Cavalaria da Ordenança de Évora em 1650

A criação de cavalos para a guerra era onerosa, estando a ela obrigados os que possuíssem bens (estipulados por lei) suficientes para suportar tal encargo. Daqui resultava que fossem formadas voluntariamente algumas unidades de cavalos da milícia da ordenança. Uma vez que os cavalos deviam servir na guerra, por que não com os seus proprietários montados, ou pelo menos com alguém de sua confiança? A sua principal função era a protecção contra as incursões inimigas, mas ocasionalmente podiam retaliar, indo pilhar ao outro lado da raia. A ligação destas unidades à população residente estendia-se aos oficiais que as comandavam, com frequência membros da pequena nobreza local ou bem aceites pelas governanças e, de uma maneira geral (ou assim as fontes pretendem fazer acreditar), pelos povos.

Uma carta do governador da comarca de Évora, D. António Álvares da Cunha, dirigida ao Conselho de Guerra em 1650, demonstra a importância dessa aquiescência dos povos em relação aos oficiais comandantes, quando estes não provinham da localidade ou localidades que deviam fornecer as montadas e sustentar a unidade militar. Na referida carta, salientava o governador da comarca que António Ferreira da Câmara, fidalgo da Casa de Sua Majestade, o qual recebera patente de capitão de uma das companhias cavalos que estavam para se formar na cidade de Évora, era o fidalgo mais bem quisto do povo e o de mais experiência e valor, pois fora capitão de infantaria durante nove anos de guerra (desde o início do conflito, portanto). E que por isso deveria governar a cavalaria da ordenança daquela comarca, assim por sua qualidade, como pelos seus serviços. Reforçando esta sugestão, salientava também que o capitão tinha gasto a maior parte da sua fazenda ao serviço de Sua Majestade, e que a outra parte está “infestada pelo inimigo” – ou seja, parte das terras que possuía se encontravam ocupadas pelos espanhóis.

A resposta do Conselho de Guerra foi favorável à nomeação daquele oficial, mas com algumas condições; assim, conforme se pode ler, o dito capitão governará, pela antiguidade, a cavalaria da ordenança da comarca de Évora, desde que não se incorpore esta com cavalaria paga, e que enquanto durar tal ocasião vença o soldo que toca ao capitão de cavalos, conforme às ordens de Vossa Majestade, como vencem os capitães de infantaria de auxiliares, que é conforme à resolução que Vossa Majestade tem tomado.

Fonte: ANTT, CG, Consultas, 1650, mç. 10, consulta de 27 de Agosto de 1650.

Imagem: Cena de guerra – cavalaria procedendo a pilhagens e conduzindo prisioneiros (ou fazendo recrutamento forçado). Óleo sobre tela, Philips Wouverman, 1650.

Auxiliares a cavalo – quem deveria servir

Quando foram criadas as companhias de cavalos Auxiliares em 1650, logo se levantou a dúvida acerca de quem nelas devia servir. Cinco anos antes tinham sido criadas as companhias de infantaria de Auxiliares, mas a nova legislação impunha agora uma força onerosa, que devia ser sustentada por quem pudesse fornecer cavalos. Passar-se-iam dois anos, porém, até que o Conselho de Guerra clarificasse a situação.

Foi no seguimento de uma carta de Francisco de Melo, general da artilharia do exército do Alentejo, que tudo se esclareceu. O cabo de guerra expunha uma dúvida a respeito de quem devia obrigar a ter cavalo para Auxiliares, uma vez que o Regimento das Comarcas (que estabelecia a organização dos Auxiliares a cavalo) de 1650 era omisso em relação à fazenda a partir da qual deve alguém ser obrigado a ter cavalo. As Ordenanças do tempo de D. Sebastião, que para muitos casos omissos ainda eram consultadas, obrigavam a ter cavalo quem tivesse 600.000 réis de fazenda, que hoje em dia não dá para sustentar um homem só, como referia Francisco de Melo.

O Conselho de Guerra esclareceu então que as pessoas que haviam de ser obrigadas a ter cavalos seriam as que tivessem dois mil cruzados de fazenda [800.000 réis], e daí para cima.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1652, mç. 12, consulta de 23 de Maio de 1652

Imagem: Escaramuça de cavalaria, óleo, escola holandesa, século XVII.

