A fortificação das praças do partido (distrito militar) de Riba Coa em 1657

Urgência na reparação ou na edificação de fortificações, falta de mão de obra e escassez de meios financeiros para concretizar os projectos. Três aspectos de uma constante da guerra em qualquer uma das fronteiras, que num caso específico – o do partido (ou distrito militar) de Riba Coa em 1657 – é abordado pelo respectivo governador das armas, D. Rodrigo de Castro, numa carta enviada ao Conselho de Guerra. Nessa missiva, avançava soluções para ultrapassar os obstáculos acima referidos.

Para conseguir mão de obra, propunha chamar a gente de guerra que ainda não tinha sido convocada para os terços de auxiliares e volantes (da ordenança, estes últimos, destinados a acorrerem, quando necessário, à defesa de qualquer local do partido militar). Já não iam à guerra nem a outro serviço militar há mais de 8 anos, e seriam 14.727 homens. Deveriam trabalhar em turnos de 8 dias, 400 homens em cada turno, o que faria 117.816 homens de trabalho, necessários para cavar 12.515 braças cúbicas de terra, abrindo fossos para a defesa das praças. Dando a esta gente pão de munição como se estivessem em campanha, orçaria em 1.531.816 réis. Daqui resultaria uma poupança para a fazenda real. É isso que salienta D. Rodrigo de Castro na sua carta: venho aforrar a real fazenda de Vossa Majestade de dezoito contos, quatrocentos e noventa e seis mil, cento e dezoito réis, porque esta obra, fazendo-a os mestres e pagando-se-lhes na forma da estrutura que tem feito, importa vinte contos e vinte e oito mil réis. Para sobresselente de pão de munição de dois meses, a nove mil rações da gente que há-de guarnecer as praças e do pé de exército para o socorro delas, são necessários trezentos e trinta e três moios e vinte alqueires de trigo.

O assentista não estava obrigado a dar este alimento pelo seu contrato, mas comprometeu-se a pô-lo em farinha nas praças, pelo que D. Rodrigo solicitava que o Rei lhe mandasse, por carta, agradecer. Também os moradores foram persuadidos a colocar nas praças 2.400 carros de lenha sem despesa para a fazenda real. Solicitava também D. Rodrigo que o rei mandasse colocar o que fosse necessário nas praças para alimento da gente delas, e que não vindo o inimigo a importunar se poderia vender, recuperando a fazenda real a despesa feita: 1.249 quintais de carne e outros tantos de peixe seco, 1.200 alqueires de legumes, 6.000 almudes de vinho, 200 de azeite, 550 de vinagre, que importariam 11.395.940 réis.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: Soldados assaltando uma fortificação, quadro de Peter Snayers, período da Guerra dos 30 Anos.

Marquês de Marialva

Retrato de D. António Luís de Meneses, 3.º Conde de Cantanhede e 1.º Marquês de Marialva (1596-1675).

Comandante do exército português que triunfou nas batalhas das Linhas de Elvas (14 de Janeiro de 1659 – nesta batalha comandou o exército de socorro que acudiu às forças sitiadas em Elvas, as quais estavam sob o comando de D. Sancho Manuel de Vilhena, que viria a ser Conde de Vila Flor) e de Montes Claros (17 de Junho de 1665).

A situação da Torre de São Gião (São Julião da Barra) em Abril de 1657

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A defesa de Lisboa a partir da barra do rio Tejo foi uma preocupação constante no decurso da Guerra da Restauração. Apesar da ameaça de um ataque da marinha de guerra de Filipe IV nunca ter sido concretizada, essa possibilidade manteve-se real, assente no exemplo de 1580. E em tempos mais recentes, o bloqueio imposto pela esquadra inglesa parlamentarista (em perseguição do Príncipe Rupert, sobrinho de Carlos I de Inglaterra, que viera abrigar-se em Lisboa em 1650) demonstrara as fragilidades da fronteira marítima e fluvial do Reino. Por esse motivo, são frequentes as consultas relativas à situação das fortalezas onde assentava a defesa costeira.

O forte de São Gião (conhecido actualmente por São Julião da Barra) era um dos pontos mais importantes dessa defesa. Numa consulta de 1657 são enumeradas as necessidades que a fortaleza e a sua guarnição tinham, bem como os meios que urgia pôr em prática para as suprir. Aqui fica a transcrição, vertida para a ortografia actual.

Memória de algumas cousas que convém se ordene logo na fortaleza de São Gião

1. Que a pólvora se troque logo com outra, por estar quase perdida a da Torre.

2. Que se façam reparos de sobresselente para as peças e se consertarem todos os que estiverem para isso, e porque as mantas não são de efeito, se deixarão somente doze peças nas carretas para qualquer ocasião repentina e as mais estarão em pontaletes ou abatidas e as carretas guardadas para quando sejam necessárias.

3. Que os soldados que estão naquela praça e forem de serviço se agreguem logo
às companhias dos capitães Martim Correia e Luís da Costa, por não terem ambas mais que cento e vinte.

4. E que os que não estiverem para servir, os desobriguem, e que o mesmo se faça com os soldados de Belém, porque S. Gião se há-de prover com duas companhias revezadas, e os de Belém por ramos, para que tenham sempre os soldados de sua lotação.

5. Que se procurem empreiteiros que tomem por sua conta fazer em S. Gião a obra que se aponta, para reparo da ruína que vai fazendo o mar, e tendo fianças bem abonadas e não passando o custo do que está orçado, se dará a ordem do Conde de Cantanhede para que a obra se faça. E quando não seja conveniente, que os buracos que o mar tem aberto e as pedras que tem comido se reparem pela melhor via que for possível.

6. Que à capela de S. Gião se aplique logo fábrica na forma que dantes a tinha, ou na que parecer mais conveniente.

7. Que o clérigo nomeado para assistir na cabeça seca se faça logo ir com efeito.

8. Que procure o Conselho o modo como se poderão acomodar os capitães e oficiais que agora se escusam em S. Gião.

9. Que para socorrerem as companhias que hão-de guarnecer S. Gião e as mais praças da barra, e os capitães e oficiais delas, convirá que toda a consignação que se paga na Alfândega para estes efeitos se entregue ao tesoureiro geral do Consulado, para que se pague por ele assim como se pagam as mais companhias do Terço da Armada.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, Maço 17, memória anexa à consulta de 5 de Abril de 1657.

Imagem: Forte de São Gião (São Julião da Barra) na actualidade.

A praça de Peniche em 1657 – mais um documento relativo à defesa costeira

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Por diversas vezes têm sido apresentados aqui documentos relativos à praça de Peniche durante a Guerra da Restauração, nomeadamente em 1644 (dois artigos) e 1657. Ainda relativamente a este último ano, aqui fica a transcrição de uma carta que, embora não assinada, terá sido provavelmente enviada ao Conselho de Guerra pelo governador das comarcas de Leiria e Torres Vedras, Manuel Freire de Andrade, a respeito da fortificação daquela vila.

Sendo Vossa Majestade servido mandar que a vila de Peniche se fortificasse conforme a planta que neste Conselho apresentei, se lhe deu princípio reconhecendo os fundamentos de que se tinha só notícia por informação dos moradores, como manifestei a Vossa Majestade, que afirmariam não haver mais que seis ou oito palmos de área por baixo da qual se acharia um salão capaz de se fundar nele.

Feita agora experiência se acha o contrário, porque tendo já abertos quinze palmos de alto, nem ainda com estacas que lhe fiz meter, de treze palmos mais, se acha firme. Pelo que considerando com grande atenção a capacidade do sítio, o quanto importa a fortificação daquela vila e o grande custo que faria sendo fundada sobre estacadas, me pareceu conveniente mudar-lhe a forma, recolhendo-a por dentro das marinhas com a que a planta junta representa.

Tem por este lugar de mais dos bons fundamentos que promete as vantagens das praças cuja fortificação em algumas partes se retira para o centro, sem participar do maior discómodo que é diminuir sua capacidade, porquanto esta vila a tem grandíssima, e é muito de notar que sendo suas defensas todas compreendidas do mosquete, não pode ser cometida por qualquer parte sem que o inimigo seja ofendido de toda, além de que se junta o fosso das costumadas inundações de área. Com estas comodidades se não deve reparar em algumas casas que corta em uma ponta da vila e em Peniche velho, por não serem de muita consideração, mormente quando quase todas não impedem a fábrica das muralhas, mas somente sua perfeição e fim da obra.

No demais se pode seguir em tudo a outra planta a que me remeto. Vossa Majestade mandará o que for servido. Lisboa, 26 de Setembro de 1657.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, carta de 26 de Setembro de 1657.

Imagem: Vista da fortificação seiscentista de Peniche. Foto de JPF.

A Torre de Belém em Abril de 1657 – um levantamento do estado da fortaleza

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Há alguns anos foi aqui publicado um artigo referente à Torre de Belém, a respeito de um levantamento efectuado em 1644 acerca da situação das fortalezas da costa portuguesa.

Treze anos mais tarde, quando se temia que uma armada espanhola atacasse Lisboa, concomitantemente à invasão que o exército comandado pelo Duque de San Germán estava prestes a encetar no Alentejo (e que culminaria na tomada de Olivença), a Torre de Belém encontrava-se no estado que uma consulta do Conselho de Guerra revela. O documento é aqui transcrito na íntegra, vertido para português corrente.

Senhor,

Ao Conde do Prado e Jorge de Melo mandou Vossa Majestade encarregar que fossem às torres da barra desta cidade, e que vendo o que necessitavam, as fizessem logo prover, ordenando a Rui Correia [tenente-general da artilharia – tratava-se do responsável supremo pela artilharia do Reino, hierarquicamente superior aos tenentes-generais da artilharia dos exércitos provinciais, apesar da designação ser idêntica] (ou por onde mais tocasse) lhes acudissem pontualmente com o que apontassem, até com efeito se repararem e proverem na melhor forma que convém. Deram princípio a esta comissão pela Torre de Belém, e conforme o que viram necessita precisamente do que se segue, e para logo.

– Há em Belém 13 peças de artilharia: 7 de 16 [libras], 1 de 24, 4 de 12 e 1 de 10. Toda esta artilharia está no chão, sem mais uso que se estivera em um armazém. Há mister [necessidade urgente de] reparos.

– Para segurar melhor a defesa são necessárias mais 6 peças de melhor calibre que for possível, e de melhor uso serão se forem de género colubrinas.

– Há um falconete de 2 [libras]. Convém haver mais 2 deste género para o ordinário serviço das salvas, porque se forra com isso grande gasto de pólvora. Pelo menos são necessárias mais 200 arrobas dela, porque se acham só 180.

– São necessárias 1.500 balas de 16 [libras], para as sete peças deste calibre que quase as não têm.

– São necessários 12 cestões para se cobrir a praça alta, que sem esta defesa impossível será laborar artilharia na ocasião.

– Há um condestável e cinco artilheiros. Pelo menos há-de haver um artilheiro para cada uma das peças, excepto o falconete.

– Não há nenhum mantimento, como costuma haver nas torres, de três anos a esta parte. Deve prover-se nesta parte como é estilo, reformando-se todos os anos, repartindo-se pelos soldados e tirando-se o novo emprego dos seus socorros.

– A casa baixa, que só é para os mantimentos, entra-lhe o mar pelas costuras da Torre. Há mister [ser] reparada.

– As covas da Torre hão mister o mesmo conserto, para se poder passar a elas a pólvora na ocasião; porque no alto está arriscadíssima, havendo-a.

– O rastilho está podre, sem serviço algum, deve-se-lhe acudir logo.

– Alguns fuzis das cadeias da ponte hão mister [ser] reformados, porque no estado em que estão não têm serviço algum.

– São necessárias 150 varas de pano para cartuchos, 12 peles para lanadas, enxárcia velha para tacos.

– Para as torneiras da praça baixa e principal são necessárias portas e argolas de bronze.

– São necessários 50 chuços, que são de grande serviço e não há nenhum na Torre.

– E porque Jorge de Melo está impedido ainda de assinar a ordem que ele e o Conde haviam de passar para este provimento, deu o Conde conta neste Conselho para que em consulta se faça a Vossa Majestade presente a necessidade de Belém, e porque se tem entendido de Rui Correia que há falta de dinheiro para este e semelhantes reparos que pedem remédio pronto. Parece ao Conselho que de qualquer efeito deve Vossa Majestade mandar acudir a tão grande falta, servindo-se Vossa Majestade de mandar nomear, no lugar de Jorge de Melo, outro conselheiro para com o Conde continuar nas mais fortalezas da barra esta diligência tão importante. E lembra o Conselho a Vossa Majestade que se se não houverem de remediar as faltas que se acharem, inútil coisa será ocuparem-se os ministros nesta comissão, perdendo o tempo que podem aproveitar em outras coisas do serviço de Vossa Majestade. Lisboa, 5 de Abril de 1657.

Acerca dos postos da artilharia portuguesa à época, nomeadamente o de condestável, veja-se este artigo.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, maço 17, consulta de 5 de Abril de 1657.

Imagem: Torre de Belém. Fotografia de JPF.

Os familiares dos soldados desertores – um apontamento de 1657

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A deserção era muito comum nos exércitos do século XVII. Durante a Guerra da Restauração, tanto as unidades de soldados pagos como de auxiliares (e em particular estes, pois era sob coerção que na maior parte dos casos serviam) registavam elevados índices de abandono não autorizado das fileiras. As reconduções levadas a cabo pelas autoridades militares, de tempos a tempos, não se limitavam a exigir aos fiadores dos desertores, quando os soldados não eram encontrados nas suas terras e residências, o pagamento estipulado por lei. Por vezes, os familiares eram presos, como forma de coagir os militares ausentes a apresentarem-se. Mas esta forma de represália não tinha o apoio do Conselho de Guerra e era considerada injusta e abusiva, além de contraproducente.

Um caso particular, remontando ao ano de 1657 e ainda na sequência da perda da praça de Olivença, ilustra a forma como a repressão era efectuada sobre os familiares dos desertores e de que modo o Conselho de Guerra apoiava as reclamações dos populares. Um grupo de mulheres detidas na cadeia de Vila da Feira endereçou ao Conselho uma petição para que fossem postas em liberdade. A culpa que lhes fora movida era a de não darem conta às autoridades dos seus maridos e filhos que haviam desertado.

Em resposta à consulta que torna com esta ,e se fez a Vossa Majestade sobre Maria Antónia, Maria Zuzarte [e Maria Gomes] e as mais mulheres nela nomeadas, presas na cadeia da Vila da Feira por não darem conta, umas de seus filhos, outras de seus maridos soldados pagos e auxiliares por se ausentarem das fronteiras, foi Vossa Majestade servido mandar responder, que repare o Conselho, se com este exemplo, terão ao diante grande prejuízo as reconduções dos soldados tão necessários para as ocasiões presentes.

Ao Conselho, e havendo visto a resposta que Vossa Majestade foi servido mandar deferir à consulta inclusa, parece que não convém ao serviço de Vossa Majestade que os fiadores dos soldados sejam obrigados a mais que repor as pagas que receberam, mas não a entregar a pessoa que vive em seu livre alvítrio e anda por donde quer, e com menos razão os pais aos filhos, e as mulheres os maridos; porque de os entregarem, se podem seguir os inconvenientes de os filhos perderem o respeito aos pais, e os maridos terem ruim presunção das mulheres que os entregam ao suplício, e poderem haver filhos e maridos tão libertos, que se lhe dará pouco que sejam os pais e mulheres molestados e vexados, e assim só eles devem ser castigados em suas pessoas, mandando Vossa Majestade encomendar muito aos ministros da justiça e da guerra procurem com todo o cuidado e diligência de prenderem estes e os mais soldados que acharem fugidos, como por várias vezes se lhes tem encarregado, que Vossa Majestade lho terá por serviço, e que as mulheres presas nomeadas nas petições inclusas na consulta citada sejam soltas. Lisboa 15 de Dezembro de 1657.

A 20 de Dezembro foi decretada, por ordem régia, a libertação das mulheres presas na Vila da Feira.

Fonte: ANTT, CG, Consultas, 1657, maço 17-A, consulta de 15 de Dezembro de 1657.

Imagem: Gerard Terborch, “A carta” (trombeta de cavalaria entregando uma carta a duas mulheres).

Situação da praça de Peniche em Março de 1657

Fortaleza de Peniche

Já em duas ocasiões anteriores foi aqui focada a praça de Peniche, mais concretamente o estado da vila e fortaleza em 1644. Desta feita, é a capacidade defensiva daquela praça em 1657 que aqui se traz, através de uma carta enviada ao Conselho de Guerra, em 22 de Março daquele ano, pelo então governador de Peniche e das comarcas de Leiria e Torres Vedras, Manuel Freire de Andrade.

