Os limites da pilhagem

A violência exercida pelos militares sobre a população civil, num conflito de atrito fronteiriço como o que caracterizou a Guerra da Restauração, era tida como uma infelicidade. O risco de sofrer depredações, ver os seus bens saqueados e a casa destruída fazia parte do quotidiano da fronteira. Mas havia limites para o que era considerado como pilhagem legítima (de acordo com as consuetudinárias leis da guerra). Todo o objecto sacro incorria num interdito, cabendo às autoridades religiosas reprimir e corrigir qualquer desmando efectuado pelo próprio exército a esse respeito.

É a propósito de um acontecimento ocorrido em Julho de 1646 que o bispo de Badajoz dirige uma carta ao mestre de campo general e governador das armas da província do Alentejo (Joane Mendes de Vasconcelos, na ocasião), acompanhando a restituição de um cálice roubado por soldados espanhóis no decurso de uma incursão. A carta é aqui reproduzida com a grafia original, desdobrando-se, no entanto, as abreviaturas.

Guerra entre Principes Christianos y Catholicos de tal manera es siempre por la tierra, q[ue] nunqua llega a ser contra la Religion. De la ultima entrada que hizieron los soldados de Castilla, entiendo a saver troxeron un recado de dicir missa de de un oratorio, ó érmita donde estava y aun que he hecho toda la diligencia possible para rescatarle, no he podido descubrir mas q[ue] esse calix. Remitole a Vossa Excelencia para que se mande restituir a cuyo era, y aun q[ue] no le puedo offrecer que los soldados no se atreveran otra ves a tal. le offresco hazer de mi parte quanto pueda y espero que Vossa Excelencia que puede, lo remediará en los de allá quando se offresca ocazion, y siempre procurará por su parte q[ue] las armas que los hombres trahen unos contra otros, por ningun interes se buelvan contra Dios, que guarde a Vossa Excelencia. Badajos y julio 20 de 1646. El obispo de Badajos.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, códice mss. 8187, fl. 73.

Imagem: Cena de pilhagem da Guerra dos 30 Anos, gravura de Jaques Callot.

Relação da tomada do forte de Telena e recontro dos exércitos junto ao mesmo lugar (Setembro 1646) – um documento inédito, 2ª parte

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Concluindo a transcrição da relação da campanha do forte de Telena, apresenta-se agora a segunda e derradeira parte:

Rendido o forte, nos retirámos todos ao quartel e o Conde de Alegrete, general, se resolveu em desmantelá-lo sem parecer de nenhum cabo, que era o que nos prejudicava a retirada, porque com o forte guarnecido não tinha a retirada nenhum perigo. Enfim desmantelou-se e trouxe-lhe tudo o que tinha, que de tudo tinha muito, em que entravam duas peças de artilharia de bronze muito boas, de doze libras, uma que havia sido nossa da ponte [de Nossa Senhora da Ajuda; ou de Olivença, como era então mais conhecida] e outra sua. E passado aquele dia em que o inimigo se havia aquartelado com o seu exército pouco mais de tiro de canhão do nosso, pareceu a todos que nos retirássemos, pois se havia feito a facção que nos obrigava a passar daquela parte, e que o exército não era capaz de passar adiante, nem havia sido nossa tenção outra que render Telena e tornar a Portugal; além de que também nos obrigava a fazê-lo termos o inimigo tão vizinho e tão poderoso na sua terra.

Sobre a marcha e a hora de marchar houve vários pareceres, e enfim se ajustou que se fizesse a retirada de dia com toda a bizarria, por reputação das armas de Sua Majestade. Marchou toda a bagagem aos 18 deste pela manhã com os terços que lhe tocou, ficando de retaguarda os mesmos que haviam vindo de vanguarda, sem mais diferença que levar Dom Sancho Manuel o corno esquerdo, e o direito Diogo Gomes [de Figueiredo, pai] e Francisco de Melo no meio. Marchava também de retaguarda toda a artilharia e cavalaria, e vendo-nos o inimigo retirar, suposto que já tão tarde que só os da retaguarda estavam para pelejar, por[que] tudo o demais ia já junto do rio, e muitos passando-os, saiu logo com sua cavalaria, e atacando com algumas tropas as nossas de escaramuça ainda antes de se descer a colina que baixa para o rio, com alguns tiros que se lhe fizeram com a artilharia, se retirou vergonhosamente, sem fazermos até então nada com a infantaria.

Era a tenção do inimigo entreter-nos para se vir chegando com a sua infantaria e com a artilharia, mas como se lhe entendeu, ainda que tarde, se resolveu o Conde de Alegrete no que todos os oficiais lhe gritavam, mas já em tempo que o inimigo vinha marchando com todo o cuidado por nos alcançar, porque reconhecia que estavam só daquela parte os três terços da retaguarda com a cavalaria e parte da artilharia. Marchávamos nós também em boa ordem, mas com cuidado a chegar-nos à ribeira, e chagados a ela virámos as caras, incorporando-se os três terços a tempo que o inimigo investia com toda a sua vanguarda a nossa cavalaria e a vinha atropelando, trazendo-a mais que de passeio até onde estavam os terços, de quem o inimigo recebeu tão bizarras cargas que tornou a voltar com perda de muitos. Assistia o mestre de campo general, persuadindo aos de cavalo que car[re]gassem ao inimigo, e nessa volta o fizeram alguns muito honrados, mas não tantos como eram necessários, e tornando, como eram poucos, a ser rebatidos e car[re]gados do inimigo que se vinha avançando com tudo, lhe tornaram a dar os nossos terços outras tão vivas rociadas que nem mais nem menos os tornaram a fazer desistir do intento. Caminhavam e pelejavam as usas mangas, mas sempre largaram o campo às nossas. Neste tempo sempre o general da artilharia andou valorosíssimo, porque sempre se achou muito empenhado, e da mesma maneira o mestre de campo general. Estavam os terços com notável firmeza e não se lhe[s] arrimava poder que não rechaçassem, até que da quarta vez que o inimigo deu com sua retirada lugar nos mandaram retirar, o que se fez com mais pressa do que os mestres de campo queriam. Contudo o inimigo não tornou a carregar, e passado todo o nosso exército desta parte sem perdo, nos pusémos então a canhonearmo-nos com a artilharia de parte a parte, despropositadamente, porque nos havíamos retirado até então com muito pouca gente morta, e então nos mataram alguma sem ser necessário. Dali marchámos até estes olivais em boa forma, e daqui passámos a Juromenha e tornámos para este posto, e para quê não sei eu nem o alcanço. Do que resultar ao diante darei conta. Em 26 de Setembro de 1646.

Como se pode ver, a relação – ou relatório, mais propriamente – está incompleta, embora trate do essencial da acção. Pela maneira como está redigida, a capacidade de comando de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, não sai nada prestigiada, em contraste com os seus rivais, o mestre de campo general Joane Mendes de Vasconcelos e o general da artilharia André de Albuquerque Ribafria. De qualquer modo, a narrativa de Mateus Rodrigues sobre os acontecimentos, bem mais viva e pormenorizada e que já aqui foi publicada (veja-se a hiperligação para a série na primeira parte deste artigo), corrobora a fraca apreciação que os subordinados de Matias de Albuquerque tinham do seu comandante.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646″, fls. 76 v – 78.

Imagem: Combate de cavalaria, óleo de Pieter Meulener.

Relação da tomada do forte de Telena e recontro dos exércitos junto ao mesmo lugar (Setembro 1646) – um documento inédito, 1ª parte

(c) Royal Armouries Museum, Leeds; Supplied by The Public Catalogue Foundation

Entre Julho e Agosto de 2010 foi aqui publicada uma série de artigos acerca da tomada de Telena pelo exército do Alentejo, comandado por Matias de Albuquerque. Embora composta a partir de várias fontes, a série privilegiava a narrativa do soldado Mateus Rodrigues, que participou naquela campanha. Veja-se aqui o prólogo, a primeira, a segunda e a terceira partes dessa série.

O documento manuscrito português que a seguir se trancreve diz respeito à mesma campanha e faz parte do acervo da Biblioteca Nacional de Madrid, com o códice mss. 8187. Tem por título Relação da tomada do forte de Telena e recontro dos exércitos junto ao mesmo lugar e trata-se de uma relação da operação, provavelmente feita por um oficial ou clérigo que integrou ou acompanhou o exército.

Entrámos em Castela para sitiarmos o forte de Telena com tão poucas notícias do inimigo, que o imaginávamos com três até quatro mil infantes e mil e oitocentos cavalos. Persuadimo-nos que o inimigo nos viria a impedir a passagem de Guadiana, e assim marcharam de vanguarda, para tomarem o passo, mil mosqueteiros de todos os terços à ordem dos sargentos-mores dos terços dos mestres de campo Dom Sancho Manuel e Francisco de Melo. Acompanhava-os toda a cavalaria, e nesta forma se tomou o passo, e chegado o exército que marchava bem formado em batalha, passou todo. Levava o corno direito da vanguarda o terço do mestre de campo D. Sancho Manuel, e o esquerdo o de Francisco de Melo, e o de Diogo Gomes [de Figueiredo, pai] no meio, todos três aparelhados, e nesta forma seguindo os demais onde cada um lhe tocou. Marchámos aquele dia até aquartelarmos, que se fez com boa ordem, formados na mesma batalha. E ao seguinte dia, formados na mesma ordem nos fomos sobre o forte. Aquartelou-se o exército em bom sítio e forte, suposto que distante mas de tiro de canhão, mandaram-se-lhe tomar os postos por uns dos quinhentos mosqueteiros a cargo de D. Francisco de Castelo Branco com o general da artilharia, e vendo que, ou por poucos não eram de grande efeito, ou por serem de vários terços e não terem consigo seus oficiais não faziam nada, se ordenou a D. Sancho Manuel que avançasse com o seu terço, com que se lhe deu tão boa manhã, e se lhe fez tão boa diligência, que quando amanheceu se achavam as mangas de Dom Sancho no fosso, quebrando a estacada. Pelejava o inimigo bastantemente, mas as cargas da mosqueteria de Dom Sancho o reduziu a que nehum ousava a chegar à muralha, e vendo que lhe fazíamos brecha, e que pela parte de Dom Sancho se andava já com as espadas à sua vista, se resolveu a render-se, fazendo uma chamada. Os partidos [ou seja, condições de rendição] foram: que sairiam com suas armas e bagagens e que estariam em Portugal até nos recolhermos. Não estavam ainda acabadas as capitulações quando o inimigo vinha saindo de Badajoz com o seu exército para socorrer o forte, que não havia ainda vinte e quatro horas que o tínhamos atacado, e que lhe tínhamos posto as baterias não havia seis horas. Reconheceu o inimigo, como não [a]tirávamos, que estávamos senhores da praça, e reconhecemos nós o engano com que ali nos meteramos, porque víamos muitos esquadrões de infantaria e de cavalaria ao inimigo, mais do que lhe imaginávamos, e julgámos logo por coisa milagrosa o haver-se-nos rendido o forte, porque a não o fazer naquela hora, não o fizera vendo que era socorrido, e se o não fizera, não sabemos como nos fora possível o retirarmos, porque reconhecíamos ao inimigo nove mil infantes e três mil cavalos, que é o com que se achava, com sete peças de artilharia.

