A representação da infantaria no quadro do Marquês de Leganés sobre o combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645)

Saídos de Estremoz, os 400 infantes do terço da Ordenança da comarca de Évora, comandados pelo sargento-mor João da Fonseca Barreto, são surpreendidos e completamente desbaratados por uma força de cavalaria inimiga com cerca de 600 efectivos. Apesar da legenda no quadro referir uma igual composição numérica (1.000 para cada lado), as fontes documentais são bem claras.

Quanto à força de infantaria portuguesa, não restam dúvidas que seriam 4 companhias da Ordenança, a 100 homens cada. O quadro, curiosamente, parece comprovar este efectivo. Mostra dois esquadrões (formações tácticas) compostos exclusivamente por piqueiros (juntando, cada esquadrão, os piqueiros de 2 companhias). Os atiradores armados de arcabuz encontram-se abrigados atrás de uma tapada ou distribuídos pelos edifícios, estando uma parte deles já representada em fuga – curiosamente, carregando as armas, o que seria pouco praticável e contraria o que era profusamente descrito nas fontes a respeito de casos semelhantes.

Segundo as fontes coevas, reportadas num artigo de Outubro de 2008, da autoria do Sr. Santos Manoel, a inépcia do sargento-mor ao dispor as forças teria sido a causa de uma derrota que, ainda que menor no contexto dos inúmeros combates semelhantes ao longo da guerra, chocou os portugueses pela dimensão da derrocada: um terço inteiro destroçado, morta a quase totalidade dos seus soldados. Os erros que o Conde da Ericeira aponta a João da Fonseca Barreto (não ocupar e guarnecer uma tapada de parapeito alto, ou de ter dado ordem de ataque ou receber a carga de cavalaria em campo aberto) são, no entanto, contrariados em parte pela representação da força portuguesa no quadro do Marquês de Leganés.

Aí é visível que os atiradores portugueses se encontram abrigados atrás de muros – o que pode, no entanto, ser uma liberdade artística, para valorizar mais a vitória espanhola. No entanto, os esquadrões de piqueiros estão totalmente desguarnecidos de atiradores e posicionados em campo aberto. Dada a falta de preparação militar e consequente coesão, isso seria um factor facilitador da derrocada.

Um pormenor interessante é a representação de 4 bandeiras, uma por cada companhia: duas carregadas pelos respectivos alferes em fuga, outras duas em cada esquadrão de piqueiros. Aparentam ter representada uma cruz aspada – semelhante à Cruz de Borgonha dos exércitos espanhóis. No entanto, enquanto duas são verdes (verde e branco foram as cores heráldicas da casa de Bragança até 1707), uma terceira parece ter a cruz em vermelho, tal como a Cruz de Borgonha aparecia representada nas bandeiras das unidades espanholas. Uma outra bandeira, carregada em fuga, mais ao longe, é branca, mas não se distingue nela qualquer símbolo.

Outro pormenor que desperta curiosidade é a representação de 3 cavalos entre as forças portuguesas: um montado, outro que acabou de derrubar o próprio cavaleiro, e outro, mais ao longe, desmontado e em fuga. A representação dos cavaleiros com faixas brancas atadas à cintura identifica-os como portugueses. O facto, no entanto, é que apenas o sargento-mor teria direito a cavalo para se fazer transportar, o que pode significar que estamos perante outra hipóteses de liberdade artística.

A representação da cavalaria no quadro do Marquês de Leganés sobre o combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645)

Inicio aqui uma pequena exploração do quadro que o Senhor José Maria Villanova-Rattazi Guillén, descendente do Marquês de Leganés, gentilmente me deu a conhecer. Em artigos publicados em Março, Abril e Setembro de 2019 já o mesmo tinha sido referido, a propósito do combate de Alcaraviça, refrega essa que motivou a execução do quadro, numa evocação da vitória do Marquês sobre uma força de infantaria da ordenança portuguesa.

A temática bélica é muito comum na pintura do século XVII, marcado na sua fase inicial pela Guerra dos 30 Anos. No entanto, são escassas as pinturas que têm como pano de fundo a Guerra da Restauração. À parte as convenções observadas na pintura de temas de guerra (onde se realça uma tendência para a distorção da perspectiva, em benefício de uma visão panorâmica e esquemática de um combate ou batalha), o naturalismo e o realismo na representação das forças em contenda constituem preciosos elementos para o conhecimento do seu equipamento e armamento na vida real. De um modo geral, confirmam ou complementam informações presentes em fontes escritas.

É neste pressuposto que irão ser aqui abordados alguns pormenores constantes no quadro do combate de Alcaraviça, começando pela cavalaria. As fotos são da autoria do Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén.

A força de cavalaria, na totalidade espanhola, está representada no quadro em 10 batalhões (formações tácticas), a seis fileiras de frente por 4 filas de profundidade. Nos batalhões mais próximos é visível uma mistura de equipamentos defensivos: as duas fileiras da frente com cavaleiros equipados com couraça de peito e espaldar, e as restantes, com um ou outro pelo meio, maioritariamente com couras, ou seja, a protecção de couro. Nada de novo, dado que corrobora a prática também seguida entre a cavalaria portuguesa e que as fontes documentais – com particular relevo para os róis de equipamento das companhias que chegaram até nós – comprovam. Alguns cavaleiros apresentam faixas de cor vermelha, atadas sobre o tronco na diagonal ou usadas à cintura, o que os identifica como elementos do exército espanhol (o branco ou o verde eram usados entre os portugueses, dado serem essas, à época, as cores da Casa de Bragança). Todas as bandeiras das companhias espanholas são representadas numa só cor, o vermelho, cor que também predomina nas plumas que enfeitam os capacetes dos oficiais (alguns deles têm plumas vermelhas e brancas). De resto, todo o equipamento defensivo é usado sobre vestuário de cores diversas, tal como as capas que alguns cavaleiros apresentam não têm cor uniforme.

Apenas uma dissonância em relação ao vermelho identificativo da força militar da Coroa de Espanha: o trombeta em primeiro plano traz pendente do instrumento musical uma peça de tecido verde. Tratar-se-ia da cor pessoal do comandante da companhia ou do próprio Marquês de Leganés? No entanto, já um outro trombeta, representando num plano mais distante, exibe o vermelho usual.

No próximo artigo iremos ver como se encontram representadas as forças de infantaria portuguesa.

O quadro do Marquês de Leganés sobre o combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645)

Entre Março e Abril de 2019 foi aqui de novo tratado o combate de Alcaraviça, a propósito de um quadro que o Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén, descendente do Marquês de Leganés, tem em sua posse e do qual gentilmente me havia cedido várias fotos para aqui publicar. O tempo tem sido escasso para manter actualizado o blog, devido a compromissos profissionais e particulares, mas não quis deixar terminar o mês de Setembro sem publicar uma foto do referido quadro já restaurado.

A ele voltaremos em breve, para abordarmos os pormenores do armamento e equipamento das forças em contenda. Desde já, renovo os meus agradecimentos ao Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén.

O combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645) e o quadro do Marquês de Leganés – 2.ª parte: a narrativa de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz)

Do sucesso do Marquês de Leganés também faz eco o memorialista Mateus Rodrigues. A sua unidade, comandada por D. João de Azevedo e Ataíde, esteve envolvida nas operações de intercepção da força espanhola – aliás, sem sucesso.

O episódio das Vendas de Alcaraviça é referido pelo memorialista, neste caso não por tê-lo testemunhado, mas provavelmente por dele ter ouvido contar a terceiros. Segue-se uma transcrição vertida para a grafia actual:

Estando o inimigo nestas competências, […] lhe veio um aviso de uma espia dobre [ou seja, um espião que fazia jogo duplo, dando informações para ambos os lados], […] que as ordenanças de Évora estavam em Estremoz, e que vinham para Elvas tal dia. […] Pois o aviso era tão certo […], porque a mesma noite que o inimigo saiu, essa mesma veio a gente [da ordenança] a dormir às Vendas d’Alcaraviça, que são duas léguas de Estremoz. E ao outro dia se haviam de vir para Elvas, que são 4 léguas, de maneira que o inimigo entrou com a cavalaria por entre Elvas e Juromenha, e logo foi sentido na entrada. Mas não que se soubesse o poder que levava, senão pela manhã, que ele ia em grande marcha pela estrada abaixo de Estremoz. A gente de Évora já se queria vir, que estava já fora das estalagens para marchar. Vinha com eles por cabo [ou seja, comandante] um sargento-mor mesmo de Évora. E como o inimigo foi logo sentido por aqueles campos, iam muitos lavradores fugindo em éguas, dando avisos do inimigo. E tanto que o sargento mor da gente ouviu dizer que vinha o inimigo, meteu toda a gente, que eram 600 homens, todos em uma grande tapada, que estava ao pé das estalagens, com parede à roda, que dava pelos peitos a um homem, que se fora gente paga não houvera de investir com eles o poder do mundo. Mas aquela canalha, não servem mais que de beber, que são uns bêbedos, e o sargento-mor que vinha com eles outro tal, e pior ainda.

Assim como o inimigo chegou a um cabecinho que está à vista das mesmas estalagens e já muito perto, logo viu toda a gente metida na tapada. E assim como a viu formou-se mui bem e manda tocar as trombetas a degolar, e vai investindo com eles por duas ou três partes. E assim como averbou com eles, não puderam logo saltar os cavalos a parede, mas apearam-se uns poucos de castelhanos e fizeram logo uns por todos, que passaram os batalhões formados, e a tudo isto os bêbedos ia[m] fugindo cada um por onde podia, mas que lhe importava isso, que dos 600 homens que eram não escaparam 100, que deu o inimigo neles e foi degolando todos os que iam encontrando, até que se enfadou de matar e os mais trouxe prisioneiros, que matou mais de 200 homens e trouxe prisioneiros perto de 300. (MMR, pgs. 134-136)

Embora os pormenores não sejam muito nítidos nas fotos disponibilizadas pelo Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén (veja-se a 1.ª parte deste artigo), o quadro corrobora a descrição feita por Mateus Rodrigues. A infantaria portuguesa encontra-se formada em dois pequenos esquadrões (designação coeva para as formações tácticas de infantaria),  cujos blocos são exclusivamente constituídos por piqueiros. Os atiradores (quase certamente munidos de arcabuzes, como era frequente entre a ordenança) estão dispostos ao longo do muro que delimita a tapada, disparando sobre o inimigo. Uma parte da força portuguesa já está em fuga, após o dispositivo ter sido penetrado pela cavalaria espanhola. Como cada companhia tinha uma bandeira e no quadro se podem ver quatro (duas delas levadas pelos alferes em fuga, as outras nos respectivos esquadrões ainda formados), é possível que o terço da ordenança fosse composto por quatro companhias de 150 homens cada, o que mais uma vez confirma o efectivo de 600 homens referido nas fontes – e desmente o número exagerado (1.000) apresentado na legenda do quadro.

Imagem: pormenor da legenda do quadro mandado pintar pelo vitorioso Marquês de Leganés, onde o número dos portugueses derrotados é superior ao que as fontes escritas referem. Mas este exagero de propósito laudatório era comum no período.

 

 

 

O combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645) e o quadro do Marquês de Leganés – 1.ª parte

Um dos primeiros artigos publicados neste blog, no já distante ano de 2008, foi acerca da destruição da ponte de Nossa Senhora da Ajuda, ou ponte de Olivença, pelas forças espanholas comandadas pelo Marquês de Leganés, numa operação decorrida em Setembro de 1645. Mais tarde, a 2 de Novembro desse mesmo ano, uma incursão sob o comando do mesmo Marquês desbaratou um terço da Ordenança de Évora – um verdadeiro desastre para as forças portuguesas – no que ficou conhecido como o combate das Vendas de Alcaraviça (na actual localidade de Orada, próximo de Borba, e não na moderna Alcaraviça). Em 2009, um muito interessante artigo amavelmente enviado pelo Sr. Santos Manoel foi aqui publicado em duas partes, tendo eu feito um breve acrescentoposteriormente. E em 2010, o estimado amigo Julián García Blanco voltou ao assunto, num artigo também aqui publicado.

Recentemente, tive a grata surpresa de ser contactado pelo Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén, descendente do Marquês de Leganés, que tem em sua posse um quadro a óleo mandado pintar por aquele seu distinto antepassado, de forma a perpetuar o combate de 2 de Novembro de 1645, no qual as suas forças obtiveram uma retumbante vitória.

Com a devida autorização do Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén, aqui publico uma das fotos que gentilmente me enviou. Num próximo artigo, dando continuidade ao que aqui se apresenta, voltaremos ao quadro – uma raridade no que toca à iconografia bélica da Guerra da Restauração –  e aos interessantes pormenores que retrata.

 

 

A situação militar na província da Beira em Junho-Julho de 1645

Meulener

Em 10 de Julho de 1645, o Conselho de Guerra era informado acerca da situação militar na província da Beira, através de um conjunto de cartas enviadas pelo governador das armas, D. Fernando Mascarenhas, 1º Conde de Serém, e do tenente de mestre de campo general João Lopes Barbalho. Na verdade, pelo menos uma das cartas foi colocada no maço em data posterior à data da consulta, visto ter sido remetida de Penamacor em 8 de Julho.

Vejamos como relatava o Conde a situação na província que governava, transcrevendo a sua carta de 25 de Junho de 1645, remetida de Salvaterra do Extremo:

(…) O tenente de mestre de campo general me disse havia de fazer a Vossa Majestade a relação da entrada do inimigo em Portugal, e da festa que ontem nos veio fazer com grande quantidade de cavalaria e duzentos e sessenta infantes; eu estou informado de eles haverem trazido pouca pilha [o Conde quer dizer que levaram para Espanha pouca pilhagem], e ainda essa que trouxeram têm seus donos a culpa, porque tendo aviso de que o inimigo juntava poder, os avisámos que estivessem alerta, e em que tirando uma peça e fazendo facho era sinal que o inimigo estava em Portugal. Assim que chegou aviso, que era uma para as duas, depois da [sic] com grande cuidado tirou e fez facho e nem tanto daí a meia hora, pela manhã, tirámos outra peça a que nos respondeu Idanha, com que fiquei descansado e imaginando que tudo havia recolhido. Na mesma manhã nos trouxeram duas línguas e soubemos delas haverem passado as tropas de Alentejo a noite de sexta-feira e naquela haverem vindo duas para a Zarza, bem entendi eu a peça, vieram-nos tocar arma (…) de que eu zombei bem, e não houve lugar de lograrem os zarzos seu desejo. Dizem estes homens que dizem em Alcântara que temos grande governo, se nós nos víramos com poder não haviam eles de fazer tantas pilharias, por mais que a sua gente cobrisse estes campos, que pela conta eram mais de seiscentos homens de cavalo, afora os que iam com a tropa da pilha que era de dragões. E dizem uns muchachos, que vinham tangendo as ovelhas, que vinham desarmados, dizendo que os haviam enganado os sarcenhos [naturais de Zarza la Mayor] que não levam nada, o que eu posso assegurar a Vossa Majestade é que se nós tivéramos boa artilharia, que lhe havíamos de fazer muito dano, mas não deixámos de lhe fazer algum, de um tiro dou eu fé, que derrubou um do cavalo, e também uma emboscada que lhe tinha o tenente-general feita lhe houvera de matar alguns, se antes de eles chegarem a tiro uma pessoa, que ele deve dizer a Vossa Majestade, não mandara disparar e descobrir a gente, alguns lhe haviam de ficar, como na refrega passada ficaram, que dizem esses línguas que lhe matámos na refrega passada muita gente, e entre eles um capitão de cavalos e um tenente e dois dos principais da Zarza; eles não podem ter aqui muito esta gente e devem ir dando por todas as nossas fronteiras, vendo se podem fazer algumas pilhas [isto é, pilhagens], e não era mau avisar Vossa Majestade a Castelo Rodrigo e a Alfaiates e a Almeida que recolham os gados, que nunca a prevenção fez mal (…).

Na mesma data, o tenente de mestre de campo general João Lopes Barbalho enviou de Salvaterra uma outra carta, com teor muito semelhante à do governador, mas num português mais escorreito. Dois dias mais tarde, o Conde de Serém expedia outra carta, dando conta de que Salvaterra do Extremo se encontrava cercada pelo inimigo. Uma outra carta, remetida de Penamacor em 1 de Julho, dava conta da situação militar na província e referia que o tenente de mestre de campo general se encontrava em Idanha-a-Nova com 200 infantes pagos e 200 cavaleiros. A quinta e última carta, incluída no lote dos anexos em data posterior à da consulta, refere que o inimigo, devido à superioridade numérica da sua cavalaria, se encontrava senhor da campanha e não se lhe podia impedir as pilhagens, tendo realizado algumas entradas.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, doc. nº 81, consulta de 10 de Julho de 1645 e cartas anexas.

Imagem: Combate de cavalaria (pormenor), óleo de Pieter Meulener.

Procedimentos irregulares de oficiais estrangeiros: o caso dos capitães La Morlaye e Tamericurt (1645)

Na sequência de um artigo anteriormente publicado, que tratava das atitudes perante os estrangeiros, trago aqui uma consulta do Conselho de Guerra que se reporta a um dos vários casos que contribuíram para que as dúvidas acerca da utilidade dos oficiais estrangeiros se adensassem, na fase inicial da guerra, em particular entre os anos de 1643 e 1645.

