Oliva. Os motivos para tal operação são explicados pelo próprio, em carta dirigida a D. João IV:

Enquanto o tempo não dá lugar de poder obrar o que desejo no serviço de Vossa Majestade, me pareceu livrar aos lugares de Mourão, Monsaraz, Terena e [A]landroal das contínuas moléstias que recebiam da guarnição e moradores da vila de Oliva, que consta de 400 vizinhos e um castelo.

Para se ganhar uma e outra coisa por interpresa, ordenei ao general da cavalaria [André de Albuquerque Ribafria] que com 1.300 cavalos e com os mestres de campo Manuel de Saldanha e Manuel de Melo investisse a vila e procurasse, com os petardos, ganhar o castelo. (ALMEIDA, Manuel Lopes de; PEGADO, César (pub.) –  Livro 2º do Registo das Cartas dos Governadores das Armas (1653-1657), Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1940 (transcrição do ms. 540 da BGUC), pg. 41, adaptado para português corrente).

Na operação participou a companhia de cavalos onde servia Mateus Rodrigues, companhia essa que era comandada pelo capitão Fernão Pacheco Mascarenhas. Mateus Rodrigues ainda se encontrava em convalescença das feridas recebidas no combate de Arronches e estava prestes a desertar do exército do Alentejo, onde servia desde Setembro de 1641. O soldado de cavalos deixou uma extensa narrativa do assalto a Oliva, a qual contrasta com a brevidade com que a operação é descrita pelo Conde de Soure e até pelo Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado (edição on-line facsimile da edição de 1759, Parte I, Livro XII, pgs. 439-440). Os pormenores da incursão ainda estavam frescos na memória quando começou a passar as suas recordações para o papel, poucos meses depois, já no sossego de Águeda.

O general André de Albuquerque Ribafria estava a recuperar das pisaduras sofridas no combate de Arronches (onde caíra do cavalo logo no início da refrega e fora atropelado pela sua própria cavalaria, tendo sido mesmo dado como morto) quando lhe foi atribuído o comando da operação. Embora tivesse ainda um braço imobilizado e não pudesse montar a cavalo, fez-se transportar numa liteira. A sua reputação estava no auge e era muito estimado pelos subordinados.

Este lugar ou vila de Oliva estava sete léguas pela terra dentro, e tudo mui grandes azinhais e terra de matos. Contudo era lugar que dava grandes enfados e perseguições, e os lugares (…) que lhe ficavam em a raia, como era a vila de Moura e Serpa e Mourão e Monsaraz e Terena e o [A]landroal, todos estes nossos lugares eram abrasados desta Oliva, em razão que tinha em si duas companhias de cavalos mui boas, e todos eram homens da mesma vila, que toda a nossa campanha sabiam a palmos e aos olhos fechados, e como assim fosse de sorte ventura lhe dávamos em partida nenhuma que entrasse dentro em qualquer lugar destes. Mas a quem este inimigo perseguia com mais continuação era a vila de Moura, por ser terra de maior tráfego de campo e lavouras e gados, e achava o inimigo ali mais certa a pilhagem do que em outro qualquer dos mais. Além de que Moura também tinha sempre duas e três tropas de cavalo, mas nunca jamais podiam apanhar nenhum castelhano, e quando lhe saíam alguma vez sempre os corriam cinco ou seis léguas. De modo que teve esta vila de Moura e mais lugares este aperto e sujeição treze anos, até que Deus se lembrou deles para ficarem descansados, fazendo suas lavouras à sua vontade. (Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita (AHM), pgs. 366-367).

Segundo Mateus Rodrigues, a iniciativa da operação não partiu directamente do Conde de Soure, mas do governador Moura e mestre de campo do terço de guarnição da vila, D. Manuel de Melo, filho do Porteiro-Mor do Reino, e do próprio André de Albuquerque. D. Manuel de Melo comandava o melhor e mais numeroso terço da província do Alentejo e governava a vila desde 1647, mas nunca ousara falar aos governadores das armas na sua vontade de atacar Oliva, pois sabia bem os riscos que essa operação envolvia. Só depois da vitória de Arronches e da superioridade que a cavalaria portuguesa obtivera a partir daí é que D. Manuel de Melo deciciu revelar o seu plano ao general da cavalaria e ao mestre de campo general. Escreveu cartas a ambos, para Elvas, e logo D. João da Costa foi conversar com André de Albuquerque, de modo a saber se este estava em condições de comandar a operação. Encontrou-o ainda muito combalido, mas sempre animoso e decidido a tomar parte na arriscada empresa. D. Manuel de Melo, para além de ser uma pessoa de grande consideração devido ao alto cargo exercido pelo pai na Corte, oferecia o seu terço para assaltar a vila, sem ser necessário arriscar a cavalaria. Com 1.400 homens bem equipados e bem treinados, tinha por certo  o sucesso. E assim, D. João da Costa deu o seu consentimento ao plano, embora receasse pela diminuída capacidade física de André de Albuquerque.

(continua)

Imagem:  A partida dos soldados. Quadro de Philips Wouwerman.

Em torno da operação da ponte de Alcântara, Março de 1648 – por Juan Antonio Caro del Corral

Como já vem sendo hábito, o estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral achou por bem dar o seu contributo sobre o recente artigo a respeito da operação da ponte de Alcântara. Aqui fica, com os meus agradecimentos, a sua colaboração.

Marzo de 1648 fue buena época para el clamor de las armas en la frontera. Apenas comenzado dicho mes, en la comarca defendida por la plaza de Valencia de Alcántara, hubo una sangrienta disputa en la cual los castellanos perdieron 20 soldados. Para responder aquella agresión, desde Badajoz se formó un grueso de tropa que entre el 15 de marzo y el 21 de abril, corrió la campiña de Elvas y sus alrededores; incluso tuvieron tiempo de subir en ayuda de la Raya norte, dónde el ingenio de don Sancho Manuel, general de la provincia beirense, había planeado un ataque para conquistar la agreste posición de Alcántara y su famoso puente romano.


El asalto al puente de Alcántara comenzó en las primeras horas del día 24 de marzo. Al llegar a su objetivo, las tropas de don Sancho Manuel, que habían salido la noche antes desde la plaza fronteriza de Segura, se situaron al pie del denominado Cerro de las Vigas, en la orilla derecha del río Tajo, haciendo frente al acceso principal del puente. El defensor de la villa alcantarina, don Simón de Castañiza, ya tenía preparadas algunas prevenciones para intentar repeler el ataque, pues durante la noche precedente había recibido avisos de movimientos enemigos en las proximidades. El combate fue muy intenso, perdurando hasta las dos de la tarde del día citado. A lo largo de esta jornada, Castañiza envió peticiones de socorro, primero a las poblaciones más cercanas (Brozas, Garrovillas y Arroyo de la Luz), y en última instancia a Badajoz, dónde la noticia llegó en la madrugada del 25. Desde aquí el gobernador interino al mando, don Alonso Dávila, instó a las principales plazas fuertes de la provincia ayudasen en todo lo necesario para levantar el cerco sobre Alcántara; por otra parte él mismo comenzó a organizar soldada para enviarla a dicho lugar. Mientras tanto, Guislain de Bryas, Marqués de Molinghem, avanzaba desde el norte cacereño reclutando más tropas. Los primeros refuerzos llegaron la misma tarde del 24; pero fue durante los días siguientes cuando llegó la mayor parte de la ayuda solicitada por Castañiza. Además, en la frontera de Ciudad Rodrigo, su gobernador, el capitán Francisco de Rada, organizó algunas correrías para llamar la atención del enemigo, intentado que con esta táctica de desvio los sitiadores abandonasen sus propósitos de tomar Alcántara. En un principio parece que la estratagema tuvo resultado, pues Sancho Manuel retiró a sus hombres; pero fue un falso movimiento pues en la noche del 25 ordenó volver a atacar el puente. En esa madrugada los portugueses lograron ganar la mitad del mismo. Desde esta aventajada posición, a partir del día 26 los atacantes se afanaron en colocar minas para volar la fábrica sobre el río Tajo. Don Simón de Castañiza intentó frenar aquellos trabajos, pero dada la carestía de munición y hombres, espero mejor ocasión. Transcurrieron lentamente tres nuevas jornadas, hasta que al atardecer del 29, habiendo tenido noticia don Sancho Manuel de que el Marqués estaba cerca de Alcántara acompañado de mucha gente de guerra, decidió retirarse definitivamente no sin antes dar fuego a la pólvora colocada en el puente. Reventó de esta forma el primer arco, dejando inutilizado el paso. A la mañana siguiente las tropas llegadas desde Badajoz, comandadas por don Juan de Santano, comprobaron los efectos de la mina, poniéndose de inmediato a arreglar los desperfectos construyendo un levadizo de madera en el lugar que anteriormente ocupará la parte volada del puente. En tanto Molinghem, que también había llegado con su gente, se dedicó a cubrir los vados del Tajo para evitar que los portugueses reiniciaran el ataque. Paralelamente, Sancho Manuel envió a Joao de Almeida a quemar las barcas que transitaban en dicho río. A pesar de que los dos cuerpos de milicia llegaron a verse, no hubo combate.

En cambio sí se planteó escaramuza unos días antes, concretamente el 26, cuando la tropa que desde Badajoz subía en auxilio de Alcántara chocó, en las márgenes del Gévora, con otra de seiscientos caballos lusitanos, cuya misión era cortar citados socorros. Se saldó con victoria castellana; de ese modo Santano pudo continuar sin problemas su camino hasta la villa alcantarina, tal como ya hemos comentado anteriormente.

Sancho Manuel quedo bastante satisfecho de su acción, y aunque no consiguió tomar la plaza, al menos por un tiempo logró que los pueblos situados al otro lado del Tajo, como el caso de Zarza la Mayor, Ceclavín y otros, tardaran en recibir refuerzos. Gracias a ello, salvaguardada su retaguardia, en el mes de junio hizo una entrada en tierras castellanas, logrando arrasar varias aldeas del alfoz cauriense. Ese fue el final de la primera parte de la campaña militar de 1648. Mediado septiembre comenzarían de nuevo las hostilidades.

Pero eso es otra historia.

JUAN ANTONIO CARO DEL CORRAL

Imagem: Soldados do período da Guerra Civil Inglesa; reconstituição histórica em Old Sarum, Inglaterra, inícios da década de 90. Foto de J. P. Freitas.

O assalto à ponte de Alcântara, 25 e 26 de Março de 1648 (2ª parte)

Na madrugada de 26 de Março, uma quinta-feira, D. Sancho Manuel reatou a investida contra a ponte de Alcântara. Duas horas antes do amanhecer, a força portuguesa logrou aproximar-se do objectivo, enganando os sentinelas ao falar-lhes em castelhano, dizendo que eram moradores de Zarza e que vinham pedir socorro, pois que D. Sancho Manuel tinha tomado a vila. Com este estratagema, os homens do terço do mestre de campo João Lopes Barbalho investiram de surpresa a ponte, rompendo três portas, duas estacadas e dois retrincheiramentos com três petardos, e o demais a braço dos infantes, estando de guarnição nelas duzentos e trinta infantes com três capitães e um sargento-mor por cabo, que havendo acudido à defesa com muito valor, não bastou para resistir ao com que os soldados de Vossa Majestade a trataram de ganhar, sobre que pudera dizer grandes encarecimentos, que não faço, porque a poderá melhor significar a consideração de que não era possível ganhar-se tanta fortificação sem demasiado valor, o que experimentaram os castelhanos à custa de muitas mortes, em que entraram pessoas de consideração. (Carta de D. Sancho Manuel).

Os defensores que estavam de guarda retiraram precipitadamente, oferecendo pouca resistência, até ao meio da ponte, onde se juntaram à companhia do capitão D. Rodrigo de Aponte y Zúñiga; recebendo reforços, a força defensora conseguiu parar a investida dos portugueses. De parte a parte houve muitos mortos e feridos, resultantes do encarniçado combate que se travou.