Na referida carta, o governador refere que, para dar cumprimento a uma ordem régia recebida em carta de 17 do mesmo mês, deixara a ocupação em que estava, que era a leva dos auxiliares de pé e de cavalo e a recondução de soldados fugidos, e passou a Peniche para fazer a relação do que faltava àquela praça para defesa dela. No seguimento dessa inspecção  apresentou o seguinte relatório:

Nas 2 companhias daquele presídio não há mais de 125 soldados pagos, quando cada uma deveria ter 150, e ainda se guarnecem as Berlengas com 25 soldados.
No forte estão 11 peças de artilharia de bronze, de 18, 16, 10 e 3 libras de calibre, e havia mais 8 ou 10 peças de ferro de pouco préstimo, e nenhuma destas peças tem carretas que não se apeiem logo ao primeiro disparo, por estarem gastas do tempo e do pouco cuidado que se houve no resguardo delas. Há oficiais e madeiras, e se se acudir logo a esta falta, se poderá remediá-la.

Na casa de armas haverá 500 arcabuzes e mosquetes bem tratados, mas não há para eles um só frasco [de carga de pólvora], nem bandolas. Não chega a oito quintais a corda que há no armazém. Haverá no máximo 55 quintais de pólvora, e houve mais uns tempos atrás, mas não sabe o governador os descaminhos que levou. Não havia mais do que nove cunhetes de balas de mosquete e arcabuz. Os artilheiros são ao todo 11, mas um deles é inútil por estar entrevado, dois assistem nas Berlengas, e nos 8 restantes não viu entre eles um homem conhecedor do seu ofício.

Na praça não há abastecimentos de género nenhum, e não só sendo necessários, acresce algum presídio de auxiliares. Há na terra o que dar a comer aos soldados, mas convém ter de sobresselente para qualquer aperto que se ofereça, e também para prover às Berlengas, porque estiveram os soldados desde o início da Quaresma até à data da elaboração do relatório sem comerem, por não dar o tempo lugar a os poderem socorrer, e era o aperto tão grande que os julgaram por mortos, e na véspera de Manuel Freire chegar a Peniche lhes meteram, apesar do risco do mar, vinte sacos de biscoito e um pouco de arroz e outras coisas necessárias, e tudo chegou em boa ordem. Manuel Freire deu ordem para que lhes fizessem chegar mais abastecimentos.

Da fortificação, o que está obrado lhe pareceu bem, porém não é o suficiente, pois que se o inimigo desembarcar e ganhar a vila (que não tem nenhuma defesa) pelas casas que ficam junto do forte, poderá durar pouco a resistência. Manuel Freire diz que se deve fortificar a língua de areia que faz entrada para a vila, porque ao resto o fez a Natureza inexpugnável. E em pouco tempo mal se poderá fazer obra tão grande, porém se pode remediar consertando-se a plataforma que está em Peniche o Velho, metendo-se mais artilharia, porque tem só 3 peças de ferro. E o mesmo se pode fazer na ponte, crescendo-lhe algum terraplano, para ficar a artilharia que se puser em sítio mais superior. E também se deve consertar a plataforma do cais novo, para que fique cruzando a artilharia a entrada de Peniche, fazendo-se de uma plataforma à outra uma trincheira de terra e faxina.

O Rei, por decreto de 14 de Abril, manda advertir a Rui Correia Lucas que tenha em conta as recomendações.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, consulta de 27 de Março de 1657.

Imagem: vista aérea da fortaleza de Peniche; imagem do blog Espaço e Memória, da Associação Cultural de Oeiras.

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (5ª parte)

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Despedido o capitão castelhano da tenda do senhor Joane Mendes de Vasconcelos, foi à pressa a dar conta ao seu governador, e (…) sempre foi e veio por a brecha, e assim como ele subiu à brecha em cima da muralha, dali chamou ao governador (…). Resolvido o governador a aceitar [as capitulações], o tornou logo a mandar ao nosso exército, à tenda do senhor Joane Mendes (…).

Aceites de parte a parte os pactos, cessaram os rigores das armas, para alívio da gente, que na verdade nos servira de grande discómodo e perda se houvera mais dilação, porque nos vinha já perseguindo muito o rigor do tempo, que é o pior que pode ter um exército, porque uns de mal haver pedece pouco, que comer com mau tempo é mal dobrado.

Mandou logo o senhor Joane Mendes preparar um terço de infantaria e mandou chamar o mestre de campo dele, por nome Agostinho de Andrade [Freire]. (…) Havia ele de ficar com seu terço na praça, e com duas tropas de cavalo logo juntamente, nomeadas as do capitão João Ferreira da Cunha e a do capitão Diogo de Barros Freire, lhe encomendava a praça, pois ficava no estado em que a via.

Ora desgraçada foi esta parte para o tal mestre de campo, porque em lugar de rectificarem ao senhor Joane Mendes do caso que dele fazia naquela ocasião, em lhe encarregar uma praça de tanta honra, e aberta daquela maneira, parece deu razão dizendo havia mister mais gente e mais cavalaria e outras razões, e que o senhor Joane Mendes se houve por muito mal aceite dele, dando-lhe logo uma repreensão não muito boa, e mandando-o logo embora, que não queria que lá ficasse. Foi-se o tal mestre de campo com alguma paixão [ressentimento] e desgosto por suceder nele aquela tão ruim sorte.

Mandou logo chamar a outro mestre de campo, por nome Francisco Pacheco Mascarenhas, natural de Besteiros, soldado de 22 anos [de serviço] com grande reputação no nosso exército, e pela ocasião de Mourão, um mês antes, passou ao posto de mestre de campo, e donde passou foi de capitão de cavalos couraças, que havia oito para nove anos que o era da minha companhia (…), e a este mestre de campo lhe haviam dado um terço novo, levantado a maior parte em Lisboa e em seu termo, de gente muito bisonha e de pouco préstimo, tirando os oficiais, e já neste tempo da campanha estava muito pequeno por lhe haverem fugido a maior parte deles.

Veio (…) este mestre de campo diante do senhor Joane Mendes e lhe pôs a mesma prática que havia feito ao outro, acerca dele ficar na praça, e ele lhe deu uma resposta que de Francisco Pacheco não se esperava menos, e com tanta graça e gosto aceitou a oferta, como que se lhe deram uma comenda, porque não o podia o senhor Joane Mendes mandar para parte nenhuma (…) que Francisco Pacheco rejeitasse, que é grande seu amigo o senhor Joane Mendes, pois foi no Brasil seu alferes antes deste Reino levantado. Louvou-lhe o senhor Joane Mendes muito o bom modo e graça com que aceitava o ficar na praça, que se muito por ele até ali havia feito, muito mais há-de fazer dali em diante. Que na verdade fez tão grande obra sua assistência em Mourão, que não me parece pudesse ficar lá pessoa alguma que em tão pouco tempo fizesse as obras que ele lá fez, até o tempo de 30 de Março de 658, que dela me ausentei. (MMR, pgs. 439-441).

Imagem: Muralha de Mourão na actualidade. Foto de JPF.

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (4ª parte)

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Os partidos [capitulações] pedidos pelo inimigo eram na maneira seguinte: que a praça se rendia, sendo servido o senhor Joane Mendes de lhe conceder levassem as duas tropas de cavalo que na praça estavam, e levassem todos o seu fato e bastimentos de Sua Majestade; e armas às costas e bala em boca e mecha calada, e que todos os portugueses que (…) lá houvessem ficado quando eles renderam a praça haviam de passar pelo partido de castelhanos, não se lhe fazendo agravo algum, e que querendo eles ficar outra vez na praça ficariam livres como de antes em suas fazendas, e se quisessem ir para Castela o poderiam fazer, e que poderia o seu governador levar uma peça de artilharia consigo, visto o privilégio de ser mestre de campo [o] concedia (…)

Representados estes partidos diante do senhor Joane Mendes de Vasconcelos e do senhor André de Albuquerque [Ribafria], mestre de campo general, e do senhor Dom Sancho Manuel, outrossim mestre de campo general, e do general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, começaram estes quatro senhores do governo, e juntos também alguns mestres de campo e outros oficiais maiores (…) para se deferir, a isto não constava o consentimento, em primeiro lugar do governador das armas e os dos mestres de campo generais, e nestes senhores consistia o deferir-se os partidos. Logo Dom Sancho respondeu que não havia lugar de consertos, pois eles tinham a muralha rota, de modo que se podia entrar nela batalhões de gente e debaixo da sua mosqueteria e com uma mina feita que havia de voar muita parte da muralha por onde pudessem avançar livremente, e que não largavam 80 ou 100 cavalos que lá estavam por coisa alguma; enfim, que Dom Sancho não era de parecer lhe aceitassem partidos. O senhor Joane Mendes, como mais experimentado e visto nestas coisas, e lhe parecer que sempre deferir ao inimigo os seus partidos é razão de Estado e o permite a guerra, agora o serem como eles os pedissem ou não, aí está o ponto. Contudo, respondendo o senhor Joane Mendes (…) que no tocante ao seu governador levar peça alguma, que nisso não consentia, nem tão pouco levarem nenhum género de mantimento, nem de munições d’El-Rei, nem coisa alguma, salvo o seu fato e bagagem de suas pessoas, que para levarem lhe daria todas quantas cavalgaduras eles houvessem mister até dentro de Olivença. (MMR, pgs. 436-438).

 

Imagem: “A capitulação”, de Jan Steen.

 

 

A campanha de Mourão em 1657 (um pequeno interregno)

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Afazeres profissionais e pessoais têm impedido uma maior assiduidade aqui. Conto retomar no próximo mês a campanha de Mourão de 1657, segundo as memórias de Mateus Rodrigues.

Imagem: Mourão. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

 

 

 

 

 

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (3ª parte)

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Pelos outros ataques, de roda da praça, estavam outros terços, e estes entravam uns e saíam outros de guarda cada vinte e quatro horas, para não terem uns o perigo e outros não.

Quando foi lá pelo decurso do dia de sexta-feira, já na muralha principal estava uma grande brecha aberta (…). Vendo o inimigo a muita obra que a nossa artilharia fazia, não deixou de ficar atemorizado (…) e logo se imaginou perdido de todo. Vendo o inimigo a impossibilidade de poder livrar a praça e o mais vendo não tinha aviso nenhum de socorro, se determinou a pelejar dentro da praça, fazendo pelas ruas grandes retiros e trincheiras, imaginando que nós os avançassemos a escalar sem partido, e de dentro fazia conta de se defender, e não há dúvida que nos fariam grande dano e matariam muita gente se acaso os escalassem.

Amanheceu o sábado 27 do mesmo Outubro e achou-se estar a mina que ia ao contramuro acabada, e dando-se fogo a ela, abriu uma brava brecha no muro pequeno, donde logo num improviso avançou o terço da Armada a meter-se dentro, e em seu seguimento muitos terços e cavalaria com bravo valor, botando fora às pancadas alguns castelhanos que de dentro dele pelejavam, e alguns ficaram pelas costas. Vendo o inimigo o contramuro ganhado, que já nos não podia ofender com armas de fogo, começaram a lançar muitos penedos grandes da muralha abaixo, através das casas, sobre os nossos, e papéis de pólvora, e como os nossos estavam muito baixos, não deixava o inimigo de lhe fazer muito dano, que ali feriu alguns e matou desta sorte (…). Nem por isso o inimigo fazia retirar a gente do posto que tinham, e a todo este tempo a nossa artilharia jogando fortemente e fazendo grande efeito na muralha principal, o que não se imaginava jamais por ser uma muralha muito antiga e muito forte (…), mas com tanta força jogavam os seis meios-canhões juntos (…) de tão perto da muralha, que estavam dela menos de tiro de pedra. E uma vez abalavam e outra vez derrubavam parte da muralha (…). E a nossa mosquetaria que não deixava assomar pessoa viva do inimigo à muralha, e assim estavam os nossos pelejando muito a seu salvo, mas um ora por outro morria algum nosso, que lá lhe buscava o inimigo jeito por onde obrasse.

(…) Visto a muralha estar daquela sorte, considerando isto o inimigo consigo, foi tanto o serviço que fez da muralha (…) para se defender dentro da praça (…), que foi uma coisa grande, que não havia rua lá dentro da vila que não tivesse seu retiro com trincheiras por todas as ruas, e covas, e ao pé da muralha, aonde estava a brecha aberta, da banda de dentro tinham uma trincheira feita, muito alta, com sua cova, em caso que os nossos avançassem, para dali nos fazerem grande dano.

Quando foi pelo decurso do dia de sábado, continuando sempre a nossa artilharia, se veio a fazer uma tão larga brecha na muralha e tão baixa, que já podiam entrar por ela como por uma rua (…). Vendo o inimigo o estado destas coisas, e que não podia livrar, e não tendo notícias algumas de socorro seu, se determinou a pedir consertos [ou seja, capitulações].

Chegada a aurora de 28, no domingo do dito, se determinou o inimigo  a pôr (…) logo uma bandeira branca na muralha, à vista do exército, para que cessasse o rigor das armas de ambas as partes, para efeito de tratarem os pactos que pediam. Estavam dentro da praça duas tropas de cavalos, que constavam de 80 cavalos, e por cabo delas um só capitão, por nome Dom Luís de Barrio, grande cavalheiro e muito fidalgo, que não havia dois meses que o havíamos cativado à roda da mesma praça (…).

Este Dom Luís de Barrio foi mandado pelo seu governador que lá estava, que era um mestre de campo, a tratar dos partidos. E assim como foi vista a bandeira branca na muralha, cessaram as armas de ambas as partes, e veio ao nosso exército o sobredito capitão, à tenda do senhor Joane Mendes de Vasconcelos, e logo lá foi outro capitão de cavalos, por nome Jerónimo de Moura Coutinho, para ficar na praça em refém [a troca de reféns durante a duração das capitulações, como garantia de boa-fé de ambas as partes, era um procedimento usual]. (MMR, pgs. 433-436).

Imagem: Mourão. Fotografia de JPF.

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (2ª parte)

IMG_1321Na quinta-feira, pelo meio dia, que se contaram 25 do dito Outubro, acabou de chegar todo o nosso exército à roda e circuito da praça, aonde se assentou muito bem entrincheirado. Que na verdade, por ser pouca gente, estava bem preparada e melhor governada, sem falta de coisa alguma, somente o dinheiro não era muito, que para quem o tivesse não lhe faltava tudo quanto por ele quisesse comprar.

Constava este exército de 14 terços de infantaria toda paga, que teriam sete para oito mil infantes, pouco mais ou menos, e muito boa gente, e dois mil e quinhentos cavalos, muito gentil cavalaria, é verdade, que neles entravam seis tropas que vieram da província da Beira, que tudo fazia número de dez mil homens, pouco mais ou menos.

Constava mais de catorze peças de artilharia, a saber: seis meios-canhões de 24 libras e as mais eram pequenas, de campanha, e todos de bronze.

Constava mais de três mil cavalgaduras, que carregavam os mantimentos e apetrechos de guerra. Andavam em os comboios levando mantimentos e coisas necessárias para o exército, que o vinham buscar aos lugares circunvizinhos, que por muito que um exército leva, não pode deixar de haver comboios.

Constava mais de quinhentas carretas que levavam os cavalinhos de pau e outras coisas muitas de apetrechos de guerra e mais de cem carros manchegos.

O nosso exército acabara de chegar ao sítio na quinta-feira pelo meio-dia, estando a praça já atacada do dia e noite antecedente (…). E assim como o exército chegou, se foram entrincheirando bravamente, com um fosso de grande altura [seria mais próprio dizer: de grande profundidade] e por fora ainda os cavalinhos de pau, que é um bravo engenho para reparo da cavalaria do inimigo. E não tão somente era o cuidado de se entrincheirarem, senão por todas as vias se trabalhava com bravo cuidado também nas minas, que uma se fazia para a muralha principal e outra para o contramuro. E na mesma noite se trabalhou tanto nas plataformas da artilharia, aonde ela se havia de pôr, para dali bater a muralha, que quando amanheceu na sexta-feira, 26 do dito Outubro, já seis meios-canhões de 24 libras estavam postos nas plataformas, muito bem cobertas de boa trincheira de muita sacaria de lã e de terra, que não se via da muralha donde o inimigo pelejava mais que as bocas das peças. E no mesmo tempo que eles começaram a jogar da muralha, começaram também a jogar os trabucos das bombas, que não tivemos artifício de fogo que mais dano fizesse ao inimigo (…), porque cada bomba das nossas pesava quatro arrobas [perto de 60 quilos], e mais é, em caindo uma bomba lá dentro na vila, fazia tanto estrago que aonde caía, se era em casa alguma, toda ficava por terra, (…) e as mesmas pedras das casas que as bombas arrasavam, essas matavam e feriam muitos castelhanos, e o que não caía senão em alguma rua ou terreiro, os pedaços que dela saíam, por onde davam, tudo levavam de coalho.

(…) Continuando-se (…) com a bateria das peças, que faziam tanto efeito que todo o exército se estava alegrando, vendo o muito que obravam, (…) assistia o general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, que fazia como grande soldado que ele é, e o tenente-general da mesma artilharia Paulo Vernola (…); assistia mais nesta bateria Dom Sancho Manuel, mestre de campo general (…), e estava também Luís Gomes de Figueiredo, mestre de campo do terço da armada, que é um bravo soldado e o terço é o melhor que há no exército. Vejam bem se estava a bateria das peças mal acompanhada. (MMR, pgs. 429-433).

