14 de Janeiro de 1659 – Batalha das Linhas de Elvas e morte de André de Albuquerque Ribafria

“[…] Amanheceu terça-feira, catorze de Janeiro do ano de mil seiscentos e cinquenta e nove, dia tão fausto à Nação Portuguesa, que até a si mesmo se fez feliz, por ser de séculos imemoráveis erradamente julgado por infausto; tomando a maior parte deste agoiro a família dos Meneses, de que era cabeça o Conde de Cantanhede, que conseguiu mais uma vitória na resolução de desvanecer esta superstição gentílica. […] [p. 215]

[…] E como em todo o decurso da sua vida não tolerou André de Albuquerque que os seus soldados voltassem as costas aos inimigos, arrojou o cavalo ao centro do esquadrão, exortou aos que se retiravam, e persuadindo-os a que voltassem as caras, os levou junto da estacada do forte, e tocando nas estacas com a bengala, os advertiu como haviam de arrancá-las; obedeceram os soldados, emendendando o erro antecedente. Acertou uma bala tirada do forte a André de Albuquerque, entrando por entre o extremo do braço direito e o princípio das armas [ou seja, da armadura, que consistia numa couraça completa para o tronco: corselete e braçais. A bala penetrou pela extremidade desprotegida, o que leva a crer que André de Albuquerque Ribafria usava apenas luvas de couro, na melhor das hipóteses, e não uma manopla de ferro a proteger todo o antebraço e mão] com efeito tão mortal que infelizmente caiu morto em terra […]. [p. 224]

[…] O Conde de Cantanhede, no dia seguinte ao que ganhou a batalha [quarta-feira, 15 de Janeiro], deu ordem à sepultura do corpo de André de Albuquerque com todas as fúnebres demonstrações militares, que merecia a memória de um varão de tão excelentes virtudes. Foi enterrado no Mosteiro de S. Francisco. [p. 232]

Fonte: D. Luís de Meneses, História de Portugal Restaurado, Parte II, Tomo III, Lisboa, 1751.

Imagem: Padrão comemorativo da Batalha das Linhas de Elvas. Foto de JPF.

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (1ª parte)

IMG_1259A derradeira presença do soldado Mateus Rodrigues no Alentejo ocorreu entre 1657 e 1658, mas deste período apenas deixou uma descrição detalhada da campanha de Mourão. Abandonara o exército da província do Alentejo nos inícios de Fevereiro de 1654, ao fim de quase doze anos e meio de serviço e poucos dias antes da publicação do decreto régio que fixava em oito anos consecutivos o máximo tempo de serviço que um soldado pago devia cumprir antes de ser desmobilizado. Regressado à sua Águeda natal, ali casou, o que devia escusá-lo definitivamente de ser reconduzido ao cenário de guerra. No entanto, regressaria ao Alentejo três anos depois, obrigado pela fome. De acordo com as suas palavras,

(…) ninguém diga deste pão não hei-de comer, por farto que se veja, porque lá vem um ano mau de fome que obriga a comer (…) tudo quanto há. Pois o fim foi (…) que para mim houve tanta fome (…) que me obrigou a que fosse outra vez a ver as ditas guerras, desterrando-me a fortuna um ano inteiro fora de minha casa. (Memorial de Matheus Roiz, pg. 423)

O destaque dado à campanha de Mourão no derradeiro capítulo das suas memórias é justificado pelo soldado de cavalos pela sua afeição a Joane Mendes de Vasconcelos. Desejava assim destacar a “fama, valor e sabedoria” daquele cabo de guerra, logo secundado, na admiração e devoção do autor, pela figura de André de Albuquerque Ribafria.

Olivença e Mourão caíram em poder dos espanhóis no decurso da campanha de 1657. Se a primeira daquelas praças, tomada em Maio, foi uma perda de monta, principalmente pelo impacto negativo no moral (era uma das principais da fronteira alentejana e um dos vértices do triângulo defensivo Elvas-Campo Maior-Olivença), já Mourão – perdida em Junho – se revelou um problema maior para os portugueses. A partir dali, o inimigo fazia incursões nos campos do termo de Monsaraz, rapinando lavouras e gado, aldeias e montes, o que levava muitos moradores a abandonarem os seus haveres e casas, não se sentindo seguros.

Entradas de maior envergadura e alcance levaram a cavalaria inimiga até demasiado perto de Évora. Daí as repetidas queixas e solicitações à Rainha regente, para que ordenasse a reconquista de Mourão e o fim dos sobressaltos. É que sendo a região em redor de Olivença pouco povoada, não dava a perda daquela praça tantas preocupações como Mourão, cuja posse abria caminho ao controlo ou saqueio de vastas e férteis terras.

A Rainha acabou por ordenar a Joane Mendes de Vasconcelos que preparasse uma campanha destinada a retomar a praça. Todo o processo foi mantido em segredo, para que não constasse o verdadeiro objectivo do exército a formar. A partir daqui, sigamos a narrativa de Mateus Rodrigues.

Junta a gente das províncias, como era um terço de infantaria do Algarve muito bom, mas pequeno; e os de Lisboa, um terço novo da Câmara, e o da Armada; e com as tropas da Beira e muita quantidade de auxiliares de todas as comarcas deste Reino, para ficarem de guarnição nas praças, se saiu na maneira seguinte:

Aos vinte e um dias de Outubro, ao domingo à tarde, saiu o senhor Joane Mendes e o senhor André de Albuquerque com a maior parte do exército e com toda a artilharia, que constava de seis meios-canhões de 24 libras e oito peças de 12 libras e trabucos e outros artifícios de fogo.

Chegaram a Vila Viçosa pela manhã, onde fizeram alto até à tarde, donde se puseram outra vez em marcha. E chegando no outro dia pela manhã a Terena, que são duas léguas, mas muito grandes e de muito mau caminho para a artilharia, (…) aí fizeram alto e por decurso da tarde começaram a marchar, chegando à quarta-feira a Monsaraz, que já não fica mais de uma légua de Mourão. E aí se fez alto até de noite, que começou a marchar a carriagem para Mourão.

Tornando agora (…) atrás, digo que Dom Sancho Manuel, mestre de campo general na província do Alentejo, que suposto governa o partido de Penamacor, foi feito por Sua Majestade, na ocasião desta campanha, mestre de campo general, e daí ficou para sempre, (…) que merece como todos o metam na conta, como é o general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, que obrou em seu cargo como adiante se verá.

Digo que Dom Sancho Manuel marchou diante do grosso do exército com seis terços de infantaria e um grosso de cavalaria de 600 cavalos com suas bagagens, e quando o nosso exército chegou a Monsaraz à quarta-feira, já Dom Sancho tinha amanhecido com o seu grosso à roda de Mourão, atacando a praça, de modo que nunca foi possível poder o inimigo lançar fora aviso algum, e alguns que botava, todos lhos apanhavam cá fora. E como o inimigo não via mais que aquele pouco grosso, fazia zombaria dos nossos. Começou a jogar com sua artilharia e mosquetaria, mas com pouco efeito, porquanto os nossos estavam encobertos e não recebiam dano do inimigo, nem o inimigo também recebia dos nossos, porque eles não podiam pelejar em forma até que não chegasse o nosso exército todo junto. (MMR, pgs. 427-429)

Imagem: Monsaraz. Fotografia de JPF.

 

Relação da tomada do forte de Telena e recontro dos exércitos junto ao mesmo lugar (Setembro 1646) – um documento inédito, 2ª parte

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Concluindo a transcrição da relação da campanha do forte de Telena, apresenta-se agora a segunda e derradeira parte:

Rendido o forte, nos retirámos todos ao quartel e o Conde de Alegrete, general, se resolveu em desmantelá-lo sem parecer de nenhum cabo, que era o que nos prejudicava a retirada, porque com o forte guarnecido não tinha a retirada nenhum perigo. Enfim desmantelou-se e trouxe-lhe tudo o que tinha, que de tudo tinha muito, em que entravam duas peças de artilharia de bronze muito boas, de doze libras, uma que havia sido nossa da ponte [de Nossa Senhora da Ajuda; ou de Olivença, como era então mais conhecida] e outra sua. E passado aquele dia em que o inimigo se havia aquartelado com o seu exército pouco mais de tiro de canhão do nosso, pareceu a todos que nos retirássemos, pois se havia feito a facção que nos obrigava a passar daquela parte, e que o exército não era capaz de passar adiante, nem havia sido nossa tenção outra que render Telena e tornar a Portugal; além de que também nos obrigava a fazê-lo termos o inimigo tão vizinho e tão poderoso na sua terra.