O facto é que os militares estrangeiros viam os seus soldos serem pagos com uma irregularidade que podia ir de meses a anos. Ao contrário dos portugueses, que sempre tinham mais facilidade em encontrar meios alternativos junto das populações, aos estrangeiros restava o recurso a expedientes ilegais. Daí a intervenção dos embaixadores, no sentido de poupar os oficiais infractores aos castigos que deviam incidir sobre os actos ilegais que praticavam. Umas vezes com mais sucesso, noutras nem tanto.

Todavia, os casos que a presente consulta aborda dizem respeito a dois oficiais franceses que viriam a distinguir-se ao serviço da Coroa portuguesa: Achim Avaux de Tamericurt, que atingiria o posto de governador da cavalaria da Beira, com a patente de tenente-general, e que só abandonaria o exército para regressar a França em Outubro de 1661 (acompanhando na ocasião D. Catarina de Bragança na sua viagem para Inglaterra), e Henri de La Morlaye, primo e homónimo de um outro La Morlaye (cavaleiro da Ordem de Malta, daí a sua alcunha “o Maltês”) que havia morrido em combate em Outubro de 1642. Também este La Morlaye viria a tombar em combate, quando era comissário geral da cavalaria de Trás-os-Montes, em Maio de 1649.

A consulta refere que o Conde de Castelo Melhor enviara uma devassa (que surge em anexo à consulta, juntamente com a informação do auditor geral) que a instâncias de André Mendes Lobo, pagador geral do exército do Alentejo, fora feita aos capitães de cavalos franceses Henri de La Morlaye e Achim de Tamericurt. Do primeiro foram encontrados cinco cavalos com a marca da sua companhia em poder de alguns hortelãos e moleiros, e da companhia de Tamericurt dois cavalos. Acrescentava-se que estes capitães procuravam pessoas que lhes quisessem tomar outros.

Mais referia a devassa que nas mostras de três anos àquela parte tinha passado o capitão de Lamorlé [La Morlaye] muitas fantásticas e falsas, e que para uma que se havia de passar em Borba fizera que dois soldados seus se fingissem enfermos em cama, tomando os nomes de outros dois que eram já mortos ou ausentes, ordenando a um escrivão os fosse ver nas camas e lhe passasse certidão para com ela na mostra lhe pagarem suas praças. E aponta o Conde que as intercessões do embaixador de França são tão poderosas que estes capitães não são castigados como merecem.

O Conselho de Guerra dá parecer que não se admita ao Embaixador qualquer intercessão nestes casos, nem a outra pessoa, para que os oficiais sejam castigados, porque assim convém o serviço do Rei.

O próprio Rei dá parecer favorável em 11 de Julho, acrescentando: com se falar em nada ao Embaixador de França. Ou seja, mantendo em segredo os castigos a serem aplicados aos oficiais.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, mç. 5, consulta de 4 de Julho de 1645.

Imagem: Soldado de dragões armado de arcabuz. Gravura francesa de meados do século XVII.

As atitudes perante os estrangeiros – um exemplo de 1645

A presença de oficiais e soldados estrangeiros em Portugal no decurso da Guerra da Restauração já foi abordada aqui por diversas vezes, em vários artigos e sob diferentes perspectivas. O caso que agora se apresenta é ilustrativo do desencontro de opiniões sobre a necessidade ou não do recurso a estes militares profissionais, que tão depressa eram considerados imprescindíveis para reforçar a capacidade de combate do exército português (principalmente na fase inicial do conflito), como eram vistos como dispensáveis arruaceiros e potenciais desertores, que nenhum benefício traziam para o esforço militar do Reino.

Em Agosto de 1645, o tenente francês Jean Boustier de Lanue, que havia chegado a Portugal em Setembro de 1641 como alferes de infantaria, enviou ao Conselho de Guerra uma petição para a formação de uma companhia de infantaria. Encontrava-se então sem contrato nem unidade onde servir desde o início do ano. A falta de montadas terá levado o oficial a propor-se servir numa unidade apeada, formada por si, ainda que a promoção não lhe trouxesse avanços no que ao soldo respeitava – um tenente de cavalos estrangeiro auferia 18.000 réis mensais, ao passo que um capitão de infantaria ganhava 16.000, o dobro de um oficial português com a mesma patente. No entanto, a  efectivação dos pagamentos era uma raridade, deixando os que não eram naturais do Reino numa situação difícil, sem outros meios de socorro imediato e levando-os a praticar alguns abusos e desmandos, o que, de certo modo, é usado por Joane Mendes de Vasconcelos como justificação do seu parecer.

João Boustier de Lanüe, francês, pela petição inclusa se oferece a levantar nesta cidade [Lisboa] uma companhia de cem infantes dos de sua nação para servir a Vossa Majestade com ela, fazendo-lhe Vossa Majestade mercê do posto de capitão dela para ir servir adonde se lhe ordene.

Consta dos papéis que este francês presentou, haver servido na província de Entre Douro e Minho de tenente de uma companhia de cavalos, de 17 de Setembro de 643 até 20 de Janeiro de 645, e achar-se no decurso deste tempo em todas as ocasiões e encontros que se teve com o inimigo, e nas facções de maior importância nos postos de maior risco, mostrando grande valor e zelo do serviço de Vossa Majestade.

Havendo-se visto esta oferta, considerando D. João da Costa e Jorge de Melo que será conveniência do serviço de Vossa Majestade admiti-la, assim por escusar que estes franceses vão descontentes a sua terra e lancem voz da pouca estimação que deles se fez neste Reino, intimidando outros para duvidarem vir a ele quando a necessidade obrigue a procurá-los, como porque sendo soldados práticos poderão servir melhor que os bisonhos que se levantarem de novo, e fazendo-o na infantaria não terão tanta ocasião de se ausentar, como a teriam se servissem a cavalo, por todas estas razões são de parecer que Vossa Majestade deve de admitir a oferta, ordenando que a cada um dos cem soldados se dê uma paga de quatro mil réis para se poderem vestir, e seus socorros ordinários na forma que são socorridos os soldados portugueses, e depois de formada esta companhia se poderá remeter ao Alentejo, com ordem ao Conde governador das armas que agregue a um dos terços daquele exército.

Joane Mendes de Vasconcelos é de parecer que não se deve de admitir esta oferta, entendendo que sendo esta gente a escória de todos os estrangeiros que passaram a este Reino, não servirá tão bem como o farão os soldados portugueses, ainda que sejam bisonhos, entendendo também que estes franceses, estando já costumados à vida de vagabundos, como se virem com as pagas e vestidos, por mais cuidado que se tenha com eles procurarão fugir, e que o receio do dano que eles podem causar indo-se descontentes deste Reino mal se poderá atalhar com os acomodar, sendo já idos tantos de mais autoridade e importância que eles, queixosos de não se lhes pagar o que se lhes devia, despedidos do serviço de Vossa Majestade, a cujas queixas é de crer se dará mais crédito nas suas terras, do que se dará a estes, sendo gente de tão pouca importância. Lisboa 22 de Agosto de 1645.

O Rei acrescenta à margem, como resposta ao parecer: Tenho deferido noutra consulta. Caldas, 13 de Setembro de 645.

Jean Boustier de Lanue seria mais tarde promovido a capitão de dragões, tendo morrido em combate em Dezembro de 1646.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, consulta de 22 de Agosto de 1645.

Imagem: “O cavaleiro”, óleo de Gerard Terborsch.

Uma altercação entre militares e eclesiásticos em São João da Foz (1645)

O forte de São João Baptista da Foz do Douro, cuja construção foi iniciada em 1571, durante o reinado de D. Sebastião, estava necessitado de obras de remodelação quando começou a Guerra da Restauração. O francês engenheiro-mor do reino Charles Lassart elaborou o traçado dos melhoramentos e ampliação do forte em 1642, tendo as obras ficado a cargo do engenheiro João Torriano. Contudo, os trabalhos foram sendo atrasados devido a problemas surgidos com a Câmara do Porto. Um dos muitos e frequentes episódios de conflito entre os poderes locais e as autoridades militares.

Em 1645, quando ocorreu o acontecimento narrado numa consulta do Conselho de Guerra e que vai ser aqui transcrito, as obras ainda não tinham começado. O choque entre o governador do forte e as autoridades eclesiásticas teve por causa próxima um incidente de costumes, mas não terá sido alheia a difícil relação entre civis e militares por motivos que transcendiam o que aqui vai ser apresentado. No entanto, todo o sucedido é demonstrativo de quanto o que hoje consideramos ser a esfera da vida privada estava sujeito ao escrutínio do público, ao nível da moral e dos costumes.

O cabido da Sé da cidade do Porto deu conta a Vossa Majestade dos excessos que diz haverem cometido Luís Pinto de Matos, capitão do castelo do lugar de São João da Foz, e seu filho e um sobrinho, de que indo os oficiais da justiça eclesiástica àquele lugar para notificar a uma mulher com que este capitão está publicamente amancebado, que aparecesse ante o vigário geral para ser admoestada na forma do Sagrado Concílio Tridentino, o dito capitão com seu filho e um sobrinho, e soldados do castelo, saíram aos oficiais e os espancaram, afrontaram e trataram muito mal, e que Vossa Majestade informado do caso, mandara a alguns ministros da Relação fizessem certa diligência e a remetessem a este Conselho. E por o capitão ser poderoso, se não fez obra no negócio, de que resultou fazerem a Vossa Majestade nova lembrança com a cópia dos autos que se fizeram dos ditos excessos para Vossa Majestade os mandar ver, e mandar acudir ao serviço de Deus com o castigo que merecem, pois os ministros eclesiásticos o não podem fazer, dizendo mais que este capitão tem a ocasião das portas dentro, e neste estado quer que o pároco o desobrigue da obrigação da Igreja, e lhe administre os sacramentos da confissão e sagrada comunhão.

Para se tomar resolução neste negócio, mandou Vossa Majestade por carta assinada de sua real mão ao chanceler da Relação do Porto, informasse do que passava neste caso, e ele o fez no papel incluso, no qual diz que viu os autos que o vigário geral e o cabido da Sé do Porto remeteu a Vossa Majestade com a queixa que faz do capitão Luís Pinto de Matos e de seu filho e de um parente seu, informando-se da verdade do caso achou o seguinte: Que o vigário geral compreendeu na visitação ao dito Luís Pinto por andar amancebado com uma moça solteira, e à mãe por consentidora, e conforme a isto quis proceder contra eles, e mandou ao lugar de São João da Foz a Jacinto de Almeida, escrivão seu, e a um meirinho eclesiástico, para as notificarem viessem por ante ele, e como foi o escrivão e o meirinho, entenderam estas mulheres as queriam prender, pelo que valendo-se do filho do capitão, foi ele com um parente seu e outro soldado à casa onde estavam pousados, sem outras armas mais que as ordinárias, e chamando o dito escrivão, saiu ele a falar-lhe e se descompuseram, de maneira que o filho do capitão levou da espada, e ele lhe foi fugindo, e lhe deu algumas espadeiradas de maneira que caiu, e lhe deram duas feridinhas, uma na cabeça e outra numa mão, de pouca consideração; e dando-se recado ao capitão que o filho brigava, porque até então não tinha sabido nada, acudiu com alguns soldados, e chegando à parte onde estavam os companheiros do escrivão, porque tudo já estava quieto por acudir gente, e juntamente o vigário da igreja, religioso de São Bento, e começou o dito Luís Pinto a descompor-se em palavras contra os que vinham fazer as ditas diligências, dizendo que eram atrevidos em virem àquele lugar fazerem diligências que lhe tocavam a sua honra sem a sua licença, com outras iguais a estas, de maneira que os oficiais se foram sem fazer a diligência; e isto era em suma o que se passou neste caso.

E que este capitão não tem ali sua mulher, e a tem nesta cidade de Lisboa. E tinha aquela mulher que se chama Maria Tavira em sua casa, e com ela diziam estava amancebado, e o consentia a mãe Isabel Fernandes, e posto que alguns dias depois que sucedeu o caso a lançou fora, agora lhe disseram que a tornara a recolher; e assim parece a ele, chanceler, que posto que nos soldados não é muito estranhar terem por amigas mulheres solteiras, contudo o excesso do filho do capitão foi grande, e não lhe consta que o pai soubesse do que o filho tinha feito quando acudiu, mas era obrigação sua recolhê-lo e estranhar-lhe o que havia feito, e não se descompor com palavras escandalosas contra os oficiais eclesiásticos. Pelo que lhe pareceu que Vossa Majestadedeve mandar que o filho do capitão não vença soldo pelo tempo que parecer a Vossa Majestade, e que o capitão mande ir perante o governador das armas Fernão Teles de Meneses, e asperamente o repreenda do excesso que fez, fazendo-lhe fazer termo com cominação que acontecendo outra o castigará Vossa Majestade com o rigor que for servido. E a moça Maria Tavira e a mãe que dizem que consente, sejam degredadas do lugar de São João da Foz dez léguas, para que assim se evite e se atalhe este pecado.

O Conselho, conformando-se com o Doutor Lourenço Coelho Leitão, é de parecer que Vossa Majestade mande que na mesma conformidade se proceda, e que o filho de Luís Pinto de Matos, por castigo da culpa que cometeu, não vença soldo por tempo de quatro meses; e porquanto o que resulta contra Isabel Fernandes em ser encobridora do amancebamento da filha toca à Relação do Porto, se deve advertir ao governador Fernão Teles de Meneses que por aquela via se proceda contra ela, e seja castigada como for justiça. Lisboa a 7 de Julho de 1645.

A resposta de D. João IV foi a seguinte:

Como parece ao chanceler, e o soldo que não há-de vencer o filho do capitão seja por quatro meses. Rei. 11 de Julho de 645. E a Luís Pinto obrigue o Conselho a que tenha sua mulher consigo.

O capitão viria a ser afastado do cargo em 1646, e só nesse ano se iniciariam as obras de ampliação e melhoramento da fortificação.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, mç. 5, consulta de 7 de Julho de 1645.

Imagem: “O trombeta, o oficial e a moça”, óleo de Gerard Terborch (1653).

A troca de prisioneiros (3ª e última parte)

A necessidade de ajustar os procedimentos usuais às novas circunstâncias que se iam apresentando levava por vezes à contradição com pareceres anteriormente dados. Foi o que aconteceu com o Conselho de Guerra no respeitante ao caso dos prisioneiros que tinha sugerido fossem transferidos de Elvas para Lisboa, para o cárcere do Limoeiro.

Com efeito, menos de um mês depois de ter dado o parecer ao Rei, que mandou que fosse cumprido o que nele estava estipulado, eis que o Conselho volta a analisar uma nova carta do governador das armas do Alentejo, o Conde de Castelo Melhor. O conteúdo da mesma e o novo parecer é como se transcreve:

O Conde governador das armas do exército do Alentejo, na sua carta que vai com esta, avisa que de Badajoz se havia feito a oferta que contém o papel incluso nela, advertindo que, se de cá se enviasse a Barnabé, Chaves, e aos demais prisioneiros que há neste Reino daquele exército e província, se usaria de galanteria, remetendo todos os prisioneiros portugueses que têm naquela província da batalha de Montijo e de outros encontros. Porque ainda que o número seja maior, com o tempo se podiam restituir os demais, e o Conde, pelas razões que aponta na sua carta, é de parecer que pelo interesse de tirar os nossos prisioneiros do poder do inimigo, e das prisões em que estão padecendo tantas necessidades, e particularmente a João Esteves, que está preso em Badajoz e era espia de Vossa Majestade, casado em Elvas, e que esteve a risco de o enforcarem, o que se não fez por negar no tormento pelo qual se achava, oferecido ao mesmo Barnabé em troca, sem que os castelhanos quisessem nunca vir nisso. Conviria muito ao serviço de Vossa Majestade visse neste meio que os castelhanos oferecem, e avisar-se-lhe logo da resolução que Vossa Majestade tomar nesta matéria.

O Conselho, conformando-se com o Conde pelas mesmas razões que ele aponta na sua carta, é de parecer que Vossa Majestade mande remeter logo a Elvas a Barnabé e aos outros castelhanos que vieram daquela praça e estão no Limoeiro, e que vão com estes os mais prisioneiros castelhanos que houver nesta cidade, e particularmente Alonso Domingues, cuja é a petição que também vai com esta consulta, com um escrito de Gaspar de Faria Severim, com que da parte de Vossa Majestade veio remetida a António Pereira, avisando o que Vossa Majestade era servido se tomasse em lembrança para se tratar dele, quando houvesse troca de prisioneiros, respondendo ao Conde governador das armas que Vossa Majestade aprova se troque Barnabé por João Esteves, e que nas trocas dos mais prisioneiros proceda como lhe parecer, procurando assegurar a liberdade dos nossos que se conseguir na forma da oferta que se fez de Badajoz, e entende o Conselho que fica sendo mui vantajosa para este Reino. Lisboa, 22 de Agosto de 1645.  

O Rei manda proceder de acordo com o parecer, em resolução de 27 de Agosto.

Como se pode verificar, o parecer dado na consulta de 27 de Julho foi contradito por este, menos de um mês depois. Os prisioneiros cuja troca era mais melindrosa, pelas circunstâncias particulares que envolviam, eram assim reservados para estes momentos particulares.