Imagem: Mourão. Fotografia de JPF.

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (1ª parte)

IMG_1259A derradeira presença do soldado Mateus Rodrigues no Alentejo ocorreu entre 1657 e 1658, mas deste período apenas deixou uma descrição detalhada da campanha de Mourão. Abandonara o exército da província do Alentejo nos inícios de Fevereiro de 1654, ao fim de quase doze anos e meio de serviço e poucos dias antes da publicação do decreto régio que fixava em oito anos consecutivos o máximo tempo de serviço que um soldado pago devia cumprir antes de ser desmobilizado. Regressado à sua Águeda natal, ali casou, o que devia escusá-lo definitivamente de ser reconduzido ao cenário de guerra. No entanto, regressaria ao Alentejo três anos depois, obrigado pela fome. De acordo com as suas palavras,

(…) ninguém diga deste pão não hei-de comer, por farto que se veja, porque lá vem um ano mau de fome que obriga a comer (…) tudo quanto há. Pois o fim foi (…) que para mim houve tanta fome (…) que me obrigou a que fosse outra vez a ver as ditas guerras, desterrando-me a fortuna um ano inteiro fora de minha casa. (Memorial de Matheus Roiz, pg. 423)

O destaque dado à campanha de Mourão no derradeiro capítulo das suas memórias é justificado pelo soldado de cavalos pela sua afeição a Joane Mendes de Vasconcelos. Desejava assim destacar a “fama, valor e sabedoria” daquele cabo de guerra, logo secundado, na admiração e devoção do autor, pela figura de André de Albuquerque Ribafria.

Olivença e Mourão caíram em poder dos espanhóis no decurso da campanha de 1657. Se a primeira daquelas praças, tomada em Maio, foi uma perda de monta, principalmente pelo impacto negativo no moral (era uma das principais da fronteira alentejana e um dos vértices do triângulo defensivo Elvas-Campo Maior-Olivença), já Mourão – perdida em Junho – se revelou um problema maior para os portugueses. A partir dali, o inimigo fazia incursões nos campos do termo de Monsaraz, rapinando lavouras e gado, aldeias e montes, o que levava muitos moradores a abandonarem os seus haveres e casas, não se sentindo seguros.

Entradas de maior envergadura e alcance levaram a cavalaria inimiga até demasiado perto de Évora. Daí as repetidas queixas e solicitações à Rainha regente, para que ordenasse a reconquista de Mourão e o fim dos sobressaltos. É que sendo a região em redor de Olivença pouco povoada, não dava a perda daquela praça tantas preocupações como Mourão, cuja posse abria caminho ao controlo ou saqueio de vastas e férteis terras.

A Rainha acabou por ordenar a Joane Mendes de Vasconcelos que preparasse uma campanha destinada a retomar a praça. Todo o processo foi mantido em segredo, para que não constasse o verdadeiro objectivo do exército a formar. A partir daqui, sigamos a narrativa de Mateus Rodrigues.

Junta a gente das províncias, como era um terço de infantaria do Algarve muito bom, mas pequeno; e os de Lisboa, um terço novo da Câmara, e o da Armada; e com as tropas da Beira e muita quantidade de auxiliares de todas as comarcas deste Reino, para ficarem de guarnição nas praças, se saiu na maneira seguinte:

Aos vinte e um dias de Outubro, ao domingo à tarde, saiu o senhor Joane Mendes e o senhor André de Albuquerque com a maior parte do exército e com toda a artilharia, que constava de seis meios-canhões de 24 libras e oito peças de 12 libras e trabucos e outros artifícios de fogo.

Chegaram a Vila Viçosa pela manhã, onde fizeram alto até à tarde, donde se puseram outra vez em marcha. E chegando no outro dia pela manhã a Terena, que são duas léguas, mas muito grandes e de muito mau caminho para a artilharia, (…) aí fizeram alto e por decurso da tarde começaram a marchar, chegando à quarta-feira a Monsaraz, que já não fica mais de uma légua de Mourão. E aí se fez alto até de noite, que começou a marchar a carriagem para Mourão.

Tornando agora (…) atrás, digo que Dom Sancho Manuel, mestre de campo general na província do Alentejo, que suposto governa o partido de Penamacor, foi feito por Sua Majestade, na ocasião desta campanha, mestre de campo general, e daí ficou para sempre, (…) que merece como todos o metam na conta, como é o general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, que obrou em seu cargo como adiante se verá.

Digo que Dom Sancho Manuel marchou diante do grosso do exército com seis terços de infantaria e um grosso de cavalaria de 600 cavalos com suas bagagens, e quando o nosso exército chegou a Monsaraz à quarta-feira, já Dom Sancho tinha amanhecido com o seu grosso à roda de Mourão, atacando a praça, de modo que nunca foi possível poder o inimigo lançar fora aviso algum, e alguns que botava, todos lhos apanhavam cá fora. E como o inimigo não via mais que aquele pouco grosso, fazia zombaria dos nossos. Começou a jogar com sua artilharia e mosquetaria, mas com pouco efeito, porquanto os nossos estavam encobertos e não recebiam dano do inimigo, nem o inimigo também recebia dos nossos, porque eles não podiam pelejar em forma até que não chegasse o nosso exército todo junto. (MMR, pgs. 427-429)

Imagem: Monsaraz. Fotografia de JPF.

 

Organização do trabalho de fortificação das praças do partido de Riba Coa (província da Beira) nos inícios de 1657

Na sequência do que já aqui foi exposto sobre o partido de Riba Coa nos inícios de 1657 (material de guerra e situação das forças militares), vem a propósito referir as propostas do governador das armas, D. Rodrigo de Castro, para organizar o trabalho de fortificação das praças daquele partido.

Propunha o governador mobilizar a gente de guerra que ainda não tinha chamado aos terços de auxiliares e volantes (da ordenança, portanto, estes últimos) e que já não iam à guerra nem a outro serviço militar há mais de 8 anos, e que seriam 14.727 homens. Deviam trabalhar por turnos de 8 dias, de 400 homens cada turno, o que faria 117.816 homens de trabalho, necessários para cavar 12.515 braças cúbicas de terra, abrindo fossos para a defesa das praças. Dando a esta gente pão de munição como se estivesse em campanha, orçaria em 1.531.816 réis, o que, segundo D. Rodrigo de Castro, iria poupar à fazenda real dezoito contos, quatrocentos e noventa e seis mil, cento e dezoito réis, porque esta obra, fazendo-a os mestres e pagando-se-lhes na forma da estrutura que [se] tem feito, importa vinte contos e vinte e oito mil réis.

Para reserva de pão de munição destinado a dois meses, a nove mil rações para os que haviam de guarnecer as praças e para o pé de exército para o socorro delas, seriam necessários trezentos e trinta e três moios e vinte alqueires de trigo. O assentista não estava obrigado a dar este alimento pelo seu contrato, mas comprometeu-se a pô-lo em farinha nas praças, pelo que D. Rodrigo solicitou que o Rei lhe enviasse uma carta de agradecimento (na verdade, na menoridade de D. Afonso, seria D. Luísa de Gusmão, a Rainha regente, a fazê-lo).

Também os moradores foram persuadidos a colocar nas praças 2.400 carros de lenha sem despesa para a fazenda real. Solicitava igualmente D. Rodrigo que a Coroa mandasse colocar o que fosse necessário nas praças para alimento da gente delas. Não indo o inimigo atacar as praças, se poderia vender esse alimento, recuperando a fazenda real a despesa feita: 1.249 quintais de carne e outros tantos de peixe seco, 1.200 alqueires de legumes, 6.000 almudes de vinho, 200 de azeite, 550 de vinagre, que importariam 11.395.940 réis.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, carta de 14 de Março, anexa à consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: “Cerco de uma cidade flamenga por soldados espanhóis”, óleo de Joahnnes Lingelbach, década de 50 do século XVII.

A situação militar do partido militar de Riba Coa (província da Beira) nos inícios de 1657

Em complemento ao que foi apresentado acerca da situação nas praças do partido de Riba Coa, trago a lume um outro levantamento da situação, este referente aos efectivos e às dificuldades de pagamento, igualmente remetido ao Conselho de Guerra pelo governador D. Rodrigo de Castro e sensivelmente pela mesma altura do anterior.

Por ordem da Coroa, enviada ao governador em finais de Janeiro de 1657, devia o terço pago daquele partido ser reenchido de gente (era o termo utilizado na carta régia) até ao limite da sua dotação. E que o mesmo fizesse com os terços de auxiliares e as companhias de cavalaria da ordenança, tudo da maneira mais suave que se conseguisse – ou seja, sem levantar grandes protestos por parte da população.

Em resposta, recordou D. Rodrigo as dificuldades por que passava a província, à qual estava previsto remeter apenas seis mesadas para pagamento da gente de guerra e cobertura de outras despesas, de 5.600 cruzados cada uma (um cruzado equivalia a 400 réis), mas que na realidade se materializavam em três pagas somente, restando menos do necessário para os pagamentos de todo o ano da 1ª plana da corte, hospital, correios, artilharia, atalaias, sentinelas da raia e muitas outras despesas; e que com aquelas três pagas por ano não podia subsistir a gente de guerra sem os saques, vilas ganhas e presas feitas em Espanha. No entanto, estando toda aquela raia tão destruída de ambos lados da fronteira, não era possível aos soldados recorrerem à referida alternativa como até então faziam. Tudo isto lembrava D. Rodrigo de Castro para dizer que, se se acrescentasse gente ao terço pago, não receberia soldo mais do que duas vezes ao ano, e com os 2.140 réis que cada soldado levava nas duas pagas, seria impossível sustentarem-se, vestirem-se e calçarem-se um ano inteiro.

O terço encontrava-se com 709 infantes, e D. Rodrigo dizia que faria acrescentar os 800 que faltavam para a sua lotação sem despesa da real fazenda. Mas pedia para que se aumentasse o montante das mesadas, pois que o recrutamento se faria sem as pagas iniciais, mas se iria guarnecer a província, além das munições que se davam aos auxiliares que faziam turnos de um mês de guarnição às praças, que naquela província eram 9 na raia e 32 atalaias, as quais ficavam melhor defendidas com aquela infantaria paga. E acrescentava na carta enviada ao Conselho de Guerra que teria a infantaria sempre pronta para acudir ao Alentejo. Relembrava também que , na anterior ocasião em que governara aquele partido de Riba Coa, havia deixado os terços de auxiliares armados e com o número de gente que lhe fora ordenado pelo Rei, mas que após 3 anos de ausência da província se tinham desfeito de tal forma que, quando regressam do serviço de guarnição, nunca trazem o efectivo inicialmente destacado de soldados e nenhum deles vem armado.

Apontava uma solução para ter aquela gente pronta e capaz de servir: fazer como na cavalaria, em que se tinham dado patentes a 4 comissários gerais, um de cada comarca, e assim deveria ser com os mestres de campo de cada terço de auxiliares, que serviriam sem soldo, sendo somente pagos os sargentos-mores e ajudantes, para assim darem disciplina e instrução militar, o que não acrescentaria despesa de maior reparo. Porque sendo o mestre de campo de cada comarca, assim como a gente do respectivo terço, este marcharia mais facilmente com comodidade e confiança.

Não era somente a infantaria a preocupar o governador. Também a cavalaria da ordenança se encontrava afectada pela falta de cavalos, pois muitos tinham morrido ou ficado estropiados nos últimos 3 anos, e não havia cavalos suficientes na província para se comprarem. D. Rodrigo ordenou que os homens que fossem obrigados a ter cavalos os comprassem, adiantando dinheiro para os que não os tivessem, de modo a mandar vir alguns da comarca de Esgueira.

O Conselho de Guerra ficou satisfeito com as sugestões de D. Rodrigo de Castro e solicitou que a Regente lhe agradecesse o zelo e cuidado com que servia. Em 22 de Março, um decreto régio mandava que se cumprisse o parecer do Conselho.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, consulta de 19 de Março de 1657.

Imagem: “Soldados e senhoras elegantemente vestidas jogando no interior de um corpo de guarda”, pintura de Jacob Duck.

Material de guerra existente nas praças de Riba Coa em Março de 1657

Duas cartas de D. Rodrigo de Castro para o Conselho de Guerra, datadas de 4 e de 11 de Março de 1657, dão conta da situação das praças do partido de Riba Coa, que o futuro Conde de Mesquitela governava, e do material de guerra aí existente.

Havia à época 42 peças de artilharia naquele partido militar, com o seguinte detalhe:

Artilharia para sair em campanha:

– 5 meios-canhões de bronze que necessitavam de reparos, com suas guias e carros matos. Com a ferragem que havia nos velhos, podiam ferrar-se três reparos com dois pares de rodas, e podiam consertar-se, com pouco custo, as rodas para as guias e um carro. Faltavam demais sobressalentes e tabuões para as respectivas esplanadas (posições preparadas onde eram colocadas as peças) e calabreses grossos e miúdos para serem tiradas em campanha.

– 4 quartos de canhão de bronze, para os quais eram necessários 4 reparos com guias e outros tantos carros matos. Havia reparos nos velhos para três reparos com rodas, e havia dois pares delas sem ferragem. Faltavam-lhe sobresselentes, tabuões para as esplanadas e calabreses miúdos e grossos para estas peças serem tiradas em campanha.

– 4 falconetes de bronze. Havia ferragem para os reparos, rodas e guias, era necessário sobressalente, tabuões para as esplanadas e calabrês para saírem em campanha.

A artilharia que não estava prevista sair em campanha também era referida em detalhe:

– Para 2 colubrinas de bronze, faltava tudo o que não fosse ferragem para um reparo com as respectivas rodas.

– Para 1 colubrina de bronze faltavam rodas e ferragem.

– Para 1 meio-canhão de bronze, havia ferragem para o reparo e rodas.

– Para 6 sacres de bronze, havia somente ferragem para três reparos com as respectivas rodas.

– Para 2 meios-canhões de ferro havia ferragem para um reparo e rodas.

– Para 17 peças de ferro, havia ferragem para 5 reparos e rodas.

Necessitava-se, para as peças que haviam de estar na muralha, de madeira para guaritas, e de cocharas, lanadas e soquetes para todas.

Material de guerra existente nos armazéns

Nos armazéns da província havia 117 arcabuzes consertados, 770 piques, 230 forquilhas, 720 frascos, 630 bandolas de mosquete e arcabuz, e 30 de carabinas. Alguns dos frascos estavam desconsertados, e havia 144 arcabuzes e 333 mosquetes desconcertados (ou seja, avariados ou truncados). Para a infantaria havia 104 corpos de armas, mas nenhuns para a cavalaria, nem carabinas e pistolas, do que estava a cavalaria muito necessitada. Por isso, D. Rodrigo de Castro solicitava o envio de 200 carabinas, 150 pares de pistolas e 200 corpos de armas.

Outras necessidades: 1.513 quintais e 116 arráteis de pólvora, 25.200 balas, e para os 9.000 homens que haviam de guarnecer as praças, à razão de meio arrátel por dia, e a dois arráteis por todo o tempo dos dois meses que haviam de sair em campanha, eram precisos 1.210 quintais e 76 arráteis de pólvora; e de balas sorteadas de outros tantos, e o mesmo de morrão, para o que só havia nos armazéns 211 quintais de pólvora, 116 de balas sorteadas, 225 de morrão, 2.011 balas de artilharia. Destas, escrevia D. Rodrigo, havia no Fundão grande quantidade, embora ainda não soubesse ao certo o número de balas.

Na segunda carta, de 11 de Março, dá conta D. Rodrigo de Castro que se preparava para reunir os 3.000 infantes e 200 cavalos que a Coroa mandou estarem a postos para acudir ao Alentejo, dos quais infantes, no entanto, não poderiam ir só os pagos e auxiliares, porque todos juntos não perfaziam os 3.000 necessários. Seriam necessários 4.500 infantes para guarnecer as 9 praças principais, acasteladas, que havia na raia, com fortes e artilharia, e de um pé de exército de 3.000 ou 4.000 homens.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, cartas anexas à consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: “Combate de cavalaria” (pormenor), pintura de Pieter Meulener.

Sobre o capitão holandês Manuel Cornellis e a sua companhia de cavalos

A respeito do capitão Manuel Cornellis, oficial holandês que serviu vários anos a Coroa portuguesa, já foi publicada uma série de artigos. No último destes, foi feita uma abordagem sucinta ao processo judicial decorrido entre 1648 e 1649, que determinaria a perda de privilégios por parte do capitão de cavalos e o seu afastamento, ainda que provisório, do comando da companhia. A escassez de referências a Cornellis nos documentos de anos subsequentes tinham-me levado a crer que o capitão tivesse deixado o serviço por volta de 1654. Todavia, uma consulta do Conselho de Guerra de 1657 mostra que, nesta data mais avançada, o oficial holandês não só se mantinha em Portugal, como se encontrava de novo no comando da sua companhia.