(continua)

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646″, fls. 76 v – 78.

Imagem: Artilharia e infantaria, óleo de Pieter Meulener, período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648).

Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira – Julho de 1646 (manuscrito inédito, 2ª parte)

Ao sábado houve nesta cidade muitas luminárias pelo bom sucesso. Ao domingo veio o inimigo com esse poder que tinha aos olivais desta cidade, mas como gosta pouco dos marmelos e azeitonas de Elvas, não os quis chegar a provar, e assim se foi sem gastarmos um grão de pólvora. Amanhecendo para a segunda-feira, estava eu à janela pelas três depois da meia-noite, e fazia muito formoso luar, veio alguma cavalaria pelo caminho que tinha ido a nossa gente.Três sentinelas que estão defronte desta cela lhe[s] perguntaram duas vezes quem eram, sem responderem, disseram-lhe que não esperassem a terceira, que havia de ser com pelouro, responderam que amigos. Perguntaram-lhe de que tropa, e se vinha ali o capitão, que falasse, como fez, e com estas circunstâncias passaram até à porta de Olivença. Adormeci, e dadas quatro horas acordei ao estrondo da artilharia e mosquetaria, assim de fora como dos muros, de maneira que cuidei que o inimigo atacara a praça, porque os pelouros de uma e outra parte cruzavam os ares. Os nossos que iam chegando festejando a cidade, e a cidade a eles, e como passavam Chinchas logo iam descarregando, e não se viam senão bocas de fogo e ruído de pelouros. Santa Luzia fez a última festa e não lhe faltavam luzes de artilharia e mosquetaria. A primeira coisa que enxerguei foi a carruagem, e tinha passado a mais da infantaria. Logo vinham as peças e depois a cavalaria. A gente que foi a esta facção foram quatro mil e quinhentos infantes e mil cavalos. Quando partiram de Arronches, que foi domingo pelas três da tarde, tiveram histórias Dom Rodrigo [de Castro, governador da cavalaria] e Dom João [de Mascarenhas, tenente-general da cavalaria] sobre a vanguarda, que dizia Dom Rodrigo que a ele pertencia, e Dom João que a sua tropa havia de vir de vanguarda, que pertencia a quem fez a facção. E estas mesmas histórias tiveram na cidade diante de Joane Mendes, e Dom João disse que assim o aprendera na escola de Flandres, e o outro na de Alentejo. O caso foi que D. João lançou no meio da sala o bastão, e disse que não havia de servir com Dom Rodrigo. Joane Mendes avisou a Sua Majestade do que se passava, e ontem, além do ordinário lhe vieram dois de cavalo, um trás doutro, e um deles era para que informasse o que havia no caso, para se compor. O inimigo, quando deixou Elvas, foi correr os campos de Vila Viçosa e Redondo, soou que a ninguém deram quartel, e que à vista de Telena mataram todos a sangue frio. Foi o caso que chegando ali com a presa e prisioneiros, viram vir algumas tropas da parte de Badajoz, e os castelhanos largaram a presa, e os nossos, cuidando o que eles cuidaram, se foram meter com as tropas que vinham, cuidando ser nossas, sendo elas de Castela. E dizendo os nossos “Viva El-Rei Dom João” foram mortos quatro ou cinco, e um castelhano cuidando ser português. Contudo, e pelas mais mentiras que acerca disto se disseram, se mandou Joane Mendes queixar por uma carta a Badajoz. Mandaram-lhe dezassete dos que tinham levado, que não eram soldados, e ele lhe[s] mandou também os que não eram soldados que tinham vindo de Santa Marta e da Codiceira. O capitão da Codiceira, com os mais soldados, está na cadeia, e não chegará a dezoito anos. Eu dormi domingo na cadeia com um português de Tomar, que à segunda[-feira] arrastaram, enforcaram e esquartejaram, porque foi a Badajoz assentar praça e esteve lá quatro meses, e vinha cá por sua espia. Um nosso português que está prisioneiro em Badajoz matou a um capitão nosso que estava do mesmo modo, estando dormindo; mandou o fronteiro de Badajoz, que é um N. de Enguiem, que se cá não determinassem alguma coisa acerca daquele caso, que também lá havia justiça.

Sábado fez oito dias que veio um homem de Juromenha com um cavalo buscar o reitor de São Paulo para lá pregar, quando foram acharam dois castelhanos de cavalo, que lhe apanharam o em que ia, e dois mil réis que levava, e se foi uma légua a pé.

Ontem de noite entraram nesta cidade treze canhões dos que estavam em Estremoz. Toda a gente paga do Reino vem a esta praça, e os corregedores vêm comboiando a de suas comarcas com as mulas que há. (…) Elvas, em 8 e 9 de Agosto de 1646.

O episódio do desentendimento entre D. Rodrigo de Castro e D. João de Mascarenhas encontra-se bem documentado e foi por mim estudado a propósito do quadro mental do combatente e a definição das hierarquias (O Combatente na Guerra da Restauração… pgs. 122-123). Quanto ao caso dos prisioneiros de guerra, das trocas e do destino a dar aos que eram acusados de traição, será o tema de próximos artigos.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relação da tomada de Santa Marta, e Codeceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo P.e Fr. do Teixozo Religioso capucho assistente na mesma cidade”, fls. 74-76.

Imagem: “Corpo de guarda”, óleo de Mathieu Le Nain.

Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira – Julho de 1646 (manuscrito inédito, 1ª parte)

Dando continuidade à transcrição de alguns manuscritos portugueses do códice mss. 8187 da Biblioteca Nacional de Madrid – e prosseguindo também o que Juan Antonio Caro del Corral deixou aqui escrito a respeito do ano de 1646, que foi repleto de acontecimentos bélicos, passo a apresentar a transcrição de uma relação sobre as operações militares na província do Alentejo em Julho de 1646.

Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo padre Fr[ancisco?] do Teixozo, religioso capucho assistente na mesma cidade

Foram oitocentos cavalos e quatrocentos infantes a Santa Marta, seis léguas de Badajoz e sete de Olivença, atacaram a praça sem perigo, mandaram a gente que se fosse e derrubaram-lhe algumas casas, fizeram presa em alguns burros e outras coisas semelhantes, alguns deram com batacas [patacas] e outros com quartos [moedas espanholas de real] que espalharam, e outros com melhores coisas que calaram, o certo é que a ida foi de perda para Sua Majestade, e de nenhum proveito, porque a calma era grande e alguns cavalos abafaram e outros aguaram, e os inimigos com sua cavalaria tomaram os nossos nas serras de Valverde, os quais, por pelejar, largavam esse pouco que traziam, dos quais alguns foram mortos, porque não podendo marchar com a calma se ficavam às sombras. Um furriel nosso que os castelhanos mal feriram [ou seja, que feriram com gravidade] e deixaram por morto e despido porque não se quis render, depois se veio em camisa a Olivença, e escapa.

Quarta feira 24 de Julho, dia de Santiago, pelas seis horas da tarde, saiu Dom João [de] Mascarenhas com seiscentos cavalos, e André de Albuquerque com quatrocentos infantes, um é tenente-general da cavalaria e o outro general da artilharia, saíram pela porta dos banhos com suas mulas de carruagem, vieram entre o castelo e a ribeira de Chinchas e a passaram por baixo de Nossa Senhora, e logo a tornaram a passar para a cidade. E chegou toda esta gente onde foi a porta de Évora, por cima da Lameda, e dando sua salva de bastardas tornou a desavisar o mesmo caminho, e passou Chinchas pelo caminho de Portalegre, e tornou logo a voltar, ocupando o mesmo posto da porta de Évora, onde fez noite, e desapareceu sem saberem para onde. Na mesma noite se ajuntou no lugar que largou Dom João toda a mais gente da cidade, e a de Olivença com muita carruagem e quatro peças de campanha, e eu confesso que o mais do tempo depois de matinas estive à janela e que não ouvi reboliço algum, só por algumas vezes rinchar [relinchar] um cavalo. Pela manhã começou esta gente a marchar caminho de Arronches, que era o que tinha levado já Dom João a cavalaria, logo duas peças de campanha, muita infantaria, seguiam-se outras duas peças e logo a carruagem, que seriam quinhentas ou seiscentas cavalgaduras com dez mil pães, afora o biscoito, e por retaguarda a tropa de Dom Rodrigo [de Castro – ou seja, a companhia da guarda do governador da cavalaria]. Aquele dia chegaram a Arronches, e Dom João pelas onze da noite à Codiceira, e a sentinela em um cascalho que há antes de chegar sentiu os nossos, e quando chegaram lhe[s] perguntou quem eram e que fizessem alto. E lhe responderam em castelhano que amigos, e que se queriam chegar ao castelo porque o inimigo andava em campanha, repreendendo-os porque dormiam tanto. Neste tempo estavam pondo petardo, por isso o entretinham com palavras, e vindo outro nosso, e não querendo fazer alto, senão chegar-se aos outros, lhe tirou um com um mosquete e o matou, posto que também lhe falou em castelhano. Deu-se logo fogo ao petardo que foi posto no postigo, e o postigo foi fazer em pedaços a segunda porta que era de grade, e os nossos entraram e quebraram com os ombros outra porta de estacada, e encontraram já o capitão em ceroulas e descalço, que estava com a cria à ilharga. Nisto chegou toda a gente de Dom João, e não houve mais que outro morto nosso, de uma pedra que lançaram do muro, de muitas, e muito grandes, que por cima tinha. E com isto ficaram os nossos senhores do castelo e vila. Começava Joane Mendes [de Vasconcelos] a marchar de Arronches para a Codiceira quando lhe chegou nova do feito, escreveu a Sua Majestade se se havia de presidiar o castelo, mandou que fosse tido assolado. Levou dali gastadores e foi com toda a gente e o minou, e dando-lhe fogo não ficou pedra sobre pedra. Era o castelo quadrado e tinha quatro torres nos cantos, que descortinavam ao longo dos muros, e se os treze castelhanos estiveram alerta, não sei se o tomaram os nossos, porque logo lhe veio socorro de Albuquerque, que está uma légua, e não havendo canhões era muito forte. E os nossos, se não usaram da traça e os castelhanos não foram tão sonolentos, não se havia de chegar a pôr o petardo. O mesmo se fez à vila, tirando a igreja e casa do cura, que posto tinha muita fazenda, se não buliu nelas, e o Bispo de Badajoz mandou dizer ao cura que, se aqueles senhores quisessem presidiar o castelo e não trouxessem capelão, os servisse, e se o trouxessem, se fosse. Ficaram muito contentes com o bom quartel que se deu á gente. No castelo havia muitos panos, e nos pisões e moinhos, que tudo ficou assolado, e muito trigo pelas eiras, e nas hortas muita fruta, de que os de Arronches se aproveitaram. Vieram os nossos para Arronches e um soldado entrou numa horta, colheu um pepino, e levando-o à boca lhe tirou o senhor dela com uma espingarda e o matou; outro, por entrar numa vinha, foi escopeteado. 