Anexa à consulta, encontra-se a cópia do bilhete que foi remetido de Badajoz ao governador das armas da província do Alentejo. Aqui se transcreve, respeitando a ortografia da época:

Badajos 14 de Agosto 645

Si se toma resoluçion de embiar de alla a Bernaue y Chaues, y los demas prisioneros, que tienen de este ex.to y Prouinçia, se uzara aqui de galantaria, remittiendo todos los prisioneros, que tenemos en La Prouinçia de La Batalla del Montijo, y de otros encuentros, aunque el numero sea mayor, que con el tiempo se podia a restituir los que fueren mas.

Quanto ao pedido feito por Alonso Dominguez, aqui fica a transcrição do original remetido por Gaspar de Faria Severim:

Diz Alonso Dominguez, castelhano de nação, que ele andava na galé patrona, donde Vossa Majestade foi servido mandá-lo soltar, e logo foi levado com outros castelhanos para Cascais por ordem do Conde de Cantanhede, aonde padece maiores necessidades que há numa galé, pelo que pede a Vossa Majestade seja servido (…) de lhe dar liberdade, mandar-lhe dar ordem para se poder ir para uma fronteira a servir a Vossa Majestade, e perder a vida em seu real serviço.

Gaspar de Faria Severim

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, consulta de 22 de Agosto de 1645.

Imagem: Cavalaria vs. Piqueiros – período da Guerra Civil Inglesa. Ilustração incluída no conjunto de regras para jogos de simulação “Fields of Glory” e apresentada neste site.

A troca de prisioneiros (2ª parte) – o caso de Brás Lobero, ou Brás Fernandes

Ao mesmo tempo que decorria o processo relativo aos três prisioneiros portugueses considerados traidores, que deviam ser transferidos da cadeia de Elvas para a prisão do Limoeiro em Lisboa, o Conselho de Guerra debruçava-se sobre o ocorrido num caso semelhante, envolvendo um indivíduo natural de Castela, mas que servia a Coroa portuguesa. A consulta, embora diferente, é do mesmo dia da que foi transcrita na 1ª parte desta série.

Ordenando o Conselho ao secretário António Pereira soubesse de Joane Mendes de Vasconcelos a forma que se havia procedido em Castela na causa e morte de Brás Lobero, que neste Reino se chamava Brás Fernandes, para se satisfazer a ordem que Vossa Majestade vocalmente deu a D. João da Costa; respondeu Joane Mendes o que contém a sua carta inclusa, que em substância vem a ser, que sendo preso Brás Lobero, que vivia em Campo Maior, pelos castelhanos, andando à caça, foi enforcado e esquartejado, e enviada a cabeça a Albuquerque, donde era natural, depois de larga prisão, e correra sua causa em Badajoz, havendo-se passado a este Reino antes da feliz aclamação de Vossa Majestade do de Castela, onde estava muito criminoso, e além de servir de guia da nossa parte, ter feito grandes entradas nele de que era cabeça, não querendo nunca por estas razões os castelhanos tocá-lo, fazendo-se instância da nossa banda. E desejando ele Joane Mendes, pelo bem que ele havia servido, tomar alguma satisfação de sua morte, o não fez, por achar pessoa em quem a nosso respeito concorressem as qualidades e circunstâncias que se achavam em Brás Lobero a respeito dos castelhanos, antes lhe pareceu que eles em certo modo tomavam vingança dos que já da nossa parte se enforcaram o ano passado, como foram um Manuelinho e outros que se tomaram no Alandroal, cujos nomes não sabe, nos quais concorria uma inteira semelhança de nação, pessoas e crimes com Brás Lobero, e assim como então os castelhanos não fizeram demonstração de sentimento, lhe pareceu também dissimular, por as razões destes castigos de uma e outra parte serem muito justificadas.

E vendo-se o que Joane Mendes aponta em razão desta matéria, conformando-se o Conselho com seu parecer, acrescenta que o mesmo caso em termos se executou primeiro que sucedesse o de Brás Lobero na vila do Alandroal, mandando Vossa Majestade enforcar e esquartejar a um português que, havendo passado a Castela, ficou prisioneiro em uma entrada que fez o inimigo neste Reino, dizendo porém o pregão que por crimes que havia cometido neste Reino antes de passar ao de Castela se dera contra ele aquela sentença, e se executava, e isto mesmo e com este exemplo fizeram agora os castelhanos em Brás Lobero. E lembra o Conselho a Vossa Majestade que deve mandar reparar mui particularmente neste negócio em razão da muita parte de oficiais e soldados e fidalgos particulares que estão prisioneiros, e também daqueles que estando em Castela se passaram a este Reino, podendo-se justamente temer e recear que se enforcasse este homem o inimigo faria grande demonstração com os que tem prisioneiros em vingança do caso, e os que vieram de Castela repararam muito em ir servir a Vossa Majestade na guerra, persuadidos que se ficarem prisioneiros correrá por esta mesma razão grande perigo sua vida. Lisboa 27 de Julho de 1645.

O Rei concorda com o parecer do Conselho, por resolução assinada em 29 de Julho.

A indagação ao sucedido mostra a concordância de Joane Mendes com o procedimento levado a cabo pela justiça espanhola em relação a Brás Lobero, o que constitui, na prática, uma aceitação tácita de jurisprudência em casos semelhantes. A execução ficara a dever-se aos crimes praticados do outro lado da fronteira, antes da fuga de Brás Lobero para Portugal. O mesmo sucedera com os portugueses que haviam sido capturados e executados, não por serem considerados traidores à Coroa portuguesa, mas porque sobre eles pendiam acusações relativas a crimes praticados anteriormente. Uma separação cuidadosa destes casos era conveniente, de modo a não abrir caminho a retaliações indiscriminadas de parte a parte.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, consulta de 27 de Julho de 1645.

Imagem: Gerard Teerborch. “Oficial lendo uma carta”, 1657-58.

A troca de prisioneiros (1ª parte) – o costume e as excepções

Já aqui foi referido o modo como usualmente se procedia à troca de prisioneiros (veja-se o sucedido a Mateus Rodrigues em Julho de 1651), ainda que sem aprofundar muito o assunto. As normas assentavam no costume e eram bem conhecidas do universo castrense:

– Em primeiro lugar, a libertação de um prisioneiro de guerra podia fazer-se através do resgate, comprando a liberdade a troco de dinheiro: de acordo com o posto de cada militar, entregava-se um mês de soldo e um determinado montante por dia.

– O segundo método era a troca directa de acordo com os postos: soldado por soldado, capitão por capitão, etc. Ficavam geralmente isentos deste estilo os oficiais generais de cada exército.

– O terceiro, e o mais praticado na Guerra da Restauração, deixava ao livre arbítrio dos vencedores o que fazer nas trocas de prisioneiros. A prioridade era dada aos que eram capturados em acções de guerra, e aqui, aos que o tinham sido com maior demonstração de valor e bravura, bem como aos de maior categoria social e postos na hierarquia militar; sem admitir que enquanto estes se não trocassem, pudesse haver quaisquer outras permutas. Em caso algum se devia permitir que se trocassem militares por civis, ou mesmo por outros militares que tivessem sido capturados fora das ocasiões de guerra. No entanto, havendo reféns de parte a parte por mútuo acordo (prática que não era invulgar na época, nomeadamente enquanto decorriam as negociações sobre as condições de rendição de uma praça cercada), essa troca tinha precedência sobre todas as outras.

O único entrave a esta prática, pelo menos durante os anos iniciais da guerra, era uma certa relutância da parte espanhola em aceitar a igualdade – em termos de estatuto beligerante – com os portugueses, considerados meros rebeldes. De resto, algo que já havia sucedido em relação aos holandeses, também nas etapas iniciais da Guerra dos 80 Anos. Com o tempo e a continuidade do conflito, porém, essa relutância foi desaparecendo.

Havia, no entanto, uma zona de sombra que acabava por escapar a todas estas “leis consuetudinárias da guerra”, e onde o livre arbítrio dos captores mais se sentia. Era o caso dos “traidores”, ou seja, portugueses ou espanhóis que tinham passado para o lado inimigo, renunciando ao seu soberano “natural” e passando a servir o outro. Pior ainda se serviam de guias nas incursões ao território vizinho. A captura, nestes casos, trazia sempre consigo o risco de condenação à morte e execução para o militar em causa, mas de parte a parte era usual uma certa cautela, com receio de uma escalada de actos de retaliação.

Um destes casos é tratado numa curta série de consultas e envolve três indivíduos capturados pelo exército do Alentejo durante o governo das armas do 2º Conde de Castelo Melhor. A primeira dessas consultas, datada de 27 de Julho de 1645, aborda o destino a dar aos prisioneiros, cuja detenção em Elvas, pela proximidade da fronteira, não era aconselhável. A transcrição é a seguinte:

O Conde de Castelo Melhor, governador das armas da província do Alentejo, escreveu por este Conselho a Vossa Majestade a carta inclusa, na qual diz que por outra do auditor geral que com ela remete a Vossa Majestade e também vai junta, ficará Vossa Majestade entendendo quanto convém que os prisioneiros nela declarados não estejam na cadeia da cidade de Elvas, nem tão pouco se troquem para Castela, ainda que os castelhanos nos asseguram que não hão-de trocar nenhum soldado nosso, senão entrando estes piratas no troco. Contudo, em sabendo que estão mandados trazer por ordem de Vossa Majestade a esta Corte se desenganaram, como têm feito com Sebastião Correia da Silva, que está no Limoeiro, e se da parte de Castela não exceptuaram no troco que nos propõem os prisioneiros que estão em Granada, Sevilha e Utreta, fora justo que lhes déssemos aos três declarados na carta do Auditor, pelo benefício que recebíamos em virem para este Reino os fidalgos e soldados que foram presos na batalha de Montijo; porém como os reservam, deve Vossa Majestade ser servido que de nossa parte se faça também esta demonstração.

Na carta do auditor geral que também escreveu a Vossa Majestade, de que a do Conde faz menção, diz que na prisão daquela praça de Elvas estão reteúdos há muitos dias João de Chaves, natural de Badajoz, Barnabé Martins, português, natural da Guarda, morador e casado em Telena, donde se foi para Badajoz, e Simão Antunes, português, natural de Elvas, casado em Badajoz, todos soldados de cavalos conhecidos por grandes piratas, que como naturais e práticos nos lugares daquelas fronteiras, serviam de guias para as pilhagens. A estes pediram por muitas vezes de Badajoz a troco de outros soldados, mas nunca os governadores das armas o Conde de Alegrete, Joane Mendes de Vasconcelos, e ora o Conde de Castelo Melhor, deferiram a seus trocos pelas informações que deles dava. E ultimamente se resolveram da parte de Badajoz em não admitirem trocas, como neles não entrassem os sobreditos, e assim têm por ora cessado as trocas. E por não convir ao serviço de Vossa Majestade que estes homens tornem a Castela pelo muito dano que causariam, se resolveu o Conde governador das armas mandá-los a Vossa Majestade com esta notícia, para que deles se não trate, e se desenganem da parte de Badajoz que com eles se não há-de praticar a troca, com que ficará cessando o inconveniente para os mais que não forem desta qualidade, sabendo que por ordem de Vossa Majestade estão exceptuados, com de sua parte tem feito com outros portugueses.

Sobre o que propõem nas cartas referidas o Conde de Castelo Melhor, governador das armas, e o auditor geral da província do Alentejo, para se haverem de trazer da cadeia de Elvas uns três prisioneiros que ali estão prejudiciais, e guias contra nossas praças, para a desta cidade, e instarem os castelhanos por eles de maneira que se resolvem a não haver de admitir mais troca alguma enquanto se lhes não conceder a destes três por eles nomeados. Pareceu ao Conselho dizer a Vossa Majestade que os ditos três prisioneiros, e quaisquer outros que haja desta qualidade, se mandem vir logo para o Limoeiro [prisão em Lisboa, perto da Sé], e que Vossa Majestade se sirva de mandar que os governadores das armas tenham forma geral com que devem proceder nas trocas de uns com outros prisioneiros.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, consulta de 27 de Julho de 1645.

Imagem: “O ataque ao comboio”, óleo de Pieter Post.

A tentativa de tomada de Badajoz pelo 2º Conde de Castelo Melhor, segundo uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama (1645) – 2ª parte

Conclui-se aqui a transcrição da carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama:

Eu levava à minha conta pôr o petardo principal,e o efeito dele devia ser sinal para se investir pelas outras partes. E com estes fundamentos, que pareceram bastantes para se intentar a facção, deu o Conde de Castelo Melhor conta a Sua Majestade e lhe perguntou se queria que se obrasse. Sua Majestade respondeu que sim, escrevendo uma carta ao Conde e pondo quatro regras de sua mão. Dizia que tomando-se a cidade, ele partia logo de Lisboa com todo o socorro possível, e que da Beira, Trás-os-Montes, Entre-Douro-e-Minho e Algarve mandava vir gente paga, para que de tudo se formasse um exército capaz de defender Badajoz e fortificá-lo, e que por todo o Reino mandava fazer orações para o bom sucesso da jornada. Com a resolução de Sua Majestade se preveniu tudo para o último de Julho marcharmos, e ao amanhecer dar em Badajoz. Mandou-se ordem à gente de Olivença e à de Campo Maior, para que se ajuntasse em Telena, que [é] légua e meia desta praça e duas de Badajoz pelo caminho por onde íamos. Começámos a marchar desta praça para Telena e três peças de artilharia que levávamos, e outras carroças com ferramentas e as escadas, quebraram tantas vezes, que com as consertarem e passagem do rio, chegámos a Telena uma hora antemanhã [isto é, antes do amanhecer], e não poderíamos chegar a Badajoz senão com duas ou três de dia, e como a ordem de Sua Majestade era chegando de dia não acometêssemos a praça, nos retirámos cada um para a praça donde tinha saído. E Dom Rodrigo de Castro foi com a cavalaria a correr o campo de Xerez de los Caballeros, donde trouxe novecentas vacas.

Este é pontualmente o sucesso da jornada de Badajoz. os motivos com que se intentou e os defeitos por que se não executou. Os castelhanos não tiveram notícia nenhuma de nossa jornada, nem souberam que havíamos marchado senão a dois de Agosto, que acaso vieram a Telena e viram a trilha da gente que ali havia estado.Todos os que têm vindo de Badajoz depois disto, assim castelhanos como portugueses, dizem que tomávamos a praça sem dúvida nenhuma, e isto mesmo disse Jorge de Melo e Dom Diogo de Meneses e o Conde de Santa Cruz. Queira Deus termos guardado esta empresa para melhor ocasião. Os castelhanos depois disto têm crescido a infantaria, e têm seis mil homens e dois mil e quinhentos cavalos, e a nossa cavalaria consta só de mil e cento, com que nos levam uma grande vantagem.

Haverá sete dias que o capitão de cavalos Francisco Barreto, filho natural de Francisco Barreto, único filho do morgado de Quarteira, que estava alojado com a sua companhia em Arronches, fez uma emboscada a uma companhia de infantaria que de Albuquerque vem todos os meses mudar o presídio da Codiceira, e deu nela de repente e matou trinta castelhanos e trouxe dezanove prisioneiros com as armas de todos, e as cavalgaduras em que traziam a bagagem. Eles se quiseram vingar e nos vieram aqui armar uma emboscada da outra parte de Guadiana, ainda na sua terra, e mandaram vinte cavalos que viessem tomar o gado. A nossa companhia de cavalos que estava de guarda no campo mandou alguns atrás deles, os quais, contra a ordem que levavam, passaram o rio. O inimigo, em nos vendo da outra parte, carregou sobre eles, e como levavam os cavalos cansados de correr tanto, não se puderam livrar todos, e ficaram prisioneiros doze e o tenente de  Dom Vasco Coutinho. Ficaram mortos dois. E quando fomos saindo desta cidade, se foi o inimigo retirando logo.

De Olivença saíram oito soldados de cavalo a tomar língua, e encontrando-se com trinta soldados que iam para Badajoz de uma leva, os prenderam e trouxeram todos a Olivença.

Isto é o que por cá há estes dias, e do mais que houver avisarei a Vossa Mercê. A Relação da Índia folgarei muito de ver, ainda que é grande o mal que ali nos têm feito os holandeses.

Ao senhor Chantre beijo as mãos e a Vossa Majestade Deus guarde como desejo. Elvas, 12 de Setembro de 1645. João de Saldanha

A propósito de Francisco Barreto de Meneses, que João de Saldanha refere na parte final da sua carta, assinale-se o estudo de José Gerardo Barbosa Pereira, A Restauração de Portugal e do Brasil. A Figura de Francisco Barreto (ou Francisco Barreto de Menezes), texto policopiado, dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2001. Francisco Barreto partiria para o Brasil em 1647 e aí viria a comandar o exército que derrotou os holandeses nas duas batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), o que lhe valeu o epíteto de “Restaurador de Pernambuco”. Em Portugal, a sua participação na Guerra da Restauração decorreu no Alentejo e na Beira, como capitão de infantaria do terço do mestre de campo David Caley, tendo demonstrado valor para ser promovido a capitão de cavalaria em 13 de Abril de 1644 e posteriormente a mestre de campo. Distinguiu-se especialmente no ataque à praça de Valença de Alcântara onde recebeu vários ferimentos em combate.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Interpreza intentada contra Badajoz a 31 de Julho”, fls. 36-37 v.