Sobre a marcha e a hora de marchar houve vários pareceres, e enfim se ajustou que se fizesse a retirada de dia com toda a bizarria, por reputação das armas de Sua Majestade. Marchou toda a bagagem aos 18 deste pela manhã com os terços que lhe tocou, ficando de retaguarda os mesmos que haviam vindo de vanguarda, sem mais diferença que levar Dom Sancho Manuel o corno esquerdo, e o direito Diogo Gomes [de Figueiredo, pai] e Francisco de Melo no meio. Marchava também de retaguarda toda a artilharia e cavalaria, e vendo-nos o inimigo retirar, suposto que já tão tarde que só os da retaguarda estavam para pelejar, por[que] tudo o demais ia já junto do rio, e muitos passando-os, saiu logo com sua cavalaria, e atacando com algumas tropas as nossas de escaramuça ainda antes de se descer a colina que baixa para o rio, com alguns tiros que se lhe fizeram com a artilharia, se retirou vergonhosamente, sem fazermos até então nada com a infantaria.

Era a tenção do inimigo entreter-nos para se vir chegando com a sua infantaria e com a artilharia, mas como se lhe entendeu, ainda que tarde, se resolveu o Conde de Alegrete no que todos os oficiais lhe gritavam, mas já em tempo que o inimigo vinha marchando com todo o cuidado por nos alcançar, porque reconhecia que estavam só daquela parte os três terços da retaguarda com a cavalaria e parte da artilharia. Marchávamos nós também em boa ordem, mas com cuidado a chegar-nos à ribeira, e chagados a ela virámos as caras, incorporando-se os três terços a tempo que o inimigo investia com toda a sua vanguarda a nossa cavalaria e a vinha atropelando, trazendo-a mais que de passeio até onde estavam os terços, de quem o inimigo recebeu tão bizarras cargas que tornou a voltar com perda de muitos. Assistia o mestre de campo general, persuadindo aos de cavalo que car[re]gassem ao inimigo, e nessa volta o fizeram alguns muito honrados, mas não tantos como eram necessários, e tornando, como eram poucos, a ser rebatidos e car[re]gados do inimigo que se vinha avançando com tudo, lhe tornaram a dar os nossos terços outras tão vivas rociadas que nem mais nem menos os tornaram a fazer desistir do intento. Caminhavam e pelejavam as usas mangas, mas sempre largaram o campo às nossas. Neste tempo sempre o general da artilharia andou valorosíssimo, porque sempre se achou muito empenhado, e da mesma maneira o mestre de campo general. Estavam os terços com notável firmeza e não se lhe[s] arrimava poder que não rechaçassem, até que da quarta vez que o inimigo deu com sua retirada lugar nos mandaram retirar, o que se fez com mais pressa do que os mestres de campo queriam. Contudo o inimigo não tornou a carregar, e passado todo o nosso exército desta parte sem perdo, nos pusémos então a canhonearmo-nos com a artilharia de parte a parte, despropositadamente, porque nos havíamos retirado até então com muito pouca gente morta, e então nos mataram alguma sem ser necessário. Dali marchámos até estes olivais em boa forma, e daqui passámos a Juromenha e tornámos para este posto, e para quê não sei eu nem o alcanço. Do que resultar ao diante darei conta. Em 26 de Setembro de 1646.

Como se pode ver, a relação – ou relatório, mais propriamente – está incompleta, embora trate do essencial da acção. Pela maneira como está redigida, a capacidade de comando de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, não sai nada prestigiada, em contraste com os seus rivais, o mestre de campo general Joane Mendes de Vasconcelos e o general da artilharia André de Albuquerque Ribafria. De qualquer modo, a narrativa de Mateus Rodrigues sobre os acontecimentos, bem mais viva e pormenorizada e que já aqui foi publicada (veja-se a hiperligação para a série na primeira parte deste artigo), corrobora a fraca apreciação que os subordinados de Matias de Albuquerque tinham do seu comandante.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646″, fls. 76 v – 78.

Imagem: Combate de cavalaria, óleo de Pieter Meulener.

Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira – Julho de 1646 (manuscrito inédito, 1ª parte)

Dando continuidade à transcrição de alguns manuscritos portugueses do códice mss. 8187 da Biblioteca Nacional de Madrid – e prosseguindo também o que Juan Antonio Caro del Corral deixou aqui escrito a respeito do ano de 1646, que foi repleto de acontecimentos bélicos, passo a apresentar a transcrição de uma relação sobre as operações militares na província do Alentejo em Julho de 1646.

Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo padre Fr[ancisco?] do Teixozo, religioso capucho assistente na mesma cidade

Foram oitocentos cavalos e quatrocentos infantes a Santa Marta, seis léguas de Badajoz e sete de Olivença, atacaram a praça sem perigo, mandaram a gente que se fosse e derrubaram-lhe algumas casas, fizeram presa em alguns burros e outras coisas semelhantes, alguns deram com batacas [patacas] e outros com quartos [moedas espanholas de real] que espalharam, e outros com melhores coisas que calaram, o certo é que a ida foi de perda para Sua Majestade, e de nenhum proveito, porque a calma era grande e alguns cavalos abafaram e outros aguaram, e os inimigos com sua cavalaria tomaram os nossos nas serras de Valverde, os quais, por pelejar, largavam esse pouco que traziam, dos quais alguns foram mortos, porque não podendo marchar com a calma se ficavam às sombras. Um furriel nosso que os castelhanos mal feriram [ou seja, que feriram com gravidade] e deixaram por morto e despido porque não se quis render, depois se veio em camisa a Olivença, e escapa.