A consulta aborda uma petição de Manuel Cornellis. Nela, o capitão de cavalos refere ter necessidade de gente na sua companhia, e explica que, tendo tido informação de que um António Correia de Sequeira tinha sido condenado em três anos de degredo para um dos lugares de África, por ter sido encontrado de noite com uma pistola pelo meirinho da correição de Elvas, e sabendo que o dito soldado tinha já satisfeito as condenações pecuniárias, o persuadiu a assentar praça na sua companhia como soldado durante três anos, não recebendo soldo até que o Rei lhe fizesse mercê de tal. Expõe também que António Correia de Sequeira é soldado de muito préstimo, havendo já servido 10 anos na cavalaria com muita satisfação, e servido de guia em incursões a Castela.

A petição de comutação da pena encontrou o apoio do Conselho de Guerra, que mandou primeiro remeter a dita petição ao Dr. Jorge da Silva Mascarenhas, Juiz Assessor. Como a culpa não foi “escandalosa” (ou seja, de muita gravidade), o Conselho de Guerra deu o parecer favorável à petição, por ser mais preciso e de maior utilidade o serviço que podia fazer o soldado neste Reino, do que nos lugares de África.

O decreto régio de 20 de Março de 1657 manda aplicar o parecer do Conselho de Guerra.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, consulta de 16 de Março de 1657.

Imagem: Soldado de cavalaria armado de carabina, meados do século XVII.

Necessidades de material de guerra na província de Entre-Douro-e-Minho, 1657

O 2º Conde de Castelo Melhor, governador das armas da província de Entre-Douro-e-Minho, expôs em duas cartas enviadas ao Conselho de Guerra, em 13 de Agosto e 24 de Setembro de 1657, as necessidades que o seu exército tinha para poder encetar uma campanha ofensiva na Galiza durante o Inverno de 1657-58. Fez acompanhar uma delas da lista exaustiva do material indispensável, que intitulou “Ramo das Couzas e aprestos do Trem da Artilheria que hé nesessario pêra Hum exercito de oito mil Infantes, noueçentos Cauallos, & dous mil gastadores, Campearem dous mezes, em tempo de Inuerno, e fazer acometimento de Praça“.

Contudo, os conselheiros não se mostraram muito entusiastas na apreciação do pedido. Somente em Janeiro de 1658 apreciaram as cartas e a relação do material, e solicitaram à Rainha Regente que ouvisse de novo o Conde sobre as necessidades de defesa da província. Foi dada prioridade às tarefas defensivas: os quatro conselheiros (Pedro César de Meneses, o Conde do Prado, Salvador Correia de Sá e Rui de Moura Teles) reconheciam o valor e a experiência de Castelo Melhor na defesa e conservação de Entre-Douro-e-Minho, mas só Pedro César de Meneses referiu a possibilidade de conduzir uma guerra ofensiva na Galiza. Havia, sobretudo, que não descurar o Alentejo e a Corte (ou seja, a capital do Reino) ao enviar reforços para a província setentrional. A Rainha, em decreto de 5 de Fevereiro de 1658, mandou que se aplicasse o parecer de Moura Teles, que era conforme ao da maioria dos conselheiros.

Sem pretender transcrever exaustivamente a lista, apresenta-se aqui algum do material de guerra nela referido, pois ajuda-nos a ter uma percepção mais concreta do equipamento do exército português do período. Deste modo, o governador das armas solicitava o seguinte:

Artilharia

– 4 meios-canhões de 24 libras de bala.

– 2 quartos-de-canhão, ou meias-colubrinas, de 12 libras de bala.

– 4 bastardas ou peças de campanha de 8 libras.

Todas as peças deviam estar aparelhadas de todo o material necessário, incluindo sobresselentes. E recomendava o Conde: Estas dez peças acima hão-de ser de cano seguido, e de metal de toda a conta.

Munições para a artilharia e armas de fogo individuais

– Para as peças de 24 libras: 192 quintais de pólvora e 1.536 balas. (Um quintal equivalia a 4 arrobas, ou seja, um total aproximado de 45 quilos)

– Para as peças de 12 libras: 77 quintais de pólvora e 1.152 balas.

– Para as peças de 8 libras: 135 quintais de pólvora e 3.840 balas.

– Para se encherem 300 bombas de morteiro e para se encherem 1.000 granadas de mão: 25 quintais de pólvora.

– Para 5.000 armas de fogo necessárias para equipar 8.000 infantes: 300 quintais de pólvora.

– Para as 5.000 armas de fogo: 400 cunhetes de balas de chumbo de mosquetes biscaínhos e holandeses.

– Para as mesmas armas de fogo e para a artilharia: 250 quintais de morrão.

– Para os 900 soldados de cavalos propostos: 8 quintais de pólvora fina.

– Para a cavalaria: 10 cunhetes de bala miúda para pistola.

São ao todo 737 quintais de pólvora, 410 cunhetes de balas, 250 quintais de morrão, 6.528 balas de artilharia.

Armas e equipamento para a infantaria e cavalaria

– Armas de sobresselente para a infantaria e a cavalaria: 800, entre mosquetes e arcabuzes biscaínhos e holandeses, com suas forquilhas e frascos.

– 1.200 piques.

– 100 pares de pistolas com suas bolsas.

– 50 carabinas com suas bandolas.

– 50 selas e freios para cavalos.

– 2.000 pederneiras (para as pistolas da cavalaria).

– 200 pares de esporas.

– 50 corpos de armas com murriões (ou seja, peito, espaldar e capacete, equipamento defensivo para os cavaleiros).

– 50 alabardas (para os sargentos).

– 50 rodelas de ferro e outras tantas espadas largas cortadeiras (para os capitães das companhias de infantaria, ou para os voluntários em operações especiais).

– 60 borrachas grandes para levar, cada uma delas, uma arroba de pólvora (uma arroba: cerca de 11 quilos).

– 4.000 estribos pequenos para a cavalaria.

– 4.000 ferraduras de cavalos.

– 20.000 cravos para as ferraduras.

Fonte:  ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1658, mç. 18, consulta de 31 de Janeiro de 1658.

Imagem: Granada de mão (século XVII). Utilizada no combate próximo de infantaria, principalmente no assalto a fortificações ou em zonas urbanas. Foto de Jorge P. Freitas.

Cerco e tomada de Olivença (10ª e última parte – de 23 a 31 de Maio de 1657)

Mapa

[23] [Nota de Horácio Madureira dos Santos: No original está erradamente indicado o dia 24] – Partiram os enviados 4ª feira pela manhã, e nesse dia tornou o padre António de Matos trazendo do Conde general largas promessas de socorro, com que foi grande a alegria que houve na vila comummente em todos. Levava João Mendes Mexia uma instrução que o governador e o Du Four fizeram, em que pediam, afora o que já tinham pedido, que creio era pólvora, que lhe mandassem 1.500 infantes, e nesses viessem duzentos rodeleiros [soldados armados de espada e rodela – escudo pequeno e redondo – que eram empregues em missões especiais], e que esses, em chegando, guarnecessem a estrada encoberta e surtissem pelos aproches do inimigo, e sustentassem o que fosse ganhado, e que ele tinha outros 200 da gente da vila com que render aos que viessem.

E assim lhe mandassem 130 cavalos com um bem valente cabo, e lhe mandassem vinho para as missas, e medicamentos para os feridos, e que se resolvessem em socorrer a praça, o que podia fazer pela parte de Santa Catarina ou pela serra. Afora estas, levava outras advertências. E o sargento-mor Manuel de Magalhães mandou outra instrução por João Rodrigues, lavrador prático, e foi à torre a lhe mostrar o sítio e lugar por onde o socorro podia entrar e por onde o havia de guiar. E para que o inimigo não buscasse os enviados e lhes achasse este papel, o estudou de memória Simão Lopes de Oliveira.

Foram os nossos enviados bem recebidos no exército, e dele partiu pela posta um, que foi João Mendes Mexia, e veio à Corte a pedir socorro. Nós estávamos na praça esperando pelo nosso exército, que viesse conforme à promessa, porém ele se não movia; assim passámos até tornarem os enviados, sem haver de novo outra coisa mais que mandar o governador dar pão de munição a quase todo o povo.

[28] – 2ª feira pela manhã chegaram os enviados à praça, tendo sido retidos um dia do exército do inimigo, e vieram com promessa de socorro; querem alguns senhores e cabos que lhes deram frias esperanças.

O capitão António Barbosa de Brito trazia, sem os outros saberem, uma ordem do Conde general para o governador, e era assinada também pelo mestre de campo general e pelo dito capitão, escrita em um pedaço de papel, que era mais de um quarto, e nela dizia que Sua Majestade, que Deus guarde, por carte de 25 do corrente lhe ordenava que o avisasse de sua parte, lhe mandasse que não guardasse a capitulação feita com o inimigo, nem entregasse a praça,antes a defendesse até pela defensa dela derramar a última gota de sangue. Continha este papel o modo e sinais que se farião, e finalmente que o exército socorreria a praça a todo o risco, em conduzindo a gente que dele se tinha divertido [quer dizer, após reagrupar os soldados que se encontravam dispersos ou que tinham desertado do exército de socorro].

Para ver esta ordem chamou o governador a câmara, nobreza e povo, clérigos e todos os cabos da guarnição, capitães e daí para cima, e propôs que El-Rei [na verdade, a Rainha regente] mandava aquilo, mas que para o executar não havia pólvora para mais que três dias, e poupando-a para quatro, que o punha a votos, e que me pedia que eu os tomasse a todos, assinando cada um o seu.

A mim me pareceu que a ordem se devia executar, e não pôr em conselho, e entre outras coisas que mais disse foi este meu voto. Mandei de tudo fazer auto pelo escrivão da câmara, e por ser a casa do governador pequena e a gente muita, e estar mal acomodada, me passei paraa igreja de Santa Maria, aonde me chegou recado que somente a câmara, clero, governança e povo tomasse os votos, e que os da guerra lhos tomaria o governador. Assim o fiz, e de todos os que votaram só seis ou sete foram de acordo que a capitulação se guardasse, e destes ficaram quatro em Castela, os mais votaram que a praça se defendesse.

Mandei estes autos ao governador e ele mos tornou, dizendo que fosse com um homem da governança a ver a pólvora que tinha e me desenganaria eu e eles; eu lhe respondi que Sua Majestade me tinha mandado uma certidão do almoxarife, em que declarava a pólvora que tinha, que me parecia quantidade bastante, se se gastasse com boa ordem, e não tinha outro parecer senão o que já tinha dito. Disse-me então o procurador, que era o capitão Manuel Mendes Mexias, que o governador, estimulado do meu voto e dos da governança, estava de acordo de queimar os armazéns e formar os terços, investir as linhas, e salva-se quem se salvar.

Eu lhe dei em resposta que a ele lhe ordenavam que defendesse a praça, e não que a perdesse desta ou da outra maneira, e que nem tudo o que dizia podia fazer. Pela tarde apareceu o nosso exército em Vila Real com cavalaria avançada, em modo de nos vir socorrer.

Neste dia entregou o governador todos os armazéns, artilharia e munições e mantimentos a D. Diego de Rueda, e fez esta entrega o Du Four.

29 – 3ª feira mandou o governador ao capitão da ordenança João Lourenço Matos que fosse levar os reféns ao nosso exército; ele foi, e os primeiros que levou não lhos aceitaram, dizendo que haviam de ser à vontade do governador que contratou e que dessa não constava. Sendo disto avisado o governador, deu um rol de seis, os quais eram o Conde de Medellin, o filho do de Montijo, o do Marquês de Barcarrota, D. Rodrigo Mexia, D. Francisco de Guzmán, o Conde del Axenal, e deu um escrito em que dizia que se satisfaria com dois; destes foram levados ao nosso exército o filho 3º do de Montijo e o de Barcarrota, e os aceitaram.

30 – Era o dia final da entrega quarta-feira pela manhã, e sendo já bem tarde, não tinha vindo o nosso capitão a nos fazer certo que os reféns estavam já no nosso exército, contudo chegou com uma hora de dia. O Duque pedia a entrega, o governador dizia que conforme o contratado não havia de sair o povo e guarnição, senão em um dia pela manhã, e que depois de ele sair entraria a sua guarnição, e que aquela hora era tarde, que amanhã faria a entrega. Contudo lhe entregou logo a praça, largando-lhe a porta de São Francisco e o baluarte do mesmo santo, e o de São Brás.

Entrou a bagagem do castelhano, o Duque e alguns cabos e particulares. O nosso exército esteve sempre à nossa vista, esperando algum movimento nosso que não houve.

Ao outro dia, que era 5ª feira, saiu o povo, ficando lá somente, por então, 43 casais, e passaram para cá 942 largando suas casas e fazendas, e ainda dos que ficaram pedem bagagem para virem muitos.

Em meio do caminho nos mandaram fazer alto, e se lançou em nome de El-Rei de Castela um bando em que prometiaa todos os que ficassem que não pagariam alcavalas, nem teriam alojamentos, nem na praça meteriam guarnição estrangeira, senão de espanhóis, que dariam aos moradores razão e o mais que dessem aos soldados, que lhes reformariam as casas que arruinou a artilharia e lhes guardariam seus foros e privilégios, e lhes concederiam outros maiores, contudo nenhum tornou para trás. E vieram ao nosso exército, e daí se repartiram pelos lugares de Borba, Vila Viçosa e Elvas, aonde pelas justiças e câmaras lhes fizeram suas boas passagens.

Antes de Manuel de Saldanha [governador da praça] chegar ao exército, foram 20 cavalos levá-lo preso a Vila Viçosa, de onde depois foi passado à Torre de Belém. O mestre de campo João Álvares de Barbuda foi levado a Évora Monte.

A perda de Olivença teve como resposta, no ano seguinte, a fracassada tentativa de tomada de Badajoz pelos portugueses. A empresa partiu da iniciativa de Joane Mendes de Vasconcelos, cuja opinião tinha sido até aí contrária  a toda e qualquer operação de cerco àquela importante praça raiana. Ainda em 1658, foi a vez de D. Luís de Haro iniciar o cerco de Elvas, que culminaria em Janeiro do ano seguinte na batalha das Linhas de Elvas, da qual o exército português saiu vencedor. Pode afirmar-se que a tomada de Olivença pelo exército espanhol inaugurou o período final da guerra na fronteira alentejana, durante o qual se registou um aumento de intensidade das operações militares. Mas ao contrário do que foi temido aquando da perda da praça pelos portugueses, o revés de Olivença não conferiu grande vantagem estratégica aos exércitos de Filipe IV: toda a região raiana, de um lado e de outro da fronteira daquela parte, estava bastante devastada e incapaz de servir de apoio a exércitos numerosos. De facto, até ao nível das operações de saque e pilhagem, a guerra no Alentejo e na Extremadura flectiu mais para sul, para os campos do Baixo Alentejo e os domínios dos Duques de Medina-Sidónia, que até aí haviam sido relativamente poupados às acções de guerra.

Olivença seria devolvida à soberania da Coroa portuguesa após o Tratado de Paz de 1668.

O texto, cuja transcrição (com ortografia actualizada) ora se conclui, corresponde a um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Nova et accurata tabula Hispaniae, de Cornelis Dancker, c. 1656 (detalhe do mapa). A vila de Olivença, que no mapa não se encontra legendada, está aqui assinalada a vermelho. Biblioteca Nacional, Cartografia, CC 1214 A.

Cerco e tomada de Olivença (9ª parte – de 16 a 22 de Maio de 1657)

Juromenha

[16] – Ao amanhecer deu o inimigo a última investida e meteu no forte quantia de cinquenta homens, sem forma, os quais chegaram até o meio do vão dele e daí tornaram a recolher-se ao vão do fosso; então se retirou a infantaria que aí estava, e o tenente Manuel Pacheco, montando já em outro cavalo, a trouxe toda a salvamento, sem perder homem algum, ainda que dos de cavalo perdeu muitos. Acudiu Domingos Álvares Rogado, cabo dos rocins e éguas da sua terra [cavalaria da ordenança], e rechaçaram aos que entraram no forte, e acabou a infantaria de se pôr em salvamento na nossa estrada encoberta.

O inimigo perdeu muita e a melhor gente nesta investida, entre eles o sargento-mor de D. Pedro Alvarez de Toledo, e a um mestre de campo irlandês, pelo qual fizeram grande sentimento; na algibeira deste se achou a relação do seu terço e tinha 159 praças, contando sete da primeira plana em cada companhia.

Neste dia se pôs em conselho se se recolheria a guarnição da estrada encoberta, porque o inimigo pela parte do forte e dos ataques nos fazia dano; resolveu-se que sim, e pelo meio-dia se recolheu com pressa, sem haver quem os seguisse, contudo deixaram por retirar mortos e munições e madeiras de cortaduras, e outras coisas, como cavalinhos de pau, que tudo ficou no fosso. Fecharam-se as portas e se terraplanaram com a artilharia do cavaleiro, e do baluarte de S. Pedro se bateu o Forte Velho ocupado pelo inimigo, e suposto lhe mataram muita gente, não lhe arruinaram a parede que ficava para a nossa parte, assim por ser a parte dela de formigão, como porque o inimigo a ia terraplanando com faxina e terra.