(continua)

Realce-se os curiosos factos narrados no final desta primeira parte – a defesa da propriedade privada por parte dos civis, qualquer que fosse a nacionalidade dos soldados que a violassem, chegando-se a extremos de violência e ao assassinato. Nos casos referidos, recorrendo a armas de caça (espingarda e escopeta). Este ódio entre civis e militares, tão característico da actividade bélica do século XVII (e de toda a Era Moderna, aliás), é ilustrado por muitos e variados exemplos nas fontes narrativas e documentais durante a Guerra da Restauração.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relação da tomada de Santa Marta, e Codeceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo P.e Fr. do Teixozo Religioso capucho assistente na mesma cidade”, fls. 74-76.

Imagem: “Soldados em repouso numa estalagem”, óleo de Jean Michelin (c. 1616-1670), Museu do Louvre.

Pequenas escaramuças no Alentejo, Maio e Junho de 1646 – uma adenda de Juan Antonio Caro del Corral

O estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral fez o obséquio de acrescentar ao anterior artigo mais alguns dados, enviados sob a forma de comentário, mas que devido ao interesse inerente passo a colocar aqui sob a forma de artigo. Ao Juan Antonio renovo os agradecimentos pela sua sempre pronta colaboração.

Cierto. 1646 fue año que no sólo estuvo protagonizado por el suceso de Telena y el intento sobre Salvaterra do Extremo (el primero en la provincia alentejana, y el segundo en la de Beira)

Estoy de acuerdo contigo cuando hablas sobre los incidentes cotidianos, la denominada guerra a pequeña escala que fue, realmente, la que mayor daño y fatiga causo a los habitantes de uno y otro lado de la Raya fronteriza.

Ericeira, y otros autores, algunas veces nos refieren estos hechos, aunque normalmente se fijan más en los de mayor envergadura. Por fortuna, para enmendar ese silencio informativo, nos queda el relato de testigos anónimos que, incluso, participaron en esos encuentros y escaramuzas de segundo nivel, gracias a lo cual podemos conocer de primera mano la letra menuda de la historia.

Al efecto de la entrada que los castellanos hicieron en términos de Olivenza la mañana del 28 de mayo del año citado, y para situar mejor el escenario de lo acontecido, quiero aportar algunos datos tomados de una carta que el marqués de Molinghen, autoridad que por entonces comandaba el ejército, dirigió a los ministros de la corte madrileña.

Esta misiva, aparte de informar de lo que pasaba en la frontera pacense, quería responder a las constantes críticas que sobre el mal uso de la caballería se vertían cada día. Así el mlitar valón explicó abundantemente cómo trabajaban los montados y el premio que obtenían en sus correrías y que, por lo tanto, no todo eran sinsabores, tal como señalaban los enemigos políticos del marqués.

Pues bien, la escaramuza oliventina de aquel lunes de finales de mayo, ocurrió casi pegada a los muros de la ciudad, en la zona que actualmente se conoce como Charca de Ramapallas, a 1,5 kms del núcleo fortificado urbano, en dirección este, mirando al camino de Valverde de Leganés.

Desde aquí la partida castellana fue extendiendo su cabalgada de pillaje, dibujando un arco que, orientado hacia el sur, pasaba por los olivares llamados de Santa Catalina, bajo vigilancia de la atalaya de San Jorge, situada en las primeras estribaciones montañosas de la Sierra de Alor; y en sentido contrario, al norte, buscando el refugio de la Sierra de Doña María, a cuyos pies se encuentran algunos cortijos y casas de campo, como La Sancha. Un radio de acción campestre en torno a las 1600 hectáreas, dónde los caballistas encontraron una importante presa de ganado lanar y vacuno.

Y en relación al convento que se cita en la narrativa, posiblemente se trate de las ruinas de dos ermitas ubicadas en uno de los extremos de dicho arco; concretamente de las dedicadas a San Francisco y San Lorenzo, por debajo de los olivares de Santa Catalina, y justo enfrente de la mencionada atalaya de San Jorge.

O sea, una más de las rutinarias acciones de castigo. Desdeluego que no fue la primera, ni tampoco sería la última de aquel 1646. Mediado junio, hubo nuevos altercados. Pero ya antes de la correría de mayo, los castellanos también habían ganado, en otras acciones similares, setenta y dos monturas.

Después de estas incursiones, lo de Telena y Salvaterra estaba ya próximo a aparecer en el calendario guerrero.

Pero éstas, y algunas otras, son otras historias.

Juan Antonio Caro del Corral

Imagem: Planta de Olivença, segundo uma impressão francesa do início do século XVIII. BNL, secção de cartografia, CC29P.

Pequenas escaramuças no Alentejo, Maio e Junho de 1646 (documento inédito)

Continuando a transcrição de manuscritos portugueses do acervo da Biblioteca Nacional de Madrid, é chegada a vez de publicar uma breve carta anónima, endereçada a um religioso que havia estado na fronteira de guerra e que dela se ausentara em 27 de Maio de 1646. Como se trata de um treslado do original para um livro de registos e não existe qualquer indicação dos nomes do remetente e do destinatário, nem do local onde este último se encontrava no momento em que a recebeu, fica a dúvida se a carta teria tido como destino final Lisboa (o que é, no entanto, provável). O que desperta maior interesse no conteúdo é a maneira como são descritas as operações de guerra – um acrescento ao mosaico de acções de pilhagem e escaramuças que constituíam o viver quase quotidiano das populações locais, apontado com precisão numérica e narrativa no que concerne aos mais ínfimos pormenores. É muito provável que o religioso a quem era dirigida a carta tivesse ido ao teatro de operações, não por mera iniciativa pessoal e movido pela curiosidade, mas em cumprimento de alguma missão de fiscalização ou informação.

Como nota adicional refira-se que, na carta, o termo “tropa” é usado como sinónimo de “companhia”.

Cópia de uma carta que veio de Olivença a um religioso que tinha vindo das fronteiras havia quatro dias

Saberá V[ossa] R[everência] como o dia seguinte depois de sua ida, que foram 28 do mês de Maio, seria coisa de meio-dia, deram as atalaias rebate e sentiram que vinha tanta gente, que tiraram quatro tiros, e por mais depressa que deram rebate, já os castelhanos vinham avançando pelo outeiro de Ramapalhas, que fica na estrada de Valverde. Fizeram alto à vista da vila e com toda a pressa mandaram batedores pelo ribeiro de Ramapalhas abaixo, e duas tropas de trás [ou seja, no seguimento dos batedores] para pilharem algum gado. Mandaram outros dois batedores e outras duas tropas pelo[s] olivais de Santa Catarina, e vinha a passar defronte do nosso convento, e foram-se ajuntar uns e outros à estrada de Juromenha já com a pilhagem, que foram 30 bois e umas ovelhas e cabras, às ovelhas não puderam chegar porque eles não deram lugar, os bois não lhe pôde a nossa cavalaria ser boa, porque a sua era dobrada, juntamente tinham ainda a mais cavalaria acima para socorrer, e a tudo isto tinha a nossa artilharia jogado neles muito bem, com perda sua. Com tudo isto se retiraram à mais cavalaria que estava por cima de Santa Catarina. A este tempo botaram dois terços de infantaria fora, porque a nossa cavalaria era pouca, e para ver se lhe podiam dar carga [ou seja, abrir fogo]. Tornaram os castelhanos outra vez a vir correr o campo por onde tinham ido, e a nossa infantaria detrás da nossa cavalaria, e seguindo-os sempre por onde eles iam, e a artilharia por donde os via, que lhe não perdoava. Depois de terem corrido esta vila em redor, se foram recolhendo a um monte que chamam Sancha Ladra, ali ficaram esperando duas outras tropas atrás, às quais avançou a nossa cavalaria, vindo à espada. Neste tempo nos feriram dois cavalos e o soldados que chamam Gonçalo Sanches (o melhor soldado daquela fronteira, como todos dizem, moço de 25 anos solteiro) esteve por duas vezes cativo e lhe tomaram o chapéu e lhe pegaram pela correia, ele para escapar a desbrochou e fugiu. Muitas coisas pudera contar de vista, mas saiba V[ossa] R[everência] que durou a refrega e briga 3 horas e a nossa artilharia tirou 36 tiros, que para tudo deram lugar, e se recolheram com perda de muita gente, o que souberam por línguas que foram tomar noutro dia, e dizem que daqui até Badajoz sempre foram morrendo gente, e faltaram 35 homens e trinta e tantos cavalos; de treze cavalos soubemos nós que ficaram no campo, os homens mortos levaram-nos e tudo das presas, iam dizendo que el diablo los truviera [sic] a Olivenza.

Hoje, que são três deste mês [Junho], trouxeram quatro soldados de cavalo de Castela duas mil ovelhas sem irem com 8 tropas, como eles vieram a esta terra, como acima digo, que este é o número da cavalaria que a esta praça veio.

Haverá 4 ou 5 dias levaram também os castelhanos do Alandroal quanto gado acharam, com a força das mesmas tropas, bem grande dano para nós neste tempo; parece se quiseram vingar do terço de Serpa, que sem ordem do general da cavalaria entraram por Castela 10 léguas e trouxeram grandíssimo número de gado, com que amainaram a cólera do general, quando tão grande presa viu.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, fls. 70 v-71.