Impossibilitado de avançar mais, João Lopes Barbalho tratou de garantir o terreno já conquistado. (…) [G]anhada a metade da ponte, havendo favorecido muito poder do inimigo, tratou o mestre de campo de se cobrir com trincheiras, em que era noite, por escutar as ofensas que se lhe poderiam seguir, de amanhecer sem estar reparado, maiormente que se não necessitava mais para o intento de derrubar a ponte que o espaço dela que estava ganhada. E assim mandou abrir minas, nas quais se continuaram cinco dias com o cuidado que pedia a matéria, recrescendo no escuro (…) todas as horas socorros de consideração ao inimigo, que para estorvar o intento faziam empenhos que não foi possível conservar o posto sem uma contínua bateria, de que nos resultou perda de 30 mortos e 76 feridos, que recompensou bem o efeito que resultou da mina, que foi arrebentar um arco que tinha de largo cento e cinquenta palmos, e de arco de sessenta, com o que não somente se segue arruinar a Castela uma das maiores obras de seus Reinos, impossibilitar à vila de Alcântara lucro de suas fazendas, impedir à Zarza e aos mais lugares que ficam desta parte do Tejo os socorros que lhe vinham de Badajoz, senão ainda desafogar esta Província dos danos que padecia a este respeito. (Carta de D. Sancho Manuel)

Os alcantarenses tinham recebido reforços de várias partes e de toda a nobreza de Brozas e de Cáceres, mas optaram por não os empregar em operações de contra-ataque devido à duvidosa qualidade dos mesmos. Assim, assistiram impotentes ao derrube do arco da ponte, se bem que um manuscrito coevo, transcrito por Gervasio Velo y Nieto, refere que El daño que el rebelde hizo en el puente no fué tanto como se pensó, porque todo el arco que juzgó volar quedó firme en las claves y solamente de los lados padeció alguna ruina. No ha impedido el paso, antes hoy dice el ingeniero mayor del ejército, que aquí se halla, tiene la cortadura linda disposición para hacerse un puente levadizo, con que quedará más asegurada la defensa de esta plaza y del puente. (Velo y Nieto, pg. 78)

No mesmo manuscrito, elaborado pouco depois do combate, pode ler-se que o número de baixas dos portugueses era desconhecido, e que entre os defensores houve netre 12 e 15 mortos e mais de 300 feridos e queimados, entre eles um sobrinho do mestre de campo D. Simón de Castañiza, caído na ocasião do rebentamento do primeiro petardo português.

Já D. Sancho Manuel termina a sua carta com as considerações finais e as recomendações  dos que mais se tinham distinguido em combate:

E no último dia em que havíamos de dar fogo às minas acabou o inimigo de juntar todos seus socorros, com que fez muito maior número de cavalaria e infantaria do com que eu me achava. E porque me não perturbassem, ordenei ao comissário geral que com trezentos cavalos e cem infantes fosse a impedir-lhe a pasagem do rio Alagão e procurasse queimar-lhe as barcas, o que ele fez com grande bizarria, ocupando o vau e mandando ao ajudante da cavalaria João de Almeida de Loureiro que fosse ao porto das barcas a queimá-las, o que obrou com mui bom sucesso, com o que sem sobressaltos consegui o que pretendia. Estimara ser instrumento para que Vossa Majestade lograra outras maiores facções, se bem esta se deve avaliar por uma das maiores que se tem conseguido depois da feliz aclamação de Vossa Majestade. Nesta ocasião se houve o mestre de campo João Lopes Barbalho com a disposição e valor que as armas de Vossa Majestade têm experimentado de seu talento há muitos anos, assim nas guerras do Brasil como deste Reino, e foi-lhe bom companheiro o capitão António Soares da Costa, ajudante de tenente de mestre de campo general, que foi o primeiro que entrou às portas petardeadas; o capitão Pedro Craveiro de Campos, que nesta ocasião ocupou a vanguarda até ser ferido nela, na qual sucedendo os capitães Filipe do Vale Caldeira e Simão de Oliveira da Gama; que com muito valor pelejaram o ajudante Álvaro Saraiva, que governando uma companhia fez o mesmo; os ajudantes Manuel Machado Caldeira e Domingos da Silveira acudiram com particular satisfação às obrigações de seus cargos, e geralmente o fizeram todos, de maneira que devem ser admitidos em título dos melhores vassalos que logra a Coroa de Vossa Majestade, cuja Católica e Real Pessoa guarde Deus largos e felizes anos, como a Cristandade há mister. Idanha.

Em conclusão, o ambicioso plano de D. Sancho Manuel de Vilhena não pudera concretizar-se na tomada de Alcântara; todavia, restava ao cabo de guerra português demonstrar o seu zelo e  exaltar, do meio-sucesso obtido, um episódio de reputação para as armas régias, como aliás fazia frequentemente. As poucas linhas que dedica à operação o Conde de Ericeira (meia dúzia, literalmente, na edição de 1751, facsimile acessível online a partir de Google ebooks) são demonstrativas do pouco efeito prático que o rebentamento parcial da ponte teve, apesar do que D. Sancho Manuel sugere na sua carta. Mas para a pequena guerra de fronteira, mesmo sem pesar no quadro da estratégia global, foi mais uma ocasião de experiência de combate para as forças envolvidas.

Fontes e bibliografia:

ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, maço 8-A, carta de D. Sancho Manuel, anexa à consulta de 25 de Abril de 1648.

ERICEIRA, Conde de – História de Portugal Restaurado, Parte I, Livro X, edição de 1751, pg. 268; obra parcialmente disponível on-line.

VELO Y NIETO, Gervasio – Escaramuzas en la frontera cacereña, con ocasión de las guerras por la independencia de Portugal, Madrid, s.n., 1952.

Imagem: “Trabalhos de fogo”, pormenor de um quadro de 1645, de Joseph Furttenbach, Germanisches Nationalmuseum. Representa um engenheiro de fogos, armado de capacete, coura e com uma rodela para defesa pessoal, bem como o instrumento com que os artilheiros davam fogo à peça, com dois morrões acesos – e que era usado também para os petardos.

O assalto à ponte de Alcântara, 25 e 26 de Março de 1648 (1ª parte)

Em 25 e 26 de Março de 1648, o governador das armas do partido de Penamacor, província da Beira, D. Sancho Manuel de Vilhena, tentou um arrojado empreendimento militar contra a bem fortificada praça de Alcântara (Alcántara, em castelhano). O acontecimento mereceu uma menção não muito extensa do Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado (parte I, Livro X, pg. 268, da edição de 1751, parcialmente disponível on-line). Já no século XX, o historiador espanhol Gervasio Velo y Nieto dedicou ao assalto algumas páginas em Escaramuzas en la frontera cacereña, con ocasión de las guerras por la independencia de Portugal (Madrid, s.n., 1952, pgs. 74-77), embora tenha transcrito erradamente a data do acontecimento a partir de um documento coevo, situando-o em Maio. Este episódio da pequena guerra de fronteira, tão característica do conflito luso-espanhol, permanece hoje praticamente desconhecido. Tivesse sido o resultado favorável às forças de D. Sancho Manuel, a façanha teria sido certamente perpetuada de modo estrondoso. Mesmo assim, sem ter logrado o objectivo inicial, a operação militar não foi deslustrosa, de acordo com a valoração das atitudes militares da época. Por isso, o futuro Conde de Vila Flor enviou a D. João IV um relatório detalhado, se bem que algo confuso na redacção, onde se refere ao “glorioso sucesso” da ponte de Alcântara.

O delinear da operação enquadra-se no pensamento militar típico do período: ausência de uma estratégia concertada com as outras frentes de guerra, desejo de notabilização do comandante em chefe por meio do acrescento da reputação das armas de Sua Majestade (que, em caso de sucesso, poderia traduzir-se numa recompensa pecuniária e no acréscimo da reputação do cabo de guerra, por via das mercês régias), reacção a anteriores actividades de depredação levadas a cabo pelo inimigo através de uma operação punitiva. No caso vertente, D. Sancho Manuel não se limitou a preparar uma acção de pilhagem, mas apontou a um fim mais ambicioso: a tomada de uma importante praça. No cerne da sua resolução também se encontra um traço comum à prática da guerra na Era Moderna – a fraca consistência da informação obtida sobre o inimigo, o que neste caso levou D. Sancho a supor que a operação poderia ser coroada de êxito, como veremos pela transcrição da sua carta.

A preparação da acção dificilmente seria mantida em segredo, pois os efectivos mandados concentrar eram de tal número para aquela parte da fronteira, que não passariam despercebidas ao exército espanhol as necessárias movimentações militares. Foram mobilizados 1.000 infantes: o terço do mestre de campo João Lopes Barbalho, reforçado com 200 elementos do terço do mestre de campo Diego Sanchez del Pozo – castelhano que se notabilizou ao serviço de D. João IV – e 100 auxiliares; e 500 cavaleiros comandados pelo comissário geral Pierre Maurice Duquesne, em 9 companhias. Duas destas eram da ordenança, pois a cavalaria de auxiliares só tomaria forma em 1650, e uma  era do exército do Alentejo, enviada como reforço – a do holandês Manuel Cornellis. No regresso desta companhia ao Alentejo ocorreria o episódio já aqui tratado sob o título “Um crime em Abrantes”. Acompanhava esta força de infantaria e cavalaria um grande número de carros e carretas, com diverso material e o necessário equipamento de fogos (petardos para derrubar as portas da fortificação) e os respectivos engenheiros.

Velo y Nieto refere que era esperada uma operação de envergadura por parte dos portugueses, mas não se sabia qual seria o objectivo. Havia receios que fosse Zarza la Mayor, em vingança de alguns dissabores causados pela cavalaria de Zarza, os montados, semelhantes às companhias de cavalos pilhantes ou moradores de algumas localidades portuguesas da fronteira. Mas Alcântara parecia pouco provável:

La conquista de la misma resultaba en extremo difícil, porque para llegar a sus puertas era indispensable vadear el río Tajo o pasar el puente romano, y ambas empresas ofrecían serios peligros; la primera, porque los accidentes de sus orillas imposibilitaban o dificultaban en extremo el paso de la artillería y demás pertrechos, ya que el terreno que circunda a la plaza es escabroso y casi inaccesible; y la segunda, porque si se aventuraban a cruzar el puente, serían barridos con el fuego de los mosquetes y la artillería. (Velo y Nieto, pgs. 74-75)

A progressão da força portuguesa foi lenta e atabalhoada e o factor surpresa, se é que era possível mantê-lo, logo se perdeu. No entanto, os espanhóis tardaram a acreditar que o objectivo de D. Sancho Manuel fosse a praça de Alcântara. Pensaram que se tratava de uma manobra de diversão até que a evidência os desenganou. Seguiu-se um combate renhido. Passemos à narrativa de D. Sancho Manuel, vertida em português corrente:

