Um crime em Abrantes (2ª parte)

Em 23 de Maio de 1648, o Rei D. João IV escreve uma carta ao governador das armas do Alentejo, Conde de São Lourenço, acerca de um crime praticado em Abrantes e dos procedimentos que deviam ser tomados a esse respeito (missiva aqui vertida para português corrente, para melhor entendimento):

Conde amigo. Eu, El-Rei, vos envio muito saudar, como aquele que amo. Da carta e outros que com esta se vos remetem, vereis o excesso que os soldados de cavalo da companhia do capitão Manuel Cornellis, que estiveram alojados na vila de Abrantes, cometeram matando a João Roiz, o Campos, que encontraram caçando na vila de Abrantes, e porque este caso, segundo se tem entendido, foi cometido com grande atrocidade, e não convém que fique sem castigo pelo geral escândalo que tem dado, sendo mandado ordenar ao corregedor da comarca passe logo àquela vila a tirar devassa dele, e tanto que a tiver acabada vo-la remeta para fazerdes sentenciar no juízo da auditoria geral os culpados nela, de que me pareceu avisar-vos para que o tenhais entendido. E vós ordenareis (se já o não tiverdes feito, em virtude da ordem que vos foi) que logo seja preso a bom recado o capitão Manuel Cornellis, e posto em prisão segura a respeito da graveza [gravidade] do delito até ser sentenciado. Escrita em Lisboa a 23 de Maio de 1648.

O oficial respondia pelo crime cometido por alguns dos seus subordinados. Uma desavença por causa da caça? Os documentos não esclarecem os motivos da morte do paisano João Rodrigues, mais conhecido por Campos (o uso de alcunhas era vulgar na época; por vezes, tornavam-se nomes de família, que a descendência já não conseguia descartar e acabava por adoptar como patronímico).

Quem era este oficial holandês, Manuel Cornellis? Como já foi referido, o seu pai era cônsul da Províncias Unidas (vulgo, Holanda) em Portugal. Fora tenente na companhia do comissário geral Alexandre van Harten, um dos militares sobreviventes do contingente holandês que em Setembro de 1641 entrara ao serviço de D. João IV. Mas a chegada de Cornellis a Portugal é muito posterior àquela data – provavelmente durante o ano de 1646. Em Março de 1647 recebe patente de capitão de cavalos couraças. É então que parte para a Holanda, disposto a comprar 100 cavalos e recrutar 100 soldados para a sua companhia. Regressa em meados de Agosto, trazendo os cavalos prometidos, mas somente 30 soldados. Para completar o efectivo previsto, a sua companhia terá de integrar soldados portugueses – e também alguns estrangeiros cujas companhias haviam sido reformadas, como foi o caso do alferes holandês Guilherme (Willem) Liner, que se oferece para a unidade de Cornellis.

Em Abril de 1648, a companhia de Manuel Cornellis encontra-se na província da Beira, para onde fora enviada com outras unidades, a fim de reforçar o exército que D. Sancho Manuel lançara em operações sobre Valência de Alcântara, no mês anterior. O capitão desespera por regressar ao Alentejo. Escreve ao Conde de São Lourenço, pedindo licença para levar os cavalos a tomar o verde a Estremoz ou Vila Viçosa. O Conde, por sua vez, pede autorização ao Rei. Afirma que se a companhia tardar muito e já não encontrar pastagens, os cavalos ficarão perdidos de todo. Mas a resposta demora a chegar, e Cornellis decide abandonar a Beira por sua iniciativa, precipitando os acontecimentos. O crime cometido pelos seus subordinados levá-lo-á a um penoso processo, que será descrito no próximo e derradeiro artigo.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Livros de Registos, Livro 10, fl. 7 e Livro 11, fl. 110 v; Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV, vol. I, pgs. 171, 210, 233, 246 e 250.

Imagem: Cavaleiros do período da Guerra Civil Inglesa, reconstituição histórica, Kelmarsh Hall, 2008. Foto emprestada pela English Civil War Society.

Um crime em Abrantes (1ª parte)

Entre Abril e Maio de 1648, duas companhias de cavalaria que tinham estado em operações na fronteira da província da Beira, uma delas enviada como reforço a partir do Alentejo, encontravam-se em Abrantes.  Uma das companhias, a que tinha o seu quartel de origem no Alentejo, era comandada por Manuel Cornellis, capitão holandês, filho de Pedro Cornellis, cônsul das Províncias Unidas em Portugal. A outra era a do capitão Nuno da Cunha de Ataíde, que anos mais tarde se distinguiria como oficial general da cavalaria.

O desvio por Abrantes pode ter sido ditado pela necessidade de dar verde aos cavalos – isto é, proporcionar-lhes alimento de erva fresca, variante nutritiva da habitual dieta na maior parte do ano, os pensos de cevada. Esta actividade tinha lugar durante a Primavera, sempre que fosse possível. De qualquer modo, o regresso da companhia de Cornellis ao Alentejo foi feito sem a autorização de D. Sancho Manuel, governador das armas da Beira, conforme consta da carta que D. João IV escreveu ao governador das armas do Alentejo, Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço:

Conde amigo, Eu El-Rei vos envio muito saudar, como aquele que amo. Com esta carta se vos remeterá outra de Dom Sancho Manuel, em que pede se castigue ao capitão de cavalos Manuel Cornellis, que havendo sido mandado ir à Província da Beira para se achar com os soldados da sua companhia na facção da Ponte de Alcântara, depois de acabada se veio dela sem ordem do mesmo Dom Sancho, e juntamente se vos remete  uma petição do mesmo capitão Manuel Cornellis, em que aponta as razões por que se deve recolher com a sua companhia a essa fronteira para nela se dar verde aos cavalos, e os guarnecer por ser a parte em que assistia mui nociva para eles, por razão dos mantimentos. Encomendo-vos que vendo tudo o que se contém na carta de Dom Sancho, e petição de Manuel Cornellis, ordeneis que aos cavalos da sua companhia se lhes dê verde, como já se lhe tem avisado, e a ele o façais logo prender no castelo de Vila Viçosa, e dando-lhe cargos [acusações] pelo que Dom Sancho avisa em ordem à sua desobediência, o ouçais sobre tudo, e não se descarregando nem dando satisfação a eles bastante o sentencieis, e castigueis como for justiça. Escrita em Lisboa, 2 de Maio de 1648.

Mas se o capitão holandês já tinha sobre si a justiça militar devido ao seu acto de desobediência, pior ficaria quando, estando ainda em Abrantes, alguns soldados da sua companhia praticaram um crime grave.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1649, maço 9, nº 47.

Imagem: Cavaleiros. Quadro de Philips Wouwerman, Museu do Louvre.