Imagem: Mathieu Le Nain, “A disputa”.

Escaramuças na província da Beira em Maio de 1646

Continuando a transcrever alguns documentos, cujas cópias o estimado amigo Julián García Blanco me remeteu, cabe agora a vez de uma breve carta narrando escaramuças ocorridas na província da Beira. Os manuscritos pertencem ao espólio da Biblioteca Nacional de Madrid e são cópias coevas das cartas originais, para registo de arquivo, à semelhança das que se podem encontrar nos Livros de Registo da Secretaria de Guerra, em Lisboa.

As escaramuças que são descritas numa carta endereçada a um padre jesuíta de Évora não se encontram mencionadas na História de Portugal Restaurado do Conde de Ericeira. Episódios menores, em comparação às operações de maior envergadura que nesse ano ocorreram na província, são todavia de interesse para o conhecimento da vivência da guerra e seus efeitos sobre as populações da fronteira.

Carta de Francisco Leonardo a um religioso da Companhia do Colégio de Évora, em que dá novas de um sucesso que o nossos tiveram na Beira contra os castelhanos em 15 de maio de 1646

Novas da Beira têm sucedido agora muito boas. Em Alfaiates tivemos um bom sucesso, pelejou uma tropa de cavalos nossa de 40 soldados, com duas companhias de infantaria, com 150 cavalos cavalos sarcenhos [ou seja, de Zarza la Mayor] e foram derrotados, deixando no campo mortos 21 e muitos cavalos, e dezassete vivos, e a presa que levavam restituída ao lugar de Souto e Quadrazais. Se o Tejo se pudera vadear tivéramos a maior presa do mundo todo; a qual mandava o Conde [de Serém] fazer pelo tenente-general da artilharia, que passou o rio com 40 cavalos, e o resto deles ficou por se perder a barca, com que a infantaria não teve em que passar também da outra parte. E como se mal logrou esta ocasião, vendo o tenente-general da artilharia que não tinha caminho para Portugal senão marchando por Castela, o fez bizarramente com os 40 cavalos, e chegou a Carvajo de Santiago [Santiago de Carbajo], e a Membrio, e a outros lugares, e recolheu tudo o que neles achou até entrar aqui por Montalvão a salvamento, sem perda mais que de dois homens que se afogaram ao passar do rio. O forte de Zebra, que o Conde mandou fazer, está feito uma Rochella [comparação exagerada, feita pelo autor, com as defesas de La Rochelle, em França], dali se faz grandes estorvos aos danos que o inimigo fazia em algum tempo. O Bispo de Ciudad Rodrigo comete tréguas no que toca a roubos, e que se faça a guerra por termos militares; avisou-se disto a Sua Majestade, para o mandar resolver.

Francisco Leonardo

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646″, fls. 70-70 v.

Imagem: Soldados de infantaria do século XVII. Museu Militar de Estocolmo. Foto de JPF.

Ainda a emboscada na Atalaia da Terrinha em Março de 1646

Na série relativa à campanha de Telena, foi aqui apresentado o incidente que, de certo modo, serviu de prólogo à campanha: uma emboscada sofrida pela cavalaria portuguesa às ordens do comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde. a qual foi descrita, em pormenor, por Mateus Rodrigues nas suas memórias, e também referida pelo Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado. Contudo, tal como em outras partes da narrativa do soldado de cavalos, escrita oito anos depois deste particular incidente, há pequenos detalhes que apresentam alguma inexactidão.

No caso vertente, foi referido por Mateus Rodrigues que um seu camarada de armas, da companhia onde servia (a do próprio comissário geral), um tal Gaspar Rodrigues, soldado veterano de Elvas, fora morto a sangue frio pelos seus captores. Tal pode ter acontecido, de facto, mas o certo é que não aparece nenhuma indicação na breve nota manuscrita por D. João de Azevedo e Ataíde, que se encontra anexa a uma carta de Joane Mendes de Vasconcelos a propósito do incidente, e esta inclusa numa consulta do Conselho de Guerra. Do mesmo modo, Mateus Rodrigues parece ter inflacionado o número de cavalos levados pelo inimigo (60); segundo a nota de D. João de Ataíde, terão sido 21, ou seja, cerca de um terço do sugerido pelo seu subordinado. No entanto, em tudo o mais há consonância entre as várias fontes documentais, de origens diversas, que ao incidente se reportam.

Transcritos para português moderno, aqui ficam o texto da consulta, a decisão régia e a nota do comissário geral a propósito do desaire de Março de 1646 na Atalaia da Terrinha.

Na carta inclusa dá conta a Vossa Majestade Joane Mendes de Vasconcelos, mestre de campo general do Exército e Província de Alentejo, de como na madrugada de 20 deste mês teve aviso que haviam entrado alguns cavalos do inimigo nos nossos campos. E mandando sair com a cavalaria que se achava naquela praça, ao comissário geral Dom João de Ataíde, que chegou até à Terrinha, e ali deixou misturar com as suas tropas as do inimigo, que estavam de emboscada nas barrancas de Caia para a parte de Telena, onde perdemos os cavalos e soldados da memória que juntamente vai com a carta, examinada com todo o cuidado e diligência, e diz que a perda não é grande, mas é coisa muito considerável a falta de ânimo e disciplina com que obra a nossa cavalaria em algumas ocasiões, e estas, e maiores desordens haverá enquanto Vossa Majestade for servido que ela esteja no estado em que se acha de presente.

Ao Conselho pareceu dar conta a Vossa Majestade do que avisa o mestre de campo general acerca deste sucesso, para que seja presente a Vossa Majestade. Lembrando de novo a Vossa Majestade quanto convém a seu Real serviço não dilatar mais nomear generais da Cavalaria e Artilharia para o Exército de Alentejo, pelos inconvenientes que do conteúdo resulta.

Lisboa, 28 de Março de 1646.

[Resolução régia]

Nomeio para governador da cavalaria do exército de Alentejo a Dom Rodrigo de Castro, e para tenente-general dela a Dom João Mascarenhas [ilegível, tinta apagada devido à humidade – mas pode ser: e assim se dê] logo a cada um deles [ilegível, tinta apagada devido à humidade] lhe despachos com toda a brevidade. Lisboa, a 13 de Abril de 1646.

E vencerá Dom Rodrigo o mesmo soldo de general.

[Nota anexa de D. João de Ataíde]

Cavalos e soldados que faltaram na ocasião da Terrinha.

Da companhia do comissário geral faltaram soldados quatro.

Cavalos, entre mortos e que levaram o inimigo, sete.

Da companhia do capitão Gil Vaz, soldados dez.

Mais dez cavalos destes soldados, que ficaram desmontados.

Do regimento de Jaco[b] Nolano [irlandês].

Um cavalo.

Companhia de António de Saldanha.

Os que faltam dará rol à parte deste.

Quatro soldados cativos e trombeta, mais três cavalos de soldados que vieram desmontados.

Destes homens há sete feridos e nenhum morto [refere-se ao total de perdas].

Dom João de Ataíde

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1646, maço 6, consulta de 28 de Março de 1646.

Imagem: Couraça e capacete de cavalaria, séc. XVII. Museu Militar de Estocolmo. Fotografia de JPF.

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 3 e última: a passagem do Guadiana e as querelas dos comandantes

Sempre perseguida pelo exército espanhol, a força portuguesa foi-se aproximando do Guadiana. O inimigo trazia dois mil e quinhentos infantes, mas o que mais nos perseguia era a cavalaria com as peças, e logo trazia 600 [cavalos] couraças que rompiam o demónio, de sorte [que] até Guadiana é meio quarto de légua, e como a palma da mão (…). Já tinham passado três ou quatro terços para além e outros três estavam já formados ao pé do porto de Guadiana, mas da parte de Castela, e todos mui bem formados sobre os barrancos do porto, por onde nós havíamos de passar, com os cavalinhos de pau por muralha, mas vinham ainda pelejando com o inimigo três terços e três peças de artilharia e a nossa cavalaria, mas se me perguntarem quem (…) obrava tudo isto em tão grande aperto, que só quem o viu sabe como era, que nunca jamais se viu poder nosso tão em balanços como naquele dia, se não fora um só homem fatalmente se perdia tudo sem apelação nem agravo, e quem (…) fez todo este bem, assim ao Rei como a todos nós, era o famoso Joane Mendes de Vasconcelos, que era ali então mestre de campo general; que nunca jamais se adjectivou bem [isto é, que nunca se deu bem] com nenhum governador das armas, nem em sua companhia havia nunca de fazer o que entendia, só para não dar o louvor a eles, mas isso não lhe tirava o conhecimento do seu préstimo, que suas obras o abonavam e o diziam.

Mas em esta ocasião viu que se perdia Portugal, vendo até ali a pouca ordem que Matias [de Albuquerque] tinha dado, (…) e assim vendo já tudo por um fio, então mostrou suas partes [isto é, o seu valor], que se fora à vista de um Rei não tinha mercês com que lhe pagar, e foi tão desgraçado, que na gazeta que se fez da ocasião não se falava nele, nem pouco nem muito, mas tudo isto nascia de muitos inimigos que ele tinha em o Conselho de Guerra, e assim falava só (…) quem não fez coisa nenhuma, nem pôs espada nem pensamento em castelhano. Finalmente que direi o modo com que este homem nos livrou da fúria do inimigo: não fazia mais que formar um terço à vista do inimigo, com uma peça diante, e assim como o inimigo se arrimava com a sua cavalaria dava-lhe carga [ou seja, disparava] belissimamente, de modo que o inimigo se fazia ao largo com a cavalaria e logo dava este terço uma volta depressa, e retirando-se atrás em marcha; mas assim como o inimigo carregava outra vez, logo já achava outro terço formado com outra peça dando carga ao inimigo. E assim vieram estes três terços com grande trabalho até chegarem ao porto onde estavam os outros três já entrincheirados, com os cavalinhos [de pau], e a este tempo ia o inimigo todo junto a nós. E nós também, com uma notável confusão na passagem do Guadiana, [acerca de] quem devia passar diante, e de tal maneira foi, que a nossa cavalaria passava por cima da infantaria, atropelando tudo, e outros se metiam a um grande prego que junto do porto estava, e alguns se afogavam com tanta pressa.