Por esta dou conta a Vossa Majestade do glorioso sucesso que Deus foi servido dar às armas de Vossa Majestade nesta Província, por meio dos que nela nos desvelamos pelo real serviço, e foi que resolvendo-me a empreender o que mais convinha à reputação das armas de Vossa Majestade, à quietação desta Província e bem deste Reino, me fui aos 24 para os 25 deste mês sobre a ponte de Alcântara, para naquela madrugada a entreprender, facilitando-me a facção haver alcançado notícias da pouca guarda e apercebimento com que estava a ponte, se bem prevenida de fortificação considerável, que constava de uma estacada forte, a que se seguia uma trincheira de 25 palmos de alto com uma porta mui forte, e a esta se seguia outra ainda de mais consideração, a que sucediam dois retrincheiramentos; e a eles outra estacada com porta, e acabado isto se topava com uma torre que havia no meio da ponte, bem aparelhada no forte para a defesa. Para conseguir este intento levei quinhentos cavalos governados pelo comissário Pedro Maurício Duquesne, que constavam das companhias dos capitães Gaspar de Távora, Manuel Furtado de Mesquita, João de Melo Feio, Dom Francisco Naper, e duas da ordenança, de Henrique Leitão Rodrigues, governada pelo seu tenente Fernão da Guarda, e João Cordeiro, com mais as de Manuel Cornellis e Nuno da Cunha de Ataíde, a cujo cargo vieram estas duas companhias, e sem embargo de seus achaques se achou em tudo com grande zelo. Era a infantaria mil infantes, dos terços dos mestres de campo João Lopes Barbalho, em que marchariam setecentos homens das companhias dos capitães Filipe do Vale Caldeira, Simão de Oliveira da Gama, Manuel de Brito, Mateus Alves, Simão da Costa Feio, Simão Fernandes de Faria, Fernão Monteiro Fialho, Jorge Fagão e a do capitão Diogo Freire, governada pelo seu alferes Per André, e a do mestre de campo governada pelo seu sargento com mais três companhias de auxiliares dos capitães João de Elvas, António Estaco, Manuel Laranjo, e marchavam mais duzentos infantes do terço do mestre de campo Diogo Sanches del Poço, a quem chamei com eles para se achar nesta ocasião; eram dos capitães Paulo de Andrade, Bartolomeu de Azevedo e a companhia de Bernardo Pereira, governada pelo ajudante Álvaro Saraiva. Com esta gente, que me pareceu bastante, me saí da praça de Segura, e em razão de lhe tocar por seu turno, nomeei para o primeiro assalto ao mestre de campo Diogo Sanches com a sua gente, dando-lhe do outro terço a que me pareceu necessária e todos os apetrechos de fogo e engenheiros dele que convinha para a execução do intento, e para sua guia ao capitão João Cordeiro, pessoa que por se haver criado na praça de Segura, era mais prático naquele distrito. E nesta conformidade, dando ao mestre de campo a gente que lhe tocava para a facção, o despedi pelo caminho mais oculto por onde se poderia avizinhar a ponte. E eu com o resto do que me ficou, segui via direita a emboscar-me junto a ela, donde havia de arrebentar [ou seja, aparecer], tanto q se petardeasse a primeira porta. Mas sucedeu muito ao contrário do que se podia imaginar, e foi que João Cordeiro, nas duas léguas que há de distância de Segura [a] Alcântara, gastou toda a noite sem acabar de chegar, a cuja causa o tenho prezo por me parecer não podia ser sem culpa sua, e vendo eu que por ser já claro dia se ia perdendo a facção, mandei investir a ponte pelo mestre de campo João Lopes Barbalho, parecendo-me que não podia Diogo Sanches estar tão longe que às primeiras cargas não chegasse com os petardos e mais aparelho de escalar, com o que por esta via se poderia remediar a falta que com sua tardança se seguia. Mas nem por esta via se conseguiu por esta vez a facção, porque havendo o mestre de campo Diogo Lopes Barbalho petardado a ponte, e não entrando só por falta de instrumentos, chegou Diogo Sanches com eles a tempo que o inimigo estava refeito, em razão de haver tido mais de duas horas para se poder prevenir, com o que querendo Diogo Sanches avançar, lhe deu uma pelourada de que está fora de perigo; feriram mais ao capitão Manuel Correia de Mesquita com um mosquetaço, de que morreu, havendo procedido com muito valor; também se deu outro ao sargento-mor Manuel Pinto, que se houve na mesma conformidade, e outra em o capitão Paulo de Andrade. E por ver que não estava já a facção capaz de se lograr me tornei a retirar à praça de Segura, onde me ofereceu à consideração impossíveis para o intento o tornar a conseguir, em razão de haver entrado ao inimigo socorro (…) (carta sem data, anexa à consulta de 25 de Abril de 1648, na véspera do nascimento do infante D. Pedro, futuro D. Pedro II – ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, maço 8-A)

Segundo um documento da Biblioteca Nacional de Madrid, citado por Velo y Nieto (e no qual a força portuguesa de infantaria é ampliada para o triplo: 3.000 homens), habiendo avanzado el Maestre de Campo, Diego Sánchez, a una de las puertas de aquel puesto con el más florido de un tercio, lo rechazó matándole cuatro o seis, y entre ellos un alférez vivo, y el mismo Maestre de Campo se retiró herido y con él la manga que abía avanzado, que por haberse descubierto a las defensas que tiene el puente, recebió mucho daño y por esta causa dejó  de avanzar la otra manga por la puerta de San Lázaro. (Velo y Nieto, pg. 75)

D. Sancho Manuel retirou para Segura, mas os defensores de Alcântara recearam que o exército português fosse atacar Zarza la Mayor, pelo que foram para ali enviados reforços de Ceclavín e outras localidades. Todavia, no dia 26 estava de novo o exército português sobre a ponte de Alcântara.

(continua)

Agradeço ao estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral a disponibilização da obra de Velo y Nieto, de que me socorri para compor este pequeno artigo.

Imagem: A praça de Alcântara, sendo visível a ponte onde se travaram os combates. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O combate dos campos de Moraleja, 23 de Março de 1650

Assistindo D. Sancho em Viseu, vieram os Castelhanos com trezentos cavalos correr a campanha de Penamacor. Saiu desta praça o mestre de campo João Fialho com o seu terço, e o capitão de cavalos Manuel Furtado com sua tropa. Adiantou-se este da infantaria intempestivamente; investiram os Castelhanos, mataram-no logo, e ao ajudante da cavalaria Francisco de Figueiredo. Acudiu João Fialho, retiraram-se os Castelhanos, e foram os dois mortos geralmente sentidos por haverem servido com grande valor e satisfação.

(ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro XI, pg. 338 – citação vertida para português actual)

Este trecho publicado pelo Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado serve de introdução ao combate dos campos de Moraleja, pois que a incursão espanhola que custou a vida aos dois oficiais portugueses provocou uma resposta por parte de D. Sancho Manuel de Vilhena, então governador das armas do partido de Penamacor. O resultado da operação de desforra foi superior ao inicialmente pretendido, uma vez que nos combates entre as duas forças inimigas – tão característico da longa guerra de baixa intensidade travada nas fronteiras – acabou por perder a vida D. Sancho de Monroy, galhardo e experiente militar espanhol, governador das armas do partido de Alcântara. Como sempre, D. Sancho Manuel não perdeu tempo em enviar para o Conselho de Guerra um relatório com a sua versão dos acontecimentos. Esta era uma forma muito usual do futuro Conde de Vila Flor mostrar os seus serviços à Coroa portuguesa, num misto de auto-propaganda e dever de ofício, tendo sempre no horizonte a almejada recompensa pelo zelo demonstrado. Ainda que pouco significativos fossem os combates, se a sorte das armas pendesse para as hostes lusas, aí estava célere D. Sancho Manuel de pena em punho, passando ao papel os momentos de ferro, chumbo e pólvora. Com esta prolixidade, os arquivos respeitantes ao Conselho de Guerra contêm um manancial de informação sobre os combates da fronteira da Beira, em boa parte (mas não na totalidade) aproveitados pelo Conde de Ericeira para compor a sua monumental obra.

A versão dos acontecimentos passados em 22 de Março de 1650, nos campos de Moraleja (distrito de Cáceres), durante os quais perdeu a vida D. Sancho de Monroy, é aqui trazida através da transcrição para português corrente de uma carta de D. Sancho Manuel, datada de 25 de Março e anexa à consulta do Conselho de Guerra de 4 de Abril de 1650 (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, maço 10):

Relata esta carta a Vossa Majestade o mais feliz sucesso e a maior vitória que as armas de Vossa Majestade alcançaram nesta Província desde sua feliz aclamação a esta parte.

Já avisei a Vossa Majestade como o inimigo na campanha desta praça matou ao capitão de cavalos Manuel Furtado de Mesquita e ao ajudante Francisco de Figueiredo, e como estes dois cabos eram pessoas de opinião e bom procedimento no serviço de Vossa Majestade, foram suas mortes mui sentidas e mais por serem mortos a sangue frio, ficando por minha conta a satisfação deste empenho, que procurei como abaixo digo.

Alcancei, por confissões de algumas línguas, que o inimigo estava com seis tropas de cavalos na sua praça da Moraleja, aguardando que a cavalaria deste partido fizesse alguma entrada por aquela parte, por ser mui cómoda para atalhar todas as entradas na sua campanha. E como me constou esta certeza, tratei de de mandar àquela praça um troço de gente capaz de poder chocar com a que o inimigo se achava, como em efeito mandei em 22 deste [mês],ordenando ao mestre de campo João Fialho que com quinhentos mosqueteiros, que tirei das guarnições das praças, pagos e auxiliares, ocupasse o posto da Venda do Cavalo, sítio que tem grandes conveniências para infantaria, e com duzentos cavalos da mesma qualidade, que constam das três tropas pagas e três da ordenança, ordenei ao capitão Gaspar de Távora e Brito que fosse à campanha da Moraleja, onde as tropas do inimigo alojavam, e que tocando-lhe armas, pegando-se no que se achasse sem fazer demora nem lançar partidas ao largo, se tornasse a retirar onde o mestre de campo o aguardava com a infantaria, e que ali fizesse alto e desse penso [ou seja, a ração] à cavalaria, esperando pelo inimigo que se havia de ver marchar de meia légua de distância [cerca de 2,5 Km]. E assim sucedeu como eu o podia desejar, porque tomando o inimigo a vista da nossa cavalaria, a veio buscando até chegar ao sítio onde a nossa gente o aguardava. Trazia o inimigo seis tropas de cavalos, que constavam de duzentos e trinta [cavaleiros],  governadas pelo capitão Dom Francisco dal Mesquita, e com eles vinha o mestre de campo Dom Sancho Monroy, governador das armas do partido de Alcântara, bem conhecido nos exércitos del-Rei de Castela por sua qualidade e valor. Vindo em direitura buscar a nossa gente, e como a ordem que eu tinha dado ao mestre de campo João Fialho era que se chocasse sem se dar quartel a ninguém, por eles assim o haverem usado com o capitão Manuel Furtado e ajudante, pedindo-lhe as vidas, o dispôs ele assim, mandando formar das nossas seis tropas três batalhões [formações tácticas da cavalaria – note-se que D. Sancho Manuel refere-se a companhias quando refere tropas], e entre eles mangas de infantaria à ordem do sargento-mor António Soares da Costa,  com que se marchou com a cara ao inimigo, e este formado aguardou o choque. Levava a vanguarda, com o primeiro batalhão, o capitão João de Almeida Loureiro, que foi o primeiro que se misturou com o inimigo, e seguindo-o a ele a mais cavalaria com o capitão Gaspar de Távora, que pelejou com grande valor, e o capitão Paulo de Brito da Costa fizeram o mesmo, e depois de apertado o inimigo das nossas armas, havendo pelejado com grande instância por grande espaço, se quis pôr em fugida, mas não lhe valeu, porque se lhe foi dando alcance mais de uma légua, e de toda a sua cavalaria se não viram recolher mais que até vinte e cinco cavalos. Teve o inimigo nesta ocasião uma considerável perda com a morte de todos os seus cabos, a saber: o governador da cavalaria Dom Francisco dal Mesquita, o capitão de cavalos Dom Fernão [Fernando] de Alonso Torobico, o capitão de cavalos João Polão [Juan Montero Polán], o capitão de cavalos Dom Fabião de Cabrera, dois ajudantes da cavalaria, três tenentes, todos mortos naquela investida. Antes de o inimigo voltar as costas morreram mais de cem homens da sua parte, e para lustre de tão grande vitória morreu também o mestre de campo Dom Sancho Monroy, governador das armas do partido de Alcântara, pessoa da maior experiência e talento que tinha o inimigo, tomado-se-lhe muitos cavalos de que têm aparecido sessenta, que ficam nas cavalarias de Vossa Majestade (…). E para que Vossa Majestade saiba que este sucesso foi obrado mais por promissão divina que por braço de soldados, se não perdeu da nossa gente mais que dois mortos, valendo-lhe [aos restantes] irem armados de peito, espaldar e murrião, e nove feridos com um alferes; morreram no alcance nove cavalos nossos (…). Penamacor, 25 de Março de 1650.

Imagem: “Cena de Batalha”, por Philips Wouwerman (1619-1668).