Imagem:”Cerco de uma cidade”, óleo de Peter Snayers.

A tentativa de tomada de Badajoz pelo 2º Conde de Castelo Melhor, segundo uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama (1645) – 1ª parte

A fracassada tentativa de João de Vasconcelos e Sousa, 2º Conde de Castelo Melhor e governador das armas do Alentejo, de tomar Badajoz em 1645, é um episódio bem conhecido da Guerra da Restauração. Além da narrativa do Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado, outros documentos impressos, nomeadamente as Cartas dos Governadores da Província do Alentejo… publicadas em 1940 por P. M. Laranjo Coelho, se referem a esse empreendimento bélico frustrado (ou sabotado pelos inimigos internos do Conde) ainda na fase de aproximação ao objectivo – mais por malícia, que por descuido, segundo escreveu o Conde de Ericeira. Também o soldado Mateus Rodrigues se refere, nas suas memórias, à incompleta campanha do desafortunado Conde, na qual participou.

Uma outra descrição da operação manteve-se até agora inédita. Trata-se de uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama, comandante de um terço de infantaria, escrita ao chantre da Sé de Évora, Manuel Severim de Faria – não é referido o nome do destinatário na carta, mas o contexto dos restantes manuscritos permite identificá-lo, com razoável certeza. Uma cópia (treslado, na designação comum do período) da carta encontra-se na Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, que em boa hora o prezado amigo Julián García Blanco me fez chegar às mãos. É essa carta que aqui se apresenta, modernizada na grafia, e que por ser algo extensa ocupará dois artigos.

Beijo a mão a Vossa Mercê pela mercê que me faz nesta sua carta, pois além do interesse que tenho de boas novas suas, me mostra o caminho de as procurar, o que farei sempre como tão interessado nelas, e com a certeza deste portador não se perderão as cartas, como devia suceder à que escrevi a Vossa Mercê sobre Badajoz, pois não chegou às suas mãos, e assim torno a referir a Vossa Mercê os motivos que houve para se intentar a jornada. Badajoz é uma praça de grande circuito, tinha quatrocentos soldados pagos e os moradores da cidade faziam as guardas das portas e as sentinelas da muralha, os quais ordinariamente as não fazem com o cuidado necessário. Havia mais quatrocentos cavalos. O Marquês de Leganés estava doente. As portas da cidade eram direitas, e só com uma porta singela e sem rastilho, todas eram nove, quatro grandes e cinco pequenas que caíam para a parte do rio. A muralha toda sem flancos e pela parte por onde havíamos de cometer muito baixo. Dentro nela grande quantidade de moradores portugueses, e muitas mulheres e gente inútil. Todas estas coisas, e o desunido e segurança com que estava o inimigo ajudavam a se poder conseguir a entrepresa. As notícias de tudo isto se souberam por diferentes pessoas, línguas que se tomaram, prisioneiros que vieram, um português que ali vivia há muitos anos, que se passou para nós e um capitão castelhano, que por uma morte que lá fez se veio também a esta praça. E para maior segurança de tudo, foi daqui um sargento nosso feito almocreve a reconhecer tudo muito bem, e também um criado meu entrou lá do mesmo modo, e reconheceu as portas e o corpo da guarda, e fez as plantas de tudo. Também um engenheiro francês que ficou prisioneiro na batalha de Montijo, esteve prisioneiro sete meses sem saberem que era engenheiro, nos deu notícia de tudo. Nós tínhamos seis mil homens nestas três praças de Elvas, Olivença e Campo Maior, e mil cavalos que se podiam ajuntar com grande segredo, como se fez. Havíamos de cometer por três partes, com o grosso da gente por duas partes com os petardos, e pela muralha baixa com as esquadras; e pelas outras cinco partes da muralha se haviam de tocar armas mui rijas, para que não soubessem os de dentro por que parte lhe haviam de entrar. E como eram tão poucos, não podiam guarnecer as muralhas, ainda estando todos prevenidos, e quanto mais tomando-os nós nas camas sem sermos sentidos.

(continua)

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Interpreza intentada contra Badajoz a 31 de Julho”, fls. 36-37 v.

Imagem: Porta de Palmas, em Badajoz. Foi provavelmente por esta porta que passaram os espiões disfarçados de almocreves, a fazer o reconhecimento para a intentada operação de tomada da cidade. Fotografia retirada do blog Puertas de Badajoz, de Julián García Blanco.

As relações entre militares e civis e um caso de justiça em 1645

Não era somente devido às acções de guerra e depredação efectuadas pelos exércitos inimigos que as populações civis das fronteiras sofriam. Os próprios exércitos provinciais, em particular no Alentejo (por ser a província mais devastada pelas operações militares e aquela onde estacionaram mais efectivos durante o conflito) eram uma constante fonte de preocupações para as populações que tinham de aboletar e sustentar os oficiais e soldados. Aliás, as tensas relações entre civis e militares durante os conflitos da Era Moderna eram uma constante e o assunto foi abordado, para o caso português, num capítulo d’O Combatente durante a Guerra da Restauração.

No caso concreto da mulher, cujo estatuto era inferior ao do homem em qualquer estrato social, a fragilidade da sua segurança era evidenciada, por vezes de forma brutal, na forma como era tratada pelos militares, qualquer que fosse a patente destes. Se a justiça régia procurava pôr cobro aos abusos mais evidentes ou mais “escandalosos” (isto é, que eram mais notórios), a verdade é que não era fácil romper as barreiras impostas por interesses e privilégios particulares, nem lidar com o usual fechar de olhos a certos excessos da soldadesca. O caso que se passou em 1645 em Évora e que foi exposto ao Conselho de Guerra é um dos vários exemplos de abusos sofridos pelas mulheres e da dificuldade das queixosas em conseguirem aceder à justiça.

A transcrição que aqui se faz da consulta de Junho de 1645 ilustra o que acima fica referido.

Helena da Cruz e sua filha Mariana Correia, moradoras na cidade de Évora fizeram petição neste Conselho, relatando que por decreto de Vossa Majestade acusam a Rodrigo Franco, soldado pago, por haver desonrado a ela, Mariana Correia, e lhes haver levado sua fazenda, e se deu sentença pelo corregedor da dita cidade de Évora, a qual veio por apelação, e estando distribuída ao desembargador Francisco de Leão de Macedo, ouvidor das apelações crimes, se passou carta pelo desembargador conservador do Estanco das cartas de jogar, por o pai do delinquente ser requerente do contrato do Estanco. Pelo que as suplicantes recorreram a Vossa Majestade, que remeteu a causa a este Conselho de Guerra, e nele se pôs despacho, requeresse ao desembargador João Pinheiro, que conhecendo da causa, mandou passar duas cartas para se lhe remeterem os autos a que o conservador não deu cumprimento, sendo que ela, Helena da Cruz, anda nesta corte passando muitos trabalhos, e gastando seu remédio, e pedem a Vossa Majestade lhe faça mercê mandar, que o conservador do Estanco se não intrometa na causa, e remeta os autos ao Conselho de Guerra em comprimento das cartas que se lhe passaram.

Pela Informação que se houve do desembargador João Pinheiro constou que o conservador do Estanco não deu cumprimento às duas cartas, que como juiz dado por Vossa Majestade para as causas dos soldados pagos, lhe passou, deprecando-lhe as cumprisse, e remetesse as culpas para em seu juízo se dar livramento e satisfação à justiça, por ser só o competente por comissão e regimento de Vossa Majestade. E não somente não deu cumprimento a tais cartas, mas nem despacho pôs em que desse a razão de as não cumprir, em grande moléstia e opressão das suplicantes que requerem justiça, pois sendo o culpado soldado pago como se relata, a este Conselho de Guerra privativamente compete o conhecimento desta apelação; maiormente quando se relata que o réu não é o requerente do contrato do Estanco das cartas, senão seu pai, por cuja cabeça quer participar do privilégio do Estanco das cartas, sendo que ele por si é soldado pago, e assim por sua cabeça sujeito a este juízo da guerra, de que se não pode, nem deve isentar pela comunicação e participação do privilégio de seu pai, quando ele por si, e por sua cabeça, como soldado pago tem seu juiz privativo, que é este Conselho, e toda a contraria pretensão não pode ser justificada

E assim pareceu representar a Vossa Majestade a queixa das suplicantes para que seja servido ordenar ao conservador do Estanco dê cumprimento às cartas precatórias que se lhe passaram, ou de a razão por que as não cumpre, para Vossa Majestade mandar o que mais houver por seu Real serviço e satisfação da justiça.

Lisboa, 14 de Junho de 1645

Do seguimento desta consulta apenas se conhece o decreto régio, dado em 30 de Julho de 1645, que manda proceder “como parece” ao Conselho de Guerra.

Deve esclarecer-se que o contrato de Estanco das cartas de jogar concedia o monopólio da emissão das cartas de jogar (detido pela Coroa) a um particular – no caso, o pai do soldado prevaricador. Apesar das leis que proibiam o jogos de cartas (entre outros jogos de azar), na realidade aqueles eram tolerados dentro de certas condições, e eram muito populares entre oficiais e soldados, que jogavam cartas e dados a dinheiro.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, consulta de 14 de Junho de 1645.

Imagem: “Jogadores de cartas”, de Gerard Terborch.

Os capitães-mores nas fronteiras de guerra em 1645 – parte 2, províncias da Beira, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho

Concluindo as listas dos capitães-mores e respectivos soldos (ou ausência deles), remetidas ao Conselho de Guerra em 1645, são agora apresentadas as respeitantes às províncias da Beira, Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho. A importância relativa de cada uma destas fronteiras de guerra pode ser observada através das listas: enquanto o Alentejo, cuja lista foi apresentada na primeira parte desta mini-série, incluía o mais extenso rol de capitães-mores remunerados, nas outras províncias os soldos eram desconhecidos ou não eram sequer auferidos pelos titulares dos cargos. Mais uma vez se recorda aqui que o capitão-mor era um cargo que podia ser desempenhado por alguém com uma patente militar já atribuída, conforme se pode ver nos quadros inclusos (basta clicar com o rato em cada uma das ligações para aceder ao respectivo ficheiro PDF).

CM Província da Beira 1645

CM Província de Trás os Montes 1645

CM Província de Entre Douro e Minho 1645

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, Rellação das praças da Raya, das Prouincias de Alentejo. Beira. Tras os Montes. Entre Douro e Mynho, e do Reyno do Algarue, e nomes dos Capitães mores dellas, e os que uencem soldo e uencem a sua custa, proveniente da Contadoria Geral.

Imagem: “Soldados jogando cartas”, pintura de Simon Kick; fonte: http://www.wikigallery.org/wiki/painting_203085/Simon-Kick/Soldiers-at-Cards.

Os capitães-mores nas fronteiras de guerra em 1645 – parte 1, província do Alentejo

Sobre o tema desta pequena série de artigos, que será publicada em duas partes, já foi aqui feita uma primeira referência há cerca de dois anos e meio, a propósito do cargo de capitão-mor. Cronologicamente, esse artigo reporta-se ao ano imediato ao que aqui se traz, pelo que poderá ser consultado e comparado com este e o próximo.

Em 1645, ano marcado por uma série de reformas na estrutura do exército português, foi mandado fazer um levantamento dos titulares do cargo de capitão-mor nas diversas províncias do Reino, de forma a que se pudesse estabelecer os gastos com os soldos e a suprimir os que fossem considerados desnecessários. Foi esse o assunto de uma consulta do Conselho de Guerra de Junho de 1645. Anexa a esta consulta encontra-se uma relação extensa e minuciosa sobre os lugares de todas as províncias que tinham capitão-mor, cujo título, todavia, não é totalmente exacto, pois ao contrário do que enuncia, não inclui o Reino do Algarve (designação tradicional da província meridional de Portugal). Uma carta posterior, com assinatura do secretário Pedro da Silva, datada de 17 de Agosto, também se encontra com estes documentos, e traça as conclusões da análise à lista, fazendo ao mesmo tempo algumas propostas.

Recordava o secretário que na província do Alentejo fora ordenado pelo Rei que houvesse praças presidiais (ou seja, com guarnição permanente de tropas pagas), cada uma com sua dotação; e que a praça de armas estivesse em Estremoz, onde estaria o troço de exército que restasse depois de todas as praças se encontrarem dotadas (na verdade, só muito mais tarde, no decurso do conflito, seria aquela localidade elevada a praça principal da província, sede do governo militar, papel que durante grande parte da guerra seria desempenhado por Elvas); e que se tinha determinado que só nas vilas de Montalvão, Castelo de Vide, Alegrete, Ouguela, Juromenha, Mourão e Moura houvesse capitães-mores pagos, e em Vila Viçosa e na vila de Estremoz, havendo esta de ser praça de armas. Concluía que até à data não constava que se tivesse guardado o que se tinha disposto, nem depois que o Conde de Castelo Melhor passara a ser governador das armas chegara qualquer pé de lista à Contadoria.

Em relação aos capitães-mores pagos, o secretário propunha que se extinguissem os de Nisa, Veiros, Monforte e Cabeço de Vide – o que tinha ficado determinado quando se fez a dotação da província. Solicitava que o Rei fosse servido ordenar ao Conselho de Guerra que assim o fizesse, para evitar confusões, dando como exemplo o caso do capitão-mor de Veiros, que estava reformado, segundo a relação, mas ainda auferia o mesmo soldo, como se não o estivesse.

Fazia ainda dois reparos: o soldo do sargento-mor de Villanueva del Fresno, Francisco Pais, que vencia 26.000 réis, quando devia vencer apenas metade. E o soldo do capitão-mor de Mértola, que aparece na relação como sendo de 13.000 réis, quando devia ser apenas de 8.000. Quanto aos capitães-mores das outras províncias, não se podia na Contadoria saber quais os que eram necessários, por não estarem as praças dotadas.

O ficheiro com a lista dos capitães-mores encontra-se em PDF, bastando clicar com o rato sobre a ligação para o visualizar.

CM Província do Alentejo 1645

Fonte: Rellação das praças da Raya, das Prouincias de Alentejo. Beira. Tras os Montes. Entre Douro e Mynho, e do Reyno do Algarue, e nomes dos Capitães mores dellas, e os que uencem soldo e uencem a sua custa, proveniente da Contadoria Geral; e carta do secretário Pedro da Silva, de 17 de Agosto de 1645. ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5.

Imagem: “A emboscada”, pintura de Sebastian Vrancx.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645, última parte) – Carta de D. Gregório Ortis de Ibarra ao Marquês de Molinguen

Com a publicação desta carta, a partir de uma cópia do original em castelhano, termina a série dedicada a este evento menor, quase insignificante, da Guerra da Restauração (não foi insignificante de todo, porque se perderam vidas humanas e mais uma vez a população da raia se viu a braços com as incursões de pilhagem que sobressaltavam o seu quotidiano). A carta é, de facto, um relatório da entrada no termo de Monsaraz, e permite contrapor a versão espanhola às diversas narrativas que sobre o mesmo acontecimento se produziram do lado português. Foi escrita pelo tenente-general D. Gregório de Ibarra, comandante da força espanhola que fez a incursão, e era destinada ao general da cavalaria , o Marquês de Molinguen. As palavras em castelhano são por vezes escritas com grafia portuguesa (por exemplo, companhias em vez de compañias, troços em vez de trozos, etc – de um modo geral, é empregue o ç em vez do z), o que pode tratar-se de um erro de quem copiou a carta original. O castelhano original seiscentista foi respeitado.