Mas o inimigo, vendo-nos nesta confusão, se resolveu de todo a nos avançar com toda sua cavalaria, botando diante as 600 couraças, (…) mas como não podia fazer-nos dano aos que vinham passando com esta bulha, em razão que estavam aqueles três terços sobre o porto (…), assim como averbou com eles (…) achou os cavalinhos [de pau] diante, levando os cavalos muitas feridas dos bicos de ferro. Deu-lhes os terços grandíssimas cargas, em que lhe mataram muita gente, e logo uma pouca de cavalaria nossa que vinha passando Guadiana, puxou por ela D. João de Mascarenhas para ir pelejar com o inimigo, que ia já em retirada ao largo. E logo toda a mais cavalaria nossa que estava já passada, vieram a buscá-la muitos oficiais. (…)

Não se pôde ter o inimigo, vendo-nos outra vez passar o porto, que assim [que] a nossa cavalaria começou a passar, veio outra vez o inimigo com maior força, (…) mas como os terços que estavam daquela banda lhe davam grandíssimas cargas, não se metiam com essa facilidade (…).

Ali fez um castelhano uma notável sorte, mas custou-lhe a vida, que assim como viu o guião real que trazia a companhia do general da cavalaria [na verdade, a do governador da cavalaria, pois D. Rodrigo de Castro não tinha patente de general] (…), se veio a ele como um raio, cuidando que o havia de apanhar, metendo-se por dentro de toda a cavalaria nossa, vindo passando o Guadiana; mas ele ficou estirado em o meio do areal, nu [sem dúvida porque foi logo despojado do equipamento e roupas pelos soldados portugueses, uma prática habitual na guerra], e não há dúvida que devia ser cavalheiro, porque homem tão alvo e tão gentil-homem não vi em minha vida, e o cabelo como um fio d’ouro, e bem moço, que não tinha 30 anos. (MMR, pgs. 115-117)

Dada a inutilidade das investidas sobre a infantaria portuguesa, a cavalaria espanhola pôs-se a coberto em posições desenfiadas. A sua infantaria tinha tomado abrigo nuns valados, e daí em diante apenas se trocou tiro de artilharia de ambos os lados. Os três terços portugueses foram manobrando com habilidade e passaram o rio, um deles cobrindo a retirada dos demais, alternadamente, mas a artilharia espanhola castigou duramente a força portuguesa que retirava. (…) Não era necessário fazer pontaria, senão atirar a montão, à sua vontade, (…) e não fazia tiro que não matasse cinco, seis homens e cavalos ou bois ou mulas das peças. (…) Vinha ali um capitão de cavalos (…), de seu nome Manuel da Gama, um bizarro soldado e mui cavalheiro e grande músico e mui bem entendido, que tinha seus dedos de poeta, mui querido de todos os fidalgos; (…) vem uma peça do inimigo a dar-lhe só nele e tira-lhe a cabeça fora dos ombros, ficando o corpo a cavalo por espaço de bom Credo, sem cair no chão, sem a bala ofender mais a ninguém (…). Não havia quem não sentisse a morte deste capitão, e os seus soldados mais que todos. (MMR, pgs. 118-119). Depois de duramente fustigados, os homens comandados por Matias de Albuquerque percorreram a distância que os separava de Elvas, onde chegaram em segurança.

A operação do forte de Telena, que durante tanto tempo perdurou na memória dos militares que nela participaram e nos registos oficiais, foi um grande empreendimento militar que redundou em fracasso. Não só os espanhóis retomaram a posse do forte, como acabaram de repará-lo em pouco tempo, de que ainda hoje [Mateus Rodrigues escrevia em 1654] o tem em posse eterna (…), porque já não há outro Matias de Albuquerque para intentar semelhantes empresas, nem hoje há nas fronteiras poder com que se obre tal. (MMR, pg. 118)

A colorida descrição da campanha, lembrada por Mateus Rodrigues no sossego de Águeda, cerca de 8 anos depois, é corroborada pelo Conde de Ericeira e por outras narrativas e documentos oficiais contemporâneos da acção. O desenlace da campanha cavou ainda mais a inimizade entre Matias de Albuquerque e Joane Mendes de Vasconcelos. O Conde de Alegrete deixou o governo das armas do Alentejo, que ficou a cargo, precisamente, do seu arqui-rival. Um ano depois, o Conde morria em Lisboa.

Não deixa de ser interessante, todavia, a opinião favorável a Joane Mendes, bem explícita por parte de Mateus Rodrigues nas suas memórias. Assim como já tinha acontecido na ocasião da batalha de Montijo, sobressai uma certa falta de confiança na capacidade de comando de Matias de Albuquerque. É uma perspectiva distante dos panegíricos que mais tarde surgiram a respeito do Conde de Alegrete. A “gazeta” a que o soldado de cavalos se refere na sua narrativa, a propósito do não reconhecimento público do papel desempenhado por Joane Mendes de Vasconcelos, é a seguinte: Svcesso, qve o nosso exercito de Alenteio gouernado por Mathias de Albuquerque, Conde de Alegrete, teue na tomada do forte real de Telena em Castella em 16 de Setembro de 1646, & encontro do mesmo exercito com o do inimigo. Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1646.

Imagem: Maquete presente no Armémuseum de Estocolmo, retratando uma pequena parte de uma formação de piqueiros (de um regimento, no exército sueco, ou de um terço, no exército português). Note-se como o artista individualizou cada soldado, conferindo um pathos que espelha bem a apreensão antes da entrada em acção, bem como as consequências das doenças que afligiam muitos dos soldados em campanha – note-se a tez pálida e o aspecto doentio do piqueiro em segundo plano. Como curiosidade adicional, saliente-se que muitos piqueiros do exército do Alentejo teriam, em 1646, um equipamento (murrião e couraça) em tudo igual ao apresentado nas miniaturas, pois milhares de peças destas, bem como piques e outro material de guerra, tinham sido recentemente importados da Suécia. Foto de JPF.

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 2: o início da retirada

Prossegue Mateus Rodrigues a narrativa da campanha do forte de Telena:

Em todo este tempo de continuação e assistência esteve o inimigo com todo o poder que já tinha junto bem ao pé de nós, um meio quarto de légua [em rigor, cerca de 600 metros, mas talvez um pouco menos do que o soldado refere], dando-nos sempre muitos rebates e enfadamentos, que de noite estava sempre a cavalaria montada e a infantaria de armas nas mãos, e de dia com grandes escaramuças uns com os outros, os de cavalo. E tinha o inimigo já tenção de nos seguir na retirada, por isso estava ali fora, como assim o fez, porque trazia 3.000 cavalos, que nunca (…) ajuntou tanto; mas trazia à volta de 800 éguas da ordenança (…). De maneira que depois do forte tomado, ainda nós estivemos em o quartel dois ou três dias, num dos quais nos fez o inimigo uma peça galante, que foi o dar-nos um grande trabalho, por imaginarmos que vinha a pelejar connosco uma tarde, (…) fazendo uma grande faceira [sic – o soldado terá querido empregar um termo derivado do verbo facetear, ou seja, zombar; seria, portanto, zombaria], que era passar com a cavalaria por um outeiro à nossa vista, e logo dava volta aquela mesma cavalaria por detrás do mesmo outeiro, e tornava a passar outra vez à nossa vista, e assim com estes estratagemas esteve fazendo mostra à nossa vista, que parecia muito mais cavalaria do que ele tinha, mas não somos nós tão parvos que não disséssemos que era faceira [sic]. (MMR, pg. 110)

O mesmo truque fez o inimigo com a infantaria, mas sem sucesso. No entanto, o conselho de oficiais maiores do exército, mandado reunir pelo governador Matias de Albuquerque, já tinha decidido o regresso do exército a Portugal, uma vez que seria impossível prosseguir e empreender o forte de S. Cristóvão, tendo o inimigo juntado um exército superior ao nosso em Badajoz.

Para não atrapalhar nem atrasar a marcha do exército, Matias de Albuquerque mandou todo o trem de carros, carroças e mulas atravessar o Guadiana para a banda de Portugal durante a noite. Pela manhã, começou a infantaria a marchar, mas a cavalaria permaneceu formada junto ao forte de Telena, para cobrir a retirada. Foi quando as tropas montadas começaram, por sua vez, a preparar-se para se porem em marcha, que se deu o segundo desaguisado grave entre o governador da cavalaria D. Rodrigo de Castro e o seu subordinado, tenente-general D. João de Mascarenhas, conforme narra Mateus Rodrigues. Diz o soldado de cavalos que D. Rodrigo ia deitado numa liteira por se sentir mal disposto (o futuro Conde de Mesquitela padecia com frequência de “uns achaques”, como referem vários documentos da época – provavelmente gota), e que os espanhóis lançaram um ataque com cerca de 1.000 cavalos, com grandíssima resolução, trazendo diante uma companhia de 80 cavalos escolhidos com um tenente por cabo, que devia ser o diabo, (…) que se veio a nós como bárbaro, metendo-se às pancadas como um doido, mas ele ficou ali logo e muitos soldados (…). (MMR, pgs. 111-112) A restante cavalaria espanhola lançou-se então em carga sobre a congénere portuguesa. D. João de Mascarenhas, jovem e impetuoso, ordenou uma contra-carga de espada na mão – e a cavalaria portuguesa começou a movimentar-se para o choque, em vez de permanecer formada para proteger o grosso do exército. Na liteira, D. Rodrigo de Castro nem queria acreditar no que via. De um salto, montou a cavalo e, galopando, conseguiu ultrapassar os batalhões portugueses e ordenar que parassem, com termos inequívocos: “Alto! Alto! Que bebedeira é esta? Eu não valho aqui nada? Nem sou o general desta cavalaria, para avançarem sem minha ordem?” (MMR, pg. 112). Mateus Rodrigues considera nas suas memórias, escritas cerca de 8 anos depois deste evento, que a intervenção de D. Rodrigo foi providencial para evitar um possível desastre, pois a manobra do inimigo era precisamente para atrair os portugueses a uma armadilha: mais cavalaria e infantaria suas se aproximavam, em número superior ao dos portugueses. Mas o tenente-general não reagiu bem à interferência do seu superior: os dois trocaram insultos e, tal como acontecera meses antes, só não chegaram a vias de facto porque outros oficiais intervieram.