O ataque ao Vale de Matamoros, 25 de Novembro de 1653 – Parte 3

Gerard

Continuemos com a narrativa de Mateus Rodrigues:

[L]á pela tardezinha [hoje dir-se-ia “lá pela tardinha”], (…) já se ia o sol posto quando a nossa infantaria veio aparecendo a um alto, à vista da vila. Assim como os castelhanos viram a infantaria, ficaram arreados, mas contudo sempre com ânimo dos diabos, que bem se viu no que pelejaram sem terem coisa donde se fizessem fortes, mais que de uma igreja que tinham.

Assim como a infantaria esteve toda junta, formou-se em dois batalhões com suas mangas grossas de mosquetaria diante, e vieram-se chegando para a vila tocando-lhe as caixas [de guerra] a degolar, e a cavalaria toda, por todas as partes também arrimando-se à vila, tocando as trombetas a degolar, que parecia tudo uma notável confusão. As mangas de mosqueteiros que iam diante sempre iam lançando de si muita bala para a vila. O inimigo de dentro da vila choviam [mais correctamente, o autor deveria ter escrito “fazia chover”] balas sobre nós; contudo, assim como se arrimaram às trincheiras foram logo entrando por cima delas, apesar do inimigo. E já a este tempo eram Avé Marias [a hora litúrgica das Vésperas, após o sol posto], que nisso havia ainda mais confusão por ser de noite, que havia tão grande gritaria dentro que se ouvia duas léguas, e já neste tempo estava toda a gente dentro da vila, porém os tiros não cessavam, que até meia-noite houve muitos tiros. O inimigo não tinha donde se fizesse forte senão na igreja, além de que tinham lá a sua fazenda metida, que na vila não havia mais que gado e porcos, muitos, e carne de porco, que havia tanta de porcos vivos e mortos. Tinha este lugar mais de dez mil arrobas de carne, que tratavam ali de fazer chacina [carne conservada em sal] para venderem para fora.

Os defensores refugiaram-se na igreja, sem se quererem render. Só quando viram que os portugueses se preparavam para fazer saltar as portas com um petardo, e sob ameaça de serem todos degolados, decidiram aceitar a capitulação concedida pelo tenente-general Tamericurt, que foi a de poderem sair da vila com todos os bens que pudessem carregar às costas. Para desgosto de Mateus Rodrigues e dos outros soldados, que já contavam com a sua parte da pilhagem,  os cabos maiores do exército entraram no lugar de culto, onde estava reunida a parte mais valiosa dos bens dos moradores, puseram sentinelas à porta e não deixaram entrar os soldados. Logo que os habitantes de Vale de Matamoros saíram com o que puderam carregar, os oficiais trataram de fazer o inventário do valioso saque, pois se o lugar era pequeno, era mui rico, que tinha 200 vizinhos, era o mais fresco lugar de águas e frutas que havia em toda Castela.

Nessa mesma noite puseram fogo a todas as casas. Quando amanheceu, não havia nenhuma que o fogo não tivesse devorado. E foi ao amanhecer que os soldados se puseram em marcha, de regresso às respectivas praças. Mateus Rodrigues refere a desgraça dos feridos: não houve nenhum ferido por coisa pouca que levasse que não morresse, que tinha esta canalha deste lugar tão más entranhas que tinham todas as balas ervadas [untadas com um preparo à base de ervas venenosas – uma prática que, apesar de proibida entre cristãos, ocorria de quando em vez desde a Idade Média, neste caso com as pontas das flechas e dos virotes] e não tinha cura mais senão encomendar a Deus.

Apesar da vila ter sido destruída pelo fogo, a operação custou 200 homens aos portugueses. Nas suas memórias, Mateus Rodrigues recrimina o tenente-general Tamericurt por ter iniciado o ataque ao anoitecer, quando o inimigo estava alerta e ainda podia ver a força atacante. Se tivesse atacado duas horas antes do amanhecer, assevera o memorialista, teria apanhado o inimigo de surpresa e a reacção não seria tão forte. O desprezo que os oficiais demonstraram pela vida dos seus subordinados nesta operação, a desigualdade tremenda na hora de repartir o saque, um sentimento acumulado de injustiça, tudo isto fez crescer  em Mateus Rodrigues – ainda a convalescer da ferida recebida no combate de Arronches – a determinação de deixar o exército e regressar à sua terra de Águeda, ao cabo de mais de 12 anos de serviço.

A queima da vila de Matamoros foi uma pequena operação, que não mereceu mais do que umas breves linhas na monumental obra do Conde de Ericeira. Para o quase desconhecido soldado de cavalos português, autor de um escrito não menos valioso para o estudo da época, tratou-se de um ponto importante de viragem na sua vida. Tomou aí uma decisão: a deserção. Mas ainda antes de a pôr em prática, ver-se-ia envolvido numa outra operação militar, esta de maior envergadura e maior nomeada: a tomada de Oliva. A seu tempo será aqui tratada.

Bibliografia: veja-se a Parte 1 deste artigo.

Imagem: Gerard Terborch, “Oficial ditando uma carta”, c. 1655, National Gallery, Londres. Compare-se este quadro com outro do mesmo autor, já publicado aqui.

O ataque ao Vale de Matamoros, 25 de Novembro de 1653 – Parte 2

1650

A uma légua da vila, a cavalaria adiantou-se à infantaria, que continuou a marchar devagar. Divididos em duas colunas, os cavaleiros acercaram-se da localidade, procurando controlar todas as entradas desta. Mas a parte da cavalaria que estava a cargo do comissário geral da cavalaria de Olivença, o francês Pierre Maurice Duquesne, aproximou-se demasiado das defesas da vila, constituídas por terraplenos de protecção, à laia de baluartes.

Prossegue a narrativa de Mateus Rodrigues: [Os habitantes da vila] havia muitos dias que andava[m] de suspeitas, e além disso mui bem sabiam que íamos lá naquele dia, porque já tinham o melhor fatinho posto em seguro [fato, neste caso, significa todo o tipo de roupa e outros artigos de uso pessoal, e não um grande rebanho de cabras ou ovelhas, como às vezes também surge nas narrativas da época]. E os castelhanos daquele lugar eram os piores que havia em toda Castela, que quando apanhavam algum algumas partidas que lá iam, muitas vezes não se haviam de render senão feitos em pedaços, nem nunca jamais pediam quartel. Quando viram a cavalaria ao redor da vila sem a infantaria imaginaram que a não levávamos, e tomaram tanto ânimo, que (…) saíram fora da vila a pelejar com a cavalaria. Mas suposto que eles o fizessem de valentes ou animosos, contudo ajudava-os muito a terra, que ainda que nós lhes quiséssemos ir fazer algum dano não podíamos chegar aonde eles andavam, e eles nos abrasavam com balas, que estávamos mui cerca deles; e sobretudo não havia ali homem nenhum naquela vila que não fosse caçador do ar [ou seja, caçador de aves], vejam se nos errariam.

Mateus Rodrigues, que participou na operação ainda combalido do ferimento sofrido em Arronches, semanas antes, queixa-se do despropósito do comissário geral Duquesne, o qual expôs a cavalaria às balas certeiras do inimigo, de tal modo que em pouco tempo 10 ou 12 cavaleiros tinham já caído mortos. E como se tal não bastasse, ainda ordenou o francês ao tenente da companhia do capitão Manuel Peixoto – um oficial pouco experiente, segundo o memorialista – que fosse com 50 homens, todos com carabinas, atacar o inimigo: “sai, tenente, bota a Cristo a degolar aqueles cornudos, e se não mos não botar dali fora, você mo há-de pagar”. Os soldados ficaram perplexos com esta ordem, porque o inimigo, isso era o que queria, que lhe fossem lá fazer floreios e escaramuças, que (…) estavam seguros de que lá não havia de chegar cavalo nenhum (…). Apesar da ordem quase suicida, o inexperiente tenente, brioso e mui honrado, lançou-se animoso ao seu destino, mas o pobrezinho o deitaram logo do cavalo abaixo com uma bala e mais alguns dez ou doze dos que levava consigo. Os restantes retiraram apressadamente a incorporar-se com o grosso da cavalaria. Levantou-se então um burburinho entre os soldados, quase princípio de motim, com remoques à grande parvoíce do comissário geral, que era estarem ali parados a servir de alvo, até que por fim o oficial francês mandou retirar as unidades sob o seu comando para um vale abrigado, e aí esperar pela infantaria.

Uma pequena observação a respeito do destacamento enviado por Duquesne ao encontro do inimigo: é provável que os cavaleiros tivessem formado em escaramuça, pois Mateus Rodrigues frisa bem que todos eram carabineiros, e que tivessem principiado por (ou, ao menos, tentado) fazer fogo por fileiras, quer utilizando a táctica do caracoleio, quer revezando-se as fileiras através dos intervalos dos soldados da frente. De qualquer modo, seriam manobras lentas e exporiam os cavaleiros ao tiro certeiro dos experientes caçadores que defendiam a vila de Matamoros.

(continua)

Bibliografia: veja-se a Parte 1 deste artigo.

Imagem: Philips Wouwerman, “Soldados pilhando”, c. 1650, Reiss-Engelhorn-Museen, Mannheim.

O ataque ao Vale de Matamoros, 25 de Novembro de 1653 – Parte 1

Matamoros1

Matamoros2

Uma das consequências imediatas da vitória portuguesa no combate de Arronches, em 8 de Novembro de 1653, foi a supremacia que a cavalaria portuguesa conseguiu alcançar durante algum tempo, o que permitiu lançar incursões a localidades em território inimigo com reduzida oposição.

A primeira dessas incursões ocorreu em 25 de Novembro de 1653. D. João da Costa, Conde de Soure, governador das armas do Alentejo, incumbiu da operação o tenente-general da cavalaria Achim de Tamericurt. O oficial francês comandava a cavalaria da província alentejana enquanto o seu general, André de Albuquerque, recuperava dos graves ferimentos sofridos em Arronches. A História de Portugal Restaurado faz apenas uma breve referência à incursão, na qual participaram as companhias de cavalaria de Elvas, Campo Maior e Olivença e dois terços pagos da guarnição desta vila, sob o comando do mestre de campo de um deles, Manuel de Saldanha (quando Olivença foi tomada pelos espanhóis em 1657, era este oficial o governador da praça). Conforme narra o Conde de Ericeira, saíram estas forças a queimar dois lugares vizinhos à cidade de Jerez [de los Caballeros], chamados os Vales de Matamoros e Santa Ana. Mas a acção é descrita em poucas linhas, ocupando muito menos espaço do que a operação que se lhe seguiu, a tomada da vila de Oliva.

O soldado de cavalaria Mateus Rodrigues, que participou em ambas as operações, deixou nas suas memórias um registo mais detalhado e pitoresco da acção do Vale de Matamoros, contada “a partir de baixo”, da perspectiva do combatente comum. De acordo com Rodrigues, a cavalaria espanhola, derrotada em Arronches, deixara o Vale de Matamoros sem defesa alguma (assim garantiam as línguas – soldados e paisanos capturados para obter informações), pois não tinha gente paga que o defendesse nem castelo onde se fizessem fortes. O Vale de Matamoros ficava a 7 léguas (cerca de 35 quilómetros) de Olivença, que era distância que uma força mista de cavalaria e infantaria, sem outro impedimento (trem e artilharia), podia cobrir em 24 horas de marchas.

Ajustado o dia da operação, juntou-se a cavalaria em Elvas e daí partiu para Olivença, para se incorporar com a infantaria. Chegando o tenente-general Tamericurt com a força montada, estava tudo fora da vila esperando por ele, que assim como chegámos nos pusemos em marcha na via de Alconchel, que é um castelo nosso que está guarnecido e por ali era a nossa marcha [a praça de Alconchel estava então na posse dos portugueses]. E quando ali chegámos seriam dez ou onze horas do dia. Ali fizémos alto todos, descansando um pouco enquanto os corpos se alentavam com alguma coisa, e a dar de comer aos nossos cavalos.

Depois do descanso, Achim de Tamericurt e Manuel de Saldanha mandaram formar as tropas e passaram-nas em revista, ocasião para se assentarem os róis detalhados dos efectivos, de forma a saber quantas baixas se sofrera uma vez finda a operação. Acharam 800 infantes e 1.400 cavalos, e tomado tudo em boa conta e posto tudo em boa forma começamos a marchar, que já dali nos não ficava mais de 4 léguas e sempre por campanha donde nos podia ver o inimigo a maior parte do caminho, porque tem o lugar à roda dele serras tão altas que se vê de cima delas meio mundo.