Do choque entre as justiças civil e militar – um caso de 1650

peasants-and-soldiers-outside-a-tavern (Jan Havicksz Steen)A definição das fronteiras de actuação da justiça, quando os crimes eram praticados por militares e as vítimas elementos da população civil, era algo muito difícil de estabelecer. Dada a situação de guerra pela qual o Reino passava e a necessidade de não derrogar os privilégios dos militares, a fim de não os desmotivar ainda mais perante as necessidades e perigos que tinham de enfrentar, os processos podiam arrastar-se anos, mesmo quando eram perpetrados em zonas distantes da fronteira de guerra.

O caso que aqui se exemplifica reporta-se a 1650, embora o crime em si tenha ocorrido anos antes. Os contornos exactos não são revelados nos documentos existentes, mas envolveu militares e membros do clero e, como causa primeira, a violação de uma mulher – um acontecimento muito frequente à época.

A consulta do Conselho de Guerra refere uma carta do desembargador João Carneiro de Morais, que o rei enviara ao Conselho de Guerra, sobre um caso passado em Óbidos, havia algum tempo já (a julgar por outras referências inclusas, antes de 11 de Junho, seguramente). Nela se refere que fora feita uma nova devassa “do arrombamento do castelo e cadeia da vila de Óbidos, sem embargo de que na primeira devassa não constou dos delinquentes, contudo averiguara claramente que foram seis soldados do presídio de Peniche, os quais comprados por dinheiro, induzidos de uns clérigos, com ajuda e favor do seu capitão Domingos Freire de Brito, cometeram o dito crime com as maiores circunstâncias de indolência que podia ser, a fim de tirarem um preso que o estava por desflorar uma moça em um lugar ermo, com grande violência”. O caso é complicado, pois mostra alguma hesitação do juiz desembargador em remeter ao Conselho de Guerra estas culpas (ou seja, o processo), uma vez que fora praticado há muito tempo, fora da milícia, e era considerado de lesa-majestade. Refere ainda o juiz os trâmites do processo, o facto de não terem sido remetidas culpas ao capitão, por causa de uma indefinição quanto aos juízos em que o processo deveria correr. O réu teria de ser conduzido à sua presença, o que não acontecera, e o crime era punível com pena de morte (Ordenação, lvº 5, tít. 48, § V). Estando o caso como estava, não podia o juiz fazer nada sem ordem firmada pela mão do Rei. E acrescenta que “estes soldados residem alguns no presídio de Peniche publicamente com grande escândalo e são mui facinorosos; e que contra quatro deles há prova na devassa bastante para a pena ordinária (…) que em tão insolente caso são indignos de todo o favor, e que é cousa infalível que se neste caso não houver um exemplar castigo, cada dia escalarão as cadeias, e que bem notória é a facilidade com que o fazem, pois naquela alçada tem três casos desta qualidade”. O juiz solicita que o Conde de Ericeira faça prender logo o capitão e soldados “que serão três ou quatro somente, os que hoje ali assistem”, e que a carta escrita ao Rei seja remetida ao Conselho de Guerra, para que se determine o que se há-de fazer, pois os processos destes soldados estão quase, afinal, à sua revelia.
O Conselho de Guerra, considerando que “(…) maiormente no tempo presente, em que não só as razões de direito e justiça, mas também as de conveniência obrigam a conservar os tais privilégios [dos soldados] e não os derrogar, com notório perigo de desgostar os soldados, que não tanto com os soldos, mas com o foro dos tais privilégios se animam a arriscar ainda em defensão do Reino, em tempo que as guerras estão tão vizinhas e tanto à porta”. O Conselho de Guerra procurou, na resposta, demonstrar que o juiz desembargador não tinha razão em querer julgar aquele caso, o qual devia ser tratado pelo próprio Conselho, uma vez que não tinha sido revogado o privilégio de que o capitão se valia (nem seria conveniente fazê-lo).

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, mç. 10, consulta de 29 de Agosto de 1650.

Imagem: “Soldados e camponeses em frente de uma taberna”, óleo de Jan Steen.

Os antecedentes do combate de Moraleja (23 de Março de 1650), por Juan Antonio Caro del Corral

A propósito do artigo recentemente aqui colocado sobre o combate de Moraleja, o estimado amigo e investigador Juan Antonio Caro de Corral inseriu um comentário que, em si mesmo, é um interessante artigo, que completa e esclarece o anterior por mim publicado. Por esse motivo, e com a devida vénia, aqui lhe dou o devido destaque:

Muy cerca de dicha plaza de armas portuguesa – que era el cuartel principal de esta zona fronteriza – se situaban, en el lado extremeño, dos localidades de igual importancia: Moraleja y Zarza la Mayor.


De ambas solían partir las milicias que se internaban en Portugal a saquear. Por dicho motivo, don Sancho Manuel lanzaba, siempre que podía, ataques para contrarrestar tales entradas.

La orografía del terreno era muy propicia para llevar a cabo emboscadas, que era la táctica más usual empleada por los militares, con el fin de obtener un mayor benefício con un coste mínimo.

Con tales precedentes, ya en los inicios de febrero tuvo lugar una escaramuza en un lugar situado a medio camino entre las citadas Zarza y Moraleja, llamado Ventas del Caballo, escondido entre la Sierra de la Garrapata, límite natural de los términos municipales de sendas localidades.


Los hombres de Sancho Manuel consiguierón excelente botín, lo que propició una respuesta castellana; precisamente el ataque a las proximidades de Penamacor, en el cual murieron los dos oficiales que cita el artículo de Jorge P. Freitas, y que aparece como cabecera de este breve comentario.

Tras dicha cabalgada, y sin apenas tiempo para descansar, se produjo una nueva operación militar. Esta vez se trato de una acción a modo particular, protagonizada por un soldado de Zarza la Mayor que respondía al nombre de Juan Martín Garrido. Sin contar con apoyos, trabó combate con un grupo de caballería portuguesa que realizaba un reconocimiento de vigilancia en los alrededores de Salvaterra do Extremo, localidad rayana muy próxima a Zarza la Mayor. Logró arrebatarles varias monturas, regresando a su cuartel muy satisfecho.

Como otras veces anteriores, Sancho Manuel dispuso una salida de represalía, que fue abortada por el capitán extremeño Fernando Alonso Torobico, quien parapetó en Zarza más de 400 infantes.

Insitió el empeño del general lusitano, y fue entonces cuando se produjo el combate de Moraleja, durante la noche del 23 de marzo, volviendo a ser escenario del suceso el paraje de las Ventas del Caballo.


La noticia de la derrota castellana fue muy bien aprovechada y publicitada por el bando portugués. No en vano, entre los soldados caídos, se encontraban varios oficiales que se habían distinguido por su eficacia en escaramuzas anteriores, causando graves daños a los pueblos lusitanos de la frontera beirense. Entre los muertos estaba el capitán zarceño Juan Montero Polán, uno de los más destacados de las milicias populares de la localidad, comunmente llamadas Montados de Zarza (un escuadrón semejante a los caballos pillantes portugueses)y, como no, la muerte más aplaudida (y llorada) fue la del oficial al mando, don Sancho de Monroy, de ilustre familia con mucha historia militar a sus espaldas. Dicen las viejas crónicas que el combate de aquella madrugada fue tan sanguinolento, que a varios de los muertos les cortaron posteriormente las orejas.

Apenas se dió la alarma de lo sucedido, toda la comarca se puso en defensa, pensando que los portugueses, animados con su victoria, continuarían su avance demoledor.

Gracias a los socorros enviados, desde la plaza de Alcántara, por el maestre de campo don Simón de Castañizas, a los que se sumaron los vecinos de pueblos cercanos (unos 150 jinetes), se logró detener a la tropa de Sancho Manuel.

Más tarde se reanudarían los ataques recíprocos, pero eso es otra historia.

Como nota final, comentar que existe un folleto propagandístico de lo sucedido. Se titula de la siguiente manera:
Relaçam da insigne Vitoria que o Gouernador das Armas D. Sancho Manoel alcançou dos caftelhanos en que foi morto, Don Sancho de Monroy feu Gouernador das Armas.

Imagens:

Em cima, vista de satélite das localidades de Moraleja (canto superior direito) e Zarza la Mayor (em baixo) na actualidade, a partir do programa Google Earth; a amarelo, a fronteira hispano-portuguesa.

Em baixo, reprodução parcial de Le Portugal, exemplar de cartografia francesa dos inícios do século XVII. Note-se, na parte superior direita deste pormenor do mapa, a localidade de “Moralexa”, ou seja, Moraleja. Biblioteca Nacional de Lisboa, Cartografia, CC1777A.