Quarta feira 24 de Julho, dia de Santiago, pelas seis horas da tarde, saiu Dom João [de] Mascarenhas com seiscentos cavalos, e André de Albuquerque com quatrocentos infantes, um é tenente-general da cavalaria e o outro general da artilharia, saíram pela porta dos banhos com suas mulas de carruagem, vieram entre o castelo e a ribeira de Chinchas e a passaram por baixo de Nossa Senhora, e logo a tornaram a passar para a cidade. E chegou toda esta gente onde foi a porta de Évora, por cima da Lameda, e dando sua salva de bastardas tornou a desavisar o mesmo caminho, e passou Chinchas pelo caminho de Portalegre, e tornou logo a voltar, ocupando o mesmo posto da porta de Évora, onde fez noite, e desapareceu sem saberem para onde. Na mesma noite se ajuntou no lugar que largou Dom João toda a mais gente da cidade, e a de Olivença com muita carruagem e quatro peças de campanha, e eu confesso que o mais do tempo depois de matinas estive à janela e que não ouvi reboliço algum, só por algumas vezes rinchar [relinchar] um cavalo. Pela manhã começou esta gente a marchar caminho de Arronches, que era o que tinha levado já Dom João a cavalaria, logo duas peças de campanha, muita infantaria, seguiam-se outras duas peças e logo a carruagem, que seriam quinhentas ou seiscentas cavalgaduras com dez mil pães, afora o biscoito, e por retaguarda a tropa de Dom Rodrigo [de Castro – ou seja, a companhia da guarda do governador da cavalaria]. Aquele dia chegaram a Arronches, e Dom João pelas onze da noite à Codiceira, e a sentinela em um cascalho que há antes de chegar sentiu os nossos, e quando chegaram lhe[s] perguntou quem eram e que fizessem alto. E lhe responderam em castelhano que amigos, e que se queriam chegar ao castelo porque o inimigo andava em campanha, repreendendo-os porque dormiam tanto. Neste tempo estavam pondo petardo, por isso o entretinham com palavras, e vindo outro nosso, e não querendo fazer alto, senão chegar-se aos outros, lhe tirou um com um mosquete e o matou, posto que também lhe falou em castelhano. Deu-se logo fogo ao petardo que foi posto no postigo, e o postigo foi fazer em pedaços a segunda porta que era de grade, e os nossos entraram e quebraram com os ombros outra porta de estacada, e encontraram já o capitão em ceroulas e descalço, que estava com a cria à ilharga. Nisto chegou toda a gente de Dom João, e não houve mais que outro morto nosso, de uma pedra que lançaram do muro, de muitas, e muito grandes, que por cima tinha. E com isto ficaram os nossos senhores do castelo e vila. Começava Joane Mendes [de Vasconcelos] a marchar de Arronches para a Codiceira quando lhe chegou nova do feito, escreveu a Sua Majestade se se havia de presidiar o castelo, mandou que fosse tido assolado. Levou dali gastadores e foi com toda a gente e o minou, e dando-lhe fogo não ficou pedra sobre pedra. Era o castelo quadrado e tinha quatro torres nos cantos, que descortinavam ao longo dos muros, e se os treze castelhanos estiveram alerta, não sei se o tomaram os nossos, porque logo lhe veio socorro de Albuquerque, que está uma légua, e não havendo canhões era muito forte. E os nossos, se não usaram da traça e os castelhanos não foram tão sonolentos, não se havia de chegar a pôr o petardo. O mesmo se fez à vila, tirando a igreja e casa do cura, que posto tinha muita fazenda, se não buliu nelas, e o Bispo de Badajoz mandou dizer ao cura que, se aqueles senhores quisessem presidiar o castelo e não trouxessem capelão, os servisse, e se o trouxessem, se fosse. Ficaram muito contentes com o bom quartel que se deu á gente. No castelo havia muitos panos, e nos pisões e moinhos, que tudo ficou assolado, e muito trigo pelas eiras, e nas hortas muita fruta, de que os de Arronches se aproveitaram. Vieram os nossos para Arronches e um soldado entrou numa horta, colheu um pepino, e levando-o à boca lhe tirou o senhor dela com uma espingarda e o matou; outro, por entrar numa vinha, foi escopeteado. 

(continua)

Realce-se os curiosos factos narrados no final desta primeira parte – a defesa da propriedade privada por parte dos civis, qualquer que fosse a nacionalidade dos soldados que a violassem, chegando-se a extremos de violência e ao assassinato. Nos casos referidos, recorrendo a armas de caça (espingarda e escopeta). Este ódio entre civis e militares, tão característico da actividade bélica do século XVII (e de toda a Era Moderna, aliás), é ilustrado por muitos e variados exemplos nas fontes narrativas e documentais durante a Guerra da Restauração.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relação da tomada de Santa Marta, e Codeceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo P.e Fr. do Teixozo Religioso capucho assistente na mesma cidade”, fls. 74-76.

Imagem: “Soldados em repouso numa estalagem”, óleo de Jean Michelin (c. 1616-1670), Museu do Louvre.

Um combate nos campos de Valência de Alcântara, 7 de Novembro de 1653 (parte 1)

Um dos episódios mais conhecidos da Guerra da Restauração foi o combate de Arronches, travado em 8 de Novembro de 1653 algures entre Arronches e Assumar (o local exacto não é conhecido com precisão, mas seria pouco distante de Arronches). A vitória obtida pela cavalaria portuguesa comandada por André de Albuquerque Ribafria abriu caminho a alguns meses de iniciativa e supremacia dos portugueses naquela fronteira de guerra, permitindo inclusivamente a tomada de Oliva. No entanto, um outro choque de cavalaria, ocorrido na véspera do combate de Arronches e praticamente desconhecido, terá tido importância para o desfecho daquela grande peleja. É esse episódio que aqui se recorda, com base nas memórias do soldado Mateus Rodrigues e na referência ao mesmo que o Conde de Ericeira lhe faz na História de Portugal Restaurado.

Em 1653, apesar de nominalmente ter continuado a ser governador das armas, o ódio de morte que existia entre D. João da Costa, Conde de Soure, e os Bobadilha (Diogo Gomes de Figueiredo, pai e filho, respectivamente mestre de campo e sargento-mor no mesmo terço de Elvas) levara a que o Conde se tivesse mantido em Lisboa enquanto o Príncipe do Brasil, D. Teodósio, permanecia no Alentejo. Os Bobadilha tinham sido mestres de armas do herdeiro da Coroa. O favorecimento do Príncipe aos seus antigos professores de esgrima, bem como a sua interferência no governo do Alentejo, não foram bem aceites por D. João da Costa. Mas pouco depois de D. Teodósio ter regressado a Lisboa (onde viria a falecer em Dezembro desse ano) e dos Bobadilha terem deixado o terço de infantaria, D. João voltou a ocupar o cargo de governador das armas.

Foi nesta condição que, em Novembro de 1653, aproveitando o facto dos campos não estarem ainda alagados pelas chuvas, o Conde de Soure ordenou duas incursões de cavalaria simultâneas contra a congénere espanhola. O general da cavalaria André de Albuquerque devia conduzir as companhias de Elvas, Campo Maior e Olivença a emboscar as companhias de cavalos de Badajoz, enquanto o capitão Fernão de Mesquita, com cinco companhias pagas e as companhias de pilhantes, devia fazer o mesmo às duas companhias que se aquartelavam em Valência de Alcântara e São Vicente.

O soldado Mateus Rodrigues servia ao tempo na companhia de Francisco Pacheco Mascarenhas. Tendo combatido em Arronches, onde foi ferido, não esteve presente na acção que narra, com algum detalhe, nas suas memórias – mas porventura terá apontado o que ouviu contar a outros camaradas de armas que estiveram nesse combate sob o comando de Fernão de Mesquita, acrescentando talvez um ou outro pormenor de sua lavra. E começa assim a sua narrativa (vertida para português moderno):

Em a cidade de Portalegre estava neste tempo uma companhia de cavalos de guarnição, e o capitão dela era de couraças, que tem mais proeminências que os ligeiros, e como havia mais umas cinco ou seis tropas que estavam por aqueles lugares circunvizinhos, estas estavam à sua ordem, deste de Portalegre, por nome Fernão de Mesquita, natural de Elvas, fidalgo e grande soldado e valente. De modo como Portalegre fica perto de Castela, (…) quis este Fernão de Mesquita juntar o seu regimento [note-se que Mateus Rodrigues utiliza o termo “regimento” num senso generalista, referindo-se a várias companhias sob o comando de um oficial, não no sentido orgânico do termo], que seriam 300 cavalos, a fazer uma entrada a Castela, às partes de Valência de Alcântara, que era aonde podia fazer alguma coisa, por ser lugar grande e de muitos gados (…), e como este capitão não podia fazer entrada nenhuma em Castela sem ordem do governador e do general da cavalaria, escreveu uma carta ao nosso mestre de campo general, Dom João da Costa, e ao general da cavalaria, em que lhe pedia licença para fazer a dita entrada, manifestando-lhe as causas que o moviam a fazê-la, que podia ser que desse algum repelão às tropas do inimigo, que tinha em Valência e em S. Vicente e em Albuquerque, porque todas estas tropas estão uma e duas léguas umas das outras, e em qualquer parte que os nossos lhe tocam arma, logo acodem uns aos outros como uns raios; e quando não fosse isto, traria o que lhes achasse pela campanha e se viria muito embora. [MMR, pg. 355]

Segundo Mateus Rodrigues, esta solicitação do capitão aos seus superiores tinha sido feita muitos dias antes do recontro de Arronches. É provável que o memorialista esteja correcto quanto às verdadeiras motivações desta operação, mas o certo é que, tenha partido a iniciativa do próprio capitão ou do Conde de Soure, ela foi providencial para o sucesso de Arronches. É que no mesmo dia em que Fernão de Mesquita saiu com as suas companhias, tinha o Duque de San Germán ordenado ao comissário geral Bustamante que, com dezoito companhias dos partidos de Alcântara e Albuquerque, entrasse a pilhar os campos das comarcas de Portalegre, Crato e Avis, e que depois se juntasse ao resto da cavalaria, que o aguardaria entre Alegrete e Arronches. Para Mateus Rodrigues, foi a intervenção divina (da Virgem da Conceição primeiramente – reflectindo o culto mariano característico do período) que fez com que, após a autorização dada pelos seus superiores, Fernão de Mesquita tivesse deixado passar vários dias antes de empreender a entrada.