(continua)

Bibliografia:

ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro XII, pgs. 438-439.

Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita (AHM), pgs. 360-366.

Imagens: De cima para baixo, localização do Vale de Matamoros em relação à fronteira luso-espanhola e pormenor do palco de operações (imagens retiradas do programa Google Earth).

O Teatro de Operações Transmontano: artigo online na Revista Militar

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A Guerra da Restauração (1640-1668) no Teatro de Operações Transmontano”. Um interessante artigo do Sr. Tenente-General José Lopes Alves, na edição on-line da Revista Militar.

Imagem: Província de Trás-os-Montes, pormenor de um mapa de 1700. Posterior à Guerra da Restauração, mas elucidativo da dimensão da província e daquela que foi a fronteira de guerra. Biblioteca Nacional de Lisboa, Cartografia, CC164P.

Ainda sobre a tentativa frustrada de tomar Badajoz pela traição em 1652

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No seu magnífico blogue Puertas de Badajoz, o estimado amigo Sr. Julián García Blanco publicou um interessantíssimo artigo sobre os sargentos traidores e o local onde essa traição deveria ter sido consumada em 1652. Devido aos afazeres profissionais que me mantiveram algum tempo ausente da blogosfera, não me tinha ainda sido possível consultar o excelente artigo. Aqui fica a reparação deste atraso, dando o devido destaque a um blogue cuja leitura, no seu todo, é imprescindível para quem gosta de História. Para mim, claro, é uma enorme satisfação poder ficar a conhecer mais sobre o episódio que foi aqui focado numa série de seis artigos.

Imagem: “Corographía y descripción del territorio de la Plaza de Badajoz y fronteras del Reyno de Portugal confinantes a ella” (1658), de Bernabé de Gaynza, in La Memoria Ausente. Agradecimentos a Carlos Sanchéz e à Editora 4 Gatos.

Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (6ª e última parte)

cena

Ao tempo dos preparativos para a operação de tomada de Badajoz, o soldado Mateus Rodrigues encontrava-se com a sua companhia (comandada pelo capitão Francisco Pacheco Mascarenhas) servindo na guarnição de Mourão. Quando D. João da Costa decidiu pôr em andamento as forças, esta companhia, bem como as de Dinis de Melo de Castro e de Diogo de Mendonça, que serviam em Moura, a de Jerónimo de Melo, estacionada em Serpa, e a do holandês van Inguen, que guarnecia Monsaraz, receberam ordem para se incorporarem com o terço de Moura, o melhor do Alentejo, comandado pelo mestre de campo Manuel de Melo. Deviam marchar para Olivença, mas o segredo era tal que ninguém sabia o verdadeiro objectivo de todo aquele aparato bélico. Este só veio a ser revelado quando a força de 1.200 infantes e 300 cavaleiros recebeu ordem de abortar a missão, no dia 19 de Março, pelas razões expostas no anterior capítulo desta narrativa. Não teria o soldado de cavalos ocasião de repetir a marcha.

Desavença e descoberta do plano

Com efeito, a operação de tomada de Badajoz fora adiada para a noite do Domingo de Pascoela. Mas um acontecimento inesperado deitaria tudo a perder para os portugueses. De acordo com o relatório de João Leite de Oliveira,

(…) sucedeu que o sargento galego de nação [Alonso de Castro], temendo que se viesse a descobrir o negócio, disse à sua amiga que andava metido em uns tratos, que não lhe podia durar muito a vida, pelo que se queria ir terra dentro, e a quis persuadir que fosse em sua companhia, o que ela não quis fazer, e assentaram que a mandaria buscar.

E depois de ele ido há 7 ou 8 dias, teve esta [mulher] uma pendência [ou seja, discussão] com a do outro, e eram vizinhas, e tinham comido todos juntos muitas vezes, e com a paixão foi a um ajudante e lhe disse que o sargento flamengo vinha a Portugal algumas vezes, e não levava pilhagem, mas que lhe não faltavam reales de a ocho [moeda espanhola da época, que também circulava em Portugal], com que bem se regalava, e a sua amiga. Com isto e mais alguma diligência que o ajudante fez, deu conta ao seu general, o qual mandou encarregasse também à mulher que o vigiasse [ao sargento flamengo], quando saía fora, como o fez.

E vindo a Elvas dar-nos parte de como o outro sargento era ido, mas que ele se atrevia a fazer só o negócio, porque entrava e saía pela meia-lua cada vez que queria, por ser mui conhecido dos soldados, porém a mulher o vigiou a noite que cá veio, e lhe deram ao outro dia pela manhã em casa, e o acharam almoçando com a amiga, e dando-lhe busca na casa lhe acharam cem patacas que de cá havia levado. Indício certo que o condenou, pelo que dando-lhe tormento, ao sétimo confessou tudo que se havia passado, e o negócio se acabou, e ele também, porque o enforcaram. E os castelhanos ficaram mui assombrados, e dizem que foi em Badajoz um dia de juízo, dando a Deus muitas graças por os livrar de tão manifesto perigo. (“Relação…“, in Madureira, pgs. 183-184)

Assim termina o relatório do tenente-general João Leite de Oliveira. Já a narrativa de Mateus Rodrigues é bem mais colorida na descrição, e sobretudo muito menos refinada no vocabulário. Embora coincidente no essencial dos detalhes, dá como causa principal de tudo se descobrir uma discussão entre o sargento flamengo e a sua amiga, e não entre as duas mulheres. Depois de referir a fuga do sargento galego, o soldado de cavalos prossegue, misturando português com castelhano, como é habitual quando reconstrói diálogos entre espanhóis:

(…) tinha um deles uma amiga das portas adentro [termo usado no período para designar uma amante], e este que a tinha [Alejandro Perez, o flamengo] era aquele  a quem o outro [Alonso de Castro, o galego] havia dado as contas do que tinha tratado com Dom João da Costa. Como [a] amiga viu que o sargento supria a gastos de muita consideração, e viu que as pilhagens lhe não podiam suprir a tantos gastos, e assim que uma noite, estando eles na cama falando nas idas que fazia a Elvas a pilhagens, lhe disse [a] amiga ao sargento «ó fulano [Mateus Rodrigues, tal como o tenente-general, não indica os nomes dos sargentos], por vida vuestra que me digais donde vos viene tantos dineros, como vos veio gastar, perque no me puedo persuadir a que la[s] pilhages puedan suprir a tanto como gastamos, perque unas vezes traeis e outras no, e nunca nos faltan dineros». Pergunta foi esta que tinha a negra puta no corpo, pois deu ocasião a tantas desventuras (…), de sorte que o sargento lhe respondeu (…) um disparate mui grande, que lhe serviu de perder a vida. Disse o sargento que lhe importava saber donde lhe vinham sus dineros, que como ella gastava o que havia mister [ou seja, o que lhe apetecia], que no procurasse naide; e assim que no hablasse mas en ello. Mas como as mulheres são muito curiosas de saber tudo, e além disso putas ainda muito mais, e mais quando a cousa caía em sujeito de castelhanas, que são delgadas como o mesmo diabo. E assim que tornou a replicar ao sargento que era possível que havia de ser su amiga e estar com un hombre en la cama, que no lhe havia de dar sus cuentas de lo que passava en el mundo, e enfadando-se muito com ela o sargento, lhe disse «boto a Cristo que se vuelves a hablar otra vez en eso, que te he de matar, que mis dineros me vem por muchas vias, de que yo no quiero darte esas cuentas (…)». De modo que o diabo da puta ficou tão escandalizada das cousas do sargento, que se lhe meteu o diabo no corpo, e apenas se levantou ao outro dia da cama, logo foi a falar com o governador (…), que era o Marquês de Totavila (…).

Mais do que pelo duvidoso rigor dos pormenores deste episódio, a escrita de Mateus Rodrigues vale pelo que revela da mentalidade característica do homem e soldado (fosse ele português ou não), e pelo modo como a mulher era encarada neste contexto.

Tão resoluta velhaca como foi esta não se acha, que tão bem pagou a quem a sustentou seis ou sete anos, que tantos havia que o sargento confessou que tinha, e pagou-lhe este bem com o levar à forca.

O sargento foi de imediato preso e submetido a tortura. O outro, que se pusera em fuga, foi mais tarde capturado. Mas enquanto o flamengo foi logo condenado à morte e enforcado, o galego foi poupado durante algum tempo, de modo a que pudesse denunciar qualquer português que com ele tivesse negociado em Elvas e que se quisesse de novo infiltrar em Badajoz, ou lá entrar como volantim (homem encarregado de entregar mensagens ou outra correspondência – note-se que, apesar do estado de guerra, continuava a haver correio regular entre os dois reinos). Foi assim que um alfaiate português de Elvas, que se deslocou a Badajoz como volantim, acabou por ser preso, apenas e unicamente porque era muito parecido com o tenente-general João Leite de Oliveira. Esteve quase a ser submetido a tormento, mas foi salvo por um capitão de cavalos castelhano, que havia pouco tempo tinha estado prisioneiro em Elvas, e a quem o alfaiate havia feito duas galas (trajos distintos, para solenidades) durante o tempo de cativeiro. Foi este oficial que reconheceu o alfaiate e falou com o governador, garantindo a verdadeira identidade do português e assim conseguindo a sua libertação.

O sargento galego acabou por ser enforcado mais tarde. Mateus Rodrigues tirou deste episódio de traição gorada uma conclusão misógena: eis aqui o que tem quem de mulheres se fia, que ainda que um homem muito queira a sua mulher, nem tudo que passa lhe há-de descobrir, pois nelas nunca segredo fez morada. (todas as citações do MMR, pgs. 261-267)

Considerações finais

Ter-se-à passado tudo assim, como o descreve Mateus Rodrigues? Há dúvidas sobre a veracidade de alguns pormenores. O episódio do furriel João Dias de Matos não é referido na confissão do sargento flamengo, que apenas nomeia a incursão do tenente-general. Isto não significa que o dito furriel não tivesse contado a história a Mateus Rodrigues, por tê-la ouvido a João Leite de Oliveira, fazendo como sua a aventura do oficial general. Como também não invalida a possibilidade de João Dias de Matos ter mesmo entrado em Badajoz disfarçado – se os textos do relatório e da confissão não referem esta operação, isso pode ter ficado a dever-se ao facto do tenente-general não querer ver diminuído o seu papel em toda esta história, e ao receio do sargento Alejandro Perez agravar ainda mais o caso contra si (receio inútil, de resto, pois o homem estava já de todo perdido). No entanto, faltam suportes mais fidedignos para confirmar a entrada do furriel de cavalaria, que acabaria os seus dias em Portugal, em 1660, enforcado como traidor, quando era capitão de cavalos no exército de Filipe IV.

O caso que levou ao fracasso do plano de traição, conforme conta Mateus Rodrigues, também não coincide com o texto da confissão de Alejandro Perez. A amiga deste chamava-se Isabel Sanchez, a quem o sargento dizia que ia a Lobera, quando na realidade se deslocava a Elvas; não há na confissão qualquer referência a desentendimentos entre ambos. O desentendimento que existiu, opôs o sargento flamengo ao seu camarada e à amiga deste, uma Catalina García, e esteve directamente relacionado com a fuga de Alonso de Castro. Como confessou Alejandro Perez, la pendencia que tubimos fue porque pasabamos en casa de Catalina García, su amiga, y me cargabán la mitad del gasto, sendo ellos dos y yo uno, y temiendo que yo le avia de descubrir hio la fuga. (Arquivo Geral de Simancas, Sección Guerra Moderna, Legajo número 1822 )

O facto é que a importantíssima praça extremenha nunca seria tomada durante a Guerra da Restauração – nem pela astúcia, nem pela força das armas.

A terminar, renovo os meus agradecimentos ao amigo Juan Antonio Caro del Corral por me ter enviado a cópia do manuscrito do AGS, e remeto os leitores para este interessante artigo no blog do amigo Julian García, Puertas de Badajoz.

