Uma acção de pequena guerra e descoberta de traição – província da Beira, Abril de 1653

São em número considerável as cartas que os governadores das armas enviavam ao Conselho de Guerra, de forma a manter informada Coroa acerca dos sucessos das armas nas fronteiras. Na sua maior parte bastante detalhados, estes relatórios das acções de pequena guerra eram escritos de maneira a atrair a atenção régia (e a consequente recompensa, sob a promessa de mercês futuras) para o próprios comandantes ou para os seus subordinados que mais se destacavam, ou então como forma de justificar algum insucesso mais notório. Numa dessas cartas, D. Rodrigo de Castro, então governador do partido de Riba Coa, província da Beira, dá conta da descoberta casual de uma traição – algo que também fazia parte do quotidiano nas fronteiras durante o longo conflito de meados de seiscentos.

A carta, anexa à consulta onde foi apreciada, é aqui transcrita na íntegra para português corrente:

Chegando dia de Páscoa, 13 do corrente, à cidade da Guarda, dando-me o comissário geral João de Melo Feio conta do estado da província e do inimigo, com as mais pessoas práticas resolvemos que antes de ter notícia de minha chegada seria favorável, armando emboscada à cavalaria de Ciudad Rodrigo, entrar nela. E com o desejo de dar bons sucessos às armas de Vossa Alteza [a carta é dirigida ao príncipe D. Teodósio], sem descansar da jornada, me parti logo e entrei em Castela à derradeira oitava, 16 do mesmo, com quatro tropas de cavalos e 150 infantes bocas de fogo [ou seja, todos armados de mosquete e arcabuz, sem piqueiros]. Emboscando-me junto ao rio Alzava, duas léguas de Ciudad Rodrigo, mandando por doze cavalos correr às portas daquela Cidade tomar língua, com ordem de não pegarem em gado, salvo até dez, ou doze reses, para melhor mostrarem era partida que ia fugida, e as quatro tropas da cidade saíssem a corrê-los como costumavam, e vindo à desfilada e cansadas à emboscada melhor pudesse rompê-las. Os doze cavalos executaram a ordem e saiu trás deles só a tropa da guarda, mas com tal vagar e cautela que vendo eu que estava em posto que a descobria, disse a todos que o inimigo infalivelmente havia por algum traidor sido avisado. Fez alto da outra banda do rio e por um só cavalo me mandou reconhecer, como quem sabia estava eu ali; o que, vendo-me descoberto, deixando a infantaria no bosque, investi com a cavalaria o inimigo e se me pôs em fugida a toda a brida, de modo que lhe tomámos somente um cavalo e matámos Andrés de las Casillas, guia que o inimigo muito estimava, e a mais tropa, vendo-se apertada, não se atrevendo chegar à cidade porque lhe íamos dando alcance, se meteu no fortim de Marialvilla. Pus-me a refrescar tempo considerável na campanha por ver se as demais tropas de Ciudad Rodrigo vinham avistar-me, tendo-me tão dentro de Castela. A que vendo o não faziam, me recolhi, trazendo também quatro prisioneiros, que asseguram se espera brevemente pelo mestre de campo Dom Francisco de Castro com 150 cavalos de remonta.

