Manuel Freire de Andrade – um pequeno apontamento sobre a sua carreira

Manuel Freire de Andrade foi um oficial que se distinguiu durante a Guerra da Restauração na cavalaria, tendo chegado ao posto de general da cavalaria da Beira, no desempenho do qual viria a ser mortalmente ferido na batalha de Ameixial, em 1663.

A sua ascensão aos postos mais elevados do exército iniciou-se em 1653, quando foi proposto por D. Rodrigo de Castro, então governador do partido de Riba Coa, para comissário geral da cavalaria, posto que se encontrava vago por promoção de João de Melo Feio a mestre de campo.

É dessa proposta, enviada ao Conselho de Guerra, que consta uma abreviada resenha da carreira militar de Manuel Freire de Andrade, na qual se refere que o então capitão de cavalos sempre servira na cavalaria (no Alentejo e na Beira), entrando nas campanhas de 1643, 1645 e 1646, com sua pessoa e 2 criados à sua custa; e que havia 4 anos e meio que servia na da Beira, sendo um deles de soldado com 2 cavalos, e 3 anos e meio como capitão de uma companhia, tendo servido com distinção no assalto e queima da vila de Sabugo, Villa Vieja e Bugajo, na ocasião em que o Marquês de Távora veio à praça de Almeida com 3.000 infantes e 800 cavalos, no assalto ao forte e vila de Ródão, na escalada dos arrabaldes da cidade de Coria, queima da vila de Martingo e em outras ocasiões, tendo também servido na Armada que foi desimpedir a barra de Lisboa dos navios do Parlamento inglês (1650).

A sua nomeação, no entanto, demorou alguns meses a ser efectivada. Só em 14 de Fevereiro de 1654 o Rei confirma, por decreto o novo posto de Manuel Freire de Andrade, e em 23 do mesmo mês é escrita uma carta régia a D. Rodrigo de Castro, dando conta da referida nomeação.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1653, mç. 13, consulta de 17 de Julho de 1653; e Secretaria de Guerra, Livro 17º, fls. 125-125 v.

Imagem: vista de Almeida, praça forte onde residia o governador do partido de Riba Coa (ou de Almeida), D. Rodrigo de Castro. Foto de JPF.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (5ª e última parte)

André de Albuquerque Ribafria enviou uma mensagem a D. Manuel de Melo, para que este mandasse dois oficiais do seu terço, dos mais experientes e sagazes, ao castelo de Oliva, a fim de concretizarem os termos da capitulação com o governador. O mestre de campo escolheu o alferes da sua companhia, Manuel Francisco Canais, e o capitão Manuel de Almeida. Os espanhóis enviaram dois elementos para servirem como reféns junto do general da cavalaria – uma prática de etiqueta neste género de situações.

Os ajustes da capitulação não diferiram do que era prática corrente em situações semelhantes: os soldados sitiados saíriam com as armas às costas, e as de fogo carregadas com bala, mas somente até 200 passos da vila – depois, teriam de as entregar; as mulheres poderiam carregar tudo o que conseguissem, de pertences individuais, à cabeça, mas o mesmo não era permitido aos homens.

Segundo Mateus Rodrigues, quando os dois oficiais portugueses regressaram vinham mui bem aproveitados de coisas boas de dentro do castelo, que confessou um deles que lhe rendera a ida lá dentro bons cem mil réis. (MMR, pg. 384)

Seguiram-se então os procedimentos habituais. Os mestres de campo D. Manuel de Melo e Manuel de Saldanha, acompanhados de outros militares, foram ao castelo organizar a evacuação dos moradores e dos soldados. Mateus Rodrigues escreveu, a este respeito, algumas das páginas mais sentidas das suas memórias:

(…) Foi uma confusão notável entre as mulheres, porque além de ver que as faziam sair da sua pátria [ou seja, local de onde eram naturais], para nunca jamais a tornar a ver, por outra parte tinham tanto que levar cada uma que não podiam levar o que desejavam. Vejam bem como se apartariam de boa mente de sua pátria, (…) vendo ficar os maridos mortos, e outras os filhos e irmãos. Assim que não havia quem as fizesse apartar dali. Contudo, como era força fazê-lo, começaram a ir fazendo trouxas, cada uma o que podia levar à cabeça, mas algumas com paixão não levavam nada, senão tudo era prantos e gritos. Finalmente começaram a sair (…) pouco a pouco. (MMR, pg. 384)

Mateus Rodrigues formou, como a restante cavalaria e os infantes do terço de Olivença, em duas alas, de cada lado da estrada por onde a procissão dos desalojados e rendidos iria passar, debaixo de intensa chuva. O resto já aqui foi descrito num artigo anterior, pelo que evito repetir a narrativa do soldado de cavalos a este respeito.