Imagem: A propósito de militares e amigas… “Cena de bordel”, de Frans van Mieris, o Velho, 1658. Mauritshuis, Haia.

Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (5ª parte)

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Os preparativos

D. João da Costa estava impaciente para iniciar a operação que iria conduzir – assim pensava ele – à tomada da importante praça da Extremadura. João Leite de Oliveira refere que, como o Guadiana ia cheio e impossível de passar a vau, o mestre de campo general

(…) mandou com muita pressa obrar em Juromenha uns batelões para passar a gente com brevidade, dos quais o inimigo teve notícia, e começou a andar com cuidado, tomando línguas todos os dias [“tomar língua” significava capturar paisanos ou soldados do inimigo, a fim de obter informações]; e também entre nós se rompeu [ou seja, surgiram os rumores], pela novidade das barcas, que havíamos de fazer alguma jornada para aquela parte de Olivença (…). (Relação…, pg. 181)

Difícil manter o sigilo, de um e de outro lado da fronteira. D. João da Costa considerou então que aquele era o melhor momento para se ausentar para Lisboa, onde iria contrair matrimónio, aproveitando também para dar conta ao Rei do andamento do negócio de Badajoz. A viagem e o motivo dela (o casamento) teriam o efeito de despistar as intenções de que algo de grande se estava a preparar. Mantiveram-se, no entanto, os contactos entre o tenente-general e os sargentos, pois de Lisboa continuava D. João da Costa, por meio de correios, a ser informado e a dar ordens. Ficou combinado que o novo encontro entre o mestre de campo general, entretanto elevado a Conde de Soure, e os sargentos teria lugar na noite de 12 para 13 de Março, em Elvas.

Foi aí que ficou tudo decidido. Com o pretexto de que seria necessário infiltrar novamente João Leite de Oliveira no castelo, com a desculpa de que o tenente-general não tinha conseguido ver, da primeira vez, todas as particularidades do local, D. João da Costa acordou com os sargentos que o militar português repetiria aquele feito na noite de 21 de Março, uma quinta-feira. Por precaução, foi dito aos sargentos que o tenente-general iria acompanhado apenas por uma outra pessoa. Mesmo nesta fase adiantada, temia-se que os sargentos fizessem jogo duplo, e não se lhes revelou que a operação estava em marcha.

Movem-se as peças

Portanto, a intenção dos portugueses era outra. Relata João Leite de Oliveira que a 19 de Março

(…) estava o mestre de campo [general] com as portas de Elvas fechadas, gente amunicionada [ou seja, milicianos de auxiliares] e tudo pronto para quarta-feira, 20 do [mês de Março] (…) se meterem em Olivença com tudo, e eu saí no mesmo dia desta vila de Estremoz com 400 cavalgaduras para entrar no mesmo dia em Olivença, de onde havíamos de sair à quinta-feira, dia de São Bento, e eu marchava diante com 500 soldados escolhidos de todo o exército, com os capitães de maior opinião e dois sargentos-mores, engenheiros, um tenente-general da artilharia, condestáveis [posto equiparável a furriel, na artilharia] e artilheiros com cartuchos feitos, granadas, lanças de fogo, e todos os mais apetrechos.

E atrás de mim marcharia o senhor mestre de campo general com tudo o mais, e perto do moinho [o habitual ponto de encontro, a caminho de Badajoz] onde havia de esperar o sargento, me havia eu de adiantar com cinco ou seis homens, e achando-o (…) lhe havia de declarar tudo o que levava, fingindo que não queríamos mais dilatar o negócio, e assim que fossemos à meia-lua, como da outra vez, e fingíssemos o mesmo, ou outra coisa que lhe parecesse por amor [ou seja, por causa] das sentinelas, no que ele veria sem dúvida, e entrando eu com três ou quatro homens na meia-lua com adagas nas mãos, pressionaríamos as duas sentinelas, que no castelo não havia outras para aquela parte; o que feito, me não era dificultoso meter os 500 homens, e metidos eles me podia sustentar dentro vinte dias, por ser um castelo fechado por si com muito boas muralhas, e dentro muito biscoito e munições, e fora dele não tinha o inimigo nenhuma, e a muralha para a parte da cidade era capaz de se pôr nela bateria contra a cidade, por o castelo lhe ficar superior. (Relação…, pg. 182)

Era este o plano. Todavia, não se concretizou, pois no dia 19, já com tudo preparado para a marcha, vieram dois rapazes castelhanos, que se tomaram por línguas pela parte de Campo Maior, os quais disseram que naquela manhã se havia mandado chamar de Badajoz a cavalaria com pressa, e já quando saíram tinham entrado duas ou três companhias (Relação…, pg. 182). D. João da Costa decidiu suspender tudo, não sendo conveniente fazer a marcha, pois mesmo que o inimigo não soubesse do intento dos portugueses (como não sabia), bastaria estar alerta e ter batedores espalhados pelos campos, para que toda a esperança de sucesso da operação se perdesse. Soube-se posteriormente que todos aqueles cuidados da parte de Badajoz tinham ficado a dever-se à informação (provavelmente originada em línguas tomadas por cavaleiros espanhóis, ou por intermédio de espiões) que os portugueses estavam a concentrar tropas; mas quando os espanhóis tomaram mais línguas para a parte de Olivença, sossegaram com as notícias de que, afinal, não havia novidade e tudo estava calmo. Assim, despediram da cidade as companhias de cavalaria que apressadamente tinham mandado chamar.

João Leite de Oliveira voltou a contactar o sargento, para lhe dizer o motivo pelo qual tinha faltado ao encontro na noite combinada. E ficou ajustado que o novo encontro (e a nova ida ao castelo) teria lugar na noite de Domingo de Pascoela. O tenente-general deu mais alguns dobrões ao sargento e recomendou-lhe que não fosse mais gastador do que o costume, para não levantar suspeitas.

Entre os portugueses, era tempo de repetir os preparativos para a operação. Mas a deusa da Fortuna tinha outras intenções a respeito de Badajoz…

(continua)

Imagem: O rio Guadiana junto a Juromenha. Foi aqui que se fizeram os batelões para passar as tropas para o lado de Espanha, conforme se refere no texto. Foto de Jorge P. de Freitas.

Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (4ª parte)

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A missão de João Leite de Oliveira (noite de 5 para 6 de Fevereiro de 1652)

Segundo o relatório do tenente-general da artilharia, ficou tudo combinado com os sargentos para que se infiltrasse em Badajoz, na missão de reconhecimento, na noite de 5 para 6 de Fevereiro. Na narrativa de Mateus Rodrigues, foi numa das vezes que um dos sargentos se deslocou a Elvas, a recato da noite, que D. João da Costa revelou que iria enviar o tenente-general, e que não se enfadasse o sargento com aquela decisão e cautela, mas que era necessário ver tudo muito bem. E o oficial português devia entrar e sair de Badajoz numa só noite (ao contrário do que sucedeu com o furriel João Dias de Matos).

Prossigamos com a relação de Leite de Oliveira:

E logo sendo na noite assinada, saí à tarde com todo o recato de Elvas, eu só, e onde se chama Malpica de Castela se tinha mandado vir de Olivença uma guia prática [seria o furriel Dias de Matos?] e o capitão Aguiar, que é engenheiro, o qual não sabia nada, nem a guia, e ajuntando-me aí com eles, lhe[s] disse que tínhamos uma jornada que fazer e aqui neste lugar pasámos o dia, e ao pôr do sol disse ao guia me guiasse ao ribeiro, que passa pela outra parte de Mérida, ao qual chmam ribeiro de Redilhas, e estando já perto dele lhe disse me mostrasse o moinho, e depois de o fazer, mandei se retirasse (…) os três cavalos, e eu me adiantei ao moinho, do qual me saiu o sargento flamengo [Alejandro Perez], e depois de nos reconhecermos tornei atrás, e chamei o engenheiro, e então lhe comuniquei ao que íamos.

Deram dez horas da noite e saiu a lua [ou seja, estava uma noite de luar], que nos podia fazer dano, sem embargo disso nós chegámos ao pé da muralha do castelo, um à vista do outro, sem haver sentinela por aquela parte na muralha, e fomos seguindo (…) até uma meia lua, que fecha por uma e outra parte na muralha do castelo, que terá 18 ou 20 palmos ao mais de alto, a esta meia lua sai uma porta do castelo, que fica de noite somente ferrolhada, porque a meia lua não tem saída para a campanha, e essa é a causa.

Chegou o sargento, que me guiava, diante da meia lua onde estava o outro sargento com dois soldados, que ali havia de sentinela, e lhe perguntou «eres tu?», ao que lhe respondeu o nosso guia «yo soy y no pude pilher el carnero, y aqui vienen comigo dos amigos, que alla topé, que se habian quedado fuera pera el mesmo efecto», com o que nos deu o sargento que estava dentro um chuço pelo pé, e pegando nele, e na muralha nos baldeámos dentro todos três, eu saudei aos soldados, que ali estavam de sentinela, e não repararam no trapilho do vestido que eu levava, e assim abriram o postigo da porta, que estava cerrado, e entrámos no castelo os quatro, no qual eu andei até uma hora depois da meia-noite, correndo a muralha, reconheceno a artilharia, e armazéns de munições e mantimentos, e o trem da artilharia, e onde moravam os almoxarifes que têm as chaves dos armazéns.

O castelo tem só uma porta, que sai para a cidade, e a companhia que entra de guarda todas as noites tem cuidado de a fechar às nove da noite, e abrir pela manhã, o que tudo vimos mui devagar, por estar um dos sargentos esta noite de guarda com 2 homens, que é o mais que entram de guarda pela muita falta que têm de gente. Visto tudo à nossa vontade, nos viémos à meia lua, fingindo tornávamos fora ver se os pastores dormiam para lhes furtar o carneiro, e nos viémos. (Relação…, pgs. 180-181)

Segundo Mateus Rodrigues (exagerado, por vezes, no que tocava a referir recompensas materiais), D. João da Costa terá oferecido aos sargentos que preparavam a traição 3.500 réis em moedas de dobrão, só para que esta missão de espionagem se efectuasse, mas os sargentos recusaram, dizendo que, se Deus quisesse, haveria tempo para que o governador das armas os pudesse recompensar. Esta recusa em aceitar o dinheiro fez acreditar D. João da Costa ainda mais na boa fé dos dois sargentos, e afastar qualquer receio de traição por parte deles em relação aos portugueses. Quanto ao resto, a narrativa de Mateus Rodrigues não é completamente coincidente com o relatório em alguns pormenores: diz o soldado que Leite de Oliveira se fez acompanhar por 30 cavalos (e não por três), os quais ficaram afastados da muralha “um bom tiro de mosquete” (correspondente a pouco mais de 100 metros, aproximadamente) – o que é um absurdo, pois seriam facilmente detectáveis. Depois, refere que o tenente-general foi comer e beber com os sargentos a um mesão, falando com eles em bom espanhol, repetindo assim a façanha de João Dias de Matos – outra fantasia do autor, pois para além do despropósito da acção, dada a hora tardia da noite, seria um risco desnecessário e de todo improvável de ser corrido pelo tenente-general. No entanto, o que Mateus Rodrigues descreve sobre o resto do episódio está de acordo com o relatório. (MMR, pgs. 254-257)

Os sargentos continuavam a visitar D. João da Costa em Elvas, de cada vez que vinham a Portugal sob pretexto de fazerem pilhagens, e recebiam algum dinheiro de recompensa do mestre de campo general, pois de facto não levavam nada pilhado.

No próximo artigo serão descritos os preparativos para a operação de conquista de Badajoz, e no seguinte (e último), o resultado final de todos estes planos.

Imagem: “O descanso dos cavaleiros”, quadro de Philips Wouwerman, Koninklijk Museum voor Schone Kusten, Antuérpia.

Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (3ª parte)

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O furriel João Dias de Matos em Badajoz

Esta parte é omitida por João Leite de Oliveira, mas Mateus Rodrigues conta-a conforme ouviu da boca do próprio furriel de cavalaria.