Ao seguinte dia, tomando uma partida da tropa do capitão Francisco Martins Guaião língua, com o cuidado de eu haver dito que não degolava o inimigo por ser avisado de algum traidor pelo modo com que havia armado e vira o inimigo. Perguntou o capitão à língua, que era de Villa Mel, se sabia havia alguém entre nós que fosse dar avisos a Castela, e lhe respondeu que sabia os ia dar uma sentinela paga da raia, do lugar de Quadrazais, e que pelo seu posto deixava entrar os castelhanos, e tocava arma já a tempo que haviam feito presa. O capitão Francisco Martins o mandou prender, e persuadindo-o a que se confessasse, e assim como nos vendia, nos vendesse o inimigo, faria comigo o perdoasse. E crendo-o assim a sentinela, lhe confessou que dava os avisos a Castela por dinheiro que lhe davam, que visto eu lhe perdoaria se me entregasse o inimigo, que me entregaria a tropa de Valverde. Mandou-me o capitão Francisco Martins Guaião o sentinela e o castelhano língua. E fazendo pergunta ao castelhano, me disse o mesmo que havia dito, e o sentinela de Quadrazais, que se eu lhe perdoasse, me entregaria a tropa de Valverde. E que era verdade que dava avisos a Castela, um de que a tropa de Quadrazais havia ido para Castela, e noutra ocasião toda a gente daquele lugar fora para fora que viessem a ele, mas que nunca o inimigo fizera então dano. Com o que, ou por ignorante, ou por querer Deus pagasse sua traição, entendeu livrava dela. Mandei-o ao auditor geral, que se achava achacado, para juridicamente lhe tomar a confissão, que da mesma sorte fez. Com o que o mandei meter com ferros na enxovia, e ordenei ao auditor geral que viesse a esta praça para onde fui buscar minha casa. E por não haver até o presente chegado o auditor geral, que devia continuar-lhe o achaque, não está sentenciado este traidor, que logo para exemplo determinava sentenciado mandar fazer nele justiça. Mas o auditor geral disse que a sentença de morte deve ser apelada para o Conselho de Guerra, conforme ao regimento, com que me conformarei, sem embargo que nestes casos convém prontamente demonstração, para atalhar com o temor outros, que por tais meios é grande felicidade livrar dos danos.

Desta jornada, quando não fora a reputação de ir buscar o inimigo sem dilação alguma à sua praça principal, pô-lo em fugida e no temor de não se atrever a sair dela o socorro a buscar-me, foi grande o lucro de descobrir este traidor. Conhecendo que sem havê-lo, pelo modo com que armei e pela ocasião em que era certo degolar a cavalaria inimiga, que faltando-lhe os avisos, com o favor de Deus haverá mais casos em que a rompa.

Aos cabos que nesta ocasião me acompanharam deve mandar Vossa Alteza lhes agradeça o bom coração com que se arrojaram ao empenho delas.

Guarde Deus a muito alta e poderosa pessoa de Vossa Alteza felicíssimos anos. Almeida, 21 de Abril de 1653.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, mç. 12, carta de D. Rodrigo de Castro, de 21 de Abril de 1653, anexa à consulta de 2 de Maio de 1653.

Imagem: Gerard Terborch, “Soldados na casa da guarda”.

Um combate nos campos de Valência de Alcântara, 7 de Novembro de 1653 (parte 2)

Fernão de Mesquita partiu de Portalegre (…) em seis de Novembro de 1653, e amanheceu aos 7 do mesmo em os campos de Valência, juntando os gados que nele havia, tocando arma em todos aqueles lugares. Mas não acudia cavalaria nenhuma do inimigo, por estar já junta para a jornada de Arronches, e como Fernão de Mesquita viu que todas as línguas que na campanha acharam lhe disseram que as tropas não estavam por ali em razão de serem chamadas abaixo, então se alargou mais pela campanha e se dilatou mais.

Juntas as partidas que havia mandado adentro aos gados, se pôs em marcha com tudo junto, trazendo uma grande presa de gados e cavalgaduras, e vinham muito alegres, sem fazerem caso algum de castelhanos, por saberem que as tropas haviam ido abaixo por um aviso delas, quando se passa uma palavra entre elas que vinha o inimigo. Como Fernão de Mesquita não se podia persuadir que haveria coisa que dano lhe fizesse, em razão de levar 300 cavalos e saber que as tropas daqueles lugares eram abaixo, contudo não se ficou nisso como soldado já experimentado. Não se descuidou, senão deixou a presa e formou e se foi marchando formado para ver o que se dizia (…), quando logo viu uma tropa grossa do inimigo, que seriam 100 cavalos, que vinham já em busca dos nossos.

É aqui que a memória de Mateus Rodrigues o atraiçoa, como por diversas vezes acontece em relação a certos pormenores no decurso da sua narrativa. Diz  soldado que se tratava do regimento de Juan Jacome Mazacán, quando na verdade eram as tropas comandadas pelo comissário geral Bustamante. Por este motivo, no resto da transcrição, o nome de Mazacán será substituído por Bustamante.

Que vinha mais atrás o [Bustamante], com todo o seu regimento, a incorporar-se com a cavalaria com que nós chocámos [refere-se ao combate de Arronches], e vindo já chegando a Valência, teve aviso da vila de como os nossos iam com uma pilhagem, e assim como [Bustamante] lhe deram este aviso, vem correndo em busca dos nossos, que já tinha andado uma légua de Valência para Castelo de Vide, e para que mais desse engano aos nossos, lançou-lhe cem cavalos diante, correndo, e os mais, que eram 600, se veio [Bustamante] com eles por um vale encoberto, que os nossos o não viram. E assim como mandou aqueles cem cavalos aos nossos, (…) deu por ordem ao cabo deles que se deixasse empenhar bem dos nossos e que lhes fosse fugindo para tal parte, que lá havia de estar com a mais cavalar,ia.

Assim como os cem cavalos do inimigo vieram aos nossos, foram-se a eles como uns raios, confiados no que tinham feito. (…) Como Fernão de Mesquita estava bem longe de ver castelhanos, (…) quando viu aqueles cem cavalos imaginou que seriam as duas tropas de Valência e S. Vicente que haveriam chegado aquela hora. E assim como os viu se foi a eles como um raio, mas como o inimigo estava confiado, deixou-se averbar bem dos nossos, e assim como os viu já bem perto, dão uma volta e põem-se em fugida. Tanto que Fernão de Mesquita os viu fugir com toda a pressa, aperta sobre eles com grande força, e tanta pressa lhe deu, que por mais que o inimigo se quis livrar não pôde, que já Fernão de Mesquita lhe ia sacudindo o frouxel. E a tudo isto vendo o inimigo emboscado mui bem, mas como ele sabia que nada daquilo se haviam os nossos de aproveitar, deixou-os chegar bem, para melhor fazer a sua. E assim como os viu já bem junto de si, sai-lhe da emboscada bem nas barbas. Tanto que os nossos viram tanta cavalaria ficaram pasmados e perdidos e já não havia outro remédio mais senão cada um vender a sua vida. Mas como haviam ido à rédea solta sobre o inimigo, já não iam formados (…), contudo fizeram o que puderam, e sempre fugindo cada qual mais podia correr (…). O inimigo os derrotou de sorte que perdeu Fernão de Mesquita 100 cavalos dos 300 que levava, e foi ferido e cativo. O capitão de Castelo de Vide [foi] também cativo, por nome Duarte Lobo da Gama [mais um engano de Mateus Rodrigues: tratava-se de Duarte Fernandes Lobo], e mataram-lhe o seu tenente, que era um raro soldado. Mas a nossa gente fez tais coisas que pasmavam os castelhanos, que ainda perdeu o inimigo oito capitães de cavalos e 40 e tantos mortos. destes 100 homens que Fernão de Mesquita perdeu, morreram 30 e os mais foram cativos.

Segundo a narrativa do Conde de Ericeira, para além dos oficiais referidos, foram também capturados dois tenentes, dois alferes e 58 soldados. Entre os oficiais espanhóis feridos contava-se D. Álvaro de Luna, filho do Conde de Montijo.

Agora vão notando o caso, que este inimigo se vinha a juntar com esta outra cavalaria pelo aviso que havia tido; e quando se vê este encontro com Fernão de Mesquita era (…) sexta-feira à tarde, e não havia de fazer nenhuma dilação, senão marchar toda aquela noite, para quando fosse no sábado pela manhã já havia de estar junto com a outra, como lhe estava assim ordenado. mas como ele se encontrou com esta gente nossa e teve aquela vitória, não pôde vir fazer a marcha. (…) Foi para Valência com os cavalos e prisioneiros a descansar ali aquela noite, e assim como foi manhã tratou de ir ainda fazer sua jornada, por não ficar em falta e dar conta de si. (…) Mas como a jornada era ainda de 7 ou 8 léguas ao sítio aonde ele havia de vir, não podia chegar senão por noite, que eram os dias pequenos. Em este tempo, no mesmo dia de sábado, sucedeu o acharmo-nos com a cavalaria que esperava a esta (…), vejam bem se somos tão desgraçados que se juntavam todos e nós os achávamos…

O comissário geral Bustamante continuou a marchar com os seus homens para o local onde já se travava o combate de Arronches, mas no caminho foi encontrando grupos dispersos de cavaleiros em fuga, que o informaram da derrota da cavalaria comandada pelo Conde de Amarante. Prosseguiu, ainda assim, somente para encontrar adiante ainda mais gente em fuga, que lhe confirmou a derrota da cavalaria espanhola e a morte dos seus comandantes. Regressou então a Valência de Alcântara, de onde despediu em breve algumas tropas para os seus quartéis de origem: Alcântara, Zarza e Ciudad Rodrigo. Mateus Rodrigues coloca a ênfase, a propósito deste episódio, na intervenção da Virgem da Conceição, pois não fora o acaso do encontro entre as forças de Fernão de Mesquita e as de Bustamante, e a sorte das armas teria sido, em sua opinião, desfavorável às armas portuguesas, pois o inimigo teria aí uma superioridade notável.

Pouco conhecido, este combate desfavorável para as armas de D. João IV acabou por facilitar a vitória num outro de maior dimensão, no dia imediato. O que poderia ter tido origem numa estratégia concertada para dividir as forças inimigas foi – como era usual no contexto das operações militares seiscentistas – fruto de um acaso, que acabou por favorecer os propósitos portugueses num dos maiores recontros de cavalaria da Guerra da Restauração.

Bibliografia:

Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952 (1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 2), pgs 357-360.

Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado (edição on-line facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro XII, pg. 412.

Imagem: Joost Cornelisz, “Combate de cavalaria perto de Hertogenbosch” (1630), Kunsthistorisches Museum, Viena.

Um combate nos campos de Valência de Alcântara, 7 de Novembro de 1653 (parte 1)

Um dos episódios mais conhecidos da Guerra da Restauração foi o combate de Arronches, travado em 8 de Novembro de 1653 algures entre Arronches e Assumar (o local exacto não é conhecido com precisão, mas seria pouco distante de Arronches). A vitória obtida pela cavalaria portuguesa comandada por André de Albuquerque Ribafria abriu caminho a alguns meses de iniciativa e supremacia dos portugueses naquela fronteira de guerra, permitindo inclusivamente a tomada de Oliva. No entanto, um outro choque de cavalaria, ocorrido na véspera do combate de Arronches e praticamente desconhecido, terá tido importância para o desfecho daquela grande peleja. É esse episódio que aqui se recorda, com base nas memórias do soldado Mateus Rodrigues e na referência ao mesmo que o Conde de Ericeira lhe faz na História de Portugal Restaurado.

Em 1653, apesar de nominalmente ter continuado a ser governador das armas, o ódio de morte que existia entre D. João da Costa, Conde de Soure, e os Bobadilha (Diogo Gomes de Figueiredo, pai e filho, respectivamente mestre de campo e sargento-mor no mesmo terço de Elvas) levara a que o Conde se tivesse mantido em Lisboa enquanto o Príncipe do Brasil, D. Teodósio, permanecia no Alentejo. Os Bobadilha tinham sido mestres de armas do herdeiro da Coroa. O favorecimento do Príncipe aos seus antigos professores de esgrima, bem como a sua interferência no governo do Alentejo, não foram bem aceites por D. João da Costa. Mas pouco depois de D. Teodósio ter regressado a Lisboa (onde viria a falecer em Dezembro desse ano) e dos Bobadilha terem deixado o terço de infantaria, D. João voltou a ocupar o cargo de governador das armas.

Foi nesta condição que, em Novembro de 1653, aproveitando o facto dos campos não estarem ainda alagados pelas chuvas, o Conde de Soure ordenou duas incursões de cavalaria simultâneas contra a congénere espanhola. O general da cavalaria André de Albuquerque devia conduzir as companhias de Elvas, Campo Maior e Olivença a emboscar as companhias de cavalos de Badajoz, enquanto o capitão Fernão de Mesquita, com cinco companhias pagas e as companhias de pilhantes, devia fazer o mesmo às duas companhias que se aquartelavam em Valência de Alcântara e São Vicente.

O soldado Mateus Rodrigues servia ao tempo na companhia de Francisco Pacheco Mascarenhas. Tendo combatido em Arronches, onde foi ferido, não esteve presente na acção que narra, com algum detalhe, nas suas memórias – mas porventura terá apontado o que ouviu contar a outros camaradas de armas que estiveram nesse combate sob o comando de Fernão de Mesquita, acrescentando talvez um ou outro pormenor de sua lavra. E começa assim a sua narrativa (vertida para português moderno):

Em a cidade de Portalegre estava neste tempo uma companhia de cavalos de guarnição, e o capitão dela era de couraças, que tem mais proeminências que os ligeiros, e como havia mais umas cinco ou seis tropas que estavam por aqueles lugares circunvizinhos, estas estavam à sua ordem, deste de Portalegre, por nome Fernão de Mesquita, natural de Elvas, fidalgo e grande soldado e valente. De modo como Portalegre fica perto de Castela, (…) quis este Fernão de Mesquita juntar o seu regimento [note-se que Mateus Rodrigues utiliza o termo “regimento” num senso generalista, referindo-se a várias companhias sob o comando de um oficial, não no sentido orgânico do termo], que seriam 300 cavalos, a fazer uma entrada a Castela, às partes de Valência de Alcântara, que era aonde podia fazer alguma coisa, por ser lugar grande e de muitos gados (…), e como este capitão não podia fazer entrada nenhuma em Castela sem ordem do governador e do general da cavalaria, escreveu uma carta ao nosso mestre de campo general, Dom João da Costa, e ao general da cavalaria, em que lhe pedia licença para fazer a dita entrada, manifestando-lhe as causas que o moviam a fazê-la, que podia ser que desse algum repelão às tropas do inimigo, que tinha em Valência e em S. Vicente e em Albuquerque, porque todas estas tropas estão uma e duas léguas umas das outras, e em qualquer parte que os nossos lhe tocam arma, logo acodem uns aos outros como uns raios; e quando não fosse isto, traria o que lhes achasse pela campanha e se viria muito embora. [MMR, pg. 355]

Segundo Mateus Rodrigues, esta solicitação do capitão aos seus superiores tinha sido feita muitos dias antes do recontro de Arronches. É provável que o memorialista esteja correcto quanto às verdadeiras motivações desta operação, mas o certo é que, tenha partido a iniciativa do próprio capitão ou do Conde de Soure, ela foi providencial para o sucesso de Arronches. É que no mesmo dia em que Fernão de Mesquita saiu com as suas companhias, tinha o Duque de San Germán ordenado ao comissário geral Bustamante que, com dezoito companhias dos partidos de Alcântara e Albuquerque, entrasse a pilhar os campos das comarcas de Portalegre, Crato e Avis, e que depois se juntasse ao resto da cavalaria, que o aguardaria entre Alegrete e Arronches. Para Mateus Rodrigues, foi a intervenção divina (da Virgem da Conceição primeiramente – reflectindo o culto mariano característico do período) que fez com que, após a autorização dada pelos seus superiores, Fernão de Mesquita tivesse deixado passar vários dias antes de empreender a entrada.

Do recontro propriamente dito tratará a segunda e última parte deste pequeno artigo.

Bibliografia:

Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952 (1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 2), pgs 354-356.

Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado (edição on-line facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro XII, pgs. 411-412.

Imagem: “O Campo da Cavalaria”, pintura de Philips Wouwerman, The Frick Collection, Nova Iorque.

Manuel Freire de Andrade – um pequeno apontamento sobre a sua carreira

Manuel Freire de Andrade foi um oficial que se distinguiu durante a Guerra da Restauração na cavalaria, tendo chegado ao posto de general da cavalaria da Beira, no desempenho do qual viria a ser mortalmente ferido na batalha de Ameixial, em 1663.

A sua ascensão aos postos mais elevados do exército iniciou-se em 1653, quando foi proposto por D. Rodrigo de Castro, então governador do partido de Riba Coa, para comissário geral da cavalaria, posto que se encontrava vago por promoção de João de Melo Feio a mestre de campo.

É dessa proposta, enviada ao Conselho de Guerra, que consta uma abreviada resenha da carreira militar de Manuel Freire de Andrade, na qual se refere que o então capitão de cavalos sempre servira na cavalaria (no Alentejo e na Beira), entrando nas campanhas de 1643, 1645 e 1646, com sua pessoa e 2 criados à sua custa; e que havia 4 anos e meio que servia na da Beira, sendo um deles de soldado com 2 cavalos, e 3 anos e meio como capitão de uma companhia, tendo servido com distinção no assalto e queima da vila de Sabugo, Villa Vieja e Bugajo, na ocasião em que o Marquês de Távora veio à praça de Almeida com 3.000 infantes e 800 cavalos, no assalto ao forte e vila de Ródão, na escalada dos arrabaldes da cidade de Coria, queima da vila de Martingo e em outras ocasiões, tendo também servido na Armada que foi desimpedir a barra de Lisboa dos navios do Parlamento inglês (1650).

A sua nomeação, no entanto, demorou alguns meses a ser efectivada. Só em 14 de Fevereiro de 1654 o Rei confirma, por decreto o novo posto de Manuel Freire de Andrade, e em 23 do mesmo mês é escrita uma carta régia a D. Rodrigo de Castro, dando conta da referida nomeação.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1653, mç. 13, consulta de 17 de Julho de 1653; e Secretaria de Guerra, Livro 17º, fls. 125-125 v.

Imagem: vista de Almeida, praça forte onde residia o governador do partido de Riba Coa (ou de Almeida), D. Rodrigo de Castro. Foto de JPF.

“Um general, em uma batalha ou em choque, não há-de levar insígnia nenhuma de general”

Este fragmento das memórias de Mateus Rodrigues refere um caso curioso, passado durante os preparativos para o combate de Arronches (8 de Novembro de 1653):

Assim como o nosso famoso general André de Albuquerque viu ao inimigo, parece que viu o céu aberto, por ver que lhe mostrava Deus o que havia tanto tempo andava buscando; que era dos desejos de se encontrar com o inimigo, de modo que pelejassem ambos e assim como compôs mui bem a cavalaria, (…) foi passando pela vanguarda com a espada na mão, (…) ia mui bem armado e mudado dos fatos, que tirou os que levava e os deu a um pajem seu e vestiu os do pajem para ficar desconhecido, porque um general em uma batalha ou em choque não há-de levar insígnia nenhuma de general. (Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 345-346)

O excerto indica uma prática que não era invulgar na época. Convém esclarecer, no entanto, que o autor pode estar a referir-se a uma capa ou casaca usada sobre a protecção de couro e a couraça, não ao equipamento militar na totalidade. O propósito de André de Albuquerque Ribafria seria, talvez, tornar menos evidente ao inimigo a sua posição, uma vez iniciada a confusão do combate corpo-a-corpo. No caso, de pouco lhe valeu, pois foi derrubado logo no início da peleja, tendo ficado bastante ferido.

Imagem: André de Albuquerque Ribafria, um dos melhores generais da cavalaria portuguesa durante a Guerra da Restauração. Morreu na batalha das Linhas de Elvas em 14 de Janeiro de 1659.