[17] – Todo o dia de quinta-feira trabalhou o inimigo no terraplano do Forte Velho e fez plataforma nele, ainda que lhe não vi nela artilharia. Meteu de guarda um terço, que ao parecer teria trezentos homens; a nossa artilharia lhe fazia grande dano, por estar a gente mal coberta. Neste dia, por noite, se mandou um correio ao Conde de S. Lourenço.

[18] – 6ª feira todo o dia se pelejou bem, e por noite se despediu a Diogo Soares para levar cartas ao Conde general [Conde de São Lourenço]. Pela meia-noite se viu um sinal em Juromenha, de que o nosso correio era ali chegado. Neste dia tornaram a assistir em cada um dos baluartes os três homens da nobreza e governança, que de antes estavam nomeados; o inimigo fez muitas cortaduras de faxina no fosso do forte ganhado, porque estava descoberto à nossa mosquetaria do baluarte de São Pedro, e por elas se veio chegando à estrada encoberta por aquela parte.

19 – Sábado por noite fez sinal Juromenha de que o nosso correio era chegado àquela praça; de tarde se viram na atalaia de S. Robes Vieira fumaças, de que se deu parte ao governador. De tarde fez o inimigo chamada, e a ela mandaram o capitão António Barbosa, e trouxe recado [do] que o Duque dizia. Quinta-feira, 17 do presente, acometeu o nosso exército a escalar Badajoz, e fora rechaçado com perda de 500 homens, e assim o Conde [de São Lourenço], desesperado, se recolhera com parte do exército para Campo Maior e parte para Elvas, e ele desfeito como estava ficávamos impossibilitados de socorro, e assim nos convinha entregar a praça, para o que se faziam todos os bons partidos, aliás [ou seja, em caso contrário] a força, a fogo e sangue.

Trouxe esta embaixada o general da artilharia Tarragona, e a chamada a fez o tenente João de Vilanova, soldado conhecido e prático. Recolhido o capitão com o recado, sucedeu que o inimigo, pela parte de São Pedro, disparou uma peça de artilharia, com que nos matou um soldado; fez-se queixa ao governador, e ele mandou que desde o baluarte de Santa Quitéria até o de São João atirasse quem visse a quem, e daí para diante houve cessação de armas; foi um ajudante com a ordem para uma parte, e outro para outra, mas o que mandou atirar chegou primeiro, com o que os soldados pela muralha foram atirando à roda e com tanta presteza, que por toda a parte se deu uma redonda carga que lhe matou muita gente, principalmente a artilharia, contudo se mandou cessar por uma e outra parte.

Deu-se em resposta ao inimigo que um exército de 20.000 homens como o nosso se não derrotava com perda de 500, nem o governador estava certo disso; que a ordem que tinha era de pelejar, para o que tinha pólvora e balas, que o senhor Duque fizesse o que melhor lhe parecesse. Despedido o da chamada, se deu outra carga redonda de mosquetaria e artilharia, e ficámos à bateria como dantes. Estava pela parte [do baluarte] da Rainha chegado o inimigo com o seu ataque, sem haver entre ele e a nossa estrada encoberta maior distância que a grossura da tapa que fazia face ao parapeito, e daquele lugar se pelejou muitos dias até com manguais, contudo o suposto largámos a estrada encoberta; o inimigo não rompeu para ela, nem passou ao fosso, mas porque o devia fazer para chegar à muralha, e o fazia com menos risco de noite, lhe punha o De Four uns fachos acesos, que lançava no fosso, com o que tudo ficava claro, e nós vendo se o inimigo obrava alguma coisa.

Pareceu-lhe, ao sargento-mor Manuel de Magalhães, que se o inimigo entrasse poderia facilmente apagar os fachos que estavam no chão, e assim ordenou outros, que foram os candeeiros da Misericórdia com novelos de azeite, que a Câmara deu os necessários, e pendurava estes da muralha bem acesos, e davam luz bastante, com que o fosso ficava bem claro.

Desta maneira, de dia e de noite, até terça-feira 22 deste mês, neste fatal dia para Olivença, fez o inimigo chamada pela uma hora depois do meio-dia; veio a ela o Tarragona, que sempre foi o que as fazia, e tornou a pedir que se tratasse das antigas capitulações; o governador veio nisso, e mandou ao ajudante Domingos Martins Porto que me fosse pedir o primeiro original delas, que me tinha ficado. Estava eu dormindo no corpo da guarda da Corna e chegou o ajudante e me acordou, dizendo da parte do governador que lhas desse. Eu as tirei da algibeira e lhas dei, e tornei a dormir, quando daí a pouco ouvi grande rumor, e me acordou o sargento, dizendo [“]Senhor, acuda Vossa Mercê ao capitão Barbosa, que o mata o povo[“], e me disse que era motim, em razão de que se capitulava com o inimigo. Eu acudi e o capitão já era livre e enviado ao governador, aonde fui a informar-me do que passava, e ele me disse que o nosso exército nos não socorria e que o inimigo lhe concedia três dias para mandar a ele enviados, que o queria fazer porque desse modo punha a praça nas mãos do Conde general, se a quisesse socorrer, que podia, porque cá tinha no exército tudo o que podia esperar, e se não quisesse, que então o dito general a entregava com a não socorrer, e não ele.

Eu não consenti em o termo, nem em muitos artigos, e assim chamei a Câmara e governança e povo, e juntos fomos a Santa Maria, e levei a capitulação que o governador me largou, e lá fiz quatro artigos. O primeiro, que os moradores pudessem levar tudo o que seu fosse no termo de 8 meses, ainda que as coisas que quisessem levar fossem mantimentos ou coisas defesas [proibidas] de passar de um Reino para outro, e que pudessem deixar um feitor para lhas vender se lhes estivesse bem, e remeter o procedido delas, e querendo-as trazer, lhe daria o Duque bagagem, comboio e segurança necessária.

O segundo, que de qualquer modo que o nosso exército se afrontasse com o do inimigo e pelejassem, ainda que fosse só com a artilharia, não seríamos obrigados a estar pelo capitulado. O terceiro, que de qualquer modo que fôssemos socorridos e com qualquer número de gente que fosse, ficaríamos livres do capitulado. O quarto, que o Duque nos daria tempo de dez dias, e lugar para neles mandarmos sete enviados para dar conta ao Conde general do estado da praça, e que estes poderiam dentro deste termo passar e repassar pelo seu exército com toda a segurança, e se lhes daria um comboio [escolta] até chegarem ao nosso exército.

O primeiro intento que tivemos nisto foi desavirmo-nos com o Duque, e em caso que tudo concedesse podia o nosso exército, com qualquer gente que tivesse, vir de S. Ildefonso, aonde estava, para o quartel da Amoreira, ou tomar outro que melhor lhe conviesse, e pondo-se à bateria com o inimigo, nos iria defender, e em qualquer boa hora nos socorresse, ainda que furtivamente com algum número de gente, e parece que bastaria qualquer socorro para o inimigo largar a empresa, ou nós podermos tornar a guarnecer o que lhe tínhamos ganhado.

Fizeram-se outros motins contra algumas pessoas, o governador mandou formar na sua porta três companhias de infantaria, e assim as teve até o dia da entrega. Entendeu o governador que, para dar satisfação ao Paço do que se tratava com o inimigo, convinha mandar com o seu capitão algum homem da governança, e assim mandou naquele dia ao tenente Rui Peres Sardinha [oficial da cavalaria da ordenança – era muito frequente os oficiais das companhias da ordenança serem membros do poder local; por exemplo, vereadores das câmaras], e ao outro dia a Lourenço Galego Fajardo e o padre António de Matos, e de outra vez a Fernando Gomes de Cabreira e o padre Manuel Frade Lobo, e outra vez a João Farinha Lobo; porém, estes não levavam ordem demais que ouvirem o que se dizia e o capitão tratava.

Dilatámos a resposta acima, e ficou para responder-se ao outro dia até o meio-dia, o que o inimigo levou muito contra sua vontade, mas esperou até o outro dia pelas dez horas [que] se lhe respondesse; assim, ele concedeu oito dos dez dias pedidos, e sem conceder mais coisa alguma do que de novo pedimos, concluiu o governador com o seu conselho este negócio, e mandou reféns, que foram o mestre de campo João Álvares de Barbuda e o capitão Manuel de Brito do Carvalhal, que governava o terço de Beja, e de lá vieram o Conde de Torrejon e o sargento-mor D. Diego de Rejeda.

Estando já neste estado a praça, pediu o governador que na Câmara nomeássemos os sete homens qu haviam de ir ao exército, e entre outros me nomearam a mim e ao sargento-mor Manuel de Magalhães Galvão; porém ele disse que em nenhum caso podia ficar sem nós, porque temia alguma invasão, ou desavença do inimigo; com isto nomeámos, com seu acordo, a João Mendes Mexia, que é o que passou à Corte, e Fernando Gomes Cabreira, Gil Lourenço Codesa, vereador, o capitão António Barbosa de Brito, Simão Lopes de Oliveira, João Rodrigues, lavrador, e para os levar e vir com certeza de que lá ficavam, foi o padre António de Matos Mexia, a quem Sua Mejestade fez mercê da abadia de Carrapeto.

(conclui na próxima parte)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Juromenha – praça com a qual a vila de Olivença mantinha comunicação por sinais visuais à distância (fogos, à noite), durante o cerco de 1657. Foto de J. P. Freitas.

Cerco e tomada de Olivença (8ª parte – 14 e 15 de Maio de 1657)

Olivença1

14 – Segunda-feira pela madrugada, pela parte donde foi o assalto, veio um soldado valão com um arcabuzaço [ferida provocada por uma bala de arcabuz] pelo pescoço e pediu aos nossos que, pelo amor de Deus, o recolhessem e lhe dessem um confessor. Levaram-no para o hospital, onde viveu três dias. Este [o soldado] nos disse que o nosso exército tinha sitiado Badajoz, que o inimigo mandara a sua cavalaria com mil infantes e os metera dentro da cidade. Na manhã deste dia amanheceram duas peças na plataforma de São Pedro e uma na de São Bartolomeu, de onde o inimigo não tirava havia já três dias; trabucou e lançou nove bombas na praça, com que arruinou algumas casas.

Pelo meio-dia fez o inimigo chamada pela parte do olival de João Cabelos, e veio a ela D. Francisco Ventura Tarragona, seu engenheiro-mor e general da artilharia; pediu muito encarecidamente, queria falar ao governador, o que não conseguiu.

Segunda vez pediu que se tratasse das capitulações acerca da entrega da praça, e instando sempre que queria falar ao governador, o qual lhe mandou dizer que já não havia quem se lembrasse de tal contrato.

Terceira vez pediu tréguas de duas horas, e licença para tirar os seus mortos que a outra noite lhe tinham ficado [no campo], e se lhe respondeu que de cá se mandariam enterrar, porém alguns disseram ao governador que lhos deixasse levar, que era estilo em toda a guerra o conceder-se, e então lhe mandou dizer que os retirasse embora; levaram 28 corpos que ficaram pegados nas estacas da estrada encoberta, e entre eles D. Pedro Alvarez de Toledo; um castelhano que ainda estava vivo recolhemos para dentro e se curou no hospital; este nos informou do atrás referido.

Pela tarde tornou a fazer chamada o mesmo Tarragona, e pediu com grande instância que queria falar ao governador e que se tratasse dos pactos  entrega da praça, e foi respondido como da outra vez. Na tarde deste dia deu uma bala de artilharia em André Fernandes, de quem acima falei, e lhe levou o braço esquerdo, o que sentimos muito por ser moço de grande valor.

[15] – 3ª feira, pelas oito horas do dia, saiu o inimigo dos seus ataques pela parte do Ral, e investiu a nossa estrada encoberta, e os seus soldados treparam em cima do nosso parapeito, e os nossos os rebateram, e se pelejou porfiadamente até se atirarem com pedras. Neste tempo, dois soldados desmontados naturais da vila se arrojaram ao ataque do inimigo, atirando-lhe com pedras, com o que lho fizeram largar e saírem fugindo; os nossos saíram fora desordenadamente atrás deles, e saindo para os recolher o alferes do mestre de campo Belchior Lopes do Campo, lhe deu o inimigo com uma bala, de que logo morreu, e os nossos soldados se meteram dentro do ataque do inimigo, onde lhe mataram muita gente, e lhe tomaram mais de 150 armas e muitas granadas.

Durou este combate mais de sete horas, em que se pelejou com grande esforço; feriram-nos o alferes Teixeira e o alferes Cristóvão Peres, e o ajudante Bartolomeu Martins Pestana e mais de trinta soldados, e mataram mais de vinte; os nossos guarneceram o ataque ganhado.

Neste dia arrasou o inimigo o forte da Atalaia do Castelo Velho, e com quatro troços fez uma linha que saía das suas para o outro do Poceirão; na noite este dia se passaram para o inimigo dois soldados do Flores.

Nesta terça-feira, em dando meia-noite, avançou o inimigo pela parte de São Brás para divertir, e logo avançou pelo ataque ganhado, em que tínhamos sentinelas somente, e o tornou a cobrar, e juntamente avançou [a]o forte, ou coroa, que estava só com sentinelas, e entrou dentro, mas com perda de gente, e muito mais pela parte do reduto velho, que guarnecia o alferes Lemos com 20 soldados, os quais o defenderam valorosamente muito tempo, até que o entrou o inimigo, e dos que estavam à defesa não sabemos que escapasse algum.

O tenente Manuel Pacheco, com trinta cavalos, rechaçou o inimigo e o lançou fora do forte, e vindo pedir gente para o guarnecer lha não deu o sargento-mor João Rodrigues Coelho, e o pedindo a segunda vez, o governador mandou ao capitão Agostinho Aragonês por uma banda, e ao capitão António Tavares de Pina pela outra, que fossem a desalojar o inimigo e guarnecer o forte, o que fizeram; porém, o capitão Tavares recebeu uma bala pelo rosto em meio caminho, com o que o retiraram, e morreu o seu sargento Manuel Velho e muitos soldados seus; o engenheiro Gilot ia diante do capitão alguns passos, e recebeu uma bala pelo peito direito, de que logo caiu morto.

O tenente Manuel Pacheco se retirou a pé por lhe terem morto o cavalo, e o capitão Aragonês chegou ao forte a todo o fim dele, e o inimigo ficou desalojado, se não foi [ou seja, excepto] do fortim velho, que era cerrado por toda a parte, e sempre o inimigo o sustentou por seu.

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Olivença; foto de J. P. Freitas.

Cerco e tomada de Olivença (7ª parte – 13 de Maio de 1657)

Gerards Cannon

13 – Domingo pela manhã  mandou o governador ao capitão Rui Vicente de Matos que, com sua gente, fosse segar trigo para faxina pela parte da herdade da Azenha, e ele foi com 50 homens dos da terra, soldados seus, uns com foices e outros com armas para escolta; estando segando lhe pediu licença um, para chegar a fazer tiro a um castelhano que via andar perto colhendo favas, e ele o deixou ir, atrás deste intentou ir outro, e ele o quis deter, com isto pela outra parte se lhe foram outros, e finalmente os das foices tomaram as armas e todos juntos investiram o aproche do inimigo, que era o de Corna; como o capitao os não pôde deter, embraçou a rodela, e com a espada na mão se pôs diante, e furiosamente investiram o inimigo.

Estava ele advertido e tinha bem guarnecido aquela parte, e companhias de reserva, e assim fez resistência algum espaço, mas os nossos carregaram de armas e se tornaram sem haver nenhum ferido, só dois soldados do terço do governador e um auxiliar, que andavam no [palavra ilegível], se foram lá a despojar sem levar armas, e mataram dois e levaram um; de lá trouxeram um sargento para língua.

Muita parte deste sucesso se deve aos outros capitães da terra que, como viram empenhado o seu camarada, saíram em seu favor e obraram como sempre. O governador fez grandes mostras de sentimento por esta facção se fazer sem ordem sua, e falou muito mal a todos, dizendo que não fizeram nada, e outras palavras bem mal consertadas.

O governador da praça intentou mandar fazer outra surtida pela parte do Ral com 200 homens, parte deles rodeleiros, a qual não se conseguiu, porque o capitão Castilho [Stéphane Auguste de Castille], que governava a cavalaria, se descobriu com ela antes de tempo, e o inimigo tocou arma e reforçou as guarnições.

Um batalhão de cavalaria do inimigo que passava pela outra banda de Ramapalhos recebeu duas balas da nossa artilharia, que abriram duas boas ruas, com morte de muitos soldados e cavalos; neste dia nos feriram três cavaleiros que estavam de sentinela pela parte de São Pedro.

E como nunca fizemos surtida que não recebêssemos logo assalto de noite, nesta, pelas onze horas, o deu o inimigo o mais geral e reforçado que nunca. Investiu a estrada encoberta desde o revelim da porta de São Francisco, perto da circunferência do baluarte da Rainha, até ambos os flancos do de São João pela Cruz de São Pedro, que é distância de dois baluartes e cortina e meia, e a um mesmo tempo com boa quantidade de gente se chegou até [a] pegar com as mãos nas estacas da estrada encoberta. Pelejou-se de sua parte dura e porfiadamente por espaço de 4 horas, reforçando cada vez mais com nova gente, para o que tirou da cavalaria de cada companhia seis soldados, que armados de couraças arremetiam mais afoitos que os outros, sendo cabo de seu avanço o mestre de campo general Moxica.