Do recontro propriamente dito tratará a segunda e última parte deste pequeno artigo.

Bibliografia:

Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952 (1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 2), pgs 354-356.

Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado (edição on-line facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro XII, pgs. 411-412.

Imagem: “O Campo da Cavalaria”, pintura de Philips Wouwerman, The Frick Collection, Nova Iorque.

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 1: assalto e conquista

A mudança no comando da cavalaria do Alentejo, após o desaire da emboscada nas vinhas da Terrinha, não trouxe maior eficácia. Entre 1646 e 1647, a cavalaria portuguesa era frequentemente suplantada, em número e em qualidade, pela cavalaria espanhola, conforme é corroborado por variadíssimos documentos da Secretaria de Guerra e pela confissão dos “grandes medos” que os soldados sentiam, segundo as palavras de Mateus Rodrigues. A situação só melhoraria em 1647, com a chegada de Martim Afonso de Melo ao governo das armas do Alentejo e a introdução do “Contrato com os capitães de cavalos”.

A preparação da campanha de 1646 não podia ter corrido pior a nível das chefias: Matias de Albuquerque, agora Conde de Alegrete, fora nomeado governador das armas, ficando Joane Mendes de Vasconcelos como mestre de campo general. Grandes rivais, a desconfiança e inimizade entre ambos comprometeu a cooperação necessária para o bom andamento das operações. Também a nomeação de André de Albuquerque Ribafria para general da artilharia, posto que estava vago desde 1644, não foi pacífica, com três mestres de campo mais antigos (Luís da Silva, João de Saldanha e D. Sancho Manuel) a contestarem a nomeação do jovem fidalgo. Como se tudo isto não fosse pouco, quando Joane Mendes – ainda antes da chegada de Matias de Albuquerque ao Alentejo como governador – decidiu empreender uma operação contra o castelo de Codiceira, levantou-se uma grave questão entre D. Rodrigo de Castro e D. João de Mascarenhas, com o segundo a questionar uma ordem do governador da cavalaria e a receber ordem de prisão. Quando se iniciaram as operações para o assalto ao forte de Telena, já D. João recuperara o posto de tenente-general. Mas as tensões entre os comandos continuavam bastante fortes.

O objectivo da campanha foi debatido entre os cabos de guerra da província do Alentejo (os acima referidos e ainda o engenheiro João Pascácio Cosmander e D. João da Costa, que passara a servir no Alentejo sem posto, devido a um duelo que travara com o Conde Camareiro-Mor dois anos antes, que lhe valera a perda do posto de general da artilharia). Sendo Badajoz a praça mais apetecida, considerava-se que era necessário tomar primeiro o forte de S. Cristóvão. Mas Joane Mendes, D. Rodrigo de Castro e André de Albuquerque defendiam que, ainda antes daquele forte, seria necessário tomar e destruir o de Telena. E foi esta opinião que prevaleceu, após consulta ao Rei. Conforme refere o Conde de Ericeira, tratou-se de uma  decisão de grande risco e pouca utilidade (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pgs. 168-169).

Em 15 de Setembro, o exército do Alentejo, reforçado com gente de novas levas e unidades de outras províncias, e com o enorme e necessário trem logístico de carroças e carros, atravessou o Guadiana. O Conde de Ericeira apresenta um efectivo de 8.800 homens, sendo 7.200 infantes repartidos por 10 terços, e 1.600 cavalos. Já Mateus Rodrigues refere 6.000 infantes e 2.000 cavalos, tudo gente paga e boa (MMR, pg. 106). É no contexto desta operação que o soldado de cavalos faz referência à estreia dos “cavalinhos de pau”, já tratados em detalhe em dois artigos, aqui e aqui. Sigamos a sua colorida narrativa dos eventos, bem mais pormenorizada do que a apresentada na História de Portugal Restaurado.

Assim como nós saímos à campanha, logo fomos vistos do forte, que toda aquela campanha, assim a sua como a nossa, em mais de 4 léguas de circuito leva com a vista, e como o inimigo logo soube que nós botávamos exército, começou também a juntar a gente que tinha e as ordenanças todas, assim a cavalaria como infantaria, que a gente que ele trouxe não podia ser toda paga, pois sabemos mui bem o que tem (…). Aquele dia em que saímos da cidade não chegámos lá, e (…) não é mais que légua e meia, mas na passagem da ribeira nos detivemos muito, por amor [isto é, por causa] das muitas carruagens e artilharia que levávamos, 8 peças de 48 libras cada uma e 6 peças de 24 libras, e como nós não fomos logo no direito do forte, senão ao largo por amor da sua artilharia, que orlava meia légua, marchámos mui ao largo, e todo o dia gastámos com uma légua, mas dormimos já todos da banda de além do Guadiana, em umas vilas donde chamam os Carrascais de Fiolhais, e assim nós estivemos ali aquela noite.

Ao outro dia nos pusemos em via, levando a nossa cavalaria toda na vanguarda de tudo, e bem formada, (…) que tínhamos então um grande soldado por tenente-general da cavalaria, que era D. João de Mascarenhas, (…) mas íamos mais de uma légua ao largo, porque nos íamos aquartelar por cima do mesmo forte, em umas covas e vales, aonde a sua artilharia nem chegava, nem nos podiam ver do forte. E assim como chegámos, logo a infantaria começou a trabalhar, a fazer trincheira, e logo todos nós a tratar cada rancho de fazer suas barracas para nos acomodarmos, que todo um dia e uma noite não fizemos mais que consertarmo-nos pelo que nos podia suceder. E (…) estando já todo o exército acomodado, trataram de ir ao forte, que nos ficava daí meio quarto de légua. Levaram lá a artilharia, mas não obrava nada, porque como o forte era de faxina e terra, não faziam as peças nada nele. Trataram então de lhe fazer avançadas com a infantaria arrimando-se [ou seja, chegando-se] à estacada, que a tinham mui grossa e forte. Contudo, apesar de mortos, lhe romperam a estacada e ficavam junto da mesma muralha do forte, que dali lhe lançavam dentro muitos penedos e alcameias de fogo e granadas, que com isto lhe faziam grande dano lá dentro. Mas muito mais dano nos fazia o inimigo, que nos matava muita gente, porque diferente é pelejar um homem de sua casa, coberto para quem peleja da rua, e além de que as suas duas peças que lá tinham nos faziam grande dano. Porém, rebentou-lhe uma delas, que fez o artilheiro em pedaços. E como não havia mais, que ficavam muito mal sem artilheiro para a praça, assim logo por diante começaram a descoroçoar, porque, como os nossos estavam sempre arrimados à (…) muralha do forte, não podia o inimigo fazer-lhe dano com a mosquetaria. Os nossos lhe estavam matando muita gente com o que lá lhe botavam dentro, e assim, vendo-se já em aperto, vendo que lhe não vinha socorro, mandaram um aviso a Matias de Albuquerque, que se lhe não viesse socorro dentro de dois dias, que eles se queriam entregar. Concederam no aviso, e susteve[-se] a peleja por espaço dos ditos dois dias, e no cabo, vendo o inimigo que lhe não vinha socorro, se entregou no fim de três dias de continuação, que nos custaram os tais dias mais de 80 homens mortos e feridos [devido a um erro de transcrição, a versão dactilografada refere 800 baixas: o número que Mateus Rodrigues apresenta no manuscrito é 80]. Rendido o castelo, se saiu a gente que nele estava, que eram 300 homens e boa gente, mas já vinham menos uns 60 homens que lá lhe mataram os nossos. (MMR, pgs. 108-109)

Foi então decidido arrasar o forte. Matias de Albuquerque propôs que nele entrassem 2.000 homens com pás e picaretas, que derrubariam o forte em dois dias. Mas o engenheiro Cosmander quis poupar os soldados a mais uma canseira, e contrapôs que se fizessem minas e se fizesse assim explodir o forte. Seguiu-se este conselho, mas sendo a obra de terra, não resultou em nada – nem estrondo fez grande, (…) nem quanto seja uma vara de muralha derrubou. (MMR, pg. 110)

(continua)

Imagem: Fotografia aérea do local onde se ergueu o forte de Telena. Foto retirada do blogue Sigue las Huellas de Badajoz, que apresenta um magnífico conjunto de artigos sobre o forte de Telena. O primeiro desses artigos pode ser lido aqui: Sigue las Huellas de Badajoz. Mais sobre Telena aqui.