Doi parte a V. Excelencia de las aventuras destas companhias, que no ha sido poco, el que todas no quedasen en Portugal, por las buenas noticias que me dio Ramos, que asi sea su salvo. Lo que succedio es que, conforme la orden de Vuestra Excelencia, y lo que tenia dispuesto con dicho Ramos era que las seis compañias se dividiesen en tres troços, el uno en la Luz, el otro en el esguaço, y el otro que passasse Guadiana; para que inquietando Monçaras, saldria a algunos de estos puestos la compañia de Moron [Mourão]. A lo qual digo, Señor, que el enemigo se emparejava y a que no fuesse mas a qualquiera destos troços; y que quedava a la fortuna el buen, o mal successo. Y assi tomamos la marcha el dia que di aviso a V. Excelencia, y el siguiente estuvimos emboscados de donde embié a tomar lengua y truxeron tres, y todos convinieron en que la compañia de Moron  no havia mas que una esquadra, porque todos los demas cavallos estavan mlos de lamparones, y que se havian llevado a curar. Y el capitán havia ido a Helves [Elvas], porque se dizia iva a ser comissario general. Y viendo esto, todos los capitanes y yo acordamos, ya que estavamos en aquel paraje, si se podia intentar el hazerle algun daño al enemigo, y Ramos y todos sus confidentes dixeron que si, y mui facil, porque en dos aldeas que estan mas adentro dos leguas de Monçaraz se podia traher dos mil bueyes y vacas, y preguntandoles si a los esguaços de Guadiana nos podia el enemigo impedir, dixeron que no, por dos causas; la una, porque el enemigo no tenia fuerça para ello, y que nunca acostumbrava ocupar estos puestos, y que quando quisiesse, no se hallava con furça para ello, ademas que quando los ocupasse, que Guadiana se esguaçava por todas partes. Y asi resolvimos el hazer esta entrada, y todos convenimos en que no quedasse ninguna compañia en el esguaço, porque quedaba perdida como lo seran, aunque quedassen mil cavallos  por el mas terreno, y que un infante bale en aquel paraje por vinte. Enfin, Señor, ganamos a estas aldeas, de donde se cogio cosa de seis cientos bueyes y vacas, dos mil cabras, y algunos puercos, y de saqueo una aldea y caserias, y tomando nuestra marcha la vuelta del esguaço, le hallamos ocupadocon gruesso de cavallaria y infanteria y nos fue fuerça el buscar otro, y estaua ocupdo en la misma conformidad; con que fuimos al tercero y fue todo uno; y diziendo a las guias que como me havian dicho, que Guadiana se esguaçava, y no me enseñavan por donde, se encogieron de hombros medio turbados. Esto ès lo que sabe hazer el buen Ramos, y viendo qu eramos cortados y perdidos, embie a Don Juan Unsueta y Don Christoval de Bustamante y mi compañia pera que, perdiendo o ganando, pasassen el esguaçoy que le limpiassen del enemigo, para que yo, en el interin, diesse calor a que pudiesse passar tambien el ganado, y como para obrar esto havia de passar tiempo, el enemigo se engrossava, yo le hize mas de tres horas peleando con el; y como eramos cortados por vanguardia y retaguardia, y el passaje tan aspero, torne a ordenar a Don Juan Unsueta cerrasse dentro de su misma fortificacion con el enemigo, lo qual puso por execucion, y obligo al rebelde a meterse entre unos peñascos. Y viendome yo impossibilitado el poder retirar la presa e salvar la cavallaria, lo hize con toda presteza dexandola, y unos al esguaço, y otros a nado, escapamos con gran ventura, porque el enemigo havia encorporado todo su gruesso. Nuestra perdida han sido diesyseis cavallos muertos de mosquetaços, y quatro soldados muertos y algunos heridos. Lo que puedo asegurar es que creo emos salido bien desquitos. Lo que se pudo salvar fue hasta diesyseis o diesysiete presas maiores y menores, entre las quales ha havido uma excellente potranea y una mula, las quales estos señores capitanes se las embian a V. Excelencia, y la restra entre estos malos guias y dichos capitanes se han consumido. Mi retirada  fue por Moron, y vine a parar a Oliva, oy, sabado, treinta del corriente, y para los cuarteles partiremos mañana, adonde V. Excelencia me podra dar el parabien de tan venturosa retirada. Dios guarde a V. Excelencia muchos años y le suplico otra vez no se fie de gente ruina. Oliva, treinta de septiembre de 645. De V. Excelencia, Don Gregorio Ortis de Ibarra. (Dos cavallos de los mios fenecieron de dos mosquetaços, con que quede acomodado. Sobrescrito – Al Excelentissimo Señor Marqués de Molinguen, guarde Dios, capitan general de la cavallaria del exercito, &tc. Badajoz.

Como se pode verificar, os números apontados na carta do tenente-general Ibarra diferem bastante dos que circulavam entre as notícias portuguesas. Por outro lado, verifica-se a habitual auto-desculpabilização dos comandantes, quando as operações militares não corriam conforme o previsto – traço comum em ambos os exércitos.

Fonte: Copia de huã carta de D. Gregorio Ortis de Ibarra cabo da gente que entrou no termo de Monçaras, para o General da Caualaria Castelhana (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 43-44)

Imagem: “Cena de pilhagem”, pintura de Sebastian Vrancx, do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648). Museu do Louvre, Paris.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – Carta de Mourão com novas desta entrada

A 29 de Setembro de 645, dia de S. Miguel amanhecente entraram 300 castelhanos de cavalo no termo de Monsaraz, aonde vinha a companhia do Lara e Bustamante e Don Alonso de Cabrera por cabo, que são os da fama. Chegaram até à Caridade, vieram recolhendo todo o gado que acharam até Vale de Xeres e Dona Amada. Quiseram vir passar ao porto da Vila Velha, acharam, dizem, seriam sessenta homens do termo de Monsaraz, não se atreveram a passar, foram ribeira acima, estavam ao porto de S. Gens outra pouca de gente, houveram-se tão bem, que os castelhanos houveram por bem largar a presa toda com perda de alguns mortos, e cuido disseram haviam achado, e lhe tomaram cinco cavalos vivos, afora outros que pelo campo se acharam mortos. Vieram-nos dando vista pelo caminho velho, direito ao Penedo da Corva, vieram sair à fonte de Pedro Mateus. Começou-se a jogar com a artilharia, de modo que logo se tomou um cavalo passado pelo pescoço com um pelouro de uma peça, e ainda está vivo, de modo que lhe fugiu um cativo dos que levaram de Valência, e vindo pelo caminho por donde foram, achou à cabeça de João de Vilheiro cinco homens mortos, e disse que levavam alguns com pernas e braços quebrados, e outros feridos, que de noite se queixavam muito; e dizem que todos aqueles haviam morto [morrido] com a artilharia. Parece que Nosso Senhor nos quer ajudar, e bem os castigou nesta jornada, em verdade que bem se pode restituir aos de Monsaraz o crédito, que tão perdido o tinham. Também temos novas que tem o castelhano muita gente junta. Acuda-se a tudo, etc.

Mourão, o derradeiro de Setembro de 645.

António Cordeiro de Sande

Fonte: Carta de Mourão que dá novas desta entrada (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 42 v-43)

Imagem: “Cena de Pilhagem”, gravura de Jacques Callot, do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648).

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – O rebate em Évora

Conforme tinha sido referido na primeira parte desta série, um dos documentos inéditos acerca desta operação reporta-se ao sucedido em Évora, quando aí chegaram as notícias da entrada da força espanhola no termo de Monsaraz. É esse documento que a seguir se transcreve:

Sexta-feira, 29 de Setembro de 645, dia de S. Miguel, pouco depois do meio dia, chegou recado ao capitão-mor Luís de Miranda de João de Mira, lavrador, capitão do campo da freguesia de S. Vicente, que aquela manhã vinha entrando grande poder de gente castelhana, tanto avante que entendeu que marchava para esta cidade. Mandou logo o capitão-mor chamar o sargento-mor, que viesse correndo a casa do chantre para que mandasse picar o relógio a rebate e fizesse fechar todas as portas da cidade, tirando a de Alconchel, e tocarem caixa todas as companhias; fosse tudo com muita diligência, cerrando-se as portas das estacadas, que algumas estavam no chão. Acudiram a casa do capitão-mor todos os oficiais, e o capitão Luís da Silva Vasconcelos ia correndo pela cidade a cavalo dizendo “Arma, senhores, arma”, o que causou grande perturbação nas mulheres, levantando a esta voz seus choros e gritos. Levou-se o recado ao Cabido, porquanto o senhor chantre estava de cama sangrando daquela manhã, presidindo o tesoureiro-mor Dom Veríssimo, e se mandou logo a todos os clérigos da cidade que tomassem armas, e mandaram recado a todos os conventos de religiosos para que estivessem prestes. O primeiro de todos que se foi oferecer ao capitão-mor foi Dom Rodrigo de Melo, arcediago e cónego da sé, com 24 criados armados; o mesmo fez Dom Teotónio Manuel e Dom Veríssimo, a que se seguiu uma numerosa companhia de clérigos, que levavam por capitão o mestre-escola Duarte de Vasconcelos com um arcabuz às costas, e os mais todos armados com mosquetes e espingardas. O mesmo fizeram todos os fidalgos da terra, como foram Fernão Martins Freire, seu filho Luís Freire, Henrique de Melo de Azambuja, Manuel de Mendo, Martim Ferreira da Câmara, Jorge da Silva Velho, Rui de Brito, Dom João Solis, Vasco de Melo e toda a nobreza da cidade. Foi a gente tanta que se puderam coroar os muros, porém contentou-se o capitão-mor em mandar ocupar a praça com um grande corpo de guarda, e em cada porta da cidade outro, e pelos muros, em cada ponta do lenço, um soldado de vigia.  Com o repique do relógio acudiu muita parte da gente que andava na vindima ao longo da cidade, e trouxeram consigo o gado que tinham. A gente de cavalo se ajuntou também na praça com seu capitão João de Macedo, não chegavam a cento, deles escolheu o capitão-mor uma tropa de vinte e cinco, que com o mesmo João de Macedo mandou que fossem pelo caminho de Montoito, por onde diziam que o inimigo vinha, até achar língua, e que não passasse de Montoito. Estando todas as coisas neste estado, chegou um correio de Elvas, que mandava o Conde general ao capitão-mor, pedindo-lhe cavalgaduras de carga para a bagagem do nosso exército, em caso que o inimigo saísse de Badajoz, donde até então não tinha partido. Veio este correio por Vila Viçosa e pelo Redondo e chegou à cidade às quatro horas, sem em todo o caminho se achar nova, nem rumor algum da entrada dos inimigos, por onde se entendeu que o lavrador João de Mira se enganou em cuidar que marchavam os castelhanos pela terra dentro. A certeza deste discurso se confirmou logo, porque pouco depois chegou recado de João de Mira que os castelhanos, chegando a algumas herdades, tomavam o gado e roubavam as casas e se tornavam. Mandou logo o capitão-mor este recado ao senhor chantre, com o qual se recolheram os eclesiásticos e fidalgos, mas a cidade ainda se ficou guardando pela gente da ordenança. O capitão João de Macedo passou a noite em Montoito, onde se ouviram muitas peças de artilharia e muitos mosquetes. E ao outro dia se soube como saindo alguma gente daquelas freguesias a esperar os inimigos no vau por onde dizem que entraram, lhe deram algumas cargas, com que lhe fizeram deixar todo o gado que levavam, com morte de cinco castelhanos, fugindo os outros todos, muitos deles feridos, deixando alguns cavalos. O padre regedor da Universidade mandou repicar o sino do colégio, e como eram férias e não vindos ainda os estudantes de fora, acudiram somente alguns da cidade, que não chegaram a fazer número de trinta, mas esses armados, e mandando-lhe o reitor dar sua bandeira e tambor, saíram pela cidade até casa do capitão-mor, e tornando ao colégio ficaram toda a noite guardando a trincheira da cerca.

Os castelhanos dizem que eram sete tropas, e segundo isto não podiam chegar a duzentos e cinquenta, ainda que ao outro lhe pareceu que eram quinhentos. O guia desta gente era um negro escravo de um fidalgo de Monsaraz que tinha fugido para Castela, este, como conhecia todos os lavradores daquele território e os portos por donde se podia passar o Guadiana, os devia persuadir a fazerem esta entrada, ou com esta ocasião a tomaram eles, por onde parece isto era gente solta de Xerês e Ensinasola e Aroche. O negro os trouxe pelas herdades dos mais ricos, ou dos menos amigos, mas como pela artilharia de Mourão viram que eram sentidos, procuraram logo voltar, e nas herdades onde achavam resistência passavam por se não deter.

Fonte: Entrada de Castelhanos no campo de Monçaràs e rebate de Évora (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 41 v-42 v)

Imagem: Évora. A Porta de Alconchel na actualidade. Foto de JPF.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – parte 3

Partido o dito capitão pela outra parte da vila sem ser visto nem sentido do inimigo, foi o dito inimigo seguindo seu caminho para o dito porto, e encontrando a gente do Reguengo de sobressalto, todos se espalharam cada um por onde pôde, porém logo se foram ajuntando com seu capitão Domingos Pires Guato, e (…) se lhe ajuntou o capitão Domingos Valada com a sua companhia das Vidigueiras, e ambos juntos vieram pelos alcances do inimigo, até chegarem a avistá-lo junto aos Álvaros Gis, e por aquelas barrocas e partes mais altas e ásperas o vieram seguindo sempre, [a]tirando-se-lhe alguns tiros de mosquetes a seus corredores de retaguarda, com o que os inquietaram muito, e assim lhe vieram seguindo os passos até o Monte do Boi, dando-lhe muito boas cargas. Vendo-se o inimigo enfadado de os nossos o perseguirem tanto, ou por lhe fazer algum dano, se virou com a maior parte de sua gente em tropas fechadas para os romper, ou pôr em fugida, o que começaram a fazer alguns, que fora total perdição de todos se o capitão Valada não metera mão à espada, dando-lhe muitas espadeiradas e algumas feridas, ajudado do capitão Guato e do seu sargento, de sorte que os fizeram ter, e tiveram lugar de ganhar um palanquezinho que ali está, donde se tiveram e esperaram ao inimigo. Dando-lhe muito boas cargas o rebateram, depois de porfiarem um bom espaço por entrarem no palanque, que todo o tinham cercado, e como não lhe faziam bom agasalho, se foram alargando. Neste tempo, com o tiro de uma cravina caiu um cavalo de um que andava diante, devia de ser pessoa de porte, porque como se retirou deixando o cavalo, logo todos largaram a pretensão e se vieram em seguimento do gado que vinha pelo Monte do Caminho. Saindo às duas lameiras e serra do Vale de Xeres se vieram chegando ao rio, porém o gado todo o levaram para baixo, de modo que esteve junto do Álamo, que fica muito distante do porto por onde queriam passar. E chegando com o dito gado ao Monte dos Mouros, dizem que tiveram vista de dois ou três homens de cavalo nossos, e imaginando que havia gente nossa no porto de Portel, vieram com o gado rio acima. O capitão António Pereira, tanto que chegou ao porto de Vila Velha com a gente que levava, passou o rio da outra parte. Escolhendo um bom posto, se puseram encobertos para que se o inimigo [a]cometesse o dito posto, o rebater. E chegando alguns do inimigo ao dito porto, se disparou por descuido um mosquete nosso, com que foram sentidos os nossos, de sorte que o inimigo se começou a retirar. Contudo, aqui se lhe [a]tiraram alguns tiros de mosquete, com que se desviaram mais depressa e fizeram alto na Cabeça Solta. Ali deviam ter aviso, ou viram que o gado ia muito abaixo e marcharam todos para lá, e encontrando-o, que já vinha para cima, se vieram todos em demanda do mesmo porto, e tornaram a fazer alto na Cabeça Solta. Nesta volta que fez o inimigo, tiveram lugar as companhias do termo, que já se lhes haviam juntado a de S. Marcos e a de Montoito, de lhe darem algumas muito boas cargas entre o Vale de Xeres e o Monte da Barca. E investindo aqui os nossos, guiados do capitão Guato e Simão Lopes, com uma boa tropa que o inimigo ali tinha, lhe fizeram largar o posto e fugir para os mais. Já aqui o inimigo vinha perdido, porque a gente do capitão lhe ficava à retaguarda, e por diante achava o porto por onde queria passar impedido, e assim se resolveu a mandar duas valentes tropas, com mita gente, a passar pelo porto de Mourão, que chamam o porto de São Gens, guiados pelo mulato Mateus, natural desta vila, cativo [ou seja, escravo] que foi de Baltasar Limpo. Bem viu o capitão António Pereira vir aquela gente a passar, mandou logo pôr sentinelas, por que os não colhessem descuidados. Passado o inimigo da parte de além do rio, e feita uma das tropas em duas, os acometeu no porto com grande ímpeto e fúria, imaginando fazê-los largar o posto ou rompê-los, e com grande grita[ria] das outras tropas que ficaram desta parte com o gado, que diziam com muito altas vozes, para que as outras tropas que acometiam os ouvissem “cerra Espanha, cerra Espanha”, e isto muitas vezes, querendo também cometer o posto, para que uns de uma parte e outros de outra tomassem os nossos, que os tinham no meio, e os rompessem ou fizessem largar o posto, para eles passarem com o gado livremente. Mas foram as duas tropas tão bem recebidas e com tão boas cargas, que depois de os investirem duas vezes se retiraram com perda, e vindo a outra sua tropa muito à pressa, em socorro, se encontraram junto da igreja de Santiago que está naquele lugar, e não sei eu que novas as duas tropas lhe deram, que todas se retiraram ao largo, e depois voltaram sobre o porto de Mourão, aonde fizeram alto. A outra sua gente que estava desta parte, tanto que viu o sucesso dos seus e ouviram uns poucos tiros que alguns nossos [a]tiraram ao porto de São Gens, logo desentenderam de tudo e largaram todo o gado e fugiram infamemente pelo rio acima, indo sempre ao longo dele por partes por onde se não pode andar a pé, mas que não fará o temor e necessidade.

Neste tempo tinham chegado catorze ou quinze infantes nossos ao dito porto, e como os inimigos iam tão apressados, lhe deram suas cargas, que os meteram em tanta confusão que se apinharam dentro na água. Muitos passaram a nado pela garganta do pego, que se o rio levara alguma água ocasião houve de se perderem muitos. Aqui lhe tomaram muitas cavalgaduras carregadas de roupa e cinco cavalos seus e alguns escravos que levavam cativos, e os prisioneiros, e assim se foram fugindo. E ao passar por Mourão lhe saiu o tenente de Dom João de Ataíde [era o tenente Agostinho Ribeiro] com alguns vinte cavalos que ali ficaram, a escaramuçar com eles dando-lhes cargas e chamando-os para lhe chegar a artilharia, o que se logrou porque lhe [a]tiraram nove peças, que lhe deram no meio das tropas e lhe mataram dois cavalos, mas não se sabe quanta gente, porque não deixaram pessoa alguma. E lhes perderam no nosso termo alguma gente, eu tenho alcançado que são doze pessoas as que se acharam mortas e outras que lhe viram levar em cavalgaduras atravessadas. E de crer é que que, em tanto distrito que se lhe foi [a]tirando, lhe mataram muita gente, porque foram seguidos mais de légua e meia [aproximadamente 7,5 Km], e a tempos se lhes davam muito boas cargas, e é certo que levaram muita gente ferida, e lhe ficaram muitos cavalos mortos. De um prisioneiro que levaram até onde fizeram pouco soubemos, que toda a noite estiveram gemendo muitos que seriam os feridos, e diz este que se achou perto donde estavam falando uns castelhanos, e que dissera um: “mal viaje havemos echo”, e falando outro, parece que encontrando-o [ou seja, contrariando-o], tornara ele: “boto que nos cuesta mas de cien hombres entre muertos y heridos”, no que se não põe dúvida, pelo bom agasalho que se lhe havia feito em todo o dia. E é de notar que não houve da nossa parte nenhuma morte nem ferida, donde eu entendo e creio que foi um grande milagre que Deus Nosso Senhor fez, por intercepção do Glorioso Arcanjo São Miguel e das almas do Purgatório, cujas festas se faziam naquele e no dia seguinte. E para que ficasse todo o louvor à gente desta vila e termo do bom sucesso deste dia, há-de se advertir que mando[u] o capitão-mor desta vila dois ou três recados muito a tempo ao de Mourão; e o mesmo fez o capitão António Pereira depois de estar no rio, que lhe mandasse algum socorro, ou lhe mandasse guarnecer algum porto; não mandou soldado algum [o capitão-mor de Mourão], desculpando-se que tinha pouca gente para poder mandar. E ainda que se pudera dizer que o Limpo, com os companheiros, fizeram grande temeridade em escaramuçarem com o inimigo, não se lhe pode negar o louvor a todos; nem menos ao capitão António Pereira que, com tão pouca gente e mal disciplinada, se opôs a tanta cavalaria e tão luzida, que é de crer vinha muita gente de porte nela. Em resolução todos o fizeram muito bem e cada um melhor. Queira Deus levar muito avante este Reino, e que as armas do nosso Rei sejam sempre vitoriosas dos nossos inimigos.


E assim termina a relação. Uma longa narrativa que empola uma acção insignificante no contexto da guerra, mas de grande importância para uma região que não era então das mais agitadas pelas operações na fronteira e cuja pacatez fora quebrada de forma brusca e súbita. Essa escala de vivência da guerra confere outra dimensão ao drama humano, quase sempre esbatido no grande quadro das operações militares.

De realçar que Mateus Rodrigues não inclui esta incursão nas suas memórias, apesar do documento aqui transcrito se referir à  intervenção da companhia onde o soldado servia na altura, a do comissário geral D. João de Ataíde. Contudo, o memorialista refere, em algumas passagens da sua obra, a região onde se desenrolou este episódio e na qual a sua companhia esteve alojada pelo menos entre 1644-45 e 1648.

Um outro dado aparentemente menor, mas que é de salientar, é a referência, por parte dos soldados espanhóis, ao termo “Espanha” como grito de guerra e factor de identificação. Mais um exemplo a juntar a vários outros que tenho vindo a pesquisar e a encontrar, e que contraria opiniões académicas recentes e bem divulgadas (estou a lembrar-me de alguns trabalhos do Professor António Hespanha e do Dr. Fernando Dores Costa), nas quais se nega a ideia de “Espanha” como factor identitário por parte dos militares de Filipe IV, apontando para a historiografia tradicional portuguesa, nacionalista e romântica, a criação desse pretenso “mito”. Nada como investigar a fundo as fontes primárias para corrigir mitos mais recentes – mas é essa, mesmo, a função do historiador, cujas conclusões nunca são definitivas.

Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

Imagem: Novissima regnorum Portugalliae et Algarbiae descriptio (c. 1680). Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1681A.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – parte 2


Boa parte das terras que no século XVII serviram de palco à incursão que aqui é relatada estão hoje submersas, devido à construção da barragem do Alqueva, como se pode verificar pela imagem retirada do Google Earth que acima se reproduz. Mas retornemos à narrativa, interrompida no momento em que 80 infantes e 17  cavaleiros da ordenança montados em éguas saíram de Monsaraz.

Se foram detrás da serra de Gaspar Dias, aonde estiveram com determinação de esperar o inimigo (se por ali viesse). Depois de um bom espaço de tempo se tornaram todos a subir a serra, porque lhe chegou um corredor nosso novo, que o inimigo vinha marchando pela estrada de Évora para passar entre a serra e as vinhas e que eram muitos, no que se certificaram com a vista e temeram com muita razão, porque vinham cinco ou seis castelhanos para cada infante nosso. E assim se foram retirando pelo cume da serra para pé da atalaia, aonde fizeram alto, e ouviu-se uma voz de um soldado bisonho, e disse “senhores, o poder do inimigo é muito grande, mostremo-nos neste alto espalhados para que pareçamos muitos”, o que se executou com tão bom acerto que foi total perdição do inimigo e remédio nosso. Neste tempo vinha o inimigo passando pelo Monte do Duque com três tropas de vanguarda e seus corredores diante, e contra o Monte do Cazevel e a aldeia dos Moinhos. Fizeram alto as três tropas, aonde estiveram grande espaço de tempo indecisos, porque seus corredores lhe levaram a nova que haviam visto da aldeia (onde haviam estado) muita gente na serra e ao pé da atalaia que era nossa. Na detença que fizeram deviam de mandar aviso às quatro tropas que vinham de retaguarda na acumada do Monte do Duque, donde pareciam os campos cobertos de gado, que era muito. Deviam tomar resolução de virarem com temor da nossa gente, parecendo-lhe que era muita e que seria ali vinda de Olivença, porque perguntavam a um prisioneiro quantas léguas havia daqui àquela praça; e dada a resposta pelo prisioneiro, viraram todo o gado e a cavalaria pela de Mísia Nunes, e pelo Barrocal da Morgada, e Santa Margarida, vindo sair ao Monte do Caminho e ao de Gaspar Pereira, aonde chegaram Baltasar Limpo, Manuel Tenreiro e Fernão Rodrigues e o Garção, e o João Nunes e o Tourillo, e Diogo Mendes dos Abandeiros, soldados de cavalo da ordenança desta vila e termo, que iam em seguimento do inimigo. E no dito Monte de Gaspar Pereira tiveram um[a] gentil escaramuça com uma pouca de gente que ali estava, dando-se muito boas cargas por espaço de muito tempo, e saíram também os castelhanos a dar-lhas, até que largaram o posto e se foram seguindo os mais, e não pararam ainda aqui porque se foram [a]trás [d]eles, e nas matas tiveram outra mais travada. E é certo que os desviaram da adega e horta do Licenciado Marcos Esteves, sendo os castelhanos mais de vinte e os nossos os sobreditos.

Os nossos da serra, vendo o muito poder do inimigo, estavam perplexos, sem saberem o que haviam de fazer na parada que o inimigo fez à vista deles. Disse então um dos mais atentados soldados  dos nossos, que era grande temeridade estarem ali com tão pouca gente, porque se o inimigo se resolvesse a vir por aquela parte e os [a]cometesse, que mal lhe poderiam resistir. Que o acerto era com grande brevidade retirarem-se para a vila, porque ficaria nela muito pouca gente, e que poderiam lá ser necessários. O capitão António Pereira de Oliveira, parecendo-lhe bem o conselho, despachou logo um de cavalo ao capitão-mor, dando-lhe conta do poder que era muito superior ao nosso, que se lhe parecesse retirarem-se para a vila o fariam. Partido este recado, viram que o inimigo virava para baixo, e sem esperarem resposta do capitão-mor se veio a nossa infantaria, com alguns de cavalo, pelo caminho da vila, e dela mandou segundo recado o dito capitão ao capitão-mor, que o inimigo ia virado para passar o rio de Guadiana por baixo desta vila, que lhe desse sua mercê licença para vir ocupar um porto, por onde se entendia havia de passar o inimigo. E logo, sem esperar resposta, se pôs a caminho com grandíssima pressa por chegar ao dito porto primeiro que o inimigo. E o dito capitão-mor lhe mandou recado, que fosse em boa hora.

(continua)

Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

Imagem: Em cima, “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener, com permissão para reprodução para fins não comerciais a partir deste site. Em baixo, a região onde se desenrolou parte da acção aqui narrada, hoje em dia (imagem Google Earth).

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – parte 1

O ano de 1645 foi fértil em acontecimentos bélicos na província do Alentejo, desde a frustrada intenção do 2º Conde de Castelo Melhor de tomar Badajoz, passando pelas investidas do exército espanhol sob o comando do Marquês de Leganés, até ao episódio, já diversas vezes tratado neste blog, do desastre de Alcaraviça (aqui, aqui, e aqui). No entanto, um dos pequenos casos de guerra que ocorreram nesse ano passou quase despercebido. Nem o minucioso Conde de Ericeira lhe faz referência na História de Portugal Restaurado (embora não lhe tenha escapado sequer a presença no exército do Alentejo, nesse ano de 1645, do rei das ilhas Maldivas, senhor de grande riqueza e muitos vassalos no Estado da Índia, que tinha vindo a Portugal pedir auxílio a D. João IV para retomar o trono que um seu irmão lhe havia usurpado, e que entretanto decidira servir algum tempo no exército daquela província, com honras de oficial superior).

O episódio de menor envergadura a que me reporto é uma entrada da cavalaria espanhola na zona de Monsaraz, que acabou por colocar em alvoroço a própria população de Évora. Sobre este acontecimento da pequena guerra de fronteira existem quatro referências manuscritas que se completam. Três foram produzidas por portugueses, ao jeito das habituais “Relações” do período. A primeira, da qual se inicia aqui a transcrição, respeita à entrada propriamente dita. A segunda reporta o acontecido em Évora após terem chegado as novas da incursão. E a terceira é a cópia de uma carta remetida de Mourão, acerca da entrada do inimigos nos campos da região. E a quarta é outra cópia, esta em castelhano, de uma carta do tenente-general D. Gregório Ortis de Ibarra para o general da cavalaria Marquês de Molinguen, dando conta do sucedido na operação.

Nada do que aqui se irá apresentar foi alguma vez publicado, tendo eu tomado conhecimento deste episódio esquecido da guerra de fronteira através de um manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Madrid, cuja cópia em boa hora me foi enviada pelo estimado amigo Julián García Blanco, a quem muito agradeço.

A transcrição do original manuscrito foi vertida para português corrente.

Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monsaraz

Em 28 deste mês de Setembro, véspera do bem-aventurado Arcanjo S. Miguel, vieram à coutada desta vila seis corredores castelhanos, e nela cativaram três homens nossos e os levaram. Veio logo recado a esta praça, saíram dela doze homens nossos em éguas, que foram em busca sua até muito além de Cheles; e foi Deus servido que errassem a trilha, porque fora sua perdição se lha acharam, porque haviam de segui-la até se meter no poder do inimigo. Os voltadores [sic] castelhanos com os prisioneiros foram ao da Lapa, aonde acharam muita gente de cavalo, mui luzida, com muitas couras guarnecidas de ouro e prata, e bandas de custo, e muito gentis cavalos; e é certo que era a melhor cavalaria escolhida, a que tem o inimigo em Badajoz. Dizem que eram seiscentos cavalos; e há outros que afirmam que era maior número. Com a confissão que fizeram os cativos se puseram logo a caminho para o termo desta vila, de modo que, quando amanheceu, estavam metidos dentro nele. Em S. Pedro do Corval deixaram uma tropa e foram repartindo outras pela terra dentro, e punham-nas em partes altas e descobertas, porque seus corredores fossem saqueando e ajuntando o gado, o que fizeram com grande cuidado, roubando a maior parte das casas do termo; porque o fizeram quase a toda a freguesia de S. Pedro, e na de Caridade lhes ficou muito pouco, e ainda tocaram na das Vidigueiras, e no termo de Évora e Montoito, usando de crueldades em razão dos roubos, porque despiam a toda a mulher que achavam com bom vestido, e pelo conseguinte a homens e meninos. Mataram duas ou três pessoas sem pelejarem e feriram poucas mais. Em três ou quatro montes se fizeram os nossos moradores do termo fortes e ficaram livres. A mesma sorte teve a aldeia do Reguengo de Baixo, porque de umas trincheiras que tem, com poucos defensores que ali se acharam, os detiveram e fizeram retirar. Da mesma maneira se houve o Licenciado Paulo Duarte, que com alguma gente que se lhe ajuntou, se defendeu do inimigo, e fez que não chegasse à igreja e aldeia que ali está. Diferente a tiveram as aldeias do Reguengo de Cima e a do Mato, que as entraram e saquearam, e todos os mais montes que há por aquela banda, donde roubaram muita quantidade de roupa, fato e algum dinheiro, e até na igreja de S. Pedro entraram e despiram as imagens da Virgem Nossa Senhora do Rosário, e Conceição, deixando-as no chão como se foram hereges.

Depois de ajuntarem todo o gado vacum que por ali havia, que era muito muito [sic], e cabras e porcos que também era muita quantidade, se vieram recolhendo para S. Pedro, aonde se ajuntaram todos, e vieram marchando pela estrada que vem de Évora para esta vila.

No dia do glorioso Arcanjo S. Miguel, pela manhã, chegou a esta vila nova [ou seja, notícia] onde estava o inimigo, mas muito diferente na quantidade do que era, porque diziam que seriam 150 homens de cavalo. Ordenou logo o capitão-mor Luís Álvares Baines que lhe saísse desta vila gente; para o que se ofereceu logo o capitão António Pereira de Oliveira, que foi com a que havia, acompanhado dos alferes Gaspar Grisante, Rafael Segurado e Miguel Gomes de Sampaio, com o sargento da companhia do dito capitão, Francisco Mendes Couto, e os sargentos Simão Lopes e Diogo Mendes. E assim se foram [a] caminho da serra da Atalaia. Seriam pouco mais de oitenta infantes, com dezassete homens de éguas que aqui estavam.

(continua)

Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

Imagem: Sebastian Vrancx, cena de pilhagem (detalhe de uma pintura do período da Guerra dos 30 Anos).

Regimento do Vedor Geral (29 de Agosto de 1645) – parte 13 e última

Com esta parte encerra-se a publicação do Regimento do Vedor Geral de 29 de Agosto de 1645, que nos ocupou durante alguns meses. Espero que, a partir do próximo ano, possa voltar a ter mais tempo disponível para dedicar a este blogue.

83. E porque na Contadoria Geral de Guerra que está nesta Corte há-de haver a conta e razão do dinheiro, fazenda, provisões e mais coisas que se gastam e se distribuem de minha fazenda nos exércitos e fronteiras de meus Reinos, e nela se hão-de dar as certidões das contas que se tomarem ao pagador geral, pagadores, almoxarifes e mais pessoas em cujo poder haja entrado algumas das coisas sobreditas, para o que é necessário se remetam à dita Contadoria Geral as listas, livros relações e mais papéis que o superintendente da dita Contadoria vir serem necessários; assim para se tomarem as ditas contas, como para seus recenseamentos, ajustamentos e o mais que for necessário, tocante à boa arrecadação do que de minha fazenda se gasta nos ditos exércitos. Mando que o vedor geral, vedores, contadores, almoxarifes, seus escrivães e outras quaisquer pessoas que tenham a conta e razão da dita minha fazenda tocante aos ditos exércitos, ou que haja entrado alguma coisa dela em seu poder, mandem e remetam ao dito superintendente todos os livros, listas e mais papéis referidos só em virtude de suas ordens firmadas de sua mão, registados na dita Contadoria Geral de Guerra, porque é minha vontade se guardem as ditas ordens que neste particular der o dito superintendente como se fossem minhas próprias, que assim convém a meu serviço.

84. E neste Regimento, na forma que nele contém, mando que o vedor, contador e oficiais que hoje são, e ao diante forem de meus exércitos cumpram e guardem inteiramente, e os governadores das armas, mestres de campo generais e todos os mais oficiais da milícia [termo aqui entendido como exército] lho deixem cumprir e guardar, e lhe dêem para isso toda a ajuda e favor sem que algum deles, por mais supremo cargo e autoridade que tenha, possa ordenar que contra o disposto no dito regimento se altere coisa alguma, porque para este efeito desde logo o privo de toda a jurisdição e autoridade que tiverem, ou pretenderem ter para o fazerem, e se não poderão valer de estilo ou costume em contrário, porque todos e quaisquer que houver anulo e dou por nenhuma força e vigor. E quando, sem embargo disto, as ditas pessoas intentem mandar alguma coisa contra este regimento, seus mandados se não cumpram, nem por eles se fará obra alguma, por serem nesta caso de pessoas particulares, que não só obram sem jurisdição, mas contra minhas ordens e proibição, e sendo caso que se passe provisão ou carta minha por mim assinada contra o disposto neste Regimento se não guardará, salvo levar especial menção do capítulo ou parte que se derrogar, e sem ficar primeiro registada na Contadoria Geral, e para se evitarem confusões de diferentes ordens que pelo Conselho de Guerra, Junta dos Três Estados e Contadoria geral se podem passar, não tendo notícia do que neste Regimento é disposto, mando que em todos eles se registe. E quando me consultarem a petição de partes, ou de seu motu coisa alguma contrária ao que nele se dispõe, farão disso especial menção na Consulta e o vedor geral e contador, e mais oficiais que o contrário fizerem, ou cumprirem, perderão por isso o ofício e ficarão privados de toda a aução que podem ter por seus serviços, e além disso serão castigados como o caso o merecer; e todas as leis, regimentos e estilos que a este Regimento forem contrários, naquilo em que o encontrarem [ou seja, contrariarem] derrogo de minha certa ciência e poder real, e ainda que dele se requeira especial menção, este regimento valerá como carta feita em meu nome, posto que seu efeito haja de durar mais de um ano, e posto que não passe pela Chancelaria, sem embargo da Ordenação L[ivr]o 2º, títulos 39-40-44.

Francisco Mendes de Morais o fez em Lisboa a vinte nove de Agosto de seiscentos quarenta e cinco. Gaspar de Faria Severim o fiz escrever. Rei.

Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1.

Imagem: Oficial do Exército Sueco, séc. XVII. Museu Militar de Estocolmo. Fotografia de JPF.

Regimento do Vedor Geral (29 de Agosto de 1645) – parte 12

Aproximamo-nos do fim da transcrição do Regimento do Vedor Geral, que tem ocupado a quase totalidade da actualização do blogue nestes últimos meses, e que entra aqui na sua penúltima parte. Aproveito para informar que acrescentei à parte 11 mais uns capítulos que faltavam para a completar. Deste modo, a última parte é totalmente dedicada à legislação sobre as presas, num total de seis capítulos, que seriam revogados no decurso da guerra por um Regimento específico, o Regimento do Quinto das Presas, de 9 de Agosto de 1658.

Presas

79. De todas as presas que se fizerem me toca o quinto como a Rei e senhor natural, e para que elas se repartam com toda a igualdade e nenhum fique agravado nem agravado da parte que lhe toca, se fará sua repartição da maneira seguinte.

80. Logo que chegue a dita presa às praças de minhas fronteiras , entrará em poder do almoxarife de onde se houver de vender, e o auditor geral do exército tomará conhecimento dela, fazendo-a inventariar, e a sentenciará por boa, conhecendo não ser de meus vassalos, nem feita em terras de meus reinos, e sentenciada a fará vender em pública almoeda, com pregões lançados com tambores, sendo feita pela Infantaria, e sendo pela Cavalaria, com trombetas; e se algum ocultar alguma coisa, além de ser privado da parte que lhe toca, será gravemente castigado; e tanto que estiver vendida, mandará o dito auditor geral descontar primeiro do monte maior os gastos que se fizeram com a dita presa, e depois se tirará o meu quinto, que se carregará em receita ao pagador geral, e o mais se repartirá entre os oficiais e soldados que a fizeram, dando-se-lhes suas partes conforme a soldo que gozam, e a o cabo da dita presa em dobro, que será duas partes, e também ao governador das armas e mestre de campo general se lhe dará sua jóia em reconhecimento de serem superiores, e em que por suas ordens e disposição se hão-de fazer as ditas presas, mas pelo valor destas jóias que se lhe derem se há-de conhecer se dão mais por reconhecimento que por quantidade; e na mesma forma se dará outra jóia ao general da cavalaria, ou quem seu cargo servir, sendo feita pela cavalaria, e também terá sua parte o dito auditor geral pelo trabalho referido que será a parte de dois dos soldados que fizerem a dita presa. E os que morrerem na peleja em que se ganhar a presa, haverão sua partes como se ficaram vivos, a qual o vedor geral mandará depositar para se fazer bem por suas almas, e haverem seus herdeiros a parte que lhe tocar, conforme as Ordenanças deste Reino, como também terá cuidado que os ditos meus quintos se não descaminhem até entrarem em poder do dito pagador geral e se lhe faça receita deles.

81. E levando-se as ditas presas a parte e praças donde não assista o dito auditor geral, se venderão na conformidade referida com assistência do auditor da dita praça donde se vender, ou quem seu cargo servir, e pois cada mês se vai a passar mostra a todas as praças das ditas fronteiras, o comissário, ou comissários que as forem passar trarão consigo os autos e mais papéis que se causarem na venda e repartição das ditas presas, e os entregarão na Contadoria do Saldo para que nela em todo o tempo conste por eleso que renderam, e se possa dar, e se dê pela dita Contadoria relações a meus Conselhos e Contadoria Geral de Guerra, cada seis meses, do que renderam as ditas presas, e quintos.

82. Nenhum oficial da guerra, soldo e fazenda comprará por si, nem interposta pessoa, coisa alguma das presas que se tomarem, com pena de privação de seus cargos, e perderem em dobro para minha fazenda o que tiverem dado pelas tais presas, e para que isto se consiga como convém a meu serviço, mando que o auditor do dito Exército, na praça onde assistir, e os auditores, ou quem seus cargos servir das mais praças, tirarão devassa de três em três meses das pessoas que fizerem o contrário do disposto neste capítulo, e além das tais devassas, tendo notícia de que alguma das sobreditas pessoas incorreu nesta culpa, farão autos e perguntarão testemunhas, e tudo o que resultar remeterão à Contadoria Geral de Guerra, para ali se tratar da execução na parte que tocar a minha fazenda, e no que tocar ao crime procederá o auditor na forma de seu regimento; e o vedor geral terá particular cuidado de fazer dar à execução o conteúdo [contido] neste capítulo e o fará a saber ao governador das armas, para que faça lançar bandos para que venha à notícia de todos.

Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1.

Imagem: Comboio de munições, exército inglês, década de 1660. Gravura coeva.

Regimento do Vedor Geral (29 de Agosto de 1645) – parte 11

73. E pelo muito que convém a meu serviço e boa arrecadação do dinheiro que entrar em poder do pagador geral, haja conta e razão que convém: mando que na Vedoria Geral, e Contadoria, haja dois livros de receita, nos quais se carregará o dinheiro que entrar em seu poder, declarando quem o entrega, e por conta de quem o recebe, a quem pela dita Contadoria se lhe dará conhecimento em forma, em virtude da dita receita, firmado pelo dito contador, e pagador geral, e da despesa que se lhe der será da maneira seguinte.

74. Os oficiais que passarem as mostras, passarão ao dito pagador geral certidões do dinheiro que seus oficiais pagarem nas ditas mostras, em virtude do que importarem os pés de lista, que será o mesmo que pagarão e receberão os oficiais e soldados conteúdos [contidos] nas ditas mostras e pés de listas, para com estas certidões os ditos oficiais do pagador geral lhe darem a ele conta, e elas lhe sirvam de resguardo do dinheiro que despendeu, as quais, justificadas pelo contador com os ditos pés de listas, lhe passará um mandado de despesa, claro e com muita distinção, declarando por quantos dias se pagou aos oficiais da primeira plana da Corte, pondo seus nomes e o dinheiro que cada um recebeu, e logo começando pelos oficiais maiores de um terço, nome por nome, seguindo suas companhias com os nomes dos capitães, alferes, sargentos, tantos cabos e tantos soldados, seguindo-se logo os mais terços; e a cavalaria da mesma maneira, declarando os nomes de todos os das primeiras planas e seguindo-se os soldados; seguir-se-ão logo alguns mandados de compras, e de alguns se pagarão, depois de cerrados os pés de listas, soldados vindos de Castela que se mandam ajustar com suas companhias, correios e coisas semelhantes, tudo o que há de ser e há de concluir no dito mandado de despesa do dito mês que se pagou aos ditos soldados, para que por eles se saiba toda a despesa do gasto no dito mês, que para isso se manda no capº. 72 deste Regimento que nenhuma pessoa distribua, nem pague dinheiro senão o dito pagador geral, e feito este dito mandado de despesa pela dita Contadoria, com toda a distinção e clareza, por que tempo, e oficiais e soldados de Infantaria e Cavalaria portuguesa, francesa e holandesa, que pão, cevada e palha, e desconto da contribuição do Hospital, e este dito mandado virá ajustado, e justificado, e visto, e confrontado pelo oficial maior da Vedoria Geral e firmado pelo vedor geral e contador, deixando reservado o lugar que meus Conselheiros de Guerra em papéis reais para que eu o firme, no qual se declarará que tudo o pagado nele foi com ordem do governador das armas, no tocante a soldos, e no tocante a compras, e mais despesas com a do vedor geral, e tudo com sua intervenção, e sem outro despacho se levará em conta ao pagador geral, para o que se remeterá a esta Corte e Contadoria Geral de Guerra, para que nela se veja e se tome razão dele, o qual o superintendente da dita Contadoria terá cuidado depois de visto e confrontado, de mo apresentar para que eu o firme, e depois de firmado o remeterá às ditas fronteiras, ao dito contador, que o entregará ao dito pagador geral para sua despesa, cobrando primeiro dele um resguardo que lhe dará do dinheiro que importarão os papéis por onde se causou e fez o dito mandado de despesa, e o dito resguardo se romperá, e nesta forma se farão os ditos mandados de despesa do pagador geral de cada mês; e se adverte que todos os papéis que firmar o vedor geral, e fizer o contador, hão de ser vistos e ajustados pelo oficial maior da Vedoria Geral; porque não o sendo, será necessário os ajuste o dito vedor geral, para os firmar.

75. E para que os outros dois livros que há de haver na Vedoria Geral, e Contadoria, para a receita de cada almoxarife, do referidos no capº. 29 deste Regimento, se lhes façam a receita com a justificação necessária, ao bom cobro, e arrecadação de minha fazenda, mando se faça nesta forma. Os escrivães dos ditos almoxarifes terão seus livros, onde notem as praças que tem cada companhia, e não darão papel a nenhum sargento da dita infantaria, nema furriel da cavalaria para que recebam do assentista coisa alguma, sem que pelas mostras que lhes passarem os ditos oficiais das ditas Vedoria Geral e Contadoria lhes dêem certidões das praças que constar pelos pés de listas se apresentaram nas ditas mostras, os quais terão muito cuidado com as altas e baixas, em lhes fazer desconto delas, e os ditos almoxarifes, em virtude das ditas certidões, passarão os ditos papéis aos assentistas para ir socorrendo os ditos sargentos e furriéie com o pão, cevada e palha, que repartirão entre os soldados e oficiais das suas companhias até a mostra que se seguir, e nela se ajustará a passada, para tornar a dar nova certidão das praças que se achar nesta segunda, e assim se seguirá o mesmo nas demais; estes papéis que derem os ditos almoxarifes aos assentistas, eles os ajustarão cada mês, e do que importarem lhe passará um conhecimento em forma, feito pelo escrivão, de seu recebimento, assinado por ele e pelo dito almoxarife, o qual se dará em virtude da receita que lhe farão os ditos escrivães nos ditos livros; estes conhecimentos em forma não terão nenhum valor sem serem carregados nos ditos livros da receita da dita Vedoria Geral, e Contadoria, pondo os oficiais dos ditos ofícios despachos nos ditos conhecimentos, que declarem como lhe ficam carregadas as quantidades nos ditos livros, e desta mesma maneira se carregarão e farão as mais receitas aos ditos almoxarifes, procedidas das certidões ou outros quaisquer papeís destes ou outros géneros, e tudo o mais que houver entrado em seu poder.

76. E para suas despesas se lhe darão mandados de despesa ou certidões pela Contadoria, justificadas pela Vedoria Geral e firmadas por ambos no que toca a pão, cevada e palha que derem à Infantaria e Cavalaria, as quais se farão em virtude dos pés de lista, pois por eles se fez o desconto aos oficiais e soldados, ajustadas primeiro com os conhecimentos dos ditos almoxarifes para se lhes darem os tais mandados de despesa ou certidões, que serão do gasto de cada mês.

77. E quando se mandar pagar dinheiro do recebimento do pagador geral do exército de algum destes géneros, como se tem mandado pagar até hoje a palha, se lhe livrará o dinheiro que importar os ditos conhecimentos em forma, conforme os preços do assento que se tiver feito em livranças à parte, e não nos conhecimentos, declarando nelas as quantidades que contém os ditos conhecimentos, suas feitas, os preços, e de como lhe ficam carregados em receita aos almoxarifes pelos escrivães de seus recebimentos, e também nos livros da receita da Vedoria Geral e Contadoria, e que os ditos conhecimentos em forma ficam originais na dita Contadoria, para quando se lhes tome contas aos ditos almoxarifes (que será na Contadoria Geral de Guerra), se remeterão a ela os ditos conhecimentos originais, e todos os livros de receita e despesa, assim dos dos escrivães, como os da Vedoria Geral e Contadoria, para mais justificação da dita conta final, sem que penda  da do pagador geral nem de outra pessoa; e dos mais papéis de que pretendam despesa os ditos almoxarifes de algumas coisas que hajam entregado por ordem do vedor geral para os hospitais ou outras pessoas, os apresentarão ao contador para que, em virtude das ordens que houver dado o dito vedor geral para a entrega, e nelas seus recibos e cargas que terão nos ditos livros na forma declarada, para ue em virtude delas, declarando o vedor geral que se carregaram com sua ordem e intervenção, se lhe fará um mandado de despesa na dita Contadoria, o qual será justificado na dita Vedoria Geral, e com todos os requisitos que já vão declarados nos mandados retro e supra escritos, se lhe levarão em conta, e nesta forma se lhes darão as despesas aos ditos almoxarifes.

78. E porque se tem entendido que nas patentes, provisões, ordens, cartas e outros papéis que eu mando às ditas fronteiras firmados de minha mão se não tem até agora a forma em que se hão-de pôr os despachos para seu cumprimento; mando que nas ditas patentes, provisões e mais papéis que levarem a dita minha firma se não ponha na parte onde ela estiver  nenhum despacho, e para se darem à execução, o governador das armas, nas costas delas porá somente o cumpra-se, e mais abaixo se porão notas de como fica tomada a razão na Vedoria Geral e Contadoria em seu cumprimento, pelos oficiais dos ditos ofícios; e em fé delas os firmarão o dito vedor geral e contador em seus nomes inteiros, e desta maneira serão despachados, e não de outra.

Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1.

Imagem: Polvorinho e granada do período da Guerra da Restauração. Museu Militar de Estocolmo. Foto de JPF.

Regimento do Vedor Geral (29 de Agosto de 1645) – parte 10

65. Será o vedor geral sempre mui cuidadoso de ver ele mesmo se o pão de munição que se dá aos soldados é bom e bem pesado, conforme a obrigação dos assentistas, sem fiar esta diligência de outra pessoa alguma, e mandará fazer secretas informações nas azenhas onde se mói o trigo, se é bom, e se se mói alguma outra sorte de pão, e se onde se amassa e se coze, se faz algum engano em dano dos soldados, e remediá-lo-á, procedendo nisto com todo o rigor necessário, não admitindo pão que não seja da qualidade que se contratou, e as vezes que os assentistas nisto faltarem, mandará à sua custa fazer melhor pão para os soldados, por qualquer preço que custe, para que os assentistas saibam que nenhuma falta se lhes há-de dissimular nesta matéria, e assim o não ousem cometer.

66. E para q quando chegar o tempo de se fazerem estes assentos se saibam os preços em que se podem contratar, mandará fazer mui exactas informações do custo que pode fazer a manufactura do pão naquelas partes, para que quando se lhe peça esta notícia a possa dar ao certo.

67. E quando for tempo de fazer provisão de cevada e palha, não correndo por assentistas, se informará das partes donde há mais abundância, e donde a condução pode ser mais barata para que venha a custar menos. E saberá que pessoas há nas comarcas, que possam obrigar a dá-la, para que por todos os meios se consiga tê-la a cavalaria a bom preço.

68. Visitará muitas vezes os armazéns dos mantimentos, vendo se estão em boa forma e em partes onde se possam conservar sem corrupção, e fará que se gastem primeiro aqueles em que se pode temer a haja; e também visitará os armazéns das armas e munições (aonde não houver vedor da Artilharia), ordenando que a pólvora esteja com todo o resguardo necesário, e que as armas estejam limpas e bem tratadas, e que os piques se ponham em parte onde se não torçam, e que as ásteas deles se untem com óleo de linhaça ou com água de azevre [aloés], porque o bicho não entre com eles, e que as pistolas se repartam pela cavalaria de maneira que se não dêem a um mesmo soldado duas de diferente calibre, pelo embaraço que isto causa na ocasião de pelejar.

69. E na mesma forma visitará as mais vezes que tiver lugar os hospitais, ao menos da praça principal onde se achar, procurando ver se aos enfermos que estiverem neles lhes falta a cura e regalo que eu tenho mandado se lhes dê, e que por falta dele não padeçam; e que as mezinhas e o mais que se lhe mandar dar pelos médicos ou cirurgiões se lhes dê no tempo, e quando for mandado e receitado por eles, e me darei por bem servido de que não haja neste particular falta alguma, e havendo-a avisará ao governador das armas para que o remedeie.

70. E nenhum assentista ou almoxarife poderá comprar pão de munição, cevada ou palha a nenhum oficial ou soldado do exército, nem por si, nem por interposta pessoa, nem por outra qualquer via, e o que fizer o contrário provado ou achado, será privado do cargo sendo almoxarife, para o não poder mais haver, e o assentista, seu feitor ou procurador serão condenados em dois anos de África; e o oficial ou soldado que se achar que vendeu a cevada que se lhe dá para ração do cavalo, será pela primeira vez castigado com quinze dias de prisão e com três tratos de corda, e pela segunda em dois anos de galés; e as pessoas particulares que comprarem a cevada a pagarão a noveada, e serão castigados a arbítrio do governador das armas, e nas mesmas penas encorrerão os que comprarem aos soldados vestidos de munição ou armas.

71. E nenhum almoxarife poderá vender nem contratar nenhum género de mantimentos, pois os tem de seu recebimento, pelos danos que se deixam considerar, como trocas de bom por mau para satisfazer sua receita, e por outros muitos inconvenientes que resultam disso à minha fazenda, e o que o fizer se farão autos dele pelo auditor geral e se remeterão à Contadoria Geral desta cidade, para nela se ver em quanto ao dano que minha fazenda recebeu, e se dar o remédio, e daí se remeterá ao Conselho da Fazenda para que diga ao Conselho de Guerra para se proceder em conformidade.

72. O vedor geral não livrará, nem consentirá que se livre, nem o pagador geral dará nem entregará dinheiro a nenhum almoxarife para nenhum efeito, e ele pois tem quatro oficiais, os quais correm todas as fronteiras, pague o dinheiro que se despender nelas de minha fazenda demais que como este dinheiro se há-de distribuir com intervenção do vedor geral, como está disposto neste Regimento; e as compras de bastimentos e as conduções deles e mais coisas hão-de ser justificadas por ele, não convém que os oficiais de recebimento dos bastimentos os comprem e façam os preços deles, e a receita e despesa deles juntamente, e mando ao superintendente da Contadoria,e  aos contadores ela não levem em conta ao dito pagador e almoxarife o que despenderem noutra forma.

Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1.

Imagem: “O fidalgo e a sua companhia” (detalhe), pintura de Simon Kick.

Regimento do Vedor Geral (29 de Agosto de 1645) – parte 9

60. E do dinheiro que se remeter à dita província de Alentejo se separará o que vir o governador das armas ser necessário para algumas provisões de mantimentos, suas conduções e outras coisas tocantes a coras, o qual se porá em caixa à parte, para que o vedor geral a distribua por suas livranças nas ditas compras como provedor, e com sua intervenção como vedor geral, as quais se farão na contadoria do soldo, mas por ele firmadas, e tomada razão em ambos ofícios na forma que adiante irá declarado nos capítulos da despesa do pagador geral, mas se desta sorte for algum já consignado, se não perverterá em outra coisa.

61. E enquanto não houver oficiais particulares do soldo e fazenda na Artilharia, servirá também nela o vedor geral; e procederá nas mostras  e gastos qu ali se fizerem na forma deste regimento.

62. E quando hajam os ditos oficiais, por eles correrá o dito gasto e pagas de soldos, mas o dinheiro que entrar em poder do pagador da Artilharia há-de sair da arca do pagador geral, para o que desta cidade [Lisboa] se mandará separado, do qual o contador dela lhe fará receita, em virtude do conhecimento em forma, pelo qual o dito pagador geral entregará o dinheiro deles ao pagador da Artilharia, e a ele lhe fará despesa do que lhe entregar, como também ao pagador da Artilharia lhe fará o seu vedor, e contador, e em seus livros e listas.

63. E porque convém ter grandíssimo cuidado com que se conservem as armas que se compraram para defensão do Reino, o terá o vedor geral mui grande, para o que na Contadoria do exército haverá um livro em que se carreguem ao almoxarife das armas todas as que se levarem ao exército, e outro em que se carreguem aos capitães todas as que receberem para as suas companhias, das quais hão-de dar satisfação por serem obrigados a recolhê-las por seus oficiais dos soldados que fugirem, para o que o dito vedor geral fará manifestar ao contador da Artilharia não dê livrança nem outro despacho, nem se entregue coisa da sua conta a nenhum capitão de cavalos, de infantaria, ou outro qualquer oficial que tenha seu assento na Vedoria Geral do Exército sem primeiro se lhe carregar o que houver de receber.

64. Fará o vedor geral todos os assentos e contratos que houver, na província onde ele residir, com as pessoas que se obrigarem a dar coisas para o provimento do exército e para obras tocantes a guerra; estes se hão-de fazer na Contadoria escrevendo-se nos livros dela, assistindo ele que aceitará os contratos e obrigações, e ele com o contador e as partes assinarão, e os treslados que daqueles registos se tirarem, e assinados pelo contador terão a mesma autoridade e crédito que têm as escrituras públicas que se fazem nestes meus Reinos, e os assentos que se fazem no meu Conselho da Fazenda, e da mesma maneira terão aparelhada a execução.

Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1.

Imagem: “Ataque à bateria”, pintura de Joseph Parrocel.

Regimento do Vedor Geral (29 de Agosto de 1645) – parte 8

56. E quando o exército, ou parte dele, saia a campear, por cuja causa a gente da Ordenança vem acudir a guarnecer as praças até que torne a entrar o dito exército: mando que a tal gente, os dias que estiver de guarnição se lhes dê somente aos infantes, a cada um seu pão de munição, e aos de cavalo a de mais do pão, meio alqueire de cevada, e duas joeiras de palha cada dia a cada um; e para que se tenha a conta e razão que convém com esta despesa, e que não fique ao alvedrio dos almoxarifes, se lhes formarão cadernos de listas pelos oficiais da Vedoria Geral e Contadoria, e se lhes passará mostra por eles nas praças onde assistirem os oficiais dos ditos ofícios; e nas praças onde não possam assistir, se farão os ditos cadernos pelos escrivães dos almoxarifes, resenhando a todos com seus nomes, pais, e terras, e se ajustarão pelos capitães-mores e escrivães da Câmara, os quais, quando os ditos oficiais forem a socorrer a gente paga pelos ditos cadernos, quando se despida [despeça] os da ordenança, se lhes darão certidões em os ditos almoxarifes com declaração das praças, o dia em que entraram nelas, e o [dia] em que se despediram, para que em virtude destas certidões o vedor geral, e contador, lhes dar seus mandados de despesa, e não se lhe dará em outra forma.

57. E porque se tem entendido que os comissários de mostras e mais oficiais, quando as vão passar não se lhes guarda o respeito devido como a pessoas que têm a conta e razão de minha fazenda, por cuja causa não conseguem o bom paradeiro que convém a ela, mando que qualquer oficial de soldo que disser ou fizer injúria ou ofensa aos ditos comissários quando vão passar as tais mostras sobre coisas tocantes a seus cargos, percam os postos que tiverem, e sejam castigados com as mais penas a arbítrio do governador das armas, e para que isto se consiga como convém, o auditor da gente de guerra donde o caso suceder fará logo autos, e os remeterá ao dito governador, e o vedor geral terá grande cuidado em procurar que o dito governador das armas mande proceder contra o culpado, e quando o não faça mandará logo conta por escrito, para que eu mande proceder.

Fazenda

58. Todas as obras e compras de bastimentos e suas conduções que se fizerem por razão da guerra, se farão com intervenção do vedor geral, e ele nomeará oficiais e olheiros para eles, reconhecendo sua bondade, e fazendo-lhe os preços, guardando em tudo o regimento que para este efeito lhe mandei passar, e com este lhe será entregue, e dará juramento sobre se estão feitas com verdade, e fará todas as diligências para averiguar, e achando que nelas houve engano, fará que o auditor geral faça disso os autos necessários para que as pessoas que delinquirem sejam castigadas como merecerem, não só pelo crime de furto, mas também pelo juramento falso; e o dito vedor geral dará despachos em forma para dele se fazer o mandado, e dos tais ficarão originais na Contadoria para se fazer a dita despesa, e para se dar dinheiro à conta delas; e por eles pagará o pagador; e quando o vedor geral mandar dar dinheiro, fará registar o que se der, para que lhe conste o que puder ir mandando dar mais.

59. E para que na distribuição do dinheiro que entrar em poder do pagador geral haja boa conta e razão que convém, terá em seu poder caixas em que esteja bem guardado o dito dinheiro, e cada uma com três chaves, um das quais terá o governador das armas, que poderá fiar de seu secretário; outra o vedor geral, que poderá entregar ao oficial maior da Vedoria Geral; e outra o dito pagador geral; e estas ditas caixas, do corpo da guarda principal se lhe darão os soldados de sentinela que parecer ao dito governador das armas.

Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1.

Imagem: “Batalha” (c. 1640), pintura de Sebastian Vranckx, Museo Bellas Artes de Sevilla.

Regimento do Vedor Geral (29 de Agosto de 1645) – parte 7

[Os capítulos do Regimento do Vedor Geral que a seguir se transcrevem serão melhor entendidos se se ler previamente o “Contrato com os capitães de cavalos”, de 1647, aqui publicado em três partes (1), (2) e (3); apesar do Regimento de 1642 mencionar a “arca”, para a qual era vertido o montante abatido aos soldos dos soldados de cavalos, a prática só foi devidamente regulamentada cinco anos mais tarde]

Cavalaria

46. Todos os cavalos da cavalaria portuguesa e estrangeira, e os que se comprarem do dinheiro da arca para as tropas, serão marcados com a marca real, e se lhe[s] cortará a orelha direita, salvo os que declarar o general e o tenente-general da cavalaria, e três do comissário geral, e dois de cada capitão de cavalaria que sejam seus, porque os mais que passarem nas mostras se não farão bons, e se o comissário, capitães ou tenentes tiverem mais cavalos dos sobreditos, se lhe[s] comprarão do dinheiro da arca para as tropas, e enquanto lhe[s] não forem comprados, se lhe[s] não dará palha, nem cevada por conta de minha fazenda.

47. E além da dita marca para maior segurança de que os tais cavalos se não vendam, troquem, e passem duas vezes e três uma mostra, por se tomarem em diferentes partes, se mandarão ferros por conta de minha fazenda, de diferentes números, a saber: número um, número dois, número três, e tantos destes quantas forem as tropas, e a cada uma delas porão o número diferente, pondo na mais antiga o número um, em que se seguirá o número dois, e nesta forma se seguirá a mesma ordem em as mais tropas; e se nas mostras passar algum cavalo com número diferente da tropa que a passa se prenderá logo o soldado, e se farão autos, e será castigado com a pena do bando [isto é, do que for decretado em edital para o efeito].

48. E quando alguma companhia se reformar, ou por outra causa necessária que suceda, houverem de passar os soldados com seus cavalos de uma companhia a outra, se terá na Vedoria e Contadoria muito cuidado em que nos assentos que se fizerem aos tais soldados que houverem de passar para diferentes companhias, se note da companhia que passaram o número com que vão marcados os tais cavalos, e a companhia a que passam, para que em todo o tempo se conheça e se possa saber na mostra a causa que houve para na mesma tropa haver cavalos com números diferentes.

49. E porque alguns soldados usam de confecções com que fazem cobrir de cabelo a marca real, e lhe põem outra para dizerem que os tais cavalos não são os mesmos que lhe[s] entregaram, o general da cavalaria mandará ter grande cuidado que isto se não faça, e mandará reformar as marcas todas as vezes que lhe parecer necessário. E o oficial ou soldado que usar de meios para cobrir ou mudar as marcas reais, ainda que em efeito o não consiga, será preso e perderá todos os seus serviços pela primeira vez, e pela segunda será degredado cinco anos para África, e nesta mesma incorrerá o que mudar a dita marca.

50. Por se ter conhecido o dano que resulta a minha fazenda em se conceder licença para se venderem os cavalos que não fossem de nenhum serviço nem préstimo às tropas, mando que os tais cavalos se não vendam, e se entreguem em Vila Viçosa à pessoa que ali servir para tratar deles, e o capitão, tenente, ou qualquer outro oficial de soldo ou fazenda que vender algum cavalo que estiver marcado com a marca real, pagará em dobro o dinheiro por que o vender, e será preso. E o vedor geral terá cuidado de se fazerem autos pelo auditor, os quais me remeterá ao Conselho de Guerra, para se proceder contra o culpado conforme a culpa, e o comprador dos ditos cavalos pagará em dobro o dinheiro que por eles der, e para que tudo se consiga o vedor geral o fará notar ao governador das armas, general da cavalaria, e o dito governador das armas mandará lançar bando em todas as praças, em que declare o que está disposto e ordenado neste capítulo.

51. E por evitar o dano que pode resultar a minha fazenda de se admitirem as baixas que os soldados dão dos cavalos, dizendo que lhe morreram sem preceder justificação da causa, a saber, se morreram pelo mau trato, correndo-os em suas grangearias, se lhe não deram o sustento que está assentado se lhes dê, se lho furtaram, ou venderam, mando que se não admitam, nem notem nos assentos dos tais soldados as baixas que derem, sem que primeiro justifiquem ante os oficiais que lhe tomarem as baixas como os cavalos lhe não morreram por sua culpa, apresentando juntamente em companhia de seus furriéis a marca do cavalo morto e o cabo com o sabugo. E nas ocasiões em que o inimigo lhes matar os cavalos, não será necessário mais justificação que a certidão do cabo das tropas, em que o certifique, e justificado na forma sobredita se porão as ditas notas para que com certidões que se darão na Vedoria Geral, e Contadoria, aos capitães, se lhe[s] leve em conta na que hão-de dar dos cavalos de suas tropas de que estão [en]carregados.

52. E porque o intento com que se tira aos oficiais e soldados da cavalaria o dinheiro para a contribuição da arca para compra de cavalos é para que as tropas andem cheias e os soldados estejam montados, mando que o dito dinheiro se gaste em benefício das ditas companhias a que se tirou, para o que haverá em cada uma delas caixa de três chaves, uma das quais terá o capitão, e as outras duas dois soldados eleitos a votos de todos os da dita companhia; e um deles servirá de escrivão da dita caixa, e escreverá em um livro que haverá dentro dela todo o dinheiro que se tirar à tropa e entrar na dita arca, com distinção de cada mostra e dias dela, de que se farão termos assinados pelo dito capitão e escrivão, como também do que se distribuir na compra dos ditos cavalos; fazendo no dito livro também outros termos das compras, que assinarão os vendedores dos ditos cavalos com os sobreditos, declarando a quantidade de dinheiro, quem os vendeu, em que dia, e que se compraram com parecer dos ditos dois soldados, que têm as duas chaves da dita arca com vista do ferrador da dita tropa, e para que se lhes dê, aos ditos cavalos, o sustento como aos mais, se apresentarão montados neles os soldados a quem se entregaram na Vedoria Geral, e Contadoria, para que em seus assentos se note como estão montados, desde que dia, os sinais dos cavalos, e de como se compraram com o dinheiro da dita arca. E no montar destes cavalos hão-de preceder os soldados a quem lhe mataram os seus na guerra. E deste capitulo dará o vedor geral um treslado ao governador das armas, para que disponha seu cumprimento.

53. Todos os cavalos que nesta corte e noutras partes se comprarem por conta de minha fazenda e se remeterem às fronteiras se hão-de carregar ao almoxarife de onde estiver a Vedoria Geral, e Contadoria, ao qual se fará receita deles, assim pelo escrivão de seu cargo no livro de sua receita, como nas ditas Vedoria Geral, e Contadoria, em livros que para isso se farão; e estando feita a receita em uns e outros livros, passará o escrivão do Almoxarifado conhecimentos em forma à pessoa que lhos entregar, os quais, para que tenham crédito e efeito, se tomará à razão deles na dita Vedoria Geral, e Contadoria, para que nos ditos ofícios se tenha a conta da entrega [e] repartição dos ditos cavalos.

54. E para que se tenha a conta e razão que convenham na repartição destes ditos cavalos, depois de entregues ao dito almoxarife como no capítulo antecedente vai declarado, e que o governador das armas, pela proeminência de seu cargo tenha notícia de todos os que se remetem às ditas fronteiras, mando se faça nesta forma: o dito governador das armas dará ordem por escrito ao dito almoxarife para que entregue os ditos cavalos, em virtude das que lhe der o general da cavalaria (ou quem seu cargo servir), que serão também por escrito, e nestas os ditos capitães que os receberem darão seus recibos, os quais se não levarão em conta sem que neles declare na Vedoria Geral, e Contadoria, em como lhes fica feito receita dos ditos cavalos aos ditos capitães, e nesta forma terá o dito almoxarife despesa dos ditos cavalos, e não de outra maneira, e depois de entregues, e feita receita dos cavalos aos ditos capitães na dita forma, se entregarão aos soldados de mais estimação que estiverem desmontados, antepondo os que lhos mataram na guerra, aos quais, ainda que em seus assentos se há-de notar o dia em que montam e sinais dos cavalos, sempre os capitães ficarão obrigados a dar conta deles, e para ela por seus oficiais darão as baixas dos que lhe morrerem ou matarem, na conformidade que se declara no capítulo 51 deste regimento, e não de outra maneira.

55. E porque a cavalaria francesa serve em forma e com a mesma estimação que a portuguesa: quero e mando que os pagamentos que lhes fizerem seja a cada um em mão própria. [Este capítulo resultou do facto de, ao longo dos dois primeiros anos da guerra, os coronéis e capitães dos regimentos franceses ficarem com o dinheiro que lhes era entregue para pagamento dos soldados, o que ocasionou alguns motins entre as tropas estrangeiras, principalmente no Alentejo.]

Fonte: Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1.

Imagem: “Escaramuça de cavalaria à beira de um rio”, pintura de Abraham van Calraet.