Os nossos se defenderam com grande valor e chegaram [a] tomar a muitos soldados  do inimigo as armas das mãos. Neste avanço perdeu o inimigo muita e boa gente, entre eles ao mestre de campo D. Pedro Alvarez de Toledo, cujo terço, nestes dois assaltos, se lhe gastou, sendo que constava de 1.200 homens, segundo dizem as línguas. Era o mais valente cabo que traziam. Da nossa parte morreram três soldados e nos feriram vinte, e entre eles o capitão D. Tomás Giraldino e o capitão Belchior Vaz Pacheco, e o seu alferes. Chegou-se nesta ocasião a pelejar, e em certo modo às mãos [ou seja, corpo-a-corpo].

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Peça de artilharia de meados do século XVII (réplica). Imagem retirada do excelente site dedicado a reconstituições históricas do período da Guerra Civil Inglesa, “Charles Gerard’s” (http://www.gerards.org.uk). Ver ligação no lado direito desta página.

Cerco e tomada de Olivença (6ª parte – de 9 a 12 de Maio de 1657)

Olivença

9 – Pela madrugada da quarta-feira trabucou o inimigo, e a primeira bomba caiu no fosso; ao cair alcançou uma égua de Lourenço Martins Sembrano e a partiu em duas, e ao rebentar matou o sargento-mor Diogo d’Aguiar da Mota, engenheiro; deu-lhe um pedaço dela na cabeça de que logo morreu; tinha-se confessado na tarde do dia de antes e era soldado honrado.

Quinta-feira dez, pela manhã, deixou o nosso exército o quartel da Amoreira e marchou direito para o Guadiana, pelo caminho por onde tinha vindo, e o vimos [n]o cabeço de Vila Real; a cavalaria do inimigo o seguiu pouco espaço de longe. Choveu neste dia como nos mais.

Pela tarde fez o inimigo chamada pela parte do Ral, e mandou[-se] ao capitão António Barbosa de Brito que fosse saber o que queria; trouxe por resposta que o nosso exército viera para nos socorrer e estivera à vista tanto tempo, e que desenganado de que o não podia fazer, e por outras causas maiores, que alguma hora saberíamos, nos dera as costas e se recolhera, de maneira que logo aquela manhã passara o rio e assim ficávamos sem esperança de socorro [esta informação dada pelos espanhóis era correcta e reportava-se à aparentemente estranha decisão tomada pelo Conde de São Lourenço, comandante do exército do Alentejo, de retirar-se das proximidades de Olivença e desistir de socorrer a praça sitiada]; que admitíssemos as capitulações e práticas [ou seja, conversações – “prática” também significava “conversa”, tanto no século XVII como nos anteriores], que nos concertos se nos concederiam os maiores e mais honrosos partidos que em outra praça se tivessem concedido; e que isto nos escusaria de padecer hostilidades, e que para responder nos davam termo de duas horas. Houve nesta ocasião cessação de armas.

O governador me mandou dizer que importava que nos víssemos, e quando cheguei o achei na porta de São Francisco sentado com os mestres de campo João Álvares de Barbuda e os engenheiros Du Four e Gilot, e com eles Castilho [Stéphane Auguste de Castille], e também o sargento-mor Manuel de Magalhães, com mostras de grande sentimento. Disse-me o governador que tivera aquela chamada do inimigo com aquele recado, que era necessário dar conta ao povo, para o que mandasse chamar a Câmara, porque o nosso exército, com o que fez, nos tinha posto naquele extremo de desventura; que salvássemos a guarnição de El-Rei [apesar de D. João IV ter morrido no ano anterior, este termo é uma generalização que se reporta ao exército régio], as vidas, honras e fazendas dos moradores, e que se fizesse chamar logo a Câmara, porque do termo para a resposta não tínhamos mais que meia hora.

Eu respondi o que se me ofereceu, e à minha resposta disse Gilot e o [Du] Four que não evitasse tal, que eles se obrigavam a tornar a ganhar a praça dentro de doze dias, a isto respondi pior ainda; e fui à Câmara, e disse aos vereadores que advertissem que queriam entregar a praça, que vissem o que lhe propunham e o que lhe respondiam.

Negou o governador, e com ele Gilot, e assentados propôs o que o inimigo mandava dizer, e que queria dar-nos conta, porque se não admitíssemos a prática não nos ficava recurso, e que o nosso exército, em lugar de nos socorrer, se retirava, como víamos, e disse mais que a prática não era a fim de entregar a praça, senão de entretanto descansar a guarnição e propormos as munições; e o inimigo estar gastando tempo, sem proveito algum; disseram todos que, sendo só para esse fim, se admitisse a prática.

Partiu o governador para a porta e a mandou guarnecer com as companhias da terra dos capitães Francisco Lobo de Cabrera e Rui Vicente de Matos, e logo mandou aprestar ao mestre de campo João Álvares de Barbuda e [a]o sargento-mor João Álvares Coelho, para irem por reféns. Eles se foram a enfeitar [vestir o melhor trajo] e partiram para lá, e do exército vieram para cá D. Pedro Alvarez de Toledo e o Conde de Torrejón, mestres de campo, e os recolheram em casa de João Mexia, onde lhes puseram guardas.

Neste tempo se tocou na vila uma arma de boca mui viva, e como a gente toda sentia mal de se admitir a prática, andavam os mais deles furiosos, com o que correram à muralha muitas mulheres com armas e fizeram o mesmo. O governador acudiu a guarnecer e animar a gente. Estando na porta do calvário, onde eu também estava, lhe disse o padre João Lobo Freire: Senhor governador, estes velhacos não são para mais que fazer enganos e traições. Vossa Senhoria tem consigo muita e mui valorosa gente, que podem defender a praça e o Reino, não fie deles coisa alguma.

Respondeu a isto o governador que não falasse mais palavra, senão que o prenderia e o meteria em uma casa fechado de maneira que não falasse mais. A todos escandalizou uma resposta tão áspera dita a um sacerdote honrado e que, pelo que disse, a não merecia; o mesmo sucedeu ao tenente Manuel Pacheco, soldado honrado e valente, que diante de mim o descompôs, porque disse o mesmo; logo passou palavra que tornava o nosso exércio e que se vim batalhões na campanha, mas não foi assim.

Pela meia noite me mandou recado o governador, que lhe falasse; eu o achei com Gilot, e me deram as capitulações feitas sem eu nelas dar penada, e me disseram que as mostrasse aos vereadores, e que vissem se queriam para si e para o povo mais alguma coisa, e me disseram que o capítulo que falava nos frdes visse eu o que me parecia, que pediriam; e assim fiz isto só, e nesta forma os levei aos vereadores, e eles disseram que sendo para o que tinham assentado, que bons estavam, e os mandei tresladar de boa letra por João de Gusmão , escrivão do almoxarife, e os dei ao governador.

11 – Sexta-feira pela manhã entrou um correio do Conde general com carta sua, em que dizia que estranhava ao governador não lhe fazer aviso nenhum havia tanto tempo, que ele os fizesse mais amiúde que pudesse, e que o dito Senhor se tirava daquele quartel pelo discómodo grande dos soldados e cavalaria, mas que estivesse certo que quatro dias ou menos os havia de socorrer. O primeiro que trouxe a carta deu boa notícia do nosso exército. Vimos a carta todos e nos alegrámos muito, porque soubémos das mentiras e enredos que o inimigo nos contou chegando à fala, dizendo que tinham morto o Conde general e que cinco fidalgos, que o fizeram, estavam no seu exército, e outras grandes pataratas deste lote.

Pela tarde veio a resposta que o inimigo deu às capitulações, em que concedia algumas e negava outras; e no tocante aos cabos e soldados eram mal respondidos, com que se tornavam a enviar os seus reféns, e cobrámos os nossos, e tornámos às armas, o que foi de tanta alegria para todos que parece cobraram novos corações.

Pelejou-se valorosamente à noite e [n]o dia seguinte de sábado. Neste, sendo pelo meio-dia, saiu André Fernandes, filho de João Rodrigues, lavrador, pela estrada encoberta, e com um capacete na cabeça e um chuço na mão se arrojou ao aproche do inimigo pela parte da Corna e saltou dentro dele, e fez fugir vergonhosamente toda a guarnição [e] a gente fo trabalho, e lhe tomou ferramentas e armas que ficaram, e fez um feixe que carregou e trouxe depois de ter dado a três soldados que chegaram lá depois dele lá estar, as que puderam trazer, e com elas se vieram para a vila.

[12] – Neste dia mandou o governador para aquela parte de guarnição 200 homens dos moradores, com quatro cabos dos mais valentes que houve, e foram Cristóvão de Macedo, Rui Vicente de Matos, capitão da ordenança, e Domingos Gordo prado, filho do sargento-mor Gil Lourenço Cabeça, e o capitão Lopo Vieira Miguens. Estes guarneceram desde Santa Quitéria até ao revelim de São Lázaro, que é por onde o inimigo atacava por aquela parte. O nosso exército foi visto passar de Vila Real e marchar para os Matos de Ferreira; o inimigo saiu com a sua cavalaria para o outeiro de Castelo Velho, e por noite tornou para a sua linha.

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Olivença na actualidade. Imagem obtida a partir do site Google Earth.

Cerco e tomada de Olivença (5ª parte – de 1 a 8 de Maio de 1657)

Olivença2

Maio 1 – Vendo o governador que o inimigo caminhava para nós, mandou fazer no parapeito e segundo friso da estrada encoberta duas cortaduras, com as quais deixava cortado o ângulo dela por aquela parte, e mais atrás daquelas mandou fazer outras. Vendo também que havia na praça moradores necessitados que não tinham que comer, lhes mandou dar racção como aos soldados, a cento e sessenta e cinco deles.

2 – Quarta-feira trabucou o inimigo de noite e de dia e lançou grande quantidade de bombas, quatro delas arruinaram quatro moradas de casas em que caíram; entre estas deu uma em casa de Francisco de Magalhães Galego, e fez uma disforme ruína, e lhe queimou todo o móvel de sua casa, que era muito e bom.

Pelas duas horas da tarde mandou o governador fazer uma surtida ao inimigo naquele novo aproche com que vinha caminhando. Foi por cabo o alferes reformado João Domingos, e levou trinta infantes e alguns aventureiros, da cavalaria foram doze cavalos, e por cabo o furriel Domingos Pereira. Saíram pela estrada e com toda a fúria se arrojaram ao trincheirão que estava ainda tão singelo, que os cavalos passaram todos da outra parte.

Estava o inimigo bem descuidado deste dano, e quando advertiu nele já não teve tempo para mais que fugir, o que não puderam fazer mais que até dez; os demais todos morreram e com eles o sargento-mor Palacios, cabo de tanto porte que ainda o dia que saímos rendidos vi que os castelhanos choravam a perda deste soldado. Só ele se pôs em defesa com mais dois, que também morreram. E o capitão e oficiais da companhia que ali guarnecia, que tinha 75 soldados, deles trouxeram um para língua, que nos informou de tudo, e ao depois o soubemos de outros, que [se] passou assim. Os nossos vieram sem dano, só o alferes que foi cabo trouxe três feridas, mas de pouco porte, e o sargento Castelão uma picada em um braço [picada: ferida provocada por um pique].

O sentimento obrigou ao inimigo a se despicar, e o quis fazer dando-nos um assalto na noite deste dia. Tinha já dado meia-noite, quando pela parte do baluarte da Rainha avançou com um grosso de infantaria, entre espanhóis e estrangeiros, e para melhor os obrigar trazia por detrás deles alguma cavalaria. Chegaram a pegar nas estacas e a atirar com pedras; ao depois de gastar, de parte a parte, os tiros e granadas que ali havia, chegou a durar a briga sem tiros muito tempo. Desta parte lhe tomaram os nossos algumas picas [piques] e chuços, em que lhe pegavam e tiravam das mãos. Durou o combate por esta parte duas horas, em que de ambas partes se pelejou furiosamente.

Activou-se o inimigo e retirou mortos e feridos, e só ficaram bem poucos, que por ser mui perto de nós deixaram muitas armas no campo. Quis refazer-se para segunda, mas os seus soldados o não quiseram fazer, sem embargo dos gritos, ameaças e afrontas que lhes diziam.

Logo que se retirou de todo, se deu pelo muro uma salva, e viva[s] a Sua Majestade, que Deus guarde, com que o inimigo tornou a avançar pela parte de São Lázaro, aonde me eu achei. Saiu da sua linha e quartel do olival de João Cabelos e com grande algazarra veio para nós, mas tão devagar que parecia os traziam ao Inferno, e com partirem muitos, e por detrás deles um batalhão de cavalaria, chegaram a nós já poucos, ainda que os oficiais bem brazonavam. Eu vi uma só manga de mosqueteiros e o batalhão. Outros dizem que da outra banda vinha outra manga. Chegaram perto da estacada coisa de dez passos, e naquela distância continuaram para baixo até ao Ferragial do Azoche. Receberão a carga de tão perto, e ao depois muitos tiros, com o que se retirou, e retirou os mortos, se bem naquela noite todo[s] os sentimos vir entre o trigo e carregar deles, de sorte que até as selas e freios dos cavalos retiraram. Esta avançada durou menos de meia hora.

3 – Quinta-feira intentou o Du Four contraminar o muro da estacada coberta pela parte do aproche, e tendo rota a parede não pôde obrar coisa alguma, porque a terra o não consentia por ser solta e movida de poucos dias, e assim tornou a mandar tapar o buraco.

O sargento-mor Gil Lourenço Cabeça saiu com gente da terra a cortar trigos para faxinas, e para o que não bastaram se cortou arvoredo dos quintais e hortas de dentro da vila. O inimigo chegou assim o aproche à escarga da estrada encoberta. Mandou o governador fazer uma cortadura no ângulo da estrada encoberta, por dentro do fosso, para que o que carretavam a faxina os meninos e mulheres, que eu vi conduzir, por que os homens não perdessem de trabalhar.

Neste dia, logo à noite, intentou o inimigo outro assalto por donde o primeiro [tinha sido feito], mas não chegou perto, só tratou de retirar os mortos que lhe tinham ficado ali no dia atrás.

[4 de Maio] 6ª feira, manhã, pelas dez horas do dia foi visto o nosso exército, marchava para [a] praça, fez caminho direito ao Castelo Velho, que é um outeiro que está um quarto de légua da vila. O inimigo queimou as barracas do quartel de São Francisco o Velho e marchou com todo o poder para o quartel do olival de João Cabelos, que era então o da Corte, e ficava fronteiro àquela parte por onde marchava o nosso exército. Deste quartel mandou pôr duas peças pequenas para o outro de Vale das Éguas, aonde tinha feito um fortezinho no meio da sua linha exterior, e com a infantaria e cavalaria guarneceu a sua linha desde Ladra até o ribeiro de Figueira, repartindo a infantaria em esquadrões, que arrimava singelos à linha, e a cavalaria em batalhões singelos em três esquadrões.

Nesta forma esperou o inimigo os nossos dentro da sua linha; era esta uma trincheira feita de terra e faxina, de altura bastante para se poder pelejar detrás dela, e de grossura ordinária, como os quartéis da campanha. Pela parte de fora tinha um fosso ou sanja de largura ao parecer de cinco palmos, e altura de pouco mais; isto tinha pela parte, que eu as vi quando vim rendido; as outras partes deviam ser como esta, porque da praça lhe não vimos maior vulto por outras partes do que por aquela.

[5] Sábado pelo meio-dia marchou o nosso exército direito à praça pela banda de Castelo Velho; e porque o inimigo tinha guarnecido a atalaia daquele outeiro com vinte cinco mosqueteiros, mandou um troço de mosquetaria que avançassem a ela, o que fizeram com valor e entraram a atalaia e forte, e mataram só três dos que estavam à defesa e aos mais deram quartel.

Daí foi o nosso exército para o sítio da Carvoeira, que dista desse outros dois tiros de mosquete, aonde o inimigo tinha outra atalaia guarnecida; e os que estavam à defesa dela pediram que, para satisfação dos seus, lhe dessem lugar a que dessem duas cargas sem bala e que eles estavam rendidos, o que se lhes concedeu, segundo me informaram, e eram outros vinte cinco mosqueteiros; guarneceu o nosso exército estas atalaias.

Logo que o nosso exército chegou a Amora, se pôs em forma de batalha, e foi uma formosa vista; e estando nesta forma, e ao parecer que querendo acometer, começou de chover água grossa e continuou até noite; neste tempo se afastou pouco atrás o nosso exército, e se meteu no Vale da Amoreira, e aí se aquartelou. Do baluarte de cima do Calvário se atirou ao inimigo, ao quartel de João Cabelos, e deu na pólvora que logo ardeu e foi grande quantidade dela que se queimou, e com ela voaram mais de trinta homens, excepto os que ficaram tostados.