A captura do tenente-general Gregorio de Ibarra nos campos de Badajoz, 25 de Maio de 1652 (3ª e última parte)

A entrada seguinte seria a definitiva, o lançar da armadilha que fora cuidadosamente preparada nos dias anteriores.

De modo que ordenaram os nossos generais que haviam de mandar (…) uma partida de 100 cavalos para que obrigasse o inimigo a sair com todas as 14 tropas que na cidade [de Badajoz] tinha, e na mesma noite que eles entrassem, havia de ir o nosso general da cavalaria André de Albuquerque, com toda a cavalaria, a emboscar-se em Matos de Cantilhana, que estão por cima de Badajoz uma légua e meia. E a nossa partida havia de entrar às portas de Montijo, e quando fosse de manhã (…) havia de ser retirada (…) para Portugal. E como o inimigo havia de sair em busca deles e não os achasse, era força retirar-se por onde o nosso general havia de estar com a nossa cavalaria. (MMR, pg. 291)

No dia combinado, as companhias que participavam na acção concentraram-se em Elvas e daí partiram para Campo Maior, onde chegaram ao anoitecer. Todas as companhias da vila estavam formadas no exterior, aguardando o general. A força de 100 cavalos já havia saído para as partes de Montijo, e André de Albuquerque ordenou ao soldado que  preparara a traição que fosse a Badajoz, avisar acerca da entrada da cavalaria portuguesa.

Chegou este soldado à ponte de Badajoz já depois da meia-noite, e dando o sinal combinado, com ele foi ter o general D. Álvaro de Viveros. Depois de ser informado sobre a entrada dos portugueses e de ter recompensado o soldado, Viveros mandou montar as 14 companhias de cavalaria de Badajoz, que perfaziam 700 cavalos.

E assim como estiveram juntos mandou com eles o seu tenente-general, o Ibarra, que é um grande soldado, o qual saiu logo pela cidade fora com as tropas como um raio, e quando ele ia pela campanha acima não poda saber da nossa cavalaria, visto passar de madrugada, que se fora dia era força que haviam de dar nela os seus batedores (…). (MMR, pg. 292)

Deste modo, a força de Gregorio de Ibarra ficou com os 1.500 cavalos comandados por André de Albuquerque Ribafria nas suas costas . A armadilha estava preparada.

Não avistou Ibarra a cavalaria portuguesa, mas deu com o trilho por ela deixado no regresso a Campo Maior. Verificando que já não era possível interceptar aquela entrada, o tenente-general deu ordem para volver a Badajoz. Porém, não o fez tomando o rumo que o levaria onde estava emboscada a cavalaria de André de Albuquerque. Decidiu dar verde aos cavalos, isto é, aproveitar para os colocar a pastar, visto que era época de haver muita erva pelos campos, o que possibilitava às montadas uma alternativa mais saudável às habituais rações de cevada. Esta decisão levou a que as companhias de Badajoz seguissem junto ao rio Guadiana, onde havia melhores pastagens, por locais onde vales e barrancos os protegiam da vista das sentinelas portuguesas.

Enquanto os soldados castelhanos desmontavam e segavam erva para levarem, o general André de Albuquerque impacientava-se no local onde se encontrava emboscado, não tendo notícias da cavalaria de Badajoz. Até que chegou o aviso, dado por uma sentinela, de que havia soldados inimigos desmontados junto ao Guadiana a meia légua dali (cerca de 2,5 Km) – com efeito, alguns soldados haviam deixado o abrigo dos barrancos e subido a alguns altos, onde a erva era melhor, e só por este acaso foram detectados pelos batedores portugueses.

André de Albuquerque mandou logo montar toda a cavalaria, e mandou avançar diante dois batalhões à rédea solta, que ia por cabo de um o capitão D. Fernando Henriques, filho de D. Henrique Henriques, senhor das Alcáçovas, e no outro batalhão ia por cabo o capitão João da Silva [de Sousa] (MMR, pg. 293). Estes dois batalhões deviam interceptar o inimigo e aguentá-lo enquanto o general da cavalaria conduzia o grosso da força, mais atrás, para o contacto.

Assim que os soldados que andavam segando erva viram a cavalaria portuguesa, montaram apressadamente e foram dar o alarme. O tenente-general Ibarra ainda subiu a um alto para ver qual era o efectivo da força portuguesa, mas verificando que era muito superior ao seu, deu ordem de retirada às suas tropas. Fizeram-se à ribeira de Xévora, que atravessaram com os cavalos já estafados da correria. Perto da outra margem, mas ainda dentro de água, fez Gregorio de Ibarra formar dois batalhões com 150 cavalos, supondo que seria suficiente para desmotivar as tropas portuguesas que corriam na vanguarda. Porém, tanto D. Fernando Henriques como João da Silva de Sousa não se atemorizaram, sabendo que o general André de Albuquerque os seguia com considerável reforço, e assim atravessaram a ribeira e lançaram-se sobre o inimigo, que mais não fez do que disparar uma salva de pistolas e carabinas antes de se pôr em fuga, já misturado com os batalhões portugueses da vanguarda.

A perseguição durou até às proximidades do forte de São Cristóvão, em Badajoz. Quando os últimos cavaleiros se recolheram à segurança do forte, as tropas portuguesas reagruparam-se e retiraram. Foi então que se verificou que, para além de 6 capitães e 80 cavalos, o próprio tenente-general Ibarra tinha caído prisioneiro. André de Albuquerque Ribafria ficou “doido de contente”, segundo a expressão de Mateus Rodrigues, pois valia mais aquela captura do que se tivessem apanhado 500 cavalos (uma afirmação exagerada, mas que reflecte bem a reputação de que gozava Gregorio de Ibarra).

Após o incidente, os espanhóis pediram para ser reatadas as trocas, processo que não teve o seu começo senão por alturas da Páscoa do ano seguinte. Tanto o tenente-general como os 6 capitães foram transferidos para Lisboa, por se terem tentado evadir de uma das torres de Elvas, onde tinham ficado inicialmente sob prisão. Esta tentativa de fuga causou uma perna partida a um dos capitães, de uma queda que deu da torre onde estava. As trocas de prisioneiros ficaram então de novo abertas, segundo Mateus Rodrigues devido à grande importância de Gregorio de Ibarra. Quando chegaram os primeiros prisioneiros portugueses, na Primavera de 1653, quase todos soldados de infantaria, alguns contavam já dezanove meses de cativeiro e não traziam cor de gente viva, senão de fomes desenterrados… (MMR, pg. 296)

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener, Groeninge Museum, Brugges.

A captura do tenente-general Gregorio de Ibarra nos campos de Badajoz, 25 de Maio de 1652 (2ª parte)

Depois de tudo combinado, o capitão João da Silva de Sousa e o soldado regressaram a Campo Maior. O capitão já levava ordens para mandar as partidas de cavalaria às imediações de Badajoz, pelo que se limitou a transmitir as decisões tomadas em Elvas ao governador da praça, Rui Lourenço de Távora, o qual também ficou agradado com a perspectiva da trama que se preparava.

Daí a uns dias foi enviada uma pequena força de 7 cavalos, com um cabo experiente a comandá-la, o qual estava inteirado de que iriam ser atacados pelo inimigo e que deveria deixar-se capturar. Mas nada devia ser contado aos soldados, para que o plano não fosse frustrado.