D. Rodrigo de Castro assumiu o comando da cavalaria e iniciou a retirada.  Já a nossa infantaria ia toda do forte para baixo (…), e logo o inimigo veio com toda a cavalaria, carregando-nos com grande força e trazendo duas peças entre a mesma cavalaria, com seis mulas cada peça, que corriam com elas como a mesma cavalaria, e assim como chegavam a tiro, davam carga com elas [ou seja, disparavam], que faziam muito dano, porque ia a nossa gente toda numa pinha e não podia deixar de matar muita gente, porque fazia tiro de perto.

(…) Quando nos vínhamos retirando, e já bem apertados, ainda não tinham lançado o fogo às minas que estavam feitas para arrasar o forte, e quando se acordaram a mandar pô-lo, já o inimigo vinha à desfilada, correndo homens de pé a meter-se no forte. Contudo, Matias de Albuquerque prometeu uma bandeira [ou seja, promoção ao posto de alferes] a quem lhe fosse botar o fogo. Logo houve um soldado que se aventurou a lhe ir botar o fogo, e verdade seja que ele lho botou; mas (…) lá ficou em poder do inimigo, cativo, e assim como deu fogo às minas, fizeram elas tão pouca obra, que apenas se ouviu o estrondo entre nós, que como era obra de terra, empapou-se a pólvora nela e não derrubou nem uma vara de muralha, e assim lhe ficou outra vez em pé como estava, (…) havendo-nos custado mais de 600 homens. (MMR, pg. 113)

Na próxima parte conclui-se esta descrição, com a narrativa do combate travado nas margens do Guadiana.

A conclusão da série de artigos sobre o Forte de Telena no blogue Sigue las Huellas de Badajoz pode ser lida aqui.

Imagem: “Combate de cavalaria”, de Peter Snayers (detalhe).

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 1: assalto e conquista

A mudança no comando da cavalaria do Alentejo, após o desaire da emboscada nas vinhas da Terrinha, não trouxe maior eficácia. Entre 1646 e 1647, a cavalaria portuguesa era frequentemente suplantada, em número e em qualidade, pela cavalaria espanhola, conforme é corroborado por variadíssimos documentos da Secretaria de Guerra e pela confissão dos “grandes medos” que os soldados sentiam, segundo as palavras de Mateus Rodrigues. A situação só melhoraria em 1647, com a chegada de Martim Afonso de Melo ao governo das armas do Alentejo e a introdução do “Contrato com os capitães de cavalos”.

A preparação da campanha de 1646 não podia ter corrido pior a nível das chefias: Matias de Albuquerque, agora Conde de Alegrete, fora nomeado governador das armas, ficando Joane Mendes de Vasconcelos como mestre de campo general. Grandes rivais, a desconfiança e inimizade entre ambos comprometeu a cooperação necessária para o bom andamento das operações. Também a nomeação de André de Albuquerque Ribafria para general da artilharia, posto que estava vago desde 1644, não foi pacífica, com três mestres de campo mais antigos (Luís da Silva, João de Saldanha e D. Sancho Manuel) a contestarem a nomeação do jovem fidalgo. Como se tudo isto não fosse pouco, quando Joane Mendes – ainda antes da chegada de Matias de Albuquerque ao Alentejo como governador – decidiu empreender uma operação contra o castelo de Codiceira, levantou-se uma grave questão entre D. Rodrigo de Castro e D. João de Mascarenhas, com o segundo a questionar uma ordem do governador da cavalaria e a receber ordem de prisão. Quando se iniciaram as operações para o assalto ao forte de Telena, já D. João recuperara o posto de tenente-general. Mas as tensões entre os comandos continuavam bastante fortes.

O objectivo da campanha foi debatido entre os cabos de guerra da província do Alentejo (os acima referidos e ainda o engenheiro João Pascácio Cosmander e D. João da Costa, que passara a servir no Alentejo sem posto, devido a um duelo que travara com o Conde Camareiro-Mor dois anos antes, que lhe valera a perda do posto de general da artilharia). Sendo Badajoz a praça mais apetecida, considerava-se que era necessário tomar primeiro o forte de S. Cristóvão. Mas Joane Mendes, D. Rodrigo de Castro e André de Albuquerque defendiam que, ainda antes daquele forte, seria necessário tomar e destruir o de Telena. E foi esta opinião que prevaleceu, após consulta ao Rei. Conforme refere o Conde de Ericeira, tratou-se de uma  decisão de grande risco e pouca utilidade (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pgs. 168-169).

Em 15 de Setembro, o exército do Alentejo, reforçado com gente de novas levas e unidades de outras províncias, e com o enorme e necessário trem logístico de carroças e carros, atravessou o Guadiana. O Conde de Ericeira apresenta um efectivo de 8.800 homens, sendo 7.200 infantes repartidos por 10 terços, e 1.600 cavalos. Já Mateus Rodrigues refere 6.000 infantes e 2.000 cavalos, tudo gente paga e boa (MMR, pg. 106). É no contexto desta operação que o soldado de cavalos faz referência à estreia dos “cavalinhos de pau”, já tratados em detalhe em dois artigos, aqui e aqui. Sigamos a sua colorida narrativa dos eventos, bem mais pormenorizada do que a apresentada na História de Portugal Restaurado.

Assim como nós saímos à campanha, logo fomos vistos do forte, que toda aquela campanha, assim a sua como a nossa, em mais de 4 léguas de circuito leva com a vista, e como o inimigo logo soube que nós botávamos exército, começou também a juntar a gente que tinha e as ordenanças todas, assim a cavalaria como infantaria, que a gente que ele trouxe não podia ser toda paga, pois sabemos mui bem o que tem (…). Aquele dia em que saímos da cidade não chegámos lá, e (…) não é mais que légua e meia, mas na passagem da ribeira nos detivemos muito, por amor [isto é, por causa] das muitas carruagens e artilharia que levávamos, 8 peças de 48 libras cada uma e 6 peças de 24 libras, e como nós não fomos logo no direito do forte, senão ao largo por amor da sua artilharia, que orlava meia légua, marchámos mui ao largo, e todo o dia gastámos com uma légua, mas dormimos já todos da banda de além do Guadiana, em umas vilas donde chamam os Carrascais de Fiolhais, e assim nós estivemos ali aquela noite.

Ao outro dia nos pusemos em via, levando a nossa cavalaria toda na vanguarda de tudo, e bem formada, (…) que tínhamos então um grande soldado por tenente-general da cavalaria, que era D. João de Mascarenhas, (…) mas íamos mais de uma légua ao largo, porque nos íamos aquartelar por cima do mesmo forte, em umas covas e vales, aonde a sua artilharia nem chegava, nem nos podiam ver do forte. E assim como chegámos, logo a infantaria começou a trabalhar, a fazer trincheira, e logo todos nós a tratar cada rancho de fazer suas barracas para nos acomodarmos, que todo um dia e uma noite não fizemos mais que consertarmo-nos pelo que nos podia suceder. E (…) estando já todo o exército acomodado, trataram de ir ao forte, que nos ficava daí meio quarto de légua. Levaram lá a artilharia, mas não obrava nada, porque como o forte era de faxina e terra, não faziam as peças nada nele. Trataram então de lhe fazer avançadas com a infantaria arrimando-se [ou seja, chegando-se] à estacada, que a tinham mui grossa e forte. Contudo, apesar de mortos, lhe romperam a estacada e ficavam junto da mesma muralha do forte, que dali lhe lançavam dentro muitos penedos e alcameias de fogo e granadas, que com isto lhe faziam grande dano lá dentro. Mas muito mais dano nos fazia o inimigo, que nos matava muita gente, porque diferente é pelejar um homem de sua casa, coberto para quem peleja da rua, e além de que as suas duas peças que lá tinham nos faziam grande dano. Porém, rebentou-lhe uma delas, que fez o artilheiro em pedaços. E como não havia mais, que ficavam muito mal sem artilheiro para a praça, assim logo por diante começaram a descoroçoar, porque, como os nossos estavam sempre arrimados à (…) muralha do forte, não podia o inimigo fazer-lhe dano com a mosquetaria. Os nossos lhe estavam matando muita gente com o que lá lhe botavam dentro, e assim, vendo-se já em aperto, vendo que lhe não vinha socorro, mandaram um aviso a Matias de Albuquerque, que se lhe não viesse socorro dentro de dois dias, que eles se queriam entregar. Concederam no aviso, e susteve[-se] a peleja por espaço dos ditos dois dias, e no cabo, vendo o inimigo que lhe não vinha socorro, se entregou no fim de três dias de continuação, que nos custaram os tais dias mais de 80 homens mortos e feridos [devido a um erro de transcrição, a versão dactilografada refere 800 baixas: o número que Mateus Rodrigues apresenta no manuscrito é 80]. Rendido o castelo, se saiu a gente que nele estava, que eram 300 homens e boa gente, mas já vinham menos uns 60 homens que lá lhe mataram os nossos. (MMR, pgs. 108-109)

Foi então decidido arrasar o forte. Matias de Albuquerque propôs que nele entrassem 2.000 homens com pás e picaretas, que derrubariam o forte em dois dias. Mas o engenheiro Cosmander quis poupar os soldados a mais uma canseira, e contrapôs que se fizessem minas e se fizesse assim explodir o forte. Seguiu-se este conselho, mas sendo a obra de terra, não resultou em nada – nem estrondo fez grande, (…) nem quanto seja uma vara de muralha derrubou. (MMR, pg. 110)

(continua)

Imagem: Fotografia aérea do local onde se ergueu o forte de Telena. Foto retirada do blogue Sigue las Huellas de Badajoz, que apresenta um magnífico conjunto de artigos sobre o forte de Telena. O primeiro desses artigos pode ser lido aqui: Sigue las Huellas de Badajoz. Mais sobre Telena aqui.

A campanha do forte de Telena em 1646 – prólogo: a emboscada na Atalaia da Terrinha (Março de 1646)

A campanha de 1646, executada a partir da província do Alentejo, foi a última a ser levada a cabo em vida de D. João IV. Seria preciso esperar mais de 10 anos, e muito por força da iniciativa espanhola, para que a fronteira de guerra alentejana fosse, de novo, palco de grandes acções militares.

Dessa campanha de 1646 ficou célebre o assalto ao forte de Telena. Um episódio bélico frequentemente recordado no historial de cada indivíduo que nela participou, em especial entre os oficiais. Sempre que alguém era proposto para a ocupação de um posto ou cargo, invariavelmente apresentava na resenha da sua carreira o assalto ao forte de Telena. Do mesmo modo, em cartas patentes mais alongadas, o oficial promovido via ser mencionado esse acontecimento que, à época, foi considerado muito relevante. É do assalto ao forte de Telena que esta pequena série de artigos se ocupará. Mas, em jeito de prólogo, principiaremos por tomar conhecimento de um episódio corriqueiro da guerra de fronteira, igual a tantos outros e tantas vezes repetidos. Este, todavia, teria implicação na alteração do comando da cavalaria para campanha que se avizinhava.

A ideia de atacar o forte que os espanhóis tinham construído em Telena, localidade que os portugueses haviam atacado e queimado em 1643, surgira em finais de 1645. Francisco de Melo escrevera em Novembro desse ano ao Rei uma carta onde referia o episódio de Alcaraviça (já aqui tratado numa série de artigos, os principais dos quais da autoria do Sr. Santos Manoel), e nela dizia que depois deste encontro, veio o Castelhano ao seu lugar chamado Telena, légua e meia desta praça [de Elvas], que estava arrasado por nós, e nele fez um forte onde tem perto de 100 infantes e artilharia, e uma tropa de cavalos; depois deste feito, se retirou à nossa vista e nos derrubou uma atalaia nossa, depois dos defendentes, que eram só 12, pelejarem o que puderam e matarem alguns do inimigo, com esta facção se retirou, e nós agora queremos ir, e cuido que permitirá Deus nos paguemos em dobro. (Cartas dos Governadores da Província do Alentejo…, vol. II, pg. 103, carta de 22 de Novembro de 1645). Entre os objectivos da campanha de 1646 estaria, pois, o recém-construído forte de Telena.

Passou o Inverno, cujo rigor impedira a realização de muitas incursões predatórias. Em Março de 1646, quando se já se amanhavam as terras e os rios estavam capazes de ser vadeados, veio o inimigo armar emboscada à cavalaria que fazia a ronda habitual a partir da praça de Elvas. Conforme refere D. Luís de Meneses, à cavalaria que se alojava em Badajoz se uniram algumas companhias dos quartéis vizinhos, e juntos mil cavalos se emboscaram no rio Caia, na parte em que entra no Guadiana. Foi sentido o rumor das tropas das vigias que de noite ficavam sobre os portos dos rios; vieram com diligência dar parte a Joane Mendes [de Vasconcelos, governador das armas]. Logo que amanheceu, mandou sair o comissário geral da cavalaria D. João de Ataíde, com 400 cavalos que assistiam em Elvas. (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pg. 162).

A partir daqui, espreitemos as memórias de Mateus Rodrigues, o soldado da companhia de D. João de Ataíde que participou nessa operação.

(…) Naquele tempo estavam poucas tropas [portuguesas em Elvas], que estavam muitos em Vila Viçosa e em Estremoz dando verde aos cavalos, e não havia cabo nenhum da cavalaria na cidade mais que o comissário, que era Dom João de Ataíde, que na paz não há ninguém que tenha melhor voto para a disposição da guerra, mas lá na campanha, à vista do inimigo, era outra coisa. (…) Assim como o inimigo teve junta a sua cavalaria, se veio de Badajoz uma noite até à ponte do Caia onde estavam as duas sentinelas nossas. (…) [O inimigo formou] uma partida de 20 cavalos com um cabo e [o seu comandante] mandou que entrasse pela ponte e que se fosse emboscar dentro dos olivais de Elvas. (…) Assim que os nossos vigias da ponte sentiram passar os vinte cavalos, que logo os contaram, (…) metidos [os vigias] num bosque notável debaixo da ponte, (…) logo veio um deles dar aviso à cidade. (MMR, pgs. 125-126)

O objectivo da cavalaria espanhola era atrair a cavalaria da ronda portuguesa a uma emboscada. Dez outros cavaleiros deviam passar a ponte, prevendo (e bem) que outro vigia que por ali estivesse iria  rapidamente até Elvas dar o alarme. E foi isso precisamente que aconteceu. Já sem sentinelas portuguesas para dar conta da movimentação das tropas inimigas, passou o inimigo a ponte sem haver quem o sentisse, e marchou às vinhas da Terrinha, que ficam junto do Guadiana duas léguas de Badajoz, e como se viu nos barrancos, deixou-se estar ali com suas sentinelas à vista de toda a campanha, que se punham em cima de uns álamos mui altos que estão junto do Guadiana (…). (MMR, pg. 127)

Logo que Joane Mendes recebeu os avisos sobre a presença inimiga, mandou que D. João de Ataíde saísse com as tropas de cavalo, de forma a proteger à distância a companhia da ronda. Deviam ir até à Atalaia da Terrinha, naquela altura já destruída pelo inimigo, e se não houvesse nada de anormal, que regressassem a Elvas.

E assim como amanheceu saímos todos (…), e a companhia da ronda diante, fazendo o que era costume. E já estávamos todas as tropas em atalaia, que não eram mais de oito e mui pequenas, que não tinham mais de 200 cavalos, quando vem um batedor nosso, correndo, dizendo que uma partida do inimigo de 30 cavalos avançava aos batedores (…), mas que já já vinha pelo campo acima em retirada. (MMR, pg. 127) D. João de Ataíde mandou então o tenente Lopo de Sequeira, militar natural de Elvas com reputação de muito valente, que tomasse 40 cavaleiros escolhidos entre todas as companhias, e que com eles tentasse cortar a retirada à força inimiga; mas que a não seguisse por muito tempo, se visse que a não conseguia alcançar.

Assim fez Lopo de Sequeira, e em pouco tempo estabeleceu contacto visual com o inimigo. Impetuoso, o tenente lançou os seus homens na perseguição, mas a pequena força intrusa foi tomando o caminho das vinhas da Terrinha, onde o grosso da cavalaria espanhola estava emboscado. Segundo Mateus Rodrigues, os soldados começaram a recear que se tratasse de uma armadilha, mas não ousaram dizer nada ao tenente. Só o furriel-mor da cavalaria, Afonso Rodrigues Tourinho, outro grande soldado, conterrâneo e amigo do tenente, levantou a voz para advertir o oficial: “Homem, que fazes, estás doido? Não vês que o inimigo nos foge para onde não tem porto nem saída? Não está bem claro que aquela partida nos leva de fio à sua emboscada? Não sigamos tal partida, que nos perdemos!” (MMR, pg. 128) Mas era Lopo de Sequeira homem de pouco miolo, segundo a expressão de Mateus Rodrigues, e vendo o inimigo quase alcançado, não quis passar por fraco dando ordem de volver. E respondeu ao furriel-mor que não lhe desse conselhos e que seguisse a partida do inimigo.

O inevitável acabou por acontecer. Já perto das vinhas, os 30 cavaleiros inimigos suspendem a fuga e voltam-se para enfrentar os seus perseguidores. Esta manobra acicatou ainda mais Lopo de Sequeira, que se lançou desenfreadamente para a armadilha. Com efeito, ao mesmo tempo que a pequena força fazia volte-face, a restante cavalaria espanhola saía do seu esconderijo e atacava  os 40 portugueses. Para Mateus Rodrigues – um dos escolhidos para integrar o destacamento de Lopo de Sequeira – e seus camaradas, foi tempo de debandar:

(…) Não fizemos mais que volver cada qual podia correr mais pelo campo acima, para a atalaia onde estava Dom João de Ataíde com as tropas, mas como os nossos cavalos iam muito cansados e a campanha atolava muito, (…) assim como voltámos logo o inimigo nos foi apanhando pouco a pouco, que quando chegámos à atalaia onde estava a nossa gente  não vínhamos mais de treze homens dos 40; só algum que tinha cavalo forte e aturador, esse escapou. (MMR, pg. 129)

Mateus Rodrigues acusa o comissário geral de tudo ter visto a partir da posição segura onde estava, e nada ter feito para ajudar quando a emboscada do inimigo se revelou. Com ironia, escreveu que D. João de Ataíde fez então o que podia fazer, que foi deixar-se estar ao pé da atalaia para nos dar calor [isto é, para dar apoio]. E assim se esteve até que o inimigo averbou com ele. E assim como lhe deu uma carga, virou à rédea solta para Elvas, pois não tinha outro remédio. E dali à cidade é uma légua, que toda ela nos foi o inimigo seguindo bem até dentro dos olivais, tomando ainda alguns soldados. E à entrada dos olivais houve muita bulha, em razão que caiu o cavalo a Dom João numa azinhaga. E porque o inimigo o não cativa[sse], se fizeram ali cava uns poucos nossos, onde se assinalaram grandemente o mesmo Lopo de Sequeira, que havia escapado lá de baixo e já havia feito na retirada milagres. E ali os fez muito maiores o meu alferes, que então era um Tomé Gomes de Carvalho, que por estar em casa do mesmo Dom João e o ver no perigo, fez o que se esperava dele e trouxe uma cutilada pelas costas. E assim mais fez grandes coisas o meu furriel (…) Agostinho Ribeiro, que foi o assombro dos soldados, que não há dúvida que, se não foram estes homens e outros mais, que Dom João se [haveria de] ver em grande risco.

(…) Assim como ele estava já em seguro, se foram retirando todos os mais para a cidade, porquanto o inimigo vinha já com o grosso, chegando-se muito, e desta vez entraram pelos olivais dentro sobre nós, bem até o meio deles, que lá lhe matámos ainda um cavalo, contudo o inimigo se volveu levando-nos 60 cavalos, e mui bons, e bons soldados. Mataram ali então a um bizarro soldado da minha companhia, por nome Gaspar Rodrigues, natural de Elvas. E mais, mataram-no depois de rendido, a sangue -frio. De sorte que toda esta perda e aperto em que nos vimos foi causa o dito Lopo de Sequeira, por não admitir os conselhos de quem tanta experiência e mais que ele tinha. E não deixou de levar mui boas repreensões, assim de D. João de Ataíde como do governador. (MMR, pgs. 129-130)

O próprio D. João de Azevedo e Ataíde não escapou a uma apreciação negativa por parte de Joane Mendes de Vasconcelos, o que corrobora a crítica à indecisão e à incapacidade como comandante que o soldado Mateus Rodrigues lhe faz nas memórias. D. Luís de Meneses narra assim o sucedido: Empenhou-se com tão pouca cautela, (…) que deu tempo ao inimigo a sair da emboscada e a se avançar, de sorte que, quando D. João se quis retirar, foi preciso ser com tanta pressa, que se lhe deu nome menos decoroso. (…) Sentiu Joane Mendes tanto a pouca prudência de D. João de Ataíde, e o receio dos soldados, e pedindo remédio a El-Rei para atalhar este dano, resolveu El-Rei que se passasse patente de governador da cavalaria a D. Rodrigo de Castro, com o mesmo soldo de oitenta mil réis cada mês que levava o Monteiro-mor general dela [Francisco de Melo], que se havia desobrigado daquele posto a respeito da sua muita idade; e foi juntamente provido no posto de tenente-general da cavalaria D. João de Mascarenhas, hoje Conde de Sabugal, que tinha chegado de Castela por França, e servido em Flandres de capitão de cavalos [tinha participado na batalha de Rocroi, em 1643]. (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pgs. 162-163).

Mudava-se, assim, o comando da cavalaria do Alentejo, empalidecendo a reputação militar de D. João de Ataíde, que receberia a definitiva machadada no ano seguinte, precisamente no mesmo cenário da Atalaia da Terrinha. Mas nesse ano de 1646 ainda haveria muita peleja. Sobre a campanha e o assalto ao forte de Telena nos ocuparemos nas partes seguintes.

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener.

Um desaire a caminho de Juromenha – Março de 1646

Regresso ao blogue com um episódio do quotidiano bélico seiscentista, respigado das memórias de Mateus Rodrigues, mas sobre o qual não localizei ainda outras fontes que possam corroborar, contradizer ou complementar o que o soldado de cavalos deixou escrito. Tratou-se de uma escaramuça que não correu bem para a companhia onde servia Mateus Rodrigues. A data do acontecimento é incerta – sabe-se que que ocorreu no mês de Março, mas o último algarismo do ano é ilegível; optei por 1646, tendo em conta o encadeamento na narrativa. No entanto, há diversas imprecisões nas memórias de Mateus Rodrigues, no que diz respeito a datas. Sigamos, com a devida reserva, o que nos conta o memorialista, aproveitando para realçar que o principal interesse deste episódio reside nos pormenores da pequena guerra, quase sempre ausentes das grandes sínteses.

Mateus Rodrigues começa por referir que a sua companhia, então comandada pelo comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde, estava aquartelada em Olivença. O comissário geral tinha à sua responsabilidade as oito companhias de cavalaria daquela praça onde, por ser a planície circundante muito perigosa, não entrava nada que pertencesse a El-Rei que não fosse escoltado pela cavalaria desde o rio Guadiana, a cerca de duas léguas da vila. Foi assim que aconteceu com um comboio de 200 cavalgaduras, carregadas de munições, farinha e outros abastecimentos.

E logo quis a fortuna que o inimigo tivesse notícia deles, e foi a minha companhia tão mal afortunada que lhe tocou [n]aquele dia ir ao comboio [ou seja, fazer a escolta dos animais de carga] (…) logo pela manhã (…). E assim como esteve a companhia junta à porta do capitão [o termo capitão é aqui usado no sentido generalista de comandante da companhia], chamou (…) um cabo de esquadra, por nome Francisco Cabral Barreto, e lhe disse que tomasse dez cavalos da companhia e fosse diante [com] duas ou três horas [de avanço] da companhia a descobrir a campanha. E lhe advertia que vinha um comboio mui grosso; que descobrisse muito bem a campanha (…).

Logo que o cabo de esquadra recebeu a ordem, partiu com os dez cavalos para fazer o reconhecimento, cumprindo escrupulosamente o que era hábito fazer, que era uma boa légua fora da estrada para todas as partes. No último posto, situado num outeiro de onde se descortinava toda a campina, ficou postada uma sentinela, e daí até ao local onde a companhia devia aguardar pelo comboio de abastecimentos – uma ermida a meia légua do Guadiana – foram sendo colocadas sentinelas, em locais altos e todas à vista umas das outras.

O tenente que comandava a companhia nesta operação (não cumpria ao comissário geral fazer serviço de comboios ou rondas, ainda que disso a sua companhia não estivesse dispensada), chegando ao local combinado com o restante dos seus homens, mandou que estes desmontassem e dessem de comer aos cavalos. Não faltava erva e assim o fizemos todos até que o comboio veio chegando, que como ainda não havia porto em Guadiana passava tudo nas barcas, que são duas. A longa coluna de animais foi atravessando o rio nas barcas, bem devagar. Assim que chegavam à outra margem, punham-se em marcha para Olivença, pois não havia tempo para esperarem até que todos tivessem passado o rio.

A cavalaria inimiga tinha muitas vezes atacado e tomado comboios de abastecimento na estrada de Olivença, e desta vez montou uma emboscada perfeita. Como aquela campanha é meia rasa e tem muitos vales e covas onde o inimigo se pode esconder à sua vontade, como não chegam onde ele estiver, logo fica bem. A cavalaria de Badajoz, num total de 14 companhias com 700 homens, foi emboscar-se um quarto de légua mais adiante de onde tinha ficado a sentinela mais avançada do dispositivo de segurança português, montado previamente pelo cabo Francisco Cabral Barreto. Desse local não podiam ver a coluna de abastecimento aproximar-se, mas como soldados experientes que eram, calcularam bem a hora do dia em que o comboio atravessaria o Guadiana.

Assim como lhe pareceu horas, tomaram uma partida de 20 cavalos e mandaram-na avançar com [ou seja, contra] a nossa sentinela, que estava junto deles um tiro de mosquete (…). Assim como a nossa sentinela viu vir os 20 cavalos correndo, vem fugindo para onde estava a companhia, tocando arma. As demais sentinelas também abandonaram os seus postos, correndo a avisar o tenente da aproximação da força inimiga. Quando a companhia portuguesa se preparou para enfrentar os 20 cavalos inimigos, a restante cavalaria espanhola revelou a sua presença e atacou, dividida em duas partes. Uma lançou-se sobre as cavalgaduras da vanguarda que já estavam na estrada para Olivença. A outra correu sobre a parte do comboio que estava ainda junto do Guadiana.

Entre os portugueses gerou-se a confusão. O tenente tinha consigo 40 homens; os 15 que faltavam estavam espalhados pelos postos que lhes tinham sido atribuídos. Confiantes quanto a derrotarem a vintena de cavalo que inicialmente se aproximara, deram consigo cercados pelo muito mais numeroso dispositivo inimigo. Não tivemos outro remédio senão tratar cada um de seu livramento. A fugida para Olivença não podia ser, porque além de ser légua e meia, estava era muito mais perto, que não era (…) meia légua. Mas também o inimigo nos tinha tomado a dianteira o inimigo lá adiante. Foi para Juromenha que resolveram os portugueses fugir. Mas o inimigo, assim como nos viu, se veio a nós como um raio, contudo fomos-lhe fazendo nossas diligências, cada um o que podia. E quem tinha melhor cavalo, melhor livrava.

Assim como de Juromenha viram o inimigo, logo tiraram duas peças para aviso de Olivença, que saíssem as tropas; e também mandou o capitão-mor de Juromenha duas mangas de mosqueteiros muito depressa em as barcas, para defenderem o comboio que estava a maior parte dele já passado. Mas estava ainda por carregar tudo em os barrancos, e assim como os almocreves viram que vinha o inimigo, descarregaram mui depressa algumas bestas que tinham já carregadas e deixaram-se estar mui caídinhos e agachados ao pé dos barrancos.

Assim como nós chegámos a Guadiana, já não íamos muito mais 15 ou 16 soldados com o nosso alferes, que era Agostinho Ribeiro (…), e não tínhamos nenhum remédio senão passar o pego a nado ou entregar[mo]-nos aos castelhanos. E disse o nosso alferes aos que ali iam que todos o acompanhassem a passar a nado o pego (…), que nenhum se rendesse ao inimigo, que os cavalos nos haviam de botar fora mui bem. De sorte que assim o fizemos, mas com grande risco nosso, em razão que iam os cavalos mui cansados de correr meia légua à rédea solta, e metê-los a um pego connosco em cima deles (…) não havia de salvar nenhum homem (…). Apenas nós nos botámos ao pego a nado, já o inimigo chegava aos barrancos do Guadiana (…) e logo começaram aos tiros a nós, dos quais ainda nos mataram um soldado no meio do pego, que lhe deram com uma bala pelas costas (…) Mas os demais saímos fora, ainda que com trabalho, que também outro soldado nosso esteve quase afogado, andando debaixo do cavalo um pouco de tempo, até que saiu arriba e pegou-se ao rabo do cavalo e saiu fora, mas muito cheio de água, que o tomámos com as pernas para cima e a cabeça para baixo e botou muita água da barriga.

De modo que o nosso tenente foi Guadiana abaixo com tenção de passar pelo porto que já levava pouca água. (…) Fiava-se em o bom cavalo que levava, mas sempre o seguiram três castelhanos até entrarem com ele pela água dentro às pancadas, que ainda lhe deram uma cutilada na cabeça, mas livrou[-se], que assim como os castelhanos viram que os seus cavalos se iam metendo muito na água deixaram-no ir, que o seu cavalo era muito valente e tomou sempre pé (…).

Entretanto, a cavalaria inimiga regressava a Espanha com a presa que tomara, sensivelmente metade das cavalgaduras do comboio. As outras 100 não foram detectadas, porque fazem ali os barrancos uma grande altura com o rio, e estando alguém a cavalo ao pé deles não pode ver quem está em baixo, e como o inimigo fez ali pouca detença, não lhe ficou lugar de saber. Nove soldados portugueses foram também levados prisioneiros e dois morreram na escaramuça.

As restantes companhias de Olivença, ouvido o alarme dado pelas peças de Juromenha, saíram da praça sob o comando de D. João de Ataíde, mas já o inimigo ia muito afastado. O comissário geral ficou muito zangado com o cabo de esquadra a quem ordenara o reconhecimento e a quem atribuía as culpas pelo insucesso, mas não pôde descarregar a sua ira no sujeito, pois este fora um dos prisioneiros que a cavalaria inimiga levara para Badajoz. Como as trocas de prisioneiros estavam então suspensas, Francisco Cabral Barreto ficou 18 meses cativo. Mateus Rodrigues refere que o cabo não teve culpa alguma no desaire, pois não foi por erro seu que a força portuguesa sofreu a emboscada. (…) Ele é e foi sempre tão bizarro soldado, que assim como D. João se ausentou das fronteiras [em 1647], logo subiu em breves tempos [a] ajudante da cavalaria, que é o posto em que ficava quando me ausentei das fronteiras [em Fevereiro de 1654].

Fonte: MMR, pgs. 139-145.

Imagem: “Choque de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener.