
Ao tempo dos preparativos para a operação de tomada de Badajoz, o soldado Mateus Rodrigues encontrava-se com a sua companhia (comandada pelo capitão Francisco Pacheco Mascarenhas) servindo na guarnição de Mourão. Quando D. João da Costa decidiu pôr em andamento as forças, esta companhia, bem como as de Dinis de Melo de Castro e de Diogo de Mendonça, que serviam em Moura, a de Jerónimo de Melo, estacionada em Serpa, e a do holandês van Inguen, que guarnecia Monsaraz, receberam ordem para se incorporarem com o terço de Moura, o melhor do Alentejo, comandado pelo mestre de campo Manuel de Melo. Deviam marchar para Olivença, mas o segredo era tal que ninguém sabia o verdadeiro objectivo de todo aquele aparato bélico. Este só veio a ser revelado quando a força de 1.200 infantes e 300 cavaleiros recebeu ordem de abortar a missão, no dia 19 de Março, pelas razões expostas no anterior capítulo desta narrativa. Não teria o soldado de cavalos ocasião de repetir a marcha.
Desavença e descoberta do plano
Com efeito, a operação de tomada de Badajoz fora adiada para a noite do Domingo de Pascoela. Mas um acontecimento inesperado deitaria tudo a perder para os portugueses. De acordo com o relatório de João Leite de Oliveira,
(…) sucedeu que o sargento galego de nação [Alonso de Castro], temendo que se viesse a descobrir o negócio, disse à sua amiga que andava metido em uns tratos, que não lhe podia durar muito a vida, pelo que se queria ir terra dentro, e a quis persuadir que fosse em sua companhia, o que ela não quis fazer, e assentaram que a mandaria buscar.
E depois de ele ido há 7 ou 8 dias, teve esta [mulher] uma pendência [ou seja, discussão] com a do outro, e eram vizinhas, e tinham comido todos juntos muitas vezes, e com a paixão foi a um ajudante e lhe disse que o sargento flamengo vinha a Portugal algumas vezes, e não levava pilhagem, mas que lhe não faltavam reales de a ocho [moeda espanhola da época, que também circulava em Portugal], com que bem se regalava, e a sua amiga. Com isto e mais alguma diligência que o ajudante fez, deu conta ao seu general, o qual mandou encarregasse também à mulher que o vigiasse [ao sargento flamengo], quando saía fora, como o fez.
E vindo a Elvas dar-nos parte de como o outro sargento era ido, mas que ele se atrevia a fazer só o negócio, porque entrava e saía pela meia-lua cada vez que queria, por ser mui conhecido dos soldados, porém a mulher o vigiou a noite que cá veio, e lhe deram ao outro dia pela manhã em casa, e o acharam almoçando com a amiga, e dando-lhe busca na casa lhe acharam cem patacas que de cá havia levado. Indício certo que o condenou, pelo que dando-lhe tormento, ao sétimo confessou tudo que se havia passado, e o negócio se acabou, e ele também, porque o enforcaram. E os castelhanos ficaram mui assombrados, e dizem que foi em Badajoz um dia de juízo, dando a Deus muitas graças por os livrar de tão manifesto perigo. (“Relação…“, in Madureira, pgs. 183-184)
Assim termina o relatório do tenente-general João Leite de Oliveira. Já a narrativa de Mateus Rodrigues é bem mais colorida na descrição, e sobretudo muito menos refinada no vocabulário. Embora coincidente no essencial dos detalhes, dá como causa principal de tudo se descobrir uma discussão entre o sargento flamengo e a sua amiga, e não entre as duas mulheres. Depois de referir a fuga do sargento galego, o soldado de cavalos prossegue, misturando português com castelhano, como é habitual quando reconstrói diálogos entre espanhóis:
(…) tinha um deles uma amiga das portas adentro [termo usado no período para designar uma amante], e este que a tinha [Alejandro Perez, o flamengo] era aquele a quem o outro [Alonso de Castro, o galego] havia dado as contas do que tinha tratado com Dom João da Costa. Como [a] amiga viu que o sargento supria a gastos de muita consideração, e viu que as pilhagens lhe não podiam suprir a tantos gastos, e assim que uma noite, estando eles na cama falando nas idas que fazia a Elvas a pilhagens, lhe disse [a] amiga ao sargento «ó fulano [Mateus Rodrigues, tal como o tenente-general, não indica os nomes dos sargentos], por vida vuestra que me digais donde vos viene tantos dineros, como vos veio gastar, perque no me puedo persuadir a que la[s] pilhages puedan suprir a tanto como gastamos, perque unas vezes traeis e outras no, e nunca nos faltan dineros». Pergunta foi esta que tinha a negra puta no corpo, pois deu ocasião a tantas desventuras (…), de sorte que o sargento lhe respondeu (…) um disparate mui grande, que lhe serviu de perder a vida. Disse o sargento que lhe importava saber donde lhe vinham sus dineros, que como ella gastava o que havia mister [ou seja, o que lhe apetecia], que no procurasse naide; e assim que no hablasse mas en ello. Mas como as mulheres são muito curiosas de saber tudo, e além disso putas ainda muito mais, e mais quando a cousa caía em sujeito de castelhanas, que são delgadas como o mesmo diabo. E assim que tornou a replicar ao sargento que era possível que havia de ser su amiga e estar com un hombre en la cama, que no lhe havia de dar sus cuentas de lo que passava en el mundo, e enfadando-se muito com ela o sargento, lhe disse «boto a Cristo que se vuelves a hablar otra vez en eso, que te he de matar, que mis dineros me vem por muchas vias, de que yo no quiero darte esas cuentas (…)». De modo que o diabo da puta ficou tão escandalizada das cousas do sargento, que se lhe meteu o diabo no corpo, e apenas se levantou ao outro dia da cama, logo foi a falar com o governador (…), que era o Marquês de Totavila (…).
Mais do que pelo duvidoso rigor dos pormenores deste episódio, a escrita de Mateus Rodrigues vale pelo que revela da mentalidade característica do homem e soldado (fosse ele português ou não), e pelo modo como a mulher era encarada neste contexto.
Tão resoluta velhaca como foi esta não se acha, que tão bem pagou a quem a sustentou seis ou sete anos, que tantos havia que o sargento confessou que tinha, e pagou-lhe este bem com o levar à forca.
O sargento foi de imediato preso e submetido a tortura. O outro, que se pusera em fuga, foi mais tarde capturado. Mas enquanto o flamengo foi logo condenado à morte e enforcado, o galego foi poupado durante algum tempo, de modo a que pudesse denunciar qualquer português que com ele tivesse negociado em Elvas e que se quisesse de novo infiltrar em Badajoz, ou lá entrar como volantim (homem encarregado de entregar mensagens ou outra correspondência – note-se que, apesar do estado de guerra, continuava a haver correio regular entre os dois reinos). Foi assim que um alfaiate português de Elvas, que se deslocou a Badajoz como volantim, acabou por ser preso, apenas e unicamente porque era muito parecido com o tenente-general João Leite de Oliveira. Esteve quase a ser submetido a tormento, mas foi salvo por um capitão de cavalos castelhano, que havia pouco tempo tinha estado prisioneiro em Elvas, e a quem o alfaiate havia feito duas galas (trajos distintos, para solenidades) durante o tempo de cativeiro. Foi este oficial que reconheceu o alfaiate e falou com o governador, garantindo a verdadeira identidade do português e assim conseguindo a sua libertação.
O sargento galego acabou por ser enforcado mais tarde. Mateus Rodrigues tirou deste episódio de traição gorada uma conclusão misógena: eis aqui o que tem quem de mulheres se fia, que ainda que um homem muito queira a sua mulher, nem tudo que passa lhe há-de descobrir, pois nelas nunca segredo fez morada. (todas as citações do MMR, pgs. 261-267)
Considerações finais
Ter-se-à passado tudo assim, como o descreve Mateus Rodrigues? Há dúvidas sobre a veracidade de alguns pormenores. O episódio do furriel João Dias de Matos não é referido na confissão do sargento flamengo, que apenas nomeia a incursão do tenente-general. Isto não significa que o dito furriel não tivesse contado a história a Mateus Rodrigues, por tê-la ouvido a João Leite de Oliveira, fazendo como sua a aventura do oficial general. Como também não invalida a possibilidade de João Dias de Matos ter mesmo entrado em Badajoz disfarçado – se os textos do relatório e da confissão não referem esta operação, isso pode ter ficado a dever-se ao facto do tenente-general não querer ver diminuído o seu papel em toda esta história, e ao receio do sargento Alejandro Perez agravar ainda mais o caso contra si (receio inútil, de resto, pois o homem estava já de todo perdido). No entanto, faltam suportes mais fidedignos para confirmar a entrada do furriel de cavalaria, que acabaria os seus dias em Portugal, em 1660, enforcado como traidor, quando era capitão de cavalos no exército de Filipe IV.
O caso que levou ao fracasso do plano de traição, conforme conta Mateus Rodrigues, também não coincide com o texto da confissão de Alejandro Perez. A amiga deste chamava-se Isabel Sanchez, a quem o sargento dizia que ia a Lobera, quando na realidade se deslocava a Elvas; não há na confissão qualquer referência a desentendimentos entre ambos. O desentendimento que existiu, opôs o sargento flamengo ao seu camarada e à amiga deste, uma Catalina García, e esteve directamente relacionado com a fuga de Alonso de Castro. Como confessou Alejandro Perez, la pendencia que tubimos fue porque pasabamos en casa de Catalina García, su amiga, y me cargabán la mitad del gasto, sendo ellos dos y yo uno, y temiendo que yo le avia de descubrir hio la fuga. (Arquivo Geral de Simancas, Sección Guerra Moderna, Legajo número 1822 )
O facto é que a importantíssima praça extremenha nunca seria tomada durante a Guerra da Restauração – nem pela astúcia, nem pela força das armas.
A terminar, renovo os meus agradecimentos ao amigo Juan Antonio Caro del Corral por me ter enviado a cópia do manuscrito do AGS, e remeto os leitores para este interessante artigo no blog do amigo Julian García, Puertas de Badajoz.
Imagem: A propósito de militares e amigas… “Cena de bordel”, de Frans van Mieris, o Velho, 1658. Mauritshuis, Haia.