[6] Com a grande chuva esteve a guerra em calmaria o dia de domingo, até que pela tarde atirou o inimigo algumas peças ao nosso exército desde o olival de João Cabelos, e com as peças que tinha levado para Vale das Éguas atirava à vila. Eram as balas umas de dez libras, e as duas de sete; do nosso campo se lhe atiravam também com outras peças, mas a chuva tornou a continuar como até então.

7 – Ainda segunda-feira chovia como dantes, e os nossos tratavam e ir fazendo o seu quartel no sítio referido; e em tanto tornou o inimigo a guarnecer e trabalhar nos seus aproches, e esforçava as cargas de mosquetaria que deles dava contra a praça. Os tiros de artilharia de campo a campo continuavam. Este dia se passou para a praça um soldado castelhano, e por noite teve o inimigo arma [ou seja, houve uma situação de alerta] pela parte [do baluarte] da Rainha.

[8] – Terça-feira pela dez horas do dia saiu a cavalaria do inimigo do quartel de Vale Mimoso e marchou por dentro da sua linha para o de João Cabelos, e foi sair pelo ribeiro de Ramapalhos direito a Janela Ladra. Já fora da linha foi caminho direito às Calçadas, e daí  se formou em batalha ao longo do ribeiro abaixo, algum tanto afastado dele, e levou consigo uma pouca de mosquetaria, que formou junto do batalhão do corno direito, e assim fez frente para a nossa gente. Os nossos destoutra parte so ribeiro se formaram, e assim estiveram grande tempo sem haver mais que uma bem travada escaramuça entre os batedores, com o que se recolheu o inimigo às suas linhas.

Pela tarde avançaram dois batalhões ao rastilho da porta do Calvário, foram rebatidos e com perda de dois cavalos que logo ficaram, afora os que levaram feridos. Lançaram fama que minavam pela parte do seu ataque, o que se achou pelo contrário. Neste dia choveu muita água, o mesmo fez quinta-feira, que passou sem cousa de que se deva falar. [A narrativa apresenta aqui alguma confusão: como veremos na próxima parte, a quinta-feira seguinte foi dia de azáfama – o autor talvez tenha querido escrever “quarta-feira”, mas mesmo nesse dia registou um episódio curioso, como teremos ocasião de ver.]

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Vista de Olivença e seus arredores. Foto de Jorge P. Freitas.

Cerco e tomada de Olivença (4ª parte – de 22 a 30 de Abril de 1657)

Olivença3

[22 de Abril – Está, por lapso, indicado no original com o nº 23; nota introduzida por Horácio Madureira dos Santos na sua transcrição] – Domingo se viram mui avante as linhas do inimigo que, como trabalhavam nelas de noite, apareciam pela manhã crescidas; pela tarde deu uma bala grossa na rua das Flores, e na chapeleta que fez matou um alferes auxiliar, foi este o primeiro homem que o inimigo nos matou.

Desde este dia se deu carga contínua de mosquetaria de dia e de noite pelas partes em que o inimigo trabalhava, para lhe impedirem o seu serviço.

23 – 2ª feira amanheceu uma nova plataforma no mosteiro de São Bartolomeu, mas por baixo, coisa de trezentos passos, e para ela passou o inimigo as peças que na outra tinha; ficava esta menos de tiro de mosquete da praça.

[24] – 3ª feira ao amanhecer entrou na praça Diogo Soares, soldado honrado, o qual estava fora dela ao tempo que chegou o inimigo. Neste dia amanheceu outra bateria, posta por baixo da Cruz de São Pedro; nesta havia três peças grossas, duas faziam tiro aos baluartes da Rainha e uma à Torre d’El-Rei, e esta lhe quebraram algumas pedras junto às obras mortas. Um auxiliar de Évora falou da praça, entendeu-se que se passara ao inimigo.

[25] – 4ª feira esforçou muito o inimigo as suas baterias, e as balas, que davam no muro, tornavam para trás, estas nos mataram cinco soldados, e as que saltavam para dentro da vila fazendo chapeletas mataram cinco bois; as primeiras três bombardas arruinaram três moradas de casas.

As sentinelas da ronda tocaram arma ao inimigo, e enquanto durou, largaram todos o trabalho, e todos andavam com tanta confusão que os não podiam os cabos reduzir à forma. Nesta noite escreveu o governador [da praça, Manuel de Saldanha] ao Conde [de São Lourenço] e a Câmara [de Olivença] lhe escreveu o seguinte:

Presente é a Vossa Senhoria quantos dias há que o inimigo nos tem sitiados, e com não serem muitos nos tem cortado os olivais, destruindo os pães [ou seja, as culturas], e comida da sua cavalaria e bagagens; com a artilharia e bombas nos vai arruinando as casas, com o que nos não deixa fora de toda a pobreza e miséria. Nós somos e fomos sempre bons e fiéis vassalos a Sua Majestade, e como tais merecemos ser socorridos, o que temos por muito certo, confiados na grande mercê que Vossa Majestadefez sempre aos moradores desta vila. este socorro ficamos esperando, e pedindo a Deus que nele dê a Vossa Senhoria os bons sucessos que desejamos.

Esta carta cifrou [ou seja, pôs em cifra, em código] Gilot, e creio que fielmente, se bem me disse o que escreveu a cifra que lhe acrescentou ou cortou, mas ele passou, e a levou o Franco. Neste dia se tomou língua, e uma das balas que faziam tiro à torre fez em pedaços um sino que estava nela e servia de tocar a rebate.

26 – Quinta-feira pela manhã teve a nossa cavalaria uma escaramuça com a companhia da guarda do inimigo junto das hortas, no Ferragial do Azoche; durou um bom espaço e foi bem travada. Os nossos se recolheram sem dano, o inimigo algum recebeu, e eu soube do tenente Pantoja [oficial espanhol], [n]o dia em que saímos rendidos, que lhe morreram quatro e foram feridos quinze, e muitos cavalos. Neste dia fez o governador repartição dos homens nobres para estarem nos baluartes, três em cada um, mandando na artilharia e vendo como se pelejava por aquelas partes, para que, parecendo-lhes necessário, o advertissem [no sentido de “avisassem”] aos capitães, e a ele.

Por noite um soldado de D. Tomás Geraldino se passou para o inimigo, um mosquete que rebentou matou um soldado e levou a outro uma mão. Uma bala grossa quebrou pela jóia um sacre que estava na torre, com a qual e outra peça de três libras se fez grande dano ao inimigo.

[27] – Sexta feira se começou de ver uma linha que de novo fazia o inimigo; começava no quartel do olival de João Cabelo e ia caminhando ao redor da praça, a tiro de arcabuz da estrada encoberta para a parte da Corna. O governador mandou com grande cuidado segar os pães [ceifar o trigo e outros cereais] que estavam ao redor da vila, por estarem tão crescidos que se não viam as obras do inimigo senão quando eram já mais altas que eles; isto cometeu ao sargento-mor da terra Gil Vaz cabeça, o qual o fez com os moradores dela.

Neste dia acabou o inimigo de fazer a outra linha de comunicação de uma bateria para a outra, e ambas guarnecia do quartel de Vale Mimoso. Daquela linha saíam soldados a tomar alfaces nas hortas do Ral, que ficavam entre nós e eles, e lhe mataram os nossos alguns com tiros, da estrada encoberta. Acabou-se uma meia lua que o governador mandou fazer entre os baluartes da Corna e do Calvário, e se guarneceu e começou de se trabalhar em outra, que mandou fazer defronte da porta do Calvário.

O inimigo, desenganado com o pouco efeito que a sua artilharia fazia no baluarte da Rainha, deu mais elevação às peças e meteu os tiros por dentro da vila, com o que fez grande dano nas casas daqueles bairros; deixou de atirar à torre e algumas vezes atirou à estacada da estrada encoberta, com o que nos matou e feriu alguns soldados.

28 – Sábado pela manhã apareceu um quartel escrito em meia folha de papel perto da nossa estrada encoberta, em um pau que parecia cabo de enxada; trouxeram-no ao governador e ele o recolheu.

Também apareceu mui avante a linha que fazia pela parte do campo de [espaço em branco no texto original; nota de HMS]. A artilharia do inimigo arruinou muitas casas na rua grande de S. Bartolomeu, e entre estas as em que eu vivia. Trabucou e lançou esta noite vinte e uma bombas, que arruinaram algumas casas.

Pôs o governador fachos em a torre e sucedeu que estando ele com muita gente na abóbada da porta do Calvário, dos quais todos dormiam, senão João Mendes Mexia, Fernão Gomes de Cabreira e Gilot, que passeavam, se disparou uma arma, e o pelouro dela deu em Salvador Machado, sargento-mor dos auxiliares de Beja, e lhe quebrou uma perna, de que morreu em três dias. Como era noite em que se trabucava, com  o ruído do tiro saíram todos fugindo desacordados, cuidando que era bomba que ali caíra, com o que se não pôde fazer averiguação certa do caso, mas sempre se teve que foi desastre.

Duravam as baterias, e de uma e outra plataforma atiravam furiosamente. Em tanto que houve dia em que se contaram setecentos tiros, segundo me afirmaram soldados curiosos e de verdade. Domingo [dia 29] pela manhã se passou para a praça um soldado do exército, era português, deu algumas notícias do poder do inimigo, mas pouco certas. de tarde saíram a tomar língua dois soldados nossos que foram Gonçalo Vaz e outro, o inimigo os carregou com muitos, contra os quais sustentaram uma escaramuça por muito tempo, e se retiraram sem dano.

À noite começámos de ver fogos por junto de Juromenha, tivémos grande festa, entendendo que era o nosso exército. Como assim foi sem embargo de que Castilho [Stéphane Auguste de Castille] sustentava, e com apostas, que nem era o exército, nem havíamos de ser socorridos, o que dava grande escândalo a todos. O governador mandou continuar os fachos na torre.

[30] 2ª feira pela manhã se via que da linha da comunicação entre as baterias do inimigo saía formado um aproche, com que caminhava direito à estrada encoberta, pela parte do baluarte da Rainha. Este formavam de noite, e faziam o que lhe bastava para se cobrirem de alto e grosso, e de dia o engrossavam e trabalhavam cobertos.

Pela manhã veio um escravo branco e ferrado, que era tambor-mor, e cuidava que o nosso forte era quartel seu, e se veio meter nele. Este foi trazido ao governador e disse que no dia atrás tinha chegado ao exército D. Francisco de Guzmán, novo mestre de campo que vinha de Sevilha com nove companhias de infantaria, e que logo lhe mataram um moço que era o melhor sapateiro que havia na cidade.

Do quartel de S. Francisco Velho se passou para cá outro castelhano bem fardado, mas ao meu ver e ao de todos, falto de juízo. Outro se tomou para língua, de todos soubemos que entre os Duques de S. Germán e o de Osuna houvera diferenças e que chegaram [a] vir à espada, e foi porque o de Osuna disse que era ruim guerra atirar às casas da vila, que queria ganhar, e que rompesse a muralha e entrasse a praça, que a isso vinha; sobre estas tiveram outras razões, e a final a de Osuna foi que em Espanha, depois de El-Rei, só ele era e ninguém lhe precedia. Na noite deste dia trabucou o inimigo e lançou sete bombas, com o que arruinou quatro moradas de casas.

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Olivença – vista parcial a partir da Torre d’El-Rei, mencionada no texto. Foto de Jorge P. Freitas.

Cerco e tomada de Olivença, 1657 (3ª parte – 20 e 21 de Abril de 1657 )

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20 [de Abril]. 6ª feira pela manhã mandou o governador cortar o arvoredo das hortas do Vale da Corna, assim por que nos fazia dano, como por que o inimigo se não aproveitasse dele para faxina. Enquanto se cortou esteve um bom troço de infantaria fora e a cavalaria que tínhamos dando segurança aos que estavam e traziam a rama. O governador e eu estivémos no baluarte da Corna vigiando os movimentos do inimigo, ele para a parte do Vale das Éguas e Santa Catarina e eu com um óculo vendo se do olival de João Cabelos e o mais que há, até o posto de Elvas, saía alguma cavalaria a impedir o corte, porém não saíra e os nossos se recolheram à praça.

Neste dia amanheceu uma bateria feita pelo inimigo no outeiro de São Bartolomeu e para ele mudou as peças grossas que tinha na outra parte do Espinhaço de Cabra. Desta que ficava mais perto demos a metade do que a outra. Começou o inimigo a fortificar as casas da vila, entre as mais peças que aí pôs foi uma de 48 libras, e foi este o primeiro dia que vimos na praça balas de calibre.

O governador mandou logo fazer contrabateria para aquela parte, o que obrou o capitão Manuel Rodrigues Pigaço, mandando fazer esplanadas no baluarte de São Francisco, e aí pôs três peças grossas; no de São Brás havia duas, e no da Rainha três, que todas atiravam contra aquela bateria, mas não foi bastante para que não arruinassem o mosteiro aos frades e muitas outras casas da vila que ficavam vendo-se daquela parte.

Na noite deste dia trabucou o inimigo e lançou algumas bombas dentro da praça. eram estas feitas de metal e tinham de calibre 130 libras, afora o enchimento; em qualquer parte em que davam faziam um poço grande, porque entravam muito pela terra e em tomando fogo faziam uma notável ruína, porém muito maior quando davam em alguma casa, porque afora de voarem todo o telhado e sobrados, arruinavam as paredes.

Neste dia caiu uma bomba na igreja de Santa Maria que estava cheia de mulheres e meninos, mas foi Deus servido que o primeiro golpe desse em um friso da igreja, com o que, quando caiu sobre a abóbada a não rompeu, só quando arrebentou voou um pedaço grande do telhado.

Por estes dias se acabou de fazer a coroa de que falei na relação de 13 deste mês, assistindo sempre nele nove companhias de guarnição e trabalhadores, afora gente da terra e pedreiros, governava esta gente até então o sargento-mor Manuel de Magalhães.

Logo que o inimigo deu vista da praça em 12 do presente, mandou o governador ao sargento-mor da vila Gil Lourenço Cabeça com o capitão Gonçalo Mendes Homem e grande quantidade de gastadores, todos da vila, que fossem cortar a rama dos olivais mais vizinhos à praça, o que fizeram, e trazendo-a os soldados e gastadores serviu que fora o inimigo se afastar mais longe, por estar descoberto de faxina para esta obra e outras.

21. Sábado pela manhã entrou na praça o alferes do capitão Diogo Rodrigues de Sousa, do terço de João Álvares de Barbuda, o qual ao tempo em que o inimigo veio estava no Algarve, donde era natural, e filho de um sargento-mor; veio com ele outro soldado infante que o guiou. Os nossos tomaram língua [isto é, capturaram um soldado inimigo] e se informou o governador do poder do inimigo, que sempre os castelhanos souberam engrandecer com palavras e encarecimentos.

Caminhava o inimigo com as suas linhas exteriores e obras dos seus quartéis, de uma e outra coisa tinha já feito muito, principalmente no da circunvalação.

Muitos soldados castelhanos aventureiros vinham de pé fazer tiros aos nossos, e os nossos saíam a eles. Neste dia veio um galego, natural que disse ser da Corunha, que se chamava Sanchez de Taivo; este chegou até perto da Cruz de São Pedro e aí lhe deu um balaço por um olho, de que caiu, mas não morto, se bem desacordado. As suas sentinelas de cavalo o quiseram retirar, porém Domingos do Prado, filho do sargento-mor Gil Lourenço Galego, chegando pegou ao ferido por um pé e o trouxe a rasto até à estrada coberta, e aí se confessou, e o levaram ao hospital. Nunca quis dizer quem era, de que qualidade e que posto tinha. Viveu ainda cinco dias.

Na algibeira se lhe achou uma relação de algumas companhias de infantaria, entre outros papéis, e uma memória de dinheiro cobrado de contribuição de alguns lugares e um rol de prata lavrada, que de pouco tempo tinha comprado.

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: “Pilhagem de uma aldeia”, quadro de Sebastian Vrancx.

Cerco e tomada de Olivença, 1657 (2ª parte – de 15 a 19 de Abril de 1657)

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Abril 15. Domingo, por noite, partiu o tenente-general [Achim de Tamericurt] para Elvas levando consigo oito companhias e ficou na praça a do capitão Agostinho Estevão de Castilho, francês [Stéphane Auguste de Castille, capitão francês de cavalaria, cuja desventura em Olivença já foi tratada aqui e aqui], e com ela alguns cavalos de outras companhias, que por todos ficaram oitenta cavalos; destes se fizeram duas tropas, uma das quais governava o dito capitão e a outra o seu tenente Manuel Pacheco. A cavalaria passou por Guadiana pelo porto de Chiso, junto de Telena, nesta passagem se afogaram dois soldados e outros dois se perderam das tropas, e tornaram para a praça.

Trabalhava o inimigo já no quartel de Vale Mimoso, aonde ao depois pôs uma bateria, e dela por uma linha guarnecia outra que era a de São Bartolomeu. Antes que pusesse baterias, quis nesta noite inquietar-nos trabucando, para o que se chegou perto da Cruz de São Pedro, aonde pôs o morteiro e lançou na praça nove bombas, cada uma de peso de 150 libras, as quais caíram dentro da vila, porém nenhuma fez dano.