A capitulação previa que as gentes de Oliva fossem escoltadas, a partir de certa altura, por um destacamento de cavalaria de Jerez de los Caballeros, cidade que seria o seu destino. Vieram de Jerez 100 cavalos meia légua de nós, em comboio desta gente (…), e posto que assim se ordenou de lá e de cá, que estavam em Jerez 200 cavalos que se haviam juntado aí, do regimento de Rosalles [Juan de Rosalles, comissário geral]. (MMR, pg. 385)

Após a saída do moradores, vieram os militares (200 homens), de armas às costas. Respeitando as cerimónias usuais nestes casos, e conforme estava combinado na capitulação, os portugueses saudaram os espanhóis com uma salva de mosquetes. Recolhidas as armas após a saída da guarnição, trataram os soldados portugueses de entrar na vila. A cena descrita por Mateus Rodrigues é típica de qualquer conflito da Era Moderna:

(…) Quis Deus que, como demos pelas casas da vila, começamos a fazer grandes fogos com as caixas, cadeiras e portas das casas de onde nos metíamos, que quando amanheceu já não havia ninguém que não estivesse muito bem enxuto e bem farto de carne, que não faltava na vila, assim morta como porcos vivos que na vila havia. (MMR, pg. 387)

Na vila ficou o capitão Manuel de Almeida comandando uma guarnição de 200 homens. Entre a partida  e o regresso da força portuguesa a Elvas e a Olivença passaram-se nove dias. Mateus Rodrigues refere que as perdas portuguesas foram cerca de 150 homens – só no terço de D. Manuel de Melo houve mais de 120 baixas, entre mortos e feridos; o terço de Olivença, de Manuel de Saldanha, não chegou a combater. As perdas dos defensores de Oliva ascenderam a mais de 60 mortos.

O memorialista frisou que a tomada da vila e castelo de Oliva fora a jornada de maior proveito para Portugal em mais de 10 anos. No imaginário castrense, a conquista de uma povoação, pela sua raridade, conferia um prestígio superior a qualquer usual operação de rapina ou combate renhido. No entanto, com esta façanha Mateus Rodrigues colocou um ponto final em 13 anos de serviço ininterrupto no exército do Alentejo. Ainda lá voltaria por um breve período, mas somente passados três anos, durante os quais aproveitou para redigir a maior parte das suas memórias.

Imagem: “Dividindo os despojos”. Pintura de Jacob Duck. Museu do Louvre, Paris.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (4ª parte)

Após o fracasso dos petardos, Mateus Rodrigues refere a acção de um frade que, segundo o soldado, pode ter sido determinante para a tomada do castelo de Oliva de la Frontera. No entanto, a narrativa do soldado de cavalos é também, a certa altura, um importante testemunho da violência e terror que as operações de guerra exerciam sobre os civis, que não aparece registado em nenhum outro relato deste acontecimento.

Em esta vila estava um frade trino [ou seja, da Ordem da Santíssima Trindade] castelhano e natural da vila, que tinha ali um irmão e havia vindo a vê-lo. E quando viu que íamos a tomar a vila, não se quis meter dentro do castelo, senão ficar de fora para pedir ao general que (…) não bulissem na casa de seu irmão. (…) O general mandou logo ao frade que fosse ensinar [onde ficava] a casa, que mandava lá pôr sentinelas [para] que ninguém lá fosse e que lhe dava sua palavra que lhe não havia de falta dela coisa alguma. Agradeceu-lhe o frade grandemente o favor (…) e se foi o frade com o general para as casas e nunca de lá saiu, a não ser ao que diante se verá, que pode ter sido a causa de se tomar o castelo. (MMR, pgs. 377-378)

Entretanto, as minas iam progredindo pouco em direcção ao castelo, pois a terra era muito dura e difícil de escavar, e sobre isto avisou D. Manuel de Melo o general da cavalaria. Seriam precisos muitos dias até que as galerias subterrâneas chegassem à muralha do castelo. Porém, André de Albuquerque não se demoveu do seu intento. Tinha vindo até ali para tomar o castelo de Oliva e não partiria sem o fazer, apesar da proximidade da cidade de Jerez de los Caballeros e da possibilidade dos espanhóis enviarem um exército de socorro.