O combate dos campos de Moraleja, 23 de Março de 1650

Assistindo D. Sancho em Viseu, vieram os Castelhanos com trezentos cavalos correr a campanha de Penamacor. Saiu desta praça o mestre de campo João Fialho com o seu terço, e o capitão de cavalos Manuel Furtado com sua tropa. Adiantou-se este da infantaria intempestivamente; investiram os Castelhanos, mataram-no logo, e ao ajudante da cavalaria Francisco de Figueiredo. Acudiu João Fialho, retiraram-se os Castelhanos, e foram os dois mortos geralmente sentidos por haverem servido com grande valor e satisfação.

(ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro XI, pg. 338 – citação vertida para português actual)

Este trecho publicado pelo Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado serve de introdução ao combate dos campos de Moraleja, pois que a incursão espanhola que custou a vida aos dois oficiais portugueses provocou uma resposta por parte de D. Sancho Manuel de Vilhena, então governador das armas do partido de Penamacor. O resultado da operação de desforra foi superior ao inicialmente pretendido, uma vez que nos combates entre as duas forças inimigas – tão característico da longa guerra de baixa intensidade travada nas fronteiras – acabou por perder a vida D. Sancho de Monroy, galhardo e experiente militar espanhol, governador das armas do partido de Alcântara. Como sempre, D. Sancho Manuel não perdeu tempo em enviar para o Conselho de Guerra um relatório com a sua versão dos acontecimentos. Esta era uma forma muito usual do futuro Conde de Vila Flor mostrar os seus serviços à Coroa portuguesa, num misto de auto-propaganda e dever de ofício, tendo sempre no horizonte a almejada recompensa pelo zelo demonstrado. Ainda que pouco significativos fossem os combates, se a sorte das armas pendesse para as hostes lusas, aí estava célere D. Sancho Manuel de pena em punho, passando ao papel os momentos de ferro, chumbo e pólvora. Com esta prolixidade, os arquivos respeitantes ao Conselho de Guerra contêm um manancial de informação sobre os combates da fronteira da Beira, em boa parte (mas não na totalidade) aproveitados pelo Conde de Ericeira para compor a sua monumental obra.

A versão dos acontecimentos passados em 22 de Março de 1650, nos campos de Moraleja (distrito de Cáceres), durante os quais perdeu a vida D. Sancho de Monroy, é aqui trazida através da transcrição para português corrente de uma carta de D. Sancho Manuel, datada de 25 de Março e anexa à consulta do Conselho de Guerra de 4 de Abril de 1650 (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, maço 10):

Relata esta carta a Vossa Majestade o mais feliz sucesso e a maior vitória que as armas de Vossa Majestade alcançaram nesta Província desde sua feliz aclamação a esta parte.

Já avisei a Vossa Majestade como o inimigo na campanha desta praça matou ao capitão de cavalos Manuel Furtado de Mesquita e ao ajudante Francisco de Figueiredo, e como estes dois cabos eram pessoas de opinião e bom procedimento no serviço de Vossa Majestade, foram suas mortes mui sentidas e mais por serem mortos a sangue frio, ficando por minha conta a satisfação deste empenho, que procurei como abaixo digo.

Alcancei, por confissões de algumas línguas, que o inimigo estava com seis tropas de cavalos na sua praça da Moraleja, aguardando que a cavalaria deste partido fizesse alguma entrada por aquela parte, por ser mui cómoda para atalhar todas as entradas na sua campanha. E como me constou esta certeza, tratei de de mandar àquela praça um troço de gente capaz de poder chocar com a que o inimigo se achava, como em efeito mandei em 22 deste [mês],ordenando ao mestre de campo João Fialho que com quinhentos mosqueteiros, que tirei das guarnições das praças, pagos e auxiliares, ocupasse o posto da Venda do Cavalo, sítio que tem grandes conveniências para infantaria, e com duzentos cavalos da mesma qualidade, que constam das três tropas pagas e três da ordenança, ordenei ao capitão Gaspar de Távora e Brito que fosse à campanha da Moraleja, onde as tropas do inimigo alojavam, e que tocando-lhe armas, pegando-se no que se achasse sem fazer demora nem lançar partidas ao largo, se tornasse a retirar onde o mestre de campo o aguardava com a infantaria, e que ali fizesse alto e desse penso [ou seja, a ração] à cavalaria, esperando pelo inimigo que se havia de ver marchar de meia légua de distância [cerca de 2,5 Km]. E assim sucedeu como eu o podia desejar, porque tomando o inimigo a vista da nossa cavalaria, a veio buscando até chegar ao sítio onde a nossa gente o aguardava. Trazia o inimigo seis tropas de cavalos, que constavam de duzentos e trinta [cavaleiros],  governadas pelo capitão Dom Francisco dal Mesquita, e com eles vinha o mestre de campo Dom Sancho Monroy, governador das armas do partido de Alcântara, bem conhecido nos exércitos del-Rei de Castela por sua qualidade e valor. Vindo em direitura buscar a nossa gente, e como a ordem que eu tinha dado ao mestre de campo João Fialho era que se chocasse sem se dar quartel a ninguém, por eles assim o haverem usado com o capitão Manuel Furtado e ajudante, pedindo-lhe as vidas, o dispôs ele assim, mandando formar das nossas seis tropas três batalhões [formações tácticas da cavalaria – note-se que D. Sancho Manuel refere-se a companhias quando refere tropas], e entre eles mangas de infantaria à ordem do sargento-mor António Soares da Costa,  com que se marchou com a cara ao inimigo, e este formado aguardou o choque. Levava a vanguarda, com o primeiro batalhão, o capitão João de Almeida Loureiro, que foi o primeiro que se misturou com o inimigo, e seguindo-o a ele a mais cavalaria com o capitão Gaspar de Távora, que pelejou com grande valor, e o capitão Paulo de Brito da Costa fizeram o mesmo, e depois de apertado o inimigo das nossas armas, havendo pelejado com grande instância por grande espaço, se quis pôr em fugida, mas não lhe valeu, porque se lhe foi dando alcance mais de uma légua, e de toda a sua cavalaria se não viram recolher mais que até vinte e cinco cavalos. Teve o inimigo nesta ocasião uma considerável perda com a morte de todos os seus cabos, a saber: o governador da cavalaria Dom Francisco dal Mesquita, o capitão de cavalos Dom Fernão [Fernando] de Alonso Torobico, o capitão de cavalos João Polão [Juan Montero Polán], o capitão de cavalos Dom Fabião de Cabrera, dois ajudantes da cavalaria, três tenentes, todos mortos naquela investida. Antes de o inimigo voltar as costas morreram mais de cem homens da sua parte, e para lustre de tão grande vitória morreu também o mestre de campo Dom Sancho Monroy, governador das armas do partido de Alcântara, pessoa da maior experiência e talento que tinha o inimigo, tomado-se-lhe muitos cavalos de que têm aparecido sessenta, que ficam nas cavalarias de Vossa Majestade (…). E para que Vossa Majestade saiba que este sucesso foi obrado mais por promissão divina que por braço de soldados, se não perdeu da nossa gente mais que dois mortos, valendo-lhe [aos restantes] irem armados de peito, espaldar e murrião, e nove feridos com um alferes; morreram no alcance nove cavalos nossos (…). Penamacor, 25 de Março de 1650.

Imagem: “Cena de Batalha”, por Philips Wouwerman (1619-1668).

O combate de Castelo de Vide – 8 de Outubro de 1650 (3ª parte)

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Conclui-se hoje a narrativa do combate, segundo a descrição que é feita pelo soldado de cavalaria Mateus Rodrigues, que nele participou.

“Duraria a força da pendência uma hora, (…) mas como o inimigo viu que andava (…) já desbaratado, e além disso as companhias que lhe ficavam pela retaguarda, assim como nos viram, imaginaram que era toda a nossa cavalaria e logo se puseram em fugida, que deram ocasião a que os demais o fizessem também (…), de que nós tivemos grandíssimo gosto, que logo lhes fomos zurzindo em cima, daí uma grande légua até noite escura. E quando o inimigo se pôs em fugida, foi passando pelas barbas do nosso terço, mas já não havia lugar de lhe dar carga [quer dizer, disparar as armas de fogo], porquanto nós íamos já muito baralhados com eles, mas o mestre de campo [Gonçalo Vaz Coutinho], com a muita alegria de ver que nos fugia o inimigo, não se pôde ter que não mandasse dar carga aos soldados, que mais valera que nunca a dera, pois mataram de um mosquetaço o tenente do capitão Lopo de Sequeira, que era um bizarro moço, e alguns soldados mais.”

Note-se que o termo “bizarro”, aqui, significa “valente”. Os cavaleiros portugueses só abandonaram a perseguição após meia légua (c. 2,5 Km) percorrida, já anoitecia, na ermida de S. Amador. Os espanhóis tinham aí deixado perto de 800 infantes, mas este facto só veio a ser conhecido no dia seguinte.

Outro aspecto digno de nota é a inexperiência revelada pelo mestre de campo Gonçalo Vaz Coutinho numa situação de combate, ao dar ordem para os mosqueteiros e arcabuzeiros do terço dispararem sobre a cavalaria que passava ao seu alcance, sem ter em consideração que havia soldados portugueses colados ao inimigo.

“Agora direi o que sucedeu aos cem cavalos que o inimigo botou por cima, a tomar as entradas da vila. Assim como eles sentiam lá com as suas tropas a bulha, foi tratando do seu livramento, mas ainda levou seu esfola gato, que o corremos mui bem e ainda lhe ficaram mais de 20 cavalos dos que levava. E o capitão escapou pelo pó do gato, que esteve bem arriscado a matarem-no ou cativarem-no. Assim como foi noite começámos a juntar-nos e começaram a marchar para a vila de Castelo de Vide, que estava dali meia légua. E como fazia então mui bom luar, víamos mui bem o que havíamos de fazer, contudo, ainda não sabíamos quem nos faltava. Fomos para a vila levando connosco uma procissão de nus dos castelhanos (…).”

Era prática comum, tanto na Guerra da Restauração como em outros conflitos da era pré-industrial, despir os mortos e prisioneiros de guerra, a fim de aproveitar as roupas e todo o equipamento militar que fosse possível. Daí a referência aos prisioneiros nus.

Entre os mortos portugueses contava-se o tenente Agostinho Ribeiro, que comandava naquela ocasião a companhia do general da cavalaria André de Albuquerque Ribafria. Foi a sua morte muito sentida entre todos, principalmente pelo memorialista Mateus Rodrigues e pelos seus camaradas veteranos, pois Agostinho Ribeiro era um velho companheiro de armas, tendo começado a guerra como furriel da companhia de D. João de Ataíde, onde servia Mateus Rodrigues, quando esta foi formada em 1641 (depois de D. João de Azevedo e Ataíde ter deixado o exército em 1647, a companhia passou a ser comandada pelo capitão Francisco Pacheco Mascarenhas). Também o general da cavalaria ficou muito desgostoso com a morte do seu tenente, acontecimento que ensombrava a vitória alcançada e a captura de 250 cavalos.

“O capitão Dinis de Melo [de Castro] trouxe uma pelourada em uma perna, mas não foi coisa que fizesse mal (…). Morreriam 40 homens nossos e feridos mais de 80, mas o inimigo perdeu 5 capitães, 4 mortos e um cativo, destes 250 cavalos que nós lhe tomámos viriam 200 homens prisioneiros, e os mais morreram, de sorte que a minha companhia só trouxe 28 cavalos da ocasião (…). Mas não há dúvida que foi um sucesso notável, com o tão pouco poder que nós tínhamos, que o inimigo trazia treze tropas mui grandes, que constavam de 700 cavalos, e as nossas tropas eram 7, (…) que não éramos mais que 380.”

Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM, pgs. 230-232.

Veja-se também a descrição do combate em ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line, pgs. 333-334.

Imagem: Jan Martszen de Jonge, Combate de cavalaria (meados do séc. XVII).

O combate de Castelo de Vide – 8 de Outubro de 1650 (2ª parte)

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Continuando a narrativa de Mateus Rodrigues, adaptada para português actual…

“Assim como saímos das encruzilhadas de Portalegre, fomos sempre a meia rédea (…) e quando íamos já perto de onde estava o mestre de campo com a sua gente, fizeram as nossas tropas alto, e tiraram 60 cavalos das tropas e fizeram duas partidas de 30 cavalos cada uma; e deram 30 ao alferes que era então de Dinis de Melo [de Castro], por nome Baltasar Nunes, grande soldado, e os outros 30 ao alferes de Lopo de Sequeira, também muito valente, por nome António Gomes, e a ordem que (…) deram a ambos foi que fossem cada um por sua parte lá para a ribeira de Nisa, que havia o inimigo de vir por aí. E que assim que dessem com o inimigo, qualquer deles, logo se incorporassem ambos em uma tropa [ou seja, que se juntassem para formar um batalhão, formação táctica de cavalaria] e viessem à vista do inimigo com suas escaramuças e tiros (…), mas de maneira que por nenhum caso o inimigo lhe[s] tomasse ninguém, para não saber das tropas (…), e eu também ia em uma das partidas”.

Pouco tempo depois, o destacamento avistou o terço de Castelo de Vide, que tinha cerca de 400 homens, e a companhia de Duarte Lobo da Gama, com 80 bons cavalos, já formados no local de encontro combinado. Prosseguindo a sua missão, não tardou a cavalaria portuguesa a encontrar a do inimigo, que dava de beber às montadas na ribeira de Nisa. Conforme planeado, principiou-se uma escaramuça, enviaram-se avisos ao grosso da força portuguesa, e depois juntaram os alferes as suas tropas nas elevações que dominavam a linha de progressão inimiga. No entanto, devido à natureza do terreno, não puderam aperceber-se, de imediato, do efectivo da força incursora. Logo foram carregados por esta, de modo que os alferes retiraram para o sítio onde estava o grosso do efectivo português, furtando-se ao combate, conforme as ordens que haviam recebido.

“Assim como o inimigo nos viu, imaginou que tinha (…) outro dia como o que já havia tido em o mesmo sítio [cinco anos antes, quando derrotara o terço de Castelo de Vide e destroçara a companhia de cavalos de D. Pedro de Lencastre]. E cuidou que aqueles que lá andávamos diante (…) era a companhia de Castelo de Vide e que o terço (…) havia de estar ali e que o haviam de tornar a derrotar. E para isso tomaram cem cavalos, com um capitão (…) João de Ribera, e mandaram-no mui ao largo, a rédea solta, a tomar as entradas da vila, para que a companhia se não metesse dentro, que apanhassem fora o terço e que tudo haviam de degolar”.

Não podiam os espanhóis imaginar que tinham como adversária a cavalaria de Elvas, pois não fora o acaso de esta se encontrar em Arronches quando foi dado o alarme, não seria possível estar agora ali, a dez léguas (c. 50 Km) da sua guarnição. Mesmo assim, foi com espanto que os portugueses verificaram que tinham pela frente uma força com quase o dobro do efectivo da sua, “(…) e suposto que os sucessos estão na mão de Deus, dizem lá que os muitos tiram a virtude aos poucos, que eles também têm unhas como nós, e as suas balas matam e as espadas cortam e furam melhor, de sorte que logo julgaram ali que o inimigo trazia 600 cavalos, fora os (…) que havia mandado a tomar as entradas da vila”.

Rapidamente tomou Lopo de Sequeira conselho com os restantes capitães, e todos decidiram resistir ali ao inimigo. Avisaram o mestre de campo da sua resolução. O terço de Castelo de Vide estava formado à distância de um tiro de carabina da cavalaria, “entre umas rochas mui ásperas”, pelo que, segundo a observação de Mateus Rodrigues, nem dois mil cavalos conseguiriam fazer-lhe mal. A cavalaria portuguesa (380 homens) formou-se atrás de um pequeno outeiro, por onde o inimigo teria de passar, pronta para o choque. A vantagem do terreno acabou por ser preciosa para o desfecho da peleja, pois as forças que os espanhóis lançaram em perseguição das tropas de reconhecimento portuguesas só podiam progredir através de um caminho estreito, uma companhia de cada vez.

“Assim como o inimigo chegou ao alto do outeiro (…), sai a nossa cavalaria de repente, tocando as trombetas a degolar [ou seja, aquilo que mais tarde seria conhecido por toque de carga]“. Surpreendidos, os espanhóis que vinham à cabeça da coluna retirararam e procuraram formar o seu dispositivo um pouco mais atrás, montando ali uma vanguarda, “porquanto não podiam pelejar da sorte que estavam. Mas como nós lhe saímos tão perto e bem formados, não lhe demos lugar a que eles se pudessem formar”. Ainda assim, os cavaleiros espanhóis bateram-se bravamente, pois mesmo desorganizados, tinham a seu favor o peso dos números. Mas, “suposto que éramos muito menos do que eles, era a nossa gente muito boa, e além disso foi grande fortuna nossa o acharmo-lo desformado, que não tem dúvida, que se o achá[ra]mos bem composto (…), nos perde[ra]mos totalmente, que eram 280 cavalos mais do que os nossos e mui boa cavalaria, que era o regimento da Sarça [Zarza la Mayor – por regimento, entenda-se o total das companhias aquarteladas naquela localidade], que vinha ali o comissário Mazacan por cabo delas”.

(Citações do Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM, pgs. 226-230).

(continua)

Imagem: Jan Martszen de Jonge, Paisagem com combate de cavalaria e couraceiros formados atrás (meados do séc. XVII).

O combate de Castelo de Vide – 8 de Outubro de 1650 (1ª parte)

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“Na entrada do Inverno tornou o Conde de S. Lourenço a alcançar licença para vir à Corte, e ficou governando a Província de Alentejo o Mestre de Campo General D. João da Costa. Poucos dias depois de dar princípio ao seu governo, soube por inteligências que havia grangeado, que os Castelhanos juntavam algumas tropas, e que estas ameaçavam a campanha de Castelo de Vide, e Portalegre.”

É assim que o Conde de Ericeira começa a narrativa (História de Portugal Restaurado, pg. 333) do episódio que iria culminar no combate de Castelo de Vide, travado em 8 de Outubro de 1650. Entre as fontes disponíveis para esta ocorrência da pequena guerra de fronteira, sem dúvida a mais colorida é a que nos deixou o soldado de cavalaria Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), ele próprio participante na acção. E a sua parte da história começa deste modo:

“Estavam um dia (…) [alguns] capitães em casa do general [da cavalaria, André de Albuquerque Ribafria, em Elvas] e disse-lhe Lopo de Sequeira que fosse sua senhoria servido lhe desse licença, e mais a outros quatro ou cinco camaradas, que fossem com suas companhias a São Vicente e Albuquerque, a fazer uma entrada, e ver se podiam dar algum repelão às tropas que estavam naqueles lugares, que quando lhe não saíssem fariam lá mui boa presa, já que estavam ali ociosos, sem fazerem nada. Como estes homens (…) eram tanto seus amigos, disse-lhe o general logo que bem se podiam ir aprestar e com segredo, mas que não haviam de ir mais que cinco companhias (…), em primeiro lugar a sua, que era tenente capitão dela um Agostinho Ribeiro (…), e mais a companhia do meu capitão Francisco Pacheco [Mascarenhas], e mais a companhia de Dinis de Melo [de Castro, futuro Conde de Galveias], e a companhia de Diogo de Mendonça [Furtado] e a do capitão Lopo de Sequeira, que vinham a ser cinco, todas teriam 250 cavalos, de modo que logo os mandou que se fossem aprestar, para ir dormir aquele dia a Arronches, que no outro dia nos havíamos de partir daí para as terras nomeadas, que não são de Arronches lá mais de quatro léguas [c. de 20 Km], e de Arronches haviam de ir connosco uns 20 cavalos que aí estão de pilhantes, que são homens que sabem as terras de Castela a palmos de noite (…).”

O capitão Lopo de Sequeira, sendo o mais antigo dos que iam naquela jornada, foi como comandante da força. Por volta da meia-noite, estando já os soldados a dormir em Arronches, ouviu-se um grande estrondo de artilharia para os lados de Castelo de Vide, a sete léguas de distância (c. de 35 Km). Os capitães rapidamente conferenciaram e concluíram que eram tiros de aviso. O inimigo andaria com cavalaria por aqueles campos, e os tiros serviam para alertar os lugares vizinhos, de modo a que os camponeses guardassem os gados. Foi tomada a decisão de desistirem da entrada e rumarem a Portalegre, para investigar o que se passava, e logo mandaram montar os soldados. Foram escritas duas cartas, uma para o general da cavalaria, dando conta do sucedido, e outra para o mestre de campo comandante da guarnição de Castelo de Vide, informando-o que aquela força de cavalaria seguiria para Portalegre e aí aguardaria pela companhia de Monforte, comandada por D. Fernando da Silva, e que se fosse necessário qualquer auxílio a Castelo de Vide, estariam à disposição.

Chegados a Portalegre, mal tinham desmontado e começado a dar a ração de cevada aos cavalos, receberam um aviso do mestre de campo de Castelo de Vide, dando conta da entrada de uma força inimiga de cerca de 400 cavalos nos campos de Nisa, Alpalhão e Crato. O mestre de campo iria sair com o seu terço e a companhia de cavalos de Duarte Lobo da Gama, e indicava o local para o encontro com o reforço comandado por Lopo de Sequeira. “Podem vossas mercês marchar ao dito posto, que lá me acharão”, rematava a carta.

“Assim como os capitães leram a carta, começam todos com grande festa dizendo «Monta! Monta!». Começámos todos a tirar as mochilas das bocas dos cavalos, que ainda não tinham acabado de comer a sua ração, e mui depressa começámos logo a montar e marchar pela cidade fora na via de Castelo de Vide.” (Citações do Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM, pgs. 222-226).

(continua)

Imagem: Detalhe da zona de operações mencionada no texto, in Novissima regnorum Portugalliae et Algarbiae descriptio, c. 1680, Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1681A.