Postos do exército português (8) – o capitão de infantaria

O capitão de infantaria comandava uma companhia. A insígnia do seu posto era uma gineta, espontão rematado com borlas na parte superior da haste. Em combate, o capitão podia encarregar o seu pajem do transporte da gineta e armar-se com um pique, um mosquete ou (o que era mais vulgar) combater com espada e rodela. O posto de capitão de infantaria era considerado inferior ao de capitão de cavalos, todavia era um posto de grande consideração na hierarquia militar seiscentista. Sobre a maneira de prover os capitães das companhias, tanto das tropas pagas como das milicianas, esclarece o título 9 do projecto de Ordenanças Militares de 1643:

Para capitães das companhias de infantaria se elegerão alferes reformados e ajudantes, em que uns e outros hajam servido oito anos na guerra com praça assentada debaixo de bandeira, que tenham as partes necessárias para exercitarem com prática e experiência o muito que a cada um deles se oferece e encarrega cada hora que exercitar, e os que forem de mais serviços e aprovados merecimentos nas ocasiões para maiores riscos e empenhos, precederão para serem escolhidos (…).

Porém, como em muitas outras passagens das Ordenanças Militares de 1643, Joane Mendes de Vasconcelos discordou de pormenores do projecto. No caso dos capitães de infantaria, a proposta ia contra a prática assente e instituída de facto, pelo que o experiente cabo de guerra contrapôs:

Nos terços fazem vantagem aos alferes reformados e vivos [isto é, no activo] os que são actualmente da companhia do mestre de campo, porque como governam (de ordinário) a melhor companhia deles, têm maior capacidade a este respeito que os outros, escusa consultarem-se a segunda companhia, que vaga em seu tempo, como também nos esquadrões a segunda manga de bocas de fogo do corno direito se lhes entrega firme. [Note-se, na parte final deste comentário, a referência à disposição e comando táctico.]

Também se devem admitir os alferes vivos para capitães de infantaria, toca também ao alferes entrar em capitão quando em ocasião de peleja morre o capitão da companhia, achando-se o tal alferes na mesma ocasião e proceder nela conforme as suas obrigações, e em sua pessoa concorrem as partes e requisitos convenientes.

As observações de Joane Mendes de Vasconcelos foram todas dirigidas à promoção dos alferes ao posto de capitão nas companhias de infantaria, pois que as funções inerentes ao posto eram bastante claras e sabidas, nem sendo sequer focadas no projecto – excepto no que respeitava aos ditames de ordem comportamental e moral que o capitão devia seguir. Mas aí, a resposta de Mendes de Vasconcelos foi clara:

A repreensão dos vícios que contém este capítulo toca a todos os postos, e assim me parece que se devia encomendar em título particular a conta que hão-de ter os conselheiros e os generais e não proporem a Vossa Majestade para os cargos militares pessoas conhecidas perniciosas, com escândalo.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 55-56.

Imagem: Nesta foto de uma reconstituição histórica levada a cabo pela English Civil War Society, representando uma força de infantaria do New Model Army de Oliver Cromwell, é visível em primeiro plano, à direita, com gola de aço (protecção para o peito), um capitão carregando a gineta (sem borlas). Repare-se na diferença entre a gineta e as alabardas dos sargentos que marcham na primeira fileira da formação, mais atrás.

Uma incursão em território inimigo – 1661, Outubro, 26

As incursões ou entradas em território inimigo, quer fossem executadas pelo exército português, quer pelo espanhol, foram uma característica marcante da Guerra da Restauração. Os anos iniciais do conflito alimentaram muitas publicações de teor propagandístico que difundiam os feitos de armas dos portugueses, ampliando muitas vezes os resultados práticos das acções. São uma preciosidade para a análise do quadro mental do período e não menos valiosos como documentos no que concerne à História Militar.

As Relações e outros escritos panegíricos são dados à estampa com menos frequência a partir da segunda metade da década de 40. Só na etapa final da guerra, com a publicação periódica (mensal) do Mercúrio Português, da responsabilidade de António de Sousa de Macedo, voltam a espalhar-se com alguma regularidade os ecos dos feitos portugueses. Todavia, os relatórios enviados pelos comandantes operacionais para o Conselho de Guerra dão conta de acções que, em muitos casos, permaneceram desconhecidas do grande público. O fito principal centrava-se habitualmente na pilhagem de gado e haveres das populações raianas, mas também podiam ser concebidas para desgastar o dispositivo inimigo na fronteira e adestrar as próprias forças militares na arte da guerra. Deixo aqui a descrição de uma dessas operações.

Em 26 de Outubro de 1661 o governador das armas da província de Trás-os-Montes, D. Rodrigo de Castro, Conde de Mesquitela, e João de Melo Feio, governador das armas do partido (distrito militar, em termos modernos) de Penamacor, província da Beira, encontraram-se no Sabugal. No princípio do mês tinham recebido uma carta da Rainha regente, ordenando que unissem parte das suas forças e fizessem uma entrada no reino inimigo. Deviam dirigir-se às vilas de Campo e Pozuelo, onde estavam alojadas companhias de cavalaria da Catalunha, e atacá-las a fim de destruir ou capturar aquelas unidades militares. Se isso não fosse conseguido, pelo menos deveriam saquear as localidades, distribuindo o produto da pilhagem pelos soldados, e ao menos tentar levar o inimigo a pelejar.

Os dois cabos de guerra partiram com a força militar combinada nesse mesmo dia 26 de Outubro, desejosos de fazer coisa de utilidade e reputação para as armas reais. Marcharam com tempo seco e sereno, atravessando o rio Côa na passagem de Dois Rios. O efectivo total era de 2.500 infantes e 760 cavaleiros, distribuído pelas seguintes unidades:

– Dois terços pagos (dos mestres de campo Diogo Gomes de Figueiredo (filho) e Bartolomeu de Azevedo Coutinho).

– Três terços de auxiliares (da comarca da Guarda, sob o comando do mestre de campo Cristóvão de Sá de Mendonça; da comarca de Viseu, do mestre de campo João Castanheira de Moura; e da comarca de Castelo Branco, a cargo do sargento-mor Manuel Fernandes Laranjo).

Terço de volantes da Guarda, comandado pelo mestre de campo Francisco Banha de Sequeira.

Dezasseis companhias de cavalaria, sob o comando do governador da cavalaria, o francês Achim de Tamericurt (um veterano da Guerra da Restauração, já com 20 anos de serviço em Portugal), com o tenente-general João da Silva de Sousa como segundo-comandante (as companhias de ambos eram comandadas pelos respectivos tenentes, Pedro Palho e Manuel Francisco). As restantes companhias eram as dos comissários gerais D. Martinho de Ribeira e D. António Maldonado, e as dos capitães Vasco Gomes de Melo, Baltasar de Melo de Sá, António Mendes de Abreu, Paulo de Noronha, António Estácio da Costa, Manuel de Sousa de Refóios, Manuel Nabais, Paulo Homem Teles, André Tavares de Mendonça, Manuel Martins, António Veloso e Luís da Cunha.

Já em território hostil, as condições climatéricas alteraram-se. As chuvas e o facto da força ter sido detectada pelo inimigo impediram que se obrasse algo mais do que o saque de algumas aldeias. Os guias recomendavam a retirada, para evitar o risco de não se poder atravessar de novo o Côa. O Conde de Mesquitela escreveu a este respeito que

“Aquela noite de 28 alojámos junto a Villas Buenas que, pela havermos entrado e queimado há muitos anos, e nos pedirem misericórdia regalando-nos com os mimos da terra, nos não quisémos ocupar em empreendê-la.”

A 29 começaram a avistar o inimigo que marchava na retaguarda do exército, e constava de cavalaria da Catalunha e da Borgonha (28 companhias organizadas em 14 batalhões – formações tácticas), e um terço de alemães governado por um sargento-mor, com 600 soldados. Entraram os portugueses na vila de Rezalles

“(…) donde também nos renderam a vassalagem, dando-nos dos seus refrescos, e suposto que houve soldados cobiçosos que desejaram que a mandássemos assaltar, como o inimigo vinha na nossa retaguarda nos pareceu que não convinha desfazer a forma em que marchávamos.”

A meia légua de Rezalles dispôs-se o inimigo a combater. Os batedores começaram a disparar e travou-se uma escaramuça, conseguindo os portugueses rechaçar sempre os oponentes. Prosseguiu então a marcha até se encontrar uma zona de campo aberto, onde tornou o inimigo a dar outra investida e com esta se resolveu dar batalha.

O terço de alemães ocupou um posto fortíssimo no sopé de uma elevação rochosa, de onde causava grande dano nas forças portuguesas, flanqueando a infantaria e a cavalaria. Com a cavalaria inimiga bem formada, começaram as escaramuças. Os comandantes portugueses decidiram que seria conveniente desalojar primeiro a infantaria inimiga da posição que ocupava e reforçar a cavalaria com mangas de mosqueteiros, um dispositivo táctico muito comum. O terço do mestre de campo Bartolomeu de Azevedo foi mandado investir por uma parte do monte rochoso, e pelo outro lado evoluiu o terço governado pelo sargento-mor Laranjo e um outro terço. Os alemães já entretanto tinham sido reforçados por muitos civis dos lugares da Serra da Gata que se lhes foram juntando.

No dizer do Conde de Mesquitela, os terços portugueses obraram maravilhas, “porque recebendo as cargas de mosquetaria dos inimigos sem lhe tirarem tiro [ou seja, sem ripostarem] os investiram, subindo pelo rochedo com tão extraordinário valor que a picaços [à força de pique] e a cutiladas mataram os mais deles, fazendo-lhe largar o posto, e as armas, com as vidas.”

Também os destacamentos de mosqueteiros que se constituíram a partir do terço do mestre de campo Diogo Gomes de Figueiredo para reforçar a cavalaria “obraram maravilhas”. Eram comandados pelos capitães João de Sampaio, António Rodrigues Pereira, Paulo Correa, e pelo alferes do mestre de campo, Manuel Homem Corte Real.

O governador da cavalaria Achim de Tamericurt combatia na vanguarda com os comissários gerais, ficando a reserva da cavalaria a cargo do tenente-general João da Silva de Sousa.

Finalmente os alemães começaram a ceder no combate corpo-a-corpo com a infantaria portuguesa. A restante força inimiga, vendo a formação da sua infantaria perder coesão e começar a desfazer-se, virou costas. Foi então que se lançou em sua perseguição a cavalaria portuguesa, reserva incluída, até perto de Rezalles.

Foram tomados 200 cavalos ao inimigo, tendo sido aprisionados 9 capitães (dos quais morreram três, de ferimentos, em pouco tempo), 2 ajudantes e 1 tenente comandante da companhia da guarda do Duque de Osuna, bem como grande número de soldados, com a captura de mais de 300 armas. Dos portugueses só houve 3 mortos e 10 ou 12 feridos, entre os quais o ajudante de cavalaria Pedro Fernandes Magro.

Todos os militares obraram com valor, pedindo o Conde de Mesquitela que a Rainha mandasse agradecer aos oficiais por carta de sua real mão, em especial ao governador da cavalaria Achim de Tamericurt.

Fonte: carta do Conde de Mesquitela, escrita em Penamacor em 31 de Outubro de 1661 e anexa à consulta do Conselho de Guerra de 7 de Novembro do mesmo ano. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21-A, caixa 79.

Imagem: Infantaria em marcha. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa, Kellmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Categorias militares do exército português

Piqueiro

O exército português reconstruído após o rompimento da monarquia dual em 1640 compreendia duas categorias militares:

a) Os militares pagos. Estando sujeitos a prestação de serviço militar todos os homens válidos do reino entre os 15 e os 60 anos, salvo isenção relacionada com a actividade profissional ou outra particular, eram recrutados como soldados pagos para o exército profissional os filhos segundos ou aqueles que não tivessem a seu cargo quaisquer dependentes. Inicialmente eram chamados apenas os homens solteiros, mas ainda na década de 40 começaram a ser admitidos os casados. As levas eram efectuadas de tempos a tempos, quase sempre por pessoas de categoria elevada na hierarquia sociomilitar, sendo os abusos e desrespeito pela legislação frequentes. Os soldados pagos começaram por servir por um período indeterminado (na prática, para sempre), mas a partir de 1654 ficou estabelecido que deviam servir continuamente durante 8 anos, findos os quais poderiam regressar a suas casas. Nos anos 40 e primeira metade da década de 50, entre os militares que constituíam as forças pagas contavam-se muitos veteranos das guerras no Império ultramarino português, com destaque para o Brasil, ou que haviam servido nas campanhas europeias integrados no exército espanhol ou no dos seus aliados do Sacro Império.

b) Os milicianos, categoria que compreendia a ordenança e os auxiliares. Esta segunda força miliciana foi constituída em 1646 para a infantaria e somente em 1650 para a cavalaria. Na ordenança eram obrigatoriamente alistados todos os homens válidos entre os 15 e os 60 anos que não fossem recrutáveis como soldados pagos, sendo organizados em companhias (uma ou mais companhias de infantaria por comarca, havendo também algumas de cavalaria). Parte da gente da ordenança passou a servir nos auxiliares quando esta força foi criada (um terço e uma companhia de cavalaria em cada comarca). Em teoria, apenas os milicianos  auxiliares deviam prestar serviço nas fronteiras de guerra, pois para isso tinham privilégios semelhantes aos dos soldados pagos. A partir de 1657 passaram a receber metade do soldo que se pagava áqueles, quando partiam em campanha. Todavia, não era raro encontrar unidades da ordenança empregues em guerra viva, mesmo depois de 1646 e até fora da província de origem. Havia ainda uma subcategoria da ordenança, a dos volantes, que era composta por gente escolhida e que se destinava a formar unidades itinerantes. Com o surgimento dos auxiliares, estas unidades tornaram-se mais raras.

 Foto: piqueiro português do início da guerra, armado com pique e protegido por couraça composta por peito, espaldar e escarcelas, além do característico morrião. Apenas uma pequena parte dos piqueiros usava este equipamento defensivo. Os restantes não tinham qualquer tipo de protecção para o corpo, sendo designados por piques secos. Figurino do Museu Militar de Elvas.