De maneira que, como o frade assistia sempre com o general, ouvia dar as ordens, e ouvindo falar em minas, perguntou o que era aquilo. Disse-lhe então o general que mandava fazer duas minas, uma que havia de ir até à torre que tinha o castelo no meio, e a outra havia de ir parar à muralha, e assim como estivessem já acabadas, que vissem que já lá tinham chegado, haviam de atacá-los com muita pólvora e dar-lhe fogo, para que voasse a torre para o ar e quem estivesse nela, e logo a da muralha havia de abrir uma grande brecha, por onde haveria de mandar avançar mangas de mosquetaria e rodeleiros, para que fossem degolando tudo quanto estava dentro. Tanto que o frade ouviu isto ao general, pediu que o deixasse ir ver aquelas minas. Mandou logo o general que fossem a mostrar as minas ao frade, as quais ele foi ver logo, e assim como as viu ficou parvo. E logo pediu muito ao general que lhe desse sua senhoria licença, que queria ir dentro ao castelo falar com o governador. Que, como o frade tinha lá dentro sua irmã e sobrinhas, não podia levar em paciência o dizerem que o castelo havia de voar e quem estava nele. (…) Como o general viu que nunca a ida do frade ao castelo lhe podia resultar em (…) dano, senão em proveito, deu licença ao frade (…), mas disse-lhe o nosso general que havia de volver com resposta, senão, que lhe havia de pesar. O frade lhe deu sua palavra de tornar. (MMR, pgs. 378-379)

O frade dirigiu-se ao castelo, onde entrou por um postigo falso que tinha a muralha, pois a porta principal estava terraplanada no interior, até ao cimo da muralha. Em conversa com o governador, tentou fazer com que este se rendesse, a fim de poupar as vidas de tanta gente que estava no castelo, contando-lhe acerca das minas e da disposição dos portugueses em as fazer explodir e degolar toda a gente.

A proposta, todavia, teve o efeito contrário ao pretendido. Assim como os habitantes souberam dela, zangaram-se e expulsaram o padre, dizendo que preferiam voar com o castelo a renderem-se. Regressado para junto dos portugueses, o frade não contou a André de Albuquerque como fora infrutífero o seu esforço para salvar as vidas dos habitantes de Oliva. Pelo contrário, deu alguma esperança ao general, pois referiu que o governador do castelo nunca lhe dissera que não se renderia, mas que o tempo lhe daria lugar a decidir o que haveria de fazer. Era este governador homem já avançado em anos, e segundo o frade era desejo do bom velho entregar-se, pois tinha duas filhas donzelas no castelo e elas lho pediam que assim fizesse. O impasse, no entanto, manteve-se.

(…) Em a vila havia uma igreja muito forte, a qual estava perto do castelo; pelo menos ficava-lhe no descoberto de toda a mosquetaria, que não podiam ir à igreja sem que do castelo não fizessem muito dano. E nesta igreja ficaram muitas mulheres, e com 50 homens que pelejavam da torre da igreja infinito, e tinham fazenda dentro dela. E aonde estava a nossa gente pelejando ficava-lhe a igreja junto deles, mas não podiam lá ir senão com muito risco.

Mandou o general (…) um aviso, se se queriam entregar, senão que os haviam de degolar, ao qual aviso eles fizeram pouco caso. Mandou logo o general que fosse uma manta à igreja com um petardo, e que em abrindo as portas, avançassem por elas dentro mangas de mosqueteiros, e que não dessem quartel a castelhano nenhum, só às mulheres não agravassem [ou seja, não fizessem mal]. E preparada a manta, foi o soldado com ela e com o petardo diante, e chegando a uma porta travessa que ficava mais resguardada do castelo, deu fogo ao petardo e logo lançou as portas dentro. E no mesmo tempo avançaram os mosqueteiros por ela dentro, matando a todos os castelhanos que lá estavam, ressalvando as mulheres. E assim como os nossos entraram, era tanta a confusão e gritaria das mulheres que lá estavam, que pareciam os diabos. (…) E em breves palavras estavam todos os castelhanos da igreja estirados na rua, mortos, à vista do castelo, para que os outros os vissem, para pôr medo. E logo tomaram as mulheres todas, que eram 50, e botaram-nas fora para a rua, dizendo-lhe[s] que se fossem para o castelo. E vendo-se elas naquele estado, foram-se ao pé do castelo com grandes gritarias de choros, que as recolhessem para dentro, mas o governador, nem os mais, não as quiseram recolher …). Vendo-se as pobres desta sorte, tornaram-se para a igreja, que não haviam de estar aos pelouros nas ruas. E quando os nossos entraram na igreja não tiveram mais que três homens que morreram, mas os 50 homens que lá estavam todos morreram, e os nossos se aproveitaram de muito bom fato que lá tinham os castelhanos metido.

Feita esta diligência se continuava grandemente com as minas, porém com poucas esperanças de elas chegarem lá devagar, contudo continuava-se com elas. E quando o nosso general soube que já a igreja estava tomada e que estavam lá 50 mulheres, deu uma ordem à vista do frade castelhano: que se mandassem escolher 300 soldados da cavalaria, todos soldados velhos e homens de satisfação, e que haviam todos de trazer cravinas. E quando a mina da muralha estivesse para dar fogo a ela, que haviam de avançar estes 300 soldados pelas brechas dentro, (…) e logo detrás deles mangas de mosquetaria. Mas quando os homens da cavalaria avançassem haviam de levar 50 soldados, os que fossem diante, daquelas que estavam na igreja para amparo dos seus corpos, que se os castelhanos lhe atirassem, matassem primeiro as mulheres. Brava ordem. Mas a verdade é todas estas confusões fazia o general à vista do frade para que, vendo estas coisas, o movesse a querer volver ao castelo a falar com os castelhanos. o que não foi necessário, porque assim como o inimigo, do castelo, viu aquela lástima dos mortos da igreja pela rua e as mulheres com as gritarias, parece que lhe quebrou o coração a todos, e houve entre eles logo um rumor e uma bulha, que se conformaram a mandar pedir quartel ao nosso general. (MMR, pgs. 380-382)

As condições foram recusadas, porém. André de Albuquerque não estava disposto a permitir que os espanhóis permanecessem no castelo até terem recolhido os trigos que tinham semeado pelos campos. Despediu o emissário do governador dizendo que se espantava muito de como em os espanhóis havia tal rudeza e pouco discurso (MMR, pg. 382); que pelejassem o que pudessem, que não fazia concessão nenhuma naqueles termos.

Mas os castelhanos não ficaram muito contentes (…) do que havia trazido o aviso. E quando veio este aviso era no sábado, mas no domingo de madrugada tornaram logo com outro, (…) de como se queriam entregar, mas que lhe haviam de deixar sair com suas armas às costas e bala em boca, e que levariam as mulheres o fato que pudessem levar à cabeça para se remediarem. (MMR, pgs. 382-383)

André de Albuquerque ficou contente com este pedido de capitulação. Sabia que seria impossível tomar o castelo sem a artilharia que havia ficado em Mourão, pois na altura achara que não seria necessária. Assim, tratou de negociar as capitulações.

D. João da Costa, na sua carta, imagina combates a que não assistiu: Prevenindo eu este acidente, mandei levantar mantas e mineiros, e tudo o mais necessário para forçar o castelo, o que se começou a fazer com estes instrumentos, de maneira que o inimigo se viu obrigado a render-se, como o fez ontem às dez horas da manhã. (Livro 2º…, carta de D. João da Costa, Conde de Soure, para D. João IV, datada de 12 de Janeiro de 1654).

(continua)

Imagem: Soldados confraternizando com mulheres. Pintura de Jacob Duck (1600-1667).

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (3ª parte)

Sem saber que tinham sido detectados, os portugueses avançaram sobre Oliva de la Frontera.

Cercada a vila com a cavalaria toda, chegou a infantaria e o nosso general diante dela. Chegaram à trincheira sem ouvirem dentro rumor nenhum, como que não havia ali gente nenhuma. E a esquadra que estava à porta não quis dar tiro nenhum à nossa gente até que eles os não viram subir pela trincheira acima, pelas escadas, e assim como os nossos foram subindo, dá-lhe a esquadra uma carga que logo ali caíram onze homens. Assim como o inimigo deu esta carga logo desamparou a porta e a trincheira e se foram de carreira meter no castelo, porque aquela esquadra não a pôs o inimigo ali para defender a trincheira, senão para que os do castelo soubessem quando nós chegávamos, para se prevenirem. (MMR, pg. 374)

Estes detalhes são omitidos na carta de D. João da Costa para D. João IV. A riqueza do texto de Mateus Rodrigues reside na perspectiva que este tem das operações, à escala das preocupações do homem comum, com pormenores que escapam às mais elaboradas narrativas produzidas com fins informativos e propagandísticos. Esclareça-se que o termo “trincheira” empregue por Mateus Rodrigues correspondia a um baluarte provisório, erigido com terra e eventualmente reforçado com madeira no interior, destinado a proteger as entradas de uma localidade e a reforçar as defesas já existentes.