16. Segunda-feira amanheceu feita uma plataforma a meia ladeira do Espinhaço da Cabra, e dela atirou o inimigo com dois meios canhões às casas da vila, também se viram balas de dez libras de uma peça vindas daquela parte, durou esta bateria desta parte até vinte deste mês.

Pela meia-noite entrou na praça João Mendes Mexia, que estava fora dela no tempo que o inimigo veio, e com ele mandou o governador das armas a Francisco de Sey, francês, comissário geral que era da artilharia e soldado prático. Vieram guiados pelo cabo de esquadra Furtado e o soldado Navarro, ambos da companhia de Dinis de Melo [de Castro].

Neste dia se adiantaram dois rapazes e um soldado infante e foram às hortas de Corna buscar favas e alhos; a estes tomou o inimigo e os levou ao seu quartel da Corte.

18. Quarta-feira largou o inimigo o soldado que tomou e a um dos rapazes. Por estes mandou lançar na praça alguns escritos, todos do mesmo teor. O governador os recolheu todos e só um pude eu haver, que dizia o seguinte:

A compaixão grande que se tem de que os que são vassalos de Sua Majestade [Filipe IV de Espanha, III de Portugal], ainda que inobedientes, padeçam por sua demasiada obstinação os grandes males que a guerra traz consigo, mormente sendo civil, e entre cristãos, há parecido, por que se escusem tão grandes danos, advertir a todos os que se acham nesta praça que, passando-se a este campo, não só se lhes dará perdão do passado, mas ainda querendo servir, se lhes assentará praça, e socorrerá conforme sua qualidade, e não querendo servir se lhes dará dinheiro para entrar-se pela terra adentro; tendo entendido que os que não quiserem usar desta oportunidade, e aguardarem a que se ponham as baterias, e que se abram brechas, serão tratados como inimigos obstinados, e não haverá para eles recurso de misericórdia. Muitos destes escritos lançou o inimigo à roda da praça, mas sem efeito.

19. Quinta-feira por noite despediu o governador o cabo e soldado que trouxeram ao Du Four [François Du Four, engenheiro francês], e eles fizeram caminho por Mourão e foram a salvamento; nesta noite entraram dois correios do Conde de São Lourenço com cartas para o governador, e uma delas trouxe um vidro de óleo de ouro [tintura utilizada para desinfectar e tratar ferimentos]. De tarde tinha chegado o rapaz que ficou retido no quartel do inimigo, era este um Afonso, filho do cabo de esquadra Afonso Mouro, e advertiu muito bem em tudo o que viu e lhe disseram; a este deram outros escritos, dizendo-lhe que os desse ao vigário. O governador os recolheu todos como os demais.

Neste dia começaram já a crescer as trincheiras do quartel que o inimigo fez a São Francisco o Velho, e a linha exterior que fez pelo alto do Espinhaço da Cabra.

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: “Soldados jogando cartas na Sala da Guarda”, quadro de Jacob Duck, Museu das Belas Artes, Budapest.

Cerco e tomada de Olivença, 1657 (1ª parte – 13 e 14 de Abril de 1657)

Luís XIV com soldados franceses no cerco de Tournai, 21-6-1667, Adam Meulen

Inicio aqui a transcrição de um manuscrito existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), com o título Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657. Este manuscrito anónimo foi transcrito e publicado por Horácio Madureira dos Santos em 1973, em Cartas e outros documentos da época da Guerra da Aclamação, Lisboa, Estado-Maior do Exército, pgs. 185-212. No entanto, dado o interesse do documento e a restrita divulgação do mesmo, creio ser oportuna a sua apresentação aqui. A diferença em relação ao original e à transcrição efectuada por Horácio Madureira dos Santos consistirá na actualização da ortografia utilizada, da pontuação (para facilitar a inteligibilidade do texto), na correcção de alguns erros de transcrição da versão de Horácio Madureira dos Santos e o acrescento de alguns apontamentos (mantendo, porém, os que foram da lavra de Madureira dos Santos, identificados com HMS). Trata-se um documento longo, que irá ocupar uma série de entradas superior à habitual, pelo que será possível que intercale esta série com outros artigos.

Relação de tudo o que [se] passou em Olivença e no campo do cerco e tomada da praça pelos Castelhanos. Abril ano de 1657

A 12 de Abril tocaram arma as atalaias que ficam dando vista à ribeira, quarta-feira [erro; trata-se de quinta-feira, conforme notou HMS] pelas sete horas da manhã, e como não tínhamos particular aviso que o inimigo marchava para Olivença, tivemos que seria rebate ordinário. Montou-se a cavalaria governada pelo tenente-general Achim de Temarachut [Tamericurt], e foram descobrindo para aquela parte [de] Joana Castanha. Tinham parado doze batalhões direito ao caminho que vai de Juromenha para Olivença, a fim de não deixarem passar pelo porto de Guadiana nenhuma coisa de uma praça para a outra. Com este aviso se acolheram à praça todos bem sentidos de ficar a cavalaria dentro, pela falta que faria aquele troço de nove companhias no nosso exército.

Pelas dez horas do dia vimos a vanguarda do exército marchando da coutada da ventana pela de Fiselha para a fralda da serra de Olor e se foram entrando pelos olivais, ocupando o outeiro do Espinhaço de Cabra e Vale de São Francisco o Velho, e ali começaram o seu primeiro quartel que por muitos dias foi o da Corte [ou seja, o do Estado-Maior do Exército].

Sexta-feira 13 do dito mês saíram da guarda as companhias dos tenentes-generais e as de D. Luís da Costa e João do Crato da Fonseca, que por ser mais antigo as governava, e indo ele descobrindo pela parte do Pereirão, deu vista de uma partida do inimigo, que trazia língua [ou seja, um civil português, capturado para da informações] e uns burros; arrojou-se a ela com cinco cavalos e tomou doi do castelhano e a presa.

Pelas dez horas do dia quis o inimigo reconhecer a praça e a viu em redondo, e todos os sítios em que podia aquartelar-se. A artilharia da praça fazia com que eles vissem tudo mais ao largo e com pouca segurança.

Estava o capitão D. Luís da Costa com a sua companhia junto da ponte de Ramapalhas e os batalhões do inimigo iam pela outra parte do ribeiro, e atrás deles dois soldados infantes por verem também, mas logo que foram vistos da nossa tropa mandou o capitão três soldados que pegassem deles, e intentando tomaram um que era vilão [civil, paisano], e não acharam o outro.

Nesta vista que o inimigo deu à praça chegou ao olival de João cabelo e para receber melhor o sítio, travou uma escaramuça com a companhia do tenente-general Dinis de Melo [de Castro], governada pelo seu tenente Manuel Dias Veloso, que se houve com muito valor e resolução. Da muralha e do forte lhe deram, ao inimigo, carga alguns mosqueteiros [dar carga, neste sentido, significa disparar], com que se  afastou e foi continuando em ver a praça e quartéis ou sítio acomodado para eles, e no fim se recolheu para o vale de São Francisco o Velho.

Pelo meio-dia veio marchando a bagagem e artilharia do inimigo e retaguarda do seu exército pelo mesmo caminho, e se recolheu tudo em o mesmo sítio que a vanguarda.

Logo que o inimigo chegou, mandou o governador Manuel de Saldanha guarnecer a estrada coberta tudo ao redor da muralha, a qual, em poucos dias que havia que estava na praça, tendo vindo da Corte, a mandou reformar com estacas de novo, que eu tinha nos meses de antes conduzido, e mandou consertar os parapeitos que em muitas partes estavam arruinados, e com o terço do mestre de campo João Álvares de Barbuda mandou trabalhar ao forte que Gilot [Jean Gilot, engenheiro militar] tinha principiado defronte da porta do Calvário, o qual era uma obra curva que continha três baluartes e dois meios, tudo pequeno, e fechava na estrada coberta com duas linhas, ficando a porta ou rastilho dela em o meio delas.

Estava esta obra muito imperfeita e a meu juízo feito menos de metade dela, conforme ao voto de todos se pudera escusar com um forte pequeno que ali tinha mandado fazer o mestre de campo João Lopes Barbalho, o qual se guarnecia com cinquenta mosqueteiros e bastava para impedir ao inimigo o alojar-se ali e bater daquela parte, e este outro nos ocupava nove companhias de guarnição com um cabo [no sentido de “cabo de guerra”, oficial superior, provavelmente um sargento-mor], e assim ficava a estrada coberta menos sortida de gente, e aquela ocupada com pouca utilidade e grande discómodo.

Abril 14. Teve notícia por algumas pessoas que passaram de Juromenha para Olivença que o inimigo não tinha impedido o caminho, o que foi parte para que a guarnição da atalaia de São João se recolhesse à praça depois de queimar a pólvora que tinha.

De tarde se mandaram aplicar as cavalgaduras que tinham vindo com o último comboio, e sendo noite as mandaram pelo caminho de Juromenha a cargo de um condutor da artilharia que tinha vindo com elas e passaram todas segundo nos informaram. Nesta noite partiu para o nosso exército [o exército de socorro, comandado pelo Conde de São Lourenço], com cartas, o ajudante de cavalaria Manuel da Silva Falcão, e chegou a ele com elas. Também entrou na praça um correio do Conde de São Lourenço.

(continua)

Imagem: Um cerco dez anos posterior ao mencionado na relação que acima se transcreve, e noutra latitude – Luís XIV de França assistindo ao cerco de Tournai em Junho de 1667. Quadro de Adam Meulen.

Stéphane Auguste de Castille e a perda de Olivença em 1657 (parte 2)

Stéphane Auguste de Castille não chegou a cumprir o degredo na Índia, tendo permanecido preso no Reino depois de ter sido considerado culpado pela entrega de Olivença aos espanhóis. Continuava a reclamar inocência, que dizia ser “tão clara como o Sol”, dirigindo várias petições ao Conselho de Guerra para que fosse anulada a sentença. Ele, que viera para Portugal em 1648, servira a maior parte do tempo à sua custa, tendo uma experiência militar de 24 anos contínuos em guerras. Tinha sido capitão de infantaria e de cavalaria na Flandres e tenente-general na província da Baixa Bretanha, tendo abandonado a França por motivos de força maior (provavelmente a contas com a justiça). A sua permanência na prisão, desde 1657, já lhe custara para cima de 13.000 cruzados, uma pequena fortuna, como não bastasse a Coroa dever-lhe mais de 7 anos de soldos – uma situação frequente entre os capitães de cavalos.

“Não se devia descompor um cavaleiro estrangeiro, homem de tanta experiência, assim no formar das batalhas e batalhões, evoluções da cavalaria e nas mais ciências dependentes da milícia ofensiva e defensiva, e que tem servido a Vossa Majestade desinteressadamente tantos anos, com tanta satisfação e bons sucessos.”

Fora o único capitão de cavalos a permanecer em Olivença, tendo a restante força de cavalaria (400 homens sob o comando do tenente-general francês Achim de Tamericurt) abandonado a praça antes de começarem os trabalhos de cerco. Alegava ter procedido com muito valor durante o sítio e que só ficara em Olivença movido pelo zelo em servir numa arriscada situação. Todos os dias, ao amanhecer, saía a pelejar fora da estacada, “obrando acções memoráveis e dignas de grande estimação”. Dos 96 cavalos que a sua companhia tinha, veio a ficar somente com 37, muitos deles feridos, além de lhe terem matado 5, “a pistoletaços e estocadas, debaixo de sua pessoa”. Recordava ainda vários combates travados no tempo de D. João IV, “que o conhecia, amava, estimava e honrava com muitas cartas suas” (as cartas régias de agradecimento eram muito honrosas para quem as recebia, equivalendo às actuais medalhas como testemunhos de bravura e bom desempenho militar).

Numa das petições, Stéphane de Castille lamentava a acusação de que fora alvo, dizendo que todos os outros implicados se tinham conseguido livrar, incluindo o capitão António Barbosa de Brito, tido na devassa (inquérito) como o principal culpado. Só ele próprio e o compatriota Du Four tinham sido condenados. Acusava o eminente doutor de leis Jorge da Silva Mascarenhas, relator, de ter mandado aceitar como verdadeiros os depoimentos das testemunhas do processo, depois de numa primeira instância as testemunhas terem sido acusadas de faltarem à verdade. O doutor, com influência na Corte, teria procedido assim para livrar de culpa o juiz de fora de Olivença, que era seu sobrinho.

Este juiz de fora, de seu nome João Garcês de Teive, era tido pelo oficial francês como o culpado pela sua condenação, pois “não tendo por onde se livrar, o fez com a perda do suplicante, e alcançou de Vossa Majestade, em lugar de castigo, o cargo de provedor da comarca de Elvas, do qual cargo Deus, como tão justo e recto, não permitiu deixá-lo lograr, pois o alcançou à custa da honra e sangue do inocente que padece”. De resto, desde 1654 que era pública a inimizade entre o juiz de fora e o capitão estrangeiro. A invocação da acção da justiça divina é feita a propósito dos indivíduos que Stéphane de Castille acusava de conjura e falsos testemunhos, pois dos iniciais 106 que assim procederam por temerem o juiz de fora e o seu poderoso tio, já tinham morrido 92, apenas quatro anos volvidos sobre o acontecimento.

Não obstante todos os argumentos invocados, as petições do capitão Stéphane Auguste de Castille continuaram a ser indeferidas pela Coroa. Os nebulosos contornos da capitulação de Olivença nunca seriam esclarecidos. Passam hoje 351 anos sobre a queda da vila alentejana, que seria devolvida a Portugal após a assinatura da paz, em 1668.

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21-A, caixa 78, consulta de 19 de Julho de 1661 e documentos anexos.

Imagem: Vista de Olivença e arrabaldes a partir da fabulosa torre do castelo. É perceptível a configuração das fortificações seiscentistas, posteriormente melhoradas. Em primeiro plano, o antigo quartel de cavalaria. Foto do autor.

Stéphane Auguste de Castille e a perda de Olivença em 1657 (parte 1)

Em 30 de Maio de 1657, após um mês de cerco pelo exército espanhol, capitulava a vila de Olivença. O mestre de campo Manuel de Saldanha entregava a praça que até então governara ao Duque de San Germán, comandante das forças sitiantes. Contando inicialmente com uma guarnição de 4.000 infantes e uma companhia de 100 cavalos, Olivença viu perecer mais de 1.700 defensores durante as operações de sítio. Enquanto isso, o exército de socorro, confiado pela rainha viúva D. Luísa ao Conde de São Lourenço, desgastava-se inutilmente numa ousada tentativa de tomar Badajoz, em vez de se lançar sobre o exército de San Germán.

A queda de Olivença, coincidindo com o reacender da guerra nas fronteiras do Reino, trouxe consigo um imenso pesar e uma vaga de suspeitas de traição. Nem sequer foi poupado o Conde de São Lourenço, apesar do prestígio alcançado no governo das armas do Alentejo durante a década de 40. Caiu em desgraça, como alguns outros que foram acusados de envolvimento na entrega da praça alentejana ao inimigo.

Uma das acusações mais surpreendentes que os inquéritos em torno da queda de Olivença produziram foi dirigida contra um capitão de cavalos, o francês Stéphane Auguste de Castille, cujo nome aparece também aportuguesado em várias fontes como Estêvão Augusto de Castilho. Não causa estranheza que um estrangeiro fosse tido como suspeito, uma vez que, na época, existia uma enorme desconfiança em relação aos súbditos de reis estrangeiros, mesmo os que se batiam no exército português. Contudo, sobre Castille e um outro seu compatriota, François Du Four, recaíram as culpas da perda da praça, apesar de nenhum deles ter estado envolvido nas negociações da entrega da vila. Condenados, Du Four seguiu para as ferrarias de Tomar, enquanto Stéphane Auguste de Castille foi sentenciado no crime de lesa-majestade e degredado por toda a vida para a Índia por infame, ele e os seus descendentes. O caso deixa entrever uma complexa intriga de bastidores e o envolvimento de pessoas ligadas à burguesia e justiças locais, eventualmente receosas de perderem os bens se a capitulação proposta pelo Duque de San Germán não fosse aceite, e certamente receosas de perderem a vida se acusadas de traição após a rendição. Os estrangeiros poderiam ter servido, assim, de bodes expiatórios muito convenientes.

Entre 1660 e 1661, Stéphane Auguste de Castille escreveu várias petições ao Conselho de Guerra, reafirmando a sua inocência e clamando pela anulação da sentença. Para não tornar esta entrada demasiado extensa, amanhã será aqui publicada a argumentação do cavaleiro francês, bem como a sua versão da estranha intriga em torno da queda de Olivença.

Bibliografia on-line (História de Portugal Restaurado)

Gravura: Planta de Olivença, c. de 1700; Biblioteca Nacional, Iconografia, CC29P. A legenda em francês refere que a tomada da vila pelo exército espanhol ocorreu em 1658, quando na verdade foi no ano anterior. Olivença seria devolvida à Coroa portuguesa em 1668, após a assinatura da paz.