O soldado “falso traidor” tinha avisado na noite anterior o general de Badajoz acerca daquela força, de tal forma que recebeu mais algumas patacas. E no dia seguinte, no local previsto, saíram 50 cavaleiros espanhóis ao caminho do reduzido grupo português. Conforme fora instruído, o cabo deu ordem de retirada, mas depois mudou de opinião e decidiu empenhar-se em combate com o inimigo – uma resistência simbólica antes de se render, para que os soldados que levava de nada se apercebessem. Muito contente ficou D. Álvaro de Viveros, pois apesar de serem apenas sete os cativos, era uma maneira de ir diminuindo a cavalaria de Campo Maior. À época estavam suspensas as trocas de prisioneiros, de modo que os soldados tinham pela frente uma estadia nas cadeias mais prolongada do que era costume. Apesar de Mateus Rodrigues afirmar que a suspensão das trocas se devia ao facto dos espanhóis terem capturado muita gente do terço pago da Beira, incluindo o mestre de campo, e não estarem interessados na permuta de prisioneiros, o facto é que havia também muitos presos inimigos, incluindo oficiais, nas enxovias portuguesas.

Alguns dias mais tarde, foi a vez de um grupo de 13 cavaleiros ter o mesmo destino do anterior. De novo o soldado avisara o general de Badajoz, aumentando assim a confiança que nele depositavam. A trama ia-se tecendo…

D. João da Costa deu ordens para acicatar ainda mais o inimigo. Desta feita, o soldado português foi instruído para avisar Badajoz que no dia seguinte iria sair uma partida mais numerosa de Campo Maior: 60 cavalos. Eram comandados por um oficial experiente e corajoso, o tenente Manuel Vaz, da companhia de João da Silva de Sousa (anos mais tarde fugiria para Espanha com a sua família e criados, por ter sido acusado de judaísmo pela Inquisição).

D. Álvaro de Viveros, depois de recompensar o soldado português com mais um punhado de patacas, preparou a saída de 200 cavalos de Badajoz. E de novo julgaram colher de surpresa a partida portuguesa. No entanto, Manuel Vaz tinha ordens para não se deixar capturar. A fuga foi de imediato encetada, mal se avistaram as tropas inimigas. Apesar de lograda a captura de mais cavalos e homens, o cabo de guerra espanhol pôde comprovar a informação do suposto traidor português. A parada para o capítulo final estava lançada.

(continua)

Fonte: MMR, pgs. 287-290.

Imagem: “Cavaleiros fazendo alto junto de um acampamento de ciganos”, de Philips Wouwerman.

A captura do tenente-general Gregorio de Ibarra nos campos de Badajoz, 25 de Maio de 1652 (1ª parte)

No último post foi referido o nome do então comissário geral da cavalaria espanhola Gregorio de Ibarra (1645). Num episódio descrito por Mateus Rodrigues nas suas memórias, voltamos a encontrar o oficial sete anos mais tarde, agora já tenente-general da cavalaria, numa acção não muito feliz para o próprio.

Conforme refere Mateus Rodrigues, era então (1652) general da cavalaria na cidade de Badajoz D. Álvaro de Viveros. À sua presença foi levado, certo dia, um soldado português capturado – alguns prisioneiros tomados como “línguas” eram interrogados na presença de oficiais superiores, sendo isto habitual em qualquer dos lados em confronto. O aliciamento para servir de espia era também usual, e foi isso mesmo que foi proposto ao soldado de infantaria de Campo Maior, pois este demonstrava ser pessoa resoluta e determinada. D. Álvaro de Viveros perguntou-lhe se queria ser rico; bastaria para isso que o avisasse quando saísse alguma partida de cavalaria de Campo Maior, pois a cavalaria desta vila não cessava de fazer incursões ao outro lado da fronteira e tinha elementos que conheciam muito bem todas as zonas por onde se faziam as entradas (não é de estranhar que isso acontecesse nessa época, dado que a cavalaria de Campo Maior era comandada pelo capitão João da Silva de Sousa, cuja apetência pela pilhagem era lendária).

Mas o soldado, que era grande (…) demónio, assim como o general lhe cometeu [incumbiu] tal coisa, logo lá dentro em seu coração formou de repente a malícia, enganado o general, dizendo que sim, era muito contente, mas como faria ele isso sem que o viessem a saber, que o não enforcassem? Mas como ele já tinha a tenção de lhe fazer velhacaria, logo tornou a dizer que ele lhe daria a melhor traça [plano] e ordem que pudesse, de modo que não corresse perigo a sua vida. O general do inimigo lhe agradeceu muito o ânimo e logo o mandou para Campo Maior e lhe deu umas poucas de patacas. (MMR, pgs. 284-285)

O plano consistia em o soldado não entrar em Badajoz cada vez que viesse dar notícias, mas ir até à porta da Ponte e fazer um sinal combinado para se encontrar com o general.

No entanto, mal chegou a Campo Maior, o soldado foi logo a casa do governador da vila, Rui Lourenço de Távora, contar-lhe o sucedido em Badajoz. O governador convocou o capitão João da Silva de Sousa e este foi com o soldado até Elvas, dar conta da situação ao mestre de campo general D. João da Costa. O fidalgo ficou muitíssimo contente com a possibilidade de causar grande dano à cavalaria inimiga e premiou o soldado com algumas patacas, para que comprasse um vestido. O soldado disse então que o seu único desejo era que o livrasse da obrigação de ser soldado, que não precisava de dinheiro, pois seu pai tinha o suficiente para lhe dar de comer, e que só desejava essa mercê do mestre de campo general. Assim lhe foi prometido, e mais livraria algum irmão, caso o tivesse e servisse de soldado.

Foi então combinado o modo como o soldado deveria orientar o general da cavalaria inimiga à armadilha. O plano foi urdido entre D. João da Costa, João da Silva de Sousa e o general da cavalaria André de Albuquerque Ribafria. Ficou decidido que deixassem cair nas mãos do inimigo 30 ou 40 cavalos, os quais iriam às pilhagens em território inimigo em duas partidas (designação dada aos grupos de unidades que faziam incursões) , sabendo apenas o comandante das unidades o que iria suceder. O soldado avisaria o general inimigo e as partidas seriam capturadas em dois dias seguidos, para que D. Álvaro de Viveros fosse induzido da boa fé do soldado português.

(continua)

Fonte: MMR (pgs. 284-286).

Imagem: Combate de cavalaria; detalhe do painel relativo à Batalha das Linhas de Elvas (1659), na “Sala das Batalhas” do Palácio dos Marqueses de Fronteira, Lisboa.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (5ª e última parte)

André de Albuquerque Ribafria enviou uma mensagem a D. Manuel de Melo, para que este mandasse dois oficiais do seu terço, dos mais experientes e sagazes, ao castelo de Oliva, a fim de concretizarem os termos da capitulação com o governador. O mestre de campo escolheu o alferes da sua companhia, Manuel Francisco Canais, e o capitão Manuel de Almeida. Os espanhóis enviaram dois elementos para servirem como reféns junto do general da cavalaria – uma prática de etiqueta neste género de situações.

Os ajustes da capitulação não diferiram do que era prática corrente em situações semelhantes: os soldados sitiados saíriam com as armas às costas, e as de fogo carregadas com bala, mas somente até 200 passos da vila – depois, teriam de as entregar; as mulheres poderiam carregar tudo o que conseguissem, de pertences individuais, à cabeça, mas o mesmo não era permitido aos homens.