Depois de terem sofrido as baixas repentinamente, devido à salva disparada de surpresa e à queima-roupa, o ânimo dos soldados portugueses esfriou. Como o nosso general viu isto, pareceu-lhe que os soldados estavam já com medo e que seria necessário muito tornar a fazê-los avançar. E assim disse a Manuel de Melo e ao mestre de campo Manuel de Saldanha (…) que seria necessário eles fazerem exemplo aos soldados, em subirem diante eles pela trincheira, para que os soldados não duvidassem, e apenas tinha dito isto (…) já ele ia subindo pela trincheira com uma rodela e uma espada na mão, seguindo-o logo as duas pessoas nomeadas e assim mais todos os soldados. (…) Contudo, assim como o inimigo, do castelo, os sentiu dentro [da trincheira], eram tantas as balas que botava dele que parecia que botavam como saraiva, porque todas quantas ruas tem e tinha a vila, todas as lavava o castelo com sua mosquetaria. E como fazia grande luar, dava muita ajuda ao inimigo, e foi a coisa de modo que não tiveram os nossos outro remédio para ficarem dentro da vila, senão irem minando as casas por dentro, pelas paredes, e meteram-se dentro, em as casas, todo o terço de Manuel de Melo, em uma rua que ficava bem defronte do castelo; porque, como vinha já amanhecendo, não era possível aparecer ninguém onde chegasse arma de fogo do castelo, porque assim que aparecia algum nosso onde o inimigo lhe chegasse, já ele estava morto; que, de 200 homens que no castelo estavam, não havia um só que não fosse caçador do ar [caçadores de aves], e assim nunca jamais erravam tiro que fizessem. De modo que antes que fosse manhã, já o terço todo estava metido dentro das casas de uma rua fronteira do castelo, e o inimigo mui bem soube logo que a nossa gente estava metida naquela rua, porém pelejava-se grandemente de ambas as partes, mas da nossa com pouco proveito, em razão que como os castelhanos estavam dentro do castelo, não lhes podiam os nossos fazer tanto dano como eles a nós, que nos [a]tiravam de dentro de umas ameias do castelo, e nós não lhe podíamos fazer mal nenhum, porque a nossa infantaria não podia pelejar senão de dentro das casas, que faziam uns buracos por dentro das paredes que ficassem bem defronte do castelo, e metiam por os buracos os mosquetes. E assim como viam assomar algum castelhano, atiravam-lhe; assim como os castelhanos viam atirar, logo atiravam para aquela parte (…). E bem viam os buracos, porque a distância do [desde o] castelo a[té] onde os nossos estavam era coisa pouca. O nosso general logo mandou tomar umas casas em entrando dentro da vila para ele estar, mas não ficava da parte donde o inimigo lhe fizesse dano. E dali não saiu até que a vila e castelo se não tomou. Dali mandava as ordens do que se havia de fazer ao mestre de campo Manuel de Melo, que estava com o seu terço dentro das casas para dar ordem ao terço a pelejar e para mandar fazer as minas (…). (MMR, pgs. 375-376)

O terço de Olivença comandado por Manuel de Saldanha, bem como toda a cavalaria e a bagagem, permaneciam longe da vista dos moradores de Oliva, ocultados em outeiros e vales. Os soldados, desocupados de qualquer acção de combate, aproveitavam a lenha que podiam recolher livremente para se aquecerem com os grandes fogos que faziam, pois o frio era intenso. Entretanto, na vila prosseguia o tiroteio entre os defensores do castelo e o terço de D. Manuel de Melo. Os do castelo apupavam os portugueses, chamando-lhes “galegos” e  gritando-lhes que tinham escolhido mal o dia e “que levassem as casas da vila às costas” (as casas estavam completamente vazias, como refere Mateus Rodrigues; nada havia que pudesse ser pilhado); havia uma enorme confiança entre os defensores de Oliva acerca da inexpugnabilidade do castelo.

André de Albuquerque recebeu uma mensagem de D. Manuel de Melo: a pouco e pouco os soldados do seu terço iam consumindo as munições e alguns tombando, sem que se pudesse fazer qualquer dano aos castelhanos – aguardava, pois, instruções sobre o que fazer. André de Albuquerque mandou então que os mineiros começassem a abrir minas e mandou avançar as mantas. Curiosamente, na carta enviada ao Rei, D. João da Costa afirma que partiram dele estas ordens – mas o mestre de campo general não fez parte da expedição. Aliás, tanto o Conde de Ericeira como Mateus Rodrigues são claros quanto a quem comandou toda a operação, e o soldado de cavalos fez parte da força que nela participou.

(…) Mandaram logo preparar as mantas, que eram duas, que levava cada uma um petardo (…), e lançaram-nas por uma porta grande que estava em uma das casas. Assim como o inimigo as viu sair eram tantas as balas que se cobria o ar com elas. (…) As mantas são de prova de mosquete [ou seja, à prova de mosquete] e mui fortes, contudo lançou o inimigo uma ameia do muro abaixo e botando-a em cima de uma das mantas, a fez numa pasta, que como era grande altura e [a] ameia pesava mais de dez quintais, não pôde a manta sustentar o peso da pedra. E a outra deu fogo à muralha com o petardo, mas não fez nada, que estava já o soldado debaixo dela com grande medo, vendo o fim que a outra teve, e assim como deu fogo ao petardo, vendo que não obrava nada, veio-se embora com a manta, e o inimigo fazendo grande risada e galhofa (…). (MMR, pgs. 376-377)

A carta-relatório de D. João da Costa é muito prosaica a este respeito:

(…) Se arrimou um petardo à porta, e dando-se-lhe fogo três vezes, não tomou, pela humidade do tempo o impedir, até que com as pedras quebraram os castelhanos  as estacas em que se sustentam os petardos. (Livro 2º…, pg. 42)

Mais um ponto em que o discurso de D. João da Costa se afasta do que Mateus Rodrigues viu e escreveu.

(continua)

Léxico:

Manta – protecção de madeira, colectiva ou individual, revestida de peles de animais, sob a qual se abrigavam os soldados que deviam aproximar-se das muralhas ou portas para colocar o petardo.

Petardo – engenho explosivo em forma de sino que se fixava contra uma porta ou uma muralha, a fim de as rebentar.

Imagem: Modo de colocar um petardo. Gravura do século XVII, via The Artillery Garden.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (2ª parte)

A propósito de Oliva de la Frontera, Juan Antonio Caro del Corral enviou esta ligação para um artigo online de Alfonso Gil Soto, intitulado “El impacto de la Guerra de Secesion Portuguesa (1640-1668) en los territorios de la Extremeña: el caso de Oliva de la Frontera” (in Alcántara, 2001, pgs. 53-54):

http://ab.dip-caceres.org/alcantara/alcantara_online/53_54/53_54_006a.htm

Ao amigo Juan Antonio agradeço, mais uma vez, a sua oportuna colaboração.

Prossigamos a narrativa, seguindo as memórias de Mateus Rodrigues. Com tudo acertado para a operação, o terço de Moura começou a reunir mantimentos para 8 dias. Todas as bestas da vila de Moura, em número de 1.000, foram requisitadas para puxarem as carroças e transportarem os mantimentos e as munições, para além das que os soldados levariam em mochilas (designação dada na altura a grossos sacos usados a tiracolo). Tudo isto foi feito com o sigilo possível, para não despertar qualquer desconfiança no inimigo. O ponto de reunião das forças de cavalaria com a infantaria de Moura seria a vila de Mourão.

Dia de Reis, que foi em 6 de Janeiro de 1654, saiu o nosso general André de Albuquerque da cidade de Elvas pela manhã, pela porta da esquina fora, com duas companhias de cavalo, que era a sua e a minha (…), e com duas peças de artilharia de 24 libras cada uma, e quando saímos (…) não havia ninguém que soubesse para onde marchávamos (…). Havia um rumor de que levávamos aquelas peças para o castelo de Vila Viçosa e que ia lá o general para as mandar pôr, (…) e quando lá chegámos já não havia quem não soubesse que íamos a Castela, mas não adonde.

No dia 7, pela manhã, as duas companhias de cavalos formaram em frente à estalagem onde o general tinha pernoitado, e daí seguiram para Mourão, onde chegaram já de noite e onde já se encontrava D. Manuel de Melo com o seu terço. Os soldados de cavalos tiveram de suportar uma noite bem fria e chuvosa de Inverno, muito mal acomodados ou ao relento, pois os alojamentos (as casas dos moradores da vila) estavam já todos ocupados pelos soldados de infantaria e as cavalariças pelas bestas de carga do terço.

Na manhã do dia 8, a força seguiu pela estrada de Vilanova de Portugal (Villanueva del Fresno), percorrendo duas léguas até se reunir ao terço de Manuel de Saldanha e à cavalaria de Olivença. Segundo Mateus Rodrigues, o total das cavalgaduras que acompanhava o pequeno exército era de 3.000, mais do que o número de tropas pagas que ali marchava – uma cauda logística bem extensa. Em Vilanova tiveram pouco tempo para descansar e comer, pois a etapa até Oliva, onde tinham de chegar antes do amanhecer, ainda era longa (mais de 4 léguas e mau caminho para a infantaria, que não podia ir formada, nem a cavalaria tampouco). A coluna demorou bastante tempo a formar; a cavalaria toda na vanguarda (1.400, segundo Mateus Rodrigues, mais cem do que D. João da Costa aponta na sua carta), a infantaria (1.500 homens) na retaguarda, e toda a carriagem e cavalgaduras no meio. Em grande silêncio prosseguiu a marcha, passando a ribeira de Alcarrache, uma légua depois de Vilanova, e continuando por azinhais. A precaução destinava-se a não serem sentidos, mas bem podíamos ir com toda a galhofa e bulha, pois o inimigo estava de aviso. Com efeito, na sua carta o Conde de Soure refere que no dia 8 tinha o inimigo uma partida sobre Mourão, a qual, vendo marchar a nossa gente, avisou a sua, com o que nos esperavam recolhidos no castelo com as armas nas mãos. Mateus Rodrigues acrescenta mais detalhes: tinha sido o tenente Marim, com 10 cavaleiros, quem tinha detectado a força portuguesa, e à rédea solta correra a avisar as gentes de Oliva. E suposto que o inimigo já tinha parte do fato metido no castelo, assim como o tenente chegou e deu aquela triste nova, enquanto tiveram tempo meteram tudo quanto puderam no castelo, e deixaram as casas só com as paredes e alguma caixa vazia, e (…) meteu-se toda a gente dentro no castelo, e não deixaram fora mais que trinta homens e a companhia de cavalos que estava na terra. O capitão, que Rodrigues reputa de grande soldado, e antigo, tinha ido comandar as companhias de Talavera (até nisto foi o nosso general bem afortunado, pois se este capitão não tivesse sido transferido e estivesse dentro do castelo, nem o poder do mundo o havia de tomar, porque era homem do diabo e muito valente, chamava-se D. Diego Quexada). Mas era agora o tenente Marim que comandava a cavalaria. Este, logo que caiu a noite, meteu a sua mulher na igreja com as demais mulheres da vila e partiu com os seus soldados para uma ermida de Nosso Senhor que fica em um outeirinho junto da mesma vila, e daí lançou sentinelas para detectar a progressão da força portuguesa.

A um quarto de légua de Oliva, André de Albuquerque fez adiantar a cavalaria, para que fossem tomadas todas as vias de entrada e saída da vila. O general da cavalaria pensava que havia duas companhias de cavalos em Oliva, mas de facto, apenas ali servia a do tenente Marim – e mesmo essa fez o oficial espanhol retirar para Jerez de los Caballeros, não sem antes alertar os soldados que estavam de guarda na trincheira de que os portugueses se aproximavam.

(continua)

Bibliografia: Livro 2º…, pgs. 41-42; MMR, pgs. 369-374; veja-se a 1ª parte desta série para as referências completas.

Imagem: Oliva. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII. O outeiro onde se situa a ermida referida no texto é visível no canto superior direito da planta. Ao contrário do que eu tinha aqui escrito ontem, a colina visível no canto superior direito do mapa não se trata do outeiro da ermida, mas sim de “el Moriscote”. Veja-se o comentário nº 1, do Sr. Andrés Francisco Perez Cuecas (a quem eu agradeço a colaboração), para o completo esclarecimento.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (1ª parte)

Após o sucesso no combate de Arronches em 8 de Novembro de 1653 e da incursão ao Vale de Matamoros em 25 de Novembro do mesmo ano, o mestre de campo general e governador das armas interino do Alentejo, D. João da Costa, Conde de Soure, decidiu lançar um assalto à vila extremenha de Oliva. Os motivos para tal operação são explicados pelo próprio, em carta dirigida a D. João IV:

Enquanto o tempo não dá lugar de poder obrar o que desejo no serviço de Vossa Majestade, me pareceu livrar aos lugares de Mourão, Monsaraz, Terena e [A]landroal das contínuas moléstias que recebiam da guarnição e moradores da vila de Oliva, que consta de 400 vizinhos e um castelo.

Para se ganhar uma e outra coisa por interpresa, ordenei ao general da cavalaria [André de Albuquerque Ribafria] que com 1.300 cavalos e com os mestres de campo Manuel de Saldanha e Manuel de Melo investisse a vila e procurasse, com os petardos, ganhar o castelo. (ALMEIDA, Manuel Lopes de; PEGADO, César (pub.) –  Livro 2º do Registo das Cartas dos Governadores das Armas (1653-1657), Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1940 (transcrição do ms. 540 da BGUC), pg. 41, adaptado para português corrente).

Na operação participou a companhia de cavalos onde servia Mateus Rodrigues, companhia essa que era comandada pelo capitão Fernão Pacheco Mascarenhas. Mateus Rodrigues ainda se encontrava em convalescença das feridas recebidas no combate de Arronches e estava prestes a desertar do exército do Alentejo, onde servia desde Setembro de 1641. O soldado de cavalos deixou uma extensa narrativa do assalto a Oliva, a qual contrasta com a brevidade com que a operação é descrita pelo Conde de Soure e até pelo Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado (edição on-line facsimile da edição de 1759, Parte I, Livro XII, pgs. 439-440). Os pormenores da incursão ainda estavam frescos na memória quando começou a passar as suas recordações para o papel, poucos meses depois, já no sossego de Águeda.

O general André de Albuquerque Ribafria estava a recuperar das pisaduras sofridas no combate de Arronches (onde caíra do cavalo logo no início da refrega e fora atropelado pela sua própria cavalaria, tendo sido mesmo dado como morto) quando lhe foi atribuído o comando da operação. Embora tivesse ainda um braço imobilizado e não pudesse montar a cavalo, fez-se transportar numa liteira. A sua reputação estava no auge e era muito estimado pelos subordinados.

Este lugar ou vila de Oliva estava sete léguas pela terra dentro, e tudo mui grandes azinhais e terra de matos. Contudo era lugar que dava grandes enfados e perseguições, e os lugares (…) que lhe ficavam em a raia, como era a vila de Moura e Serpa e Mourão e Monsaraz e Terena e o [A]landroal, todos estes nossos lugares eram abrasados desta Oliva, em razão que tinha em si duas companhias de cavalos mui boas, e todos eram homens da mesma vila, que toda a nossa campanha sabiam a palmos e aos olhos fechados, e como assim fosse de sorte ventura lhe dávamos em partida nenhuma que entrasse dentro em qualquer lugar destes. Mas a quem este inimigo perseguia com mais continuação era a vila de Moura, por ser terra de maior tráfego de campo e lavouras e gados, e achava o inimigo ali mais certa a pilhagem do que em outro qualquer dos mais. Além de que Moura também tinha sempre duas e três tropas de cavalo, mas nunca jamais podiam apanhar nenhum castelhano, e quando lhe saíam alguma vez sempre os corriam cinco ou seis léguas. De modo que teve esta vila de Moura e mais lugares este aperto e sujeição treze anos, até que Deus se lembrou deles para ficarem descansados, fazendo suas lavouras à sua vontade. (Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita (AHM), pgs. 366-367).

Segundo Mateus Rodrigues, a iniciativa da operação não partiu directamente do Conde de Soure, mas do governador Moura e mestre de campo do terço de guarnição da vila, D. Manuel de Melo, filho do Porteiro-Mor do Reino, e do próprio André de Albuquerque. D. Manuel de Melo comandava o melhor e mais numeroso terço da província do Alentejo e governava a vila desde 1647, mas nunca ousara falar aos governadores das armas na sua vontade de atacar Oliva, pois sabia bem os riscos que essa operação envolvia. Só depois da vitória de Arronches e da superioridade que a cavalaria portuguesa obtivera a partir daí é que D. Manuel de Melo deciciu revelar o seu plano ao general da cavalaria e ao mestre de campo general. Escreveu cartas a ambos, para Elvas, e logo D. João da Costa foi conversar com André de Albuquerque, de modo a saber se este estava em condições de comandar a operação. Encontrou-o ainda muito combalido, mas sempre animoso e decidido a tomar parte na arriscada empresa. D. Manuel de Melo, para além de ser uma pessoa de grande consideração devido ao alto cargo exercido pelo pai na Corte, oferecia o seu terço para assaltar a vila, sem ser necessário arriscar a cavalaria. Com 1.400 homens bem equipados e bem treinados, tinha por certo  o sucesso. E assim, D. João da Costa deu o seu consentimento ao plano, embora receasse pela diminuída capacidade física de André de Albuquerque.

(continua)

Imagem:  A partida dos soldados. Quadro de Philips Wouwerman.