Mandou Dom João da Costa chamar o furriel João Dias de Matos, e vindo ele lhe falou (…) só em uma casa muito tempo, dando-lhe contas do que tinha entre mãos e que não tinha em quem confiar aquelas cousas senão nele, pois sabia muito bem seu préstimo e valor, que tinha ajustado com os sargentos de como ele havia lá de ir, e que lhe disse o sargento que seguramente podia entrar a cavalo pela porta dentro às trindades [toque do sino, chamando à oração do fim da tarde], que fosse logo direito ao castelo e que em tal calle podia perguntar por su amigo sargento hulano [ou seja, fulano; respeitou-se aqui, e assim será na restante transcrição, a mistura de castelhano com português], e que ele também se obrigava a botá-lo fora seguramente [quer dizer, em segurança]; de maneira que Dom João da Costa lhe disse (…) que se ele lhe trazia boas informações, que lhe dava sua palavra de o acrescentar muito bem; (…) e logo ali ajustaram o dia em que havia de ir lá. Foi-se o furriel para Olivença e lá se preparou de todos os aviamentos castelhanos, como era cavalo castelhano ferrado à espanhola, e sela castelhana e armas também, (…) todos os arreios e cousas que levava eram castelhanos. E assim se partiu um dia de Olivença e se foi emboscar em um olival que chamam a Florida, quero dizer, os olivais das Malas Aradas, que não ficam de Badajoz mais de meia légua, no meio da estrada que vem de Albufeira. E assim como foi sol posto meteu-se na estrada, e foi por ela abaixo como que vinha de Albufeira, e assim como chegou às portas entrou por elas dentro sem que ninguém lhe perguntasse nada, cuidando era algum soldado que vinha com alguma carta de fora ou algum negócio. E assim como entrou, foi pela cidade fora até ao castelo, e perguntando pelo sargento fulano em tal calle, logo lhe disseram aonde morava, que a poucos passos tinha já dado com ele, e assim como se viram, abraçaram-se um ao outro por diante de alguns castelhanos, e a saudação que se davam era perguntar era perguntar «como estás, primo de mi vida?», «bueno, primo de mi anima», «en aquesta terra, primo, que negocio vos ha traído acá?», respondia o furriel «un negocio que no es de mucha importancia, imos tambien a vervos, que muchos tiempos que nos no avemos visto». De modo que se foram para casa, e foi o sargento acomodar-lhe o cavalo a casa de um soldado de cavalo seu amigo, dizendo-lhe que lhe acomodasse aquele cavalo, que era de un primo suio que era de Mérida; acomodou-lhe logo o soldado e foi-se o furriel e mais o castelhano sargento a comer logo a um mesón, que assim chamam lá às bodegas que dão de comer; de modo que em todos estes tempos sempre o furriel falando tão cerrado espanhol, melhor que o mesmo sargento. E assim como comeram, lá pela alta noite foi o sargento a mostrar todos os armazéns do castelo ao furriel, e logo foi pela muralha do mesmo castelo, como que ia o sargento rondando a muralha, e viu tudo mui à sua vontade. E se esteve ali até ao outro dia à noite, que saiu às mesmas horas a que havia entrado, sem haver pessoa alguma que lhe perguntasse nada. E não há dúvida que foi uma grande aventura, e quando eram dez horas da noite já o furriel estava às portas de Elvas. (MMR, pgs. 250-252).

Foi então avisado D. João da Costa da chegada do furriel, e este de imediato foi conduzido à presença do mestre de campo general. Disse-lhe João Dias de Matos que, pelos modos que tinham os dois sargentos, não lhe parecera que tentassem trair os portugueses, e antes pelo contrário, que se esperava uma grande vitória e sucesso na conquista de Badajoz pela traição, e que pelos planos que lhe tinham exposto, seria impossível deixar de se tomar a praça, e com muito pouca perda de vidas. Foi recompensado o furriel com 50 patacas e prometeu-lhe D. João da Costa outros acrescentamentos pelo bom desempenho da missão.

(…) Foi-se o furriel a descansar, que pousava em casa do meu furriel, que eram ambos naturais de Louriçal [na comarca de Esgueira]. Mas nunca este homem dizia onde ia nem de onde vinha, só depois que a cousa não teve efeito (…) se soube então, contava ele tudo o que passava em Badajoz com os sargentos e com D. João da Costa. (MMR, pg. 252)

Esta é a parte que não consta do relatório do tenente-general. Segundo Mateus Rodrigues, só depois da acção de espionagem do furriel é que D. João da Costa mandou chamar João Leite de Oliveira, para o incumbir de missão semelhante, mas visando objectivos finais.

(continua)

Imagem: Planta de Badajoz; in La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (2ª parte)

jacob-duck1Prelúdio à traição (continuação)

Tanto o relatório do tenente-general da artilharia João Leite de Oliveira como as memórias do soldado Mateus Rodrigues referem a entrevista de um dos sargentos com o mestre de campo general D. João da Costa. No relatório, refere o tenente-general que

(…) depois de eu ajustar isto tudo com ele [ou seja, com o sargento galego], o comuniquei a D. João da Costa, mestre de campo general do exército, o qual abraçando-me muitas vezes me ordenou que depois de dormirem os outros pilhantes [capturados], lá pela meia-noite adiante, lhe levasse o sargento para falar com ele, e levando-lho tornou a repetir o modo com que nos podia dar entrada no castelo. E logo o senhor mestre de campo general lhe prometeu em nome de Sua Majestade honras e rendas com que luzidamente passaria neste Reino, e dando-lhe os dobrões que ele quis levar, o advertiu que não gastasse mais do que até então era costumado, nem comprasse uns sapatos, para que alguma pessoa não reparasse nisso, e que querendo o outro seu camarada acompanhá-lo, nos viria dar recado à noite, que lhe apontámos, na qual não veio, mas vieram ambos daí a três ou quatro dias. (“Relação…”, in Madureira, pgs. 179-180)

O plano

A narrativa de Mateus Rodrigues não difere até aqui, em substância, do relatório do tenente-general, mas acrescenta alguns pormenores sobre os dois sargentos. Assim, o galego teria exposto, em pormenor, o plano da traição a D. João da Costa:

(…) saberá Vossa Excelência de como eu e o meu camarada, o outro sargento que está no corpo da guarda, somos senhores do castelo de Badajoz, pois que as nossas companhias não têm capitães, há muito tempo que andam lá por suas terras, e nós entramos de guarda e saímos todos os dias e pomos e tiramos sentinelas da muralha toda a noite, e a guarda do castelo corre por nossa conta, sem a isso ser necessário assistência de mais algum oficial de fora (…). De modo que eu e meu companheiro havemos de traçar a cousa; é que a muralha de Badajoz tem um pedaço muito mau, que quase lhe chega um homem com a mão acima, e isto é no castelo; e como nós pomos e tiramos as sentinelas, pode Vossa Excelência juntar 500 ou 600 mosqueteiros pela parte do castelo, que eu tirarei todas as sentinelas da muralha, para que não sejam sentidos na cidade, e logo estarei eu na muralha e darei um sinal (…). E tanto que a gente estiver dentro do castelo, havemos logo de ir mui depressa a terraplanar a porta do castelo que vai para a cidade, e logo ficamos mui seguros senhores de toda a melhor artilharia, que é a do castelo, que todo Badajoz lhe fica debaixo dela; e na mesma noite há Vossa Excelência de ir com toda a mais gente amanhecer às muralhas de Badajoz, e vendo-se Badajoz com o castelo tomado e com poder à roda das muralhas, sem remédio logo se entrega, e quando não seja logo, não haverá dilação, porquanto todas as munições que em a cidade há estão no castelo, que lá estão os armazéns, e não podem pelejar faltando-lhe o melhor; e demais que a artilharia do castelo os fará entregar (…), que iremos arrasando a cidade pouco a pouco. (…) Mande Vossa Excelência um homem a Badajoz da sua parte, para que tome informação da cousa bem à sua vontade, e este tal homem, quando for, seja por minha ordem, para que vá seguro e venha. (MMR, pgs. 244-246)

Interessante é o pormenor da combinação entre os dois sargentos, diálogo embelezado pela imaginação de Mateus Rodrigues, mas certamente fundamentado em dois aspectos essenciais: a vivência da maior parte dos combatentes de ambos os exércitos, padecendo muitas dificuldades e perigos, sem esperança imediata de melhorias (situação que Mateus Rodrigues muito bem conhecia); e as notícias dos acontecimentos mais extraordinários ou curiosos, que rapidamente passavam de um lado a outro da fronteira, quer através das conversas entre prisioneiros e seus guardas (papéis que, por vezes e no espaço de dias ou semanas, se podiam inverter), quer através das comunicações entre não-combatentes de ambos o lados, que sempre se iam fazendo à margem das ordens das autoridades militares. Assim, Mateus Rodrigues recria o diálogo entre os sargentos, depois de estes terem ido à presença de D. João da Costa (conforme se refere no trecho do relatório) e terem sido despedidos de regresso a Badajoz, tudo combinado para a traição…

(…) todo o caminho foram tratando na matéria, e o primeiro sargento que tinha falado na cousa a D. João da Costa foi dando tão boas razões a seu camarada, que lhe dizia «camarada, nosotros somos dos soldados de fortuna, há tantos anos sargentos, sem nenhumas esperanças de acrescentamentos, passamos com grã miséria e nos vemos com mala vida e pouco que comer, assim já que nosostros somos senhores del castillo, com favor de Dios o hemos de arriscar nuestras vidas, o hemos de ser hombres de muchos regalos en la vida; e assim que me parece bien que demos ordem com mucho segredo en lo caso; que tenemos mui buena orden para hablar en la cosa seguramente (…)». O sargento lhe deu tais razões, que o tomou o outro nos braços e lhe disse: «Ó camarada de mi vida y de mi corazón, que bien se hio vuestra voluntad y animo (…), camarada, hased lo que quiseres, que en todo tengo de vos acompanhar y morir com vós, en todo el caso (…) lo que resta ahora es que no demos cuenta per nenhum caso de naide a nuestras amigas, porque son mujeres y no hazen caudal de segredos», porque estes dois sargentos tinham (…) cada um sua amiga das portas adentro, mas cada um deles tinha seu alojamento à parte [respeitou-se neste trecho o hábito de Mateus Rodrigues misturar português e castelhano, quando usava o discurso directo entre militares do exército de Filipe IV]. (MMR, pg. 248)

O papel desempenhado pelas mulheres dos sargentos seria crucial para o desfecho da história. Mas por ora, registemos uma discrepância entre o relatório de João Leite de Oliveira e a narrativa de Mateus Rodrigues. Segundo o tenente-general, depois da segunda conversa entre os sargentos e D. João da Costa,

(…) ajustámos que era necessário darem-me eles entrada no castelo para eu o ver, e reconhecer, e esta foi a noite de cinco para seis de Fevereiro; eles vieram nisso lhanamente, e assim se foram recolhendo a Badajoz, levando dois burros, que eu tinha prevenido e posto em uma horta fora da cidade, para que assim fingissem que os levavam de pilhagem, que era o sobreposto com que de lá [de Badajoz] saíram (…). (“Relação…”, in Madureira, pg. 180)

Mateus Rodrigues insere um episódio omitido no relatório: uma prévia infiltração de um espião português, antes de Leite de Oliveira levar a cabo a sua missão. Terá D. João da Costa querido certificar-se de que tudo correria conforme o acordado, e que não se trataria de nenhuma armadilha, na qual não quereria arriscar um oficial com patente tão superior como a de João Leite de Oliveira. Deste modo, D. João da Costa informou o sargento galego que lá havia de ir [a Badajoz] um homem, por nome João Dias de Matos, que era um furriel de Olivença, da cavalaria, e que era o mais prático homem em a língua castelhana que havia em Portugal e homem de grande préstimo e valor. (MMR, pg. 249)

É sobre esta missão que tratará a próxima parte desta série.

Entretanto, apraz-me convidar os leitores a consultar o blog do estimado amigo Julián García, Puertas de Badajoz, onde encontrarão muitos assuntos de elevado interesse sobre aquela praça de armas.

Imagem: “Soldados e mulheres numa taberna”, pintura de Jacob Duck, meados do séc. XVII, The State Art Museum of Florida.

Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (1ª parte)

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É quase desconhecida a tentativa de tomada de Badajoz pela traição, nos inícios de 1652, por parte dos portugueses. Praça-forte fundamental do sistema defensivo da fronteira extremenha, tal como Elvas o era para o Alentejo, Badajoz correspondia à congénere portuguesa do Alentejo na importância e inexpugnabilidade. Tal como os cercos que Elvas sofreu, também os que os portugueses puseram ou tentaram pôr a Badajoz não resultaram. Um deles, previsto em 1645, não se concretizou por contratempos vários, quando o exército comandado pelo 2º Conde de Castelo Melhor já marchava para o objectivo. Em 1658, Joane Mendes de Vasconcelos (o mesmo que treze anos antes se pronunciara contra tão arriscada aventura) montou um desastroso cerco a Badajoz, em resposta à perda de Olivença no ano anterior. O que quase se perdeu, no rescaldo, foi o exército do Alentejo. E temeu-se pela sorte da guerra quando, nos finais desse ano de 58, D. Luís de Haro foi cercar, por sua vez, a cidade de Elvas. Mas também essa tentativa fracassou.

A solução da traição foi sempre procurada por ambos os lados em conflito, de forma a conseguir tomar uma praça importante, de surpresa e sem esgotamento de meios bélicos. Em Janeiro de 1652 proporcionou-se ao mestre de campo general do Alentejo (que desempenhava também, interinamente, o governo das armas) D. João da Costa, a possibilidade de alcançar esse feito no que respeitava a Badajoz. Para além da menção que ao episódio se faz na História de Portugal Restaurado, do 3º Conde de Ericeira, existe na secção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa um relatório detalhado do tenente-general da artilharia João Leite de Oliveira, publicado pelo coronel Horácio Madureira dos Santos (Cartas e outros documentos da época da Guerra da Aclamação, Lisboa, Estado-Maior do Exército, 1973, pgs. 179-184); o tenente-general tomou parte activa na operação e chegou a entrar, sob disfarce, em Badajoz. Ao relatório deste oficial junta-se um capítulo do manuscrito de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), em que o soldado de cavalaria narra o que ouviu contar da boca de João Dias de Matos , então furriel e intrépido espião que se infiltrou em Badajoz, preparando os pormenores da traição (poucos anos depois, sendo tenente da companhia de D. Luís de Meneses, este João Dias de Matos desertaria para o inimigo; e já como capitão de cavalos do exército de Filipe IV, preparou e levou a bom termo a tomada – também pela traição – da praça de Olivença). Todavia, Mateus Rodrigues erra na data do episódio, situando-o um ano mais cedo do que efectivamente se passou. Mas a sua narrativa contém pormenores mais rocambolescos do que o relatório oficial de Leite de Oliveira. Para completar este pequeno leque de fontes primárias, existe o relatório da confissão de um dos militares do exército espanhol envolvidos na traição (Arquivo Geral de Simancas, Sección Guerra Moderna, Legajo número 1822). Chegou-me ao conhecimento por via do estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral, investigador e autor, que já teve a grata amabilidade de me permitir aqui publicar algumas das suas excelentes pesquisas, e a quem renovo os meus agradecimentos por tão preciosa ajuda.

Prelúdio à traição

O relatório de Leite de Oliveira principia pela tomada de prisioneiros do exército espanhol (ortografia e pontuação actualizadas para português corrente):

Em 26 de Janeiro [de 1652] se fizeram prisioneiros cinco pilhantes de pé, entre os quais vinha um sargento da companhia do mestre de campo o Conde de Torregon; estes estavam na estrada de Juromenha para fazerem nela alguma pilhagem, foram descobertos dos pastores que os fizeram prisioneiros e trouxeram a Elvas. Nas perguntas que lhe fiz das cousas de Castela, catequisei o sargento, dizendo-lhe que era um soldado pobre, que sua miséria o obrigava às pilhagens a pé, que nos quisesse dar alguns avisos e fazer algum serviço a El-Rei de Portugal, que com isso podia conseguir muito proveito, e livrar-se da miséria em que vivia.

Isto [se] passou entre nós, sem estar outra pessoa presente, ao que me respondeu depois destas promessas que ele não só nos queria dar avisos, senão que se atrevia a entregar o castelo de Badajoz, aonde ele era costumado entrar de guarda cada cinco noites, porém que sempre lhe era necessário comunicar este negócio com um seu camarada, também sargento, de uma companhia do mesmo terço, o qual era natural do país de Flandres, e este era galego de nação. (“Relação…”, in Madureira, pg. 179)

O sargento galego chamava-se Alonso de Castro e o flamengo, com quem queria combinar o assunto da traição, chamava-se Alejandro Perez e nascera em Cambrai, conforme consta da confissão deste, feita sob tortura (AGS, Guerra Moderna, Leg. nº 1822). Na versão do manuscrito de Mateus Rodrigues, eram estes sargentos grandes amigos e camaradas, cujas companhias estavam sempre efectivas de guarnição no castelo de Badajoz, sem se mudarem, e teriam combinado ambos virem às pilhagens a Portugal, já com o intuito de se deixarem prender e proporem a traição a D. João da Costa, livrando-se assim, com a recompensa que receberiam, das muitas necessidades que então padeciam. (MMR, pgs. 143-144)

(continua)

Imagem: Planta do perímetro defensivo de Badajoz (c. 1645), sendo bem visível a localização do castelo mencionado no texto; in La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Regresso à “Passagem de Alcaraviça”

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A rematar o seu excelente artigo, o Sr. Santos Manoel interrogava-se sobre o destino do desafortunado sargento-mor da ordenança de Évora, João da Fonseca Barreto. Este oficial sobreviveu ao desaire, mas foi preso e julgado, tendo sido sentenciado em perda do cargo (note-se que, na ordenança, sargento-mor era um cargo que podia ser desempenhado por um militar com outra patente; o mesmo não se passava, contudo, entre as tropas pagas, onde sargento-mor era um posto). João da Fonseca Barreto foi substituído no cargo por João de Mesquita Pimentel, que era capitão-mor de Marvão, em 18 de Abril de 1648. (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, maço 10, consulta de 2 de Agosto, confirmando a situação de João de Mesquita Pimentel.)

Imagem: Philips Wouwerman, “Ataque a um comboio”, meados do séc. XVII, Kunsthistorische Museum, Viena. Uma situação comum na fronteira durante a Guerra da Restauração, onde os comboios de carros e carroças transportando víveres, munições ou até dinheiro eram um alvo apetecido para os beligerantes de ambos os lados.

O combate de Castelo de Vide – 8 de Outubro de 1650 (2ª parte)

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Continuando a narrativa de Mateus Rodrigues, adaptada para português actual…

“Assim como saímos das encruzilhadas de Portalegre, fomos sempre a meia rédea (…) e quando íamos já perto de onde estava o mestre de campo com a sua gente, fizeram as nossas tropas alto, e tiraram 60 cavalos das tropas e fizeram duas partidas de 30 cavalos cada uma; e deram 30 ao alferes que era então de Dinis de Melo [de Castro], por nome Baltasar Nunes, grande soldado, e os outros 30 ao alferes de Lopo de Sequeira, também muito valente, por nome António Gomes, e a ordem que (…) deram a ambos foi que fossem cada um por sua parte lá para a ribeira de Nisa, que havia o inimigo de vir por aí. E que assim que dessem com o inimigo, qualquer deles, logo se incorporassem ambos em uma tropa [ou seja, que se juntassem para formar um batalhão, formação táctica de cavalaria] e viessem à vista do inimigo com suas escaramuças e tiros (…), mas de maneira que por nenhum caso o inimigo lhe[s] tomasse ninguém, para não saber das tropas (…), e eu também ia em uma das partidas”.

Pouco tempo depois, o destacamento avistou o terço de Castelo de Vide, que tinha cerca de 400 homens, e a companhia de Duarte Lobo da Gama, com 80 bons cavalos, já formados no local de encontro combinado. Prosseguindo a sua missão, não tardou a cavalaria portuguesa a encontrar a do inimigo, que dava de beber às montadas na ribeira de Nisa. Conforme planeado, principiou-se uma escaramuça, enviaram-se avisos ao grosso da força portuguesa, e depois juntaram os alferes as suas tropas nas elevações que dominavam a linha de progressão inimiga. No entanto, devido à natureza do terreno, não puderam aperceber-se, de imediato, do efectivo da força incursora. Logo foram carregados por esta, de modo que os alferes retiraram para o sítio onde estava o grosso do efectivo português, furtando-se ao combate, conforme as ordens que haviam recebido.

“Assim como o inimigo nos viu, imaginou que tinha (…) outro dia como o que já havia tido em o mesmo sítio [cinco anos antes, quando derrotara o terço de Castelo de Vide e destroçara a companhia de cavalos de D. Pedro de Lencastre]. E cuidou que aqueles que lá andávamos diante (…) era a companhia de Castelo de Vide e que o terço (…) havia de estar ali e que o haviam de tornar a derrotar. E para isso tomaram cem cavalos, com um capitão (…) João de Ribera, e mandaram-no mui ao largo, a rédea solta, a tomar as entradas da vila, para que a companhia se não metesse dentro, que apanhassem fora o terço e que tudo haviam de degolar”.

Não podiam os espanhóis imaginar que tinham como adversária a cavalaria de Elvas, pois não fora o acaso de esta se encontrar em Arronches quando foi dado o alarme, não seria possível estar agora ali, a dez léguas (c. 50 Km) da sua guarnição. Mesmo assim, foi com espanto que os portugueses verificaram que tinham pela frente uma força com quase o dobro do efectivo da sua, “(…) e suposto que os sucessos estão na mão de Deus, dizem lá que os muitos tiram a virtude aos poucos, que eles também têm unhas como nós, e as suas balas matam e as espadas cortam e furam melhor, de sorte que logo julgaram ali que o inimigo trazia 600 cavalos, fora os (…) que havia mandado a tomar as entradas da vila”.

Rapidamente tomou Lopo de Sequeira conselho com os restantes capitães, e todos decidiram resistir ali ao inimigo. Avisaram o mestre de campo da sua resolução. O terço de Castelo de Vide estava formado à distância de um tiro de carabina da cavalaria, “entre umas rochas mui ásperas”, pelo que, segundo a observação de Mateus Rodrigues, nem dois mil cavalos conseguiriam fazer-lhe mal. A cavalaria portuguesa (380 homens) formou-se atrás de um pequeno outeiro, por onde o inimigo teria de passar, pronta para o choque. A vantagem do terreno acabou por ser preciosa para o desfecho da peleja, pois as forças que os espanhóis lançaram em perseguição das tropas de reconhecimento portuguesas só podiam progredir através de um caminho estreito, uma companhia de cada vez.

“Assim como o inimigo chegou ao alto do outeiro (…), sai a nossa cavalaria de repente, tocando as trombetas a degolar [ou seja, aquilo que mais tarde seria conhecido por toque de carga]“. Surpreendidos, os espanhóis que vinham à cabeça da coluna retirararam e procuraram formar o seu dispositivo um pouco mais atrás, montando ali uma vanguarda, “porquanto não podiam pelejar da sorte que estavam. Mas como nós lhe saímos tão perto e bem formados, não lhe demos lugar a que eles se pudessem formar”. Ainda assim, os cavaleiros espanhóis bateram-se bravamente, pois mesmo desorganizados, tinham a seu favor o peso dos números. Mas, “suposto que éramos muito menos do que eles, era a nossa gente muito boa, e além disso foi grande fortuna nossa o acharmo-lo desformado, que não tem dúvida, que se o achá[ra]mos bem composto (…), nos perde[ra]mos totalmente, que eram 280 cavalos mais do que os nossos e mui boa cavalaria, que era o regimento da Sarça [Zarza la Mayor – por regimento, entenda-se o total das companhias aquarteladas naquela localidade], que vinha ali o comissário Mazacan por cabo delas”.

(Citações do Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM, pgs. 226-230).

(continua)

Imagem: Jan Martszen de Jonge, Paisagem com combate de cavalaria e couraceiros formados atrás (meados do séc. XVII).