Segundo Mateus Rodrigues, quando os dois oficiais portugueses regressaram vinham mui bem aproveitados de coisas boas de dentro do castelo, que confessou um deles que lhe rendera a ida lá dentro bons cem mil réis. (MMR, pg. 384)

Seguiram-se então os procedimentos habituais. Os mestres de campo D. Manuel de Melo e Manuel de Saldanha, acompanhados de outros militares, foram ao castelo organizar a evacuação dos moradores e dos soldados. Mateus Rodrigues escreveu, a este respeito, algumas das páginas mais sentidas das suas memórias:

(…) Foi uma confusão notável entre as mulheres, porque além de ver que as faziam sair da sua pátria [ou seja, local de onde eram naturais], para nunca jamais a tornar a ver, por outra parte tinham tanto que levar cada uma que não podiam levar o que desejavam. Vejam bem como se apartariam de boa mente de sua pátria, (…) vendo ficar os maridos mortos, e outras os filhos e irmãos. Assim que não havia quem as fizesse apartar dali. Contudo, como era força fazê-lo, começaram a ir fazendo trouxas, cada uma o que podia levar à cabeça, mas algumas com paixão não levavam nada, senão tudo era prantos e gritos. Finalmente começaram a sair (…) pouco a pouco. (MMR, pg. 384)

Mateus Rodrigues formou, como a restante cavalaria e os infantes do terço de Olivença, em duas alas, de cada lado da estrada por onde a procissão dos desalojados e rendidos iria passar, debaixo de intensa chuva. O resto já aqui foi descrito num artigo anterior, pelo que evito repetir a narrativa do soldado de cavalos a este respeito.

A capitulação previa que as gentes de Oliva fossem escoltadas, a partir de certa altura, por um destacamento de cavalaria de Jerez de los Caballeros, cidade que seria o seu destino. Vieram de Jerez 100 cavalos meia légua de nós, em comboio desta gente (…), e posto que assim se ordenou de lá e de cá, que estavam em Jerez 200 cavalos que se haviam juntado aí, do regimento de Rosalles [Juan de Rosalles, comissário geral]. (MMR, pg. 385)

Após a saída do moradores, vieram os militares (200 homens), de armas às costas. Respeitando as cerimónias usuais nestes casos, e conforme estava combinado na capitulação, os portugueses saudaram os espanhóis com uma salva de mosquetes. Recolhidas as armas após a saída da guarnição, trataram os soldados portugueses de entrar na vila. A cena descrita por Mateus Rodrigues é típica de qualquer conflito da Era Moderna:

(…) Quis Deus que, como demos pelas casas da vila, começamos a fazer grandes fogos com as caixas, cadeiras e portas das casas de onde nos metíamos, que quando amanheceu já não havia ninguém que não estivesse muito bem enxuto e bem farto de carne, que não faltava na vila, assim morta como porcos vivos que na vila havia. (MMR, pg. 387)

Na vila ficou o capitão Manuel de Almeida comandando uma guarnição de 200 homens. Entre a partida  e o regresso da força portuguesa a Elvas e a Olivença passaram-se nove dias. Mateus Rodrigues refere que as perdas portuguesas foram cerca de 150 homens – só no terço de D. Manuel de Melo houve mais de 120 baixas, entre mortos e feridos; o terço de Olivença, de Manuel de Saldanha, não chegou a combater. As perdas dos defensores de Oliva ascenderam a mais de 60 mortos.

O memorialista frisou que a tomada da vila e castelo de Oliva fora a jornada de maior proveito para Portugal em mais de 10 anos. No imaginário castrense, a conquista de uma povoação, pela sua raridade, conferia um prestígio superior a qualquer usual operação de rapina ou combate renhido. No entanto, com esta façanha Mateus Rodrigues colocou um ponto final em 13 anos de serviço ininterrupto no exército do Alentejo. Ainda lá voltaria por um breve período, mas somente passados três anos, durante os quais aproveitou para redigir a maior parte das suas memórias.

Imagem: “Dividindo os despojos”. Pintura de Jacob Duck. Museu do Louvre, Paris.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (4ª parte)

Após o fracasso dos petardos, Mateus Rodrigues refere a acção de um frade que, segundo o soldado, pode ter sido determinante para a tomada do castelo de Oliva de la Frontera. No entanto, a narrativa do soldado de cavalos é também, a certa altura, um importante testemunho da violência e terror que as operações de guerra exerciam sobre os civis, que não aparece registado em nenhum outro relato deste acontecimento.

Em esta vila estava um frade trino [ou seja, da Ordem da Santíssima Trindade] castelhano e natural da vila, que tinha ali um irmão e havia vindo a vê-lo. E quando viu que íamos a tomar a vila, não se quis meter dentro do castelo, senão ficar de fora para pedir ao general que (…) não bulissem na casa de seu irmão. (…) O general mandou logo ao frade que fosse ensinar [onde ficava] a casa, que mandava lá pôr sentinelas [para] que ninguém lá fosse e que lhe dava sua palavra que lhe não havia de falta dela coisa alguma. Agradeceu-lhe o frade grandemente o favor (…) e se foi o frade com o general para as casas e nunca de lá saiu, a não ser ao que diante se verá, que pode ter sido a causa de se tomar o castelo. (MMR, pgs. 377-378)

Entretanto, as minas iam progredindo pouco em direcção ao castelo, pois a terra era muito dura e difícil de escavar, e sobre isto avisou D. Manuel de Melo o general da cavalaria. Seriam precisos muitos dias até que as galerias subterrâneas chegassem à muralha do castelo. Porém, André de Albuquerque não se demoveu do seu intento. Tinha vindo até ali para tomar o castelo de Oliva e não partiria sem o fazer, apesar da proximidade da cidade de Jerez de los Caballeros e da possibilidade dos espanhóis enviarem um exército de socorro.

De maneira que, como o frade assistia sempre com o general, ouvia dar as ordens, e ouvindo falar em minas, perguntou o que era aquilo. Disse-lhe então o general que mandava fazer duas minas, uma que havia de ir até à torre que tinha o castelo no meio, e a outra havia de ir parar à muralha, e assim como estivessem já acabadas, que vissem que já lá tinham chegado, haviam de atacá-los com muita pólvora e dar-lhe fogo, para que voasse a torre para o ar e quem estivesse nela, e logo a da muralha havia de abrir uma grande brecha, por onde haveria de mandar avançar mangas de mosquetaria e rodeleiros, para que fossem degolando tudo quanto estava dentro. Tanto que o frade ouviu isto ao general, pediu que o deixasse ir ver aquelas minas. Mandou logo o general que fossem a mostrar as minas ao frade, as quais ele foi ver logo, e assim como as viu ficou parvo. E logo pediu muito ao general que lhe desse sua senhoria licença, que queria ir dentro ao castelo falar com o governador. Que, como o frade tinha lá dentro sua irmã e sobrinhas, não podia levar em paciência o dizerem que o castelo havia de voar e quem estava nele. (…) Como o general viu que nunca a ida do frade ao castelo lhe podia resultar em (…) dano, senão em proveito, deu licença ao frade (…), mas disse-lhe o nosso general que havia de volver com resposta, senão, que lhe havia de pesar. O frade lhe deu sua palavra de tornar. (MMR, pgs. 378-379)

O frade dirigiu-se ao castelo, onde entrou por um postigo falso que tinha a muralha, pois a porta principal estava terraplanada no interior, até ao cimo da muralha. Em conversa com o governador, tentou fazer com que este se rendesse, a fim de poupar as vidas de tanta gente que estava no castelo, contando-lhe acerca das minas e da disposição dos portugueses em as fazer explodir e degolar toda a gente.

A proposta, todavia, teve o efeito contrário ao pretendido. Assim como os habitantes souberam dela, zangaram-se e expulsaram o padre, dizendo que preferiam voar com o castelo a renderem-se. Regressado para junto dos portugueses, o frade não contou a André de Albuquerque como fora infrutífero o seu esforço para salvar as vidas dos habitantes de Oliva. Pelo contrário, deu alguma esperança ao general, pois referiu que o governador do castelo nunca lhe dissera que não se renderia, mas que o tempo lhe daria lugar a decidir o que haveria de fazer. Era este governador homem já avançado em anos, e segundo o frade era desejo do bom velho entregar-se, pois tinha duas filhas donzelas no castelo e elas lho pediam que assim fizesse. O impasse, no entanto, manteve-se.

(…) Em a vila havia uma igreja muito forte, a qual estava perto do castelo; pelo menos ficava-lhe no descoberto de toda a mosquetaria, que não podiam ir à igreja sem que do castelo não fizessem muito dano. E nesta igreja ficaram muitas mulheres, e com 50 homens que pelejavam da torre da igreja infinito, e tinham fazenda dentro dela. E aonde estava a nossa gente pelejando ficava-lhe a igreja junto deles, mas não podiam lá ir senão com muito risco.

Mandou o general (…) um aviso, se se queriam entregar, senão que os haviam de degolar, ao qual aviso eles fizeram pouco caso. Mandou logo o general que fosse uma manta à igreja com um petardo, e que em abrindo as portas, avançassem por elas dentro mangas de mosqueteiros, e que não dessem quartel a castelhano nenhum, só às mulheres não agravassem [ou seja, não fizessem mal]. E preparada a manta, foi o soldado com ela e com o petardo diante, e chegando a uma porta travessa que ficava mais resguardada do castelo, deu fogo ao petardo e logo lançou as portas dentro. E no mesmo tempo avançaram os mosqueteiros por ela dentro, matando a todos os castelhanos que lá estavam, ressalvando as mulheres. E assim como os nossos entraram, era tanta a confusão e gritaria das mulheres que lá estavam, que pareciam os diabos. (…) E em breves palavras estavam todos os castelhanos da igreja estirados na rua, mortos, à vista do castelo, para que os outros os vissem, para pôr medo. E logo tomaram as mulheres todas, que eram 50, e botaram-nas fora para a rua, dizendo-lhe[s] que se fossem para o castelo. E vendo-se elas naquele estado, foram-se ao pé do castelo com grandes gritarias de choros, que as recolhessem para dentro, mas o governador, nem os mais, não as quiseram recolher …). Vendo-se as pobres desta sorte, tornaram-se para a igreja, que não haviam de estar aos pelouros nas ruas. E quando os nossos entraram na igreja não tiveram mais que três homens que morreram, mas os 50 homens que lá estavam todos morreram, e os nossos se aproveitaram de muito bom fato que lá tinham os castelhanos metido.

Feita esta diligência se continuava grandemente com as minas, porém com poucas esperanças de elas chegarem lá devagar, contudo continuava-se com elas. E quando o nosso general soube que já a igreja estava tomada e que estavam lá 50 mulheres, deu uma ordem à vista do frade castelhano: que se mandassem escolher 300 soldados da cavalaria, todos soldados velhos e homens de satisfação, e que haviam todos de trazer cravinas. E quando a mina da muralha estivesse para dar fogo a ela, que haviam de avançar estes 300 soldados pelas brechas dentro, (…) e logo detrás deles mangas de mosquetaria. Mas quando os homens da cavalaria avançassem haviam de levar 50 soldados, os que fossem diante, daquelas que estavam na igreja para amparo dos seus corpos, que se os castelhanos lhe atirassem, matassem primeiro as mulheres. Brava ordem. Mas a verdade é todas estas confusões fazia o general à vista do frade para que, vendo estas coisas, o movesse a querer volver ao castelo a falar com os castelhanos. o que não foi necessário, porque assim como o inimigo, do castelo, viu aquela lástima dos mortos da igreja pela rua e as mulheres com as gritarias, parece que lhe quebrou o coração a todos, e houve entre eles logo um rumor e uma bulha, que se conformaram a mandar pedir quartel ao nosso general. (MMR, pgs. 380-382)

As condições foram recusadas, porém. André de Albuquerque não estava disposto a permitir que os espanhóis permanecessem no castelo até terem recolhido os trigos que tinham semeado pelos campos. Despediu o emissário do governador dizendo que se espantava muito de como em os espanhóis havia tal rudeza e pouco discurso (MMR, pg. 382); que pelejassem o que pudessem, que não fazia concessão nenhuma naqueles termos.

Mas os castelhanos não ficaram muito contentes (…) do que havia trazido o aviso. E quando veio este aviso era no sábado, mas no domingo de madrugada tornaram logo com outro, (…) de como se queriam entregar, mas que lhe haviam de deixar sair com suas armas às costas e bala em boca, e que levariam as mulheres o fato que pudessem levar à cabeça para se remediarem. (MMR, pgs. 382-383)

André de Albuquerque ficou contente com este pedido de capitulação. Sabia que seria impossível tomar o castelo sem a artilharia que havia ficado em Mourão, pois na altura achara que não seria necessária. Assim, tratou de negociar as capitulações.

D. João da Costa, na sua carta, imagina combates a que não assistiu: Prevenindo eu este acidente, mandei levantar mantas e mineiros, e tudo o mais necessário para forçar o castelo, o que se começou a fazer com estes instrumentos, de maneira que o inimigo se viu obrigado a render-se, como o fez ontem às dez horas da manhã. (Livro 2º…, carta de D. João da Costa, Conde de Soure, para D. João IV, datada de 12 de Janeiro de 1654).

(continua)

Imagem: Soldados confraternizando com mulheres. Pintura de Jacob Duck (1600-1667).

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (3ª parte)

Sem saber que tinham sido detectados, os portugueses avançaram sobre Oliva de la Frontera.

Cercada a vila com a cavalaria toda, chegou a infantaria e o nosso general diante dela. Chegaram à trincheira sem ouvirem dentro rumor nenhum, como que não havia ali gente nenhuma. E a esquadra que estava à porta não quis dar tiro nenhum à nossa gente até que eles os não viram subir pela trincheira acima, pelas escadas, e assim como os nossos foram subindo, dá-lhe a esquadra uma carga que logo ali caíram onze homens. Assim como o inimigo deu esta carga logo desamparou a porta e a trincheira e se foram de carreira meter no castelo, porque aquela esquadra não a pôs o inimigo ali para defender a trincheira, senão para que os do castelo soubessem quando nós chegávamos, para se prevenirem. (MMR, pg. 374)

Estes detalhes são omitidos na carta de D. João da Costa para D. João IV. A riqueza do texto de Mateus Rodrigues reside na perspectiva que este tem das operações, à escala das preocupações do homem comum, com pormenores que escapam às mais elaboradas narrativas produzidas com fins informativos e propagandísticos. Esclareça-se que o termo “trincheira” empregue por Mateus Rodrigues correspondia a um baluarte provisório, erigido com terra e eventualmente reforçado com madeira no interior, destinado a proteger as entradas de uma localidade e a reforçar as defesas já existentes.

Depois de terem sofrido as baixas repentinamente, devido à salva disparada de surpresa e à queima-roupa, o ânimo dos soldados portugueses esfriou. Como o nosso general viu isto, pareceu-lhe que os soldados estavam já com medo e que seria necessário muito tornar a fazê-los avançar. E assim disse a Manuel de Melo e ao mestre de campo Manuel de Saldanha (…) que seria necessário eles fazerem exemplo aos soldados, em subirem diante eles pela trincheira, para que os soldados não duvidassem, e apenas tinha dito isto (…) já ele ia subindo pela trincheira com uma rodela e uma espada na mão, seguindo-o logo as duas pessoas nomeadas e assim mais todos os soldados. (…) Contudo, assim como o inimigo, do castelo, os sentiu dentro [da trincheira], eram tantas as balas que botava dele que parecia que botavam como saraiva, porque todas quantas ruas tem e tinha a vila, todas as lavava o castelo com sua mosquetaria. E como fazia grande luar, dava muita ajuda ao inimigo, e foi a coisa de modo que não tiveram os nossos outro remédio para ficarem dentro da vila, senão irem minando as casas por dentro, pelas paredes, e meteram-se dentro, em as casas, todo o terço de Manuel de Melo, em uma rua que ficava bem defronte do castelo; porque, como vinha já amanhecendo, não era possível aparecer ninguém onde chegasse arma de fogo do castelo, porque assim que aparecia algum nosso onde o inimigo lhe chegasse, já ele estava morto; que, de 200 homens que no castelo estavam, não havia um só que não fosse caçador do ar [caçadores de aves], e assim nunca jamais erravam tiro que fizessem. De modo que antes que fosse manhã, já o terço todo estava metido dentro das casas de uma rua fronteira do castelo, e o inimigo mui bem soube logo que a nossa gente estava metida naquela rua, porém pelejava-se grandemente de ambas as partes, mas da nossa com pouco proveito, em razão que como os castelhanos estavam dentro do castelo, não lhes podiam os nossos fazer tanto dano como eles a nós, que nos [a]tiravam de dentro de umas ameias do castelo, e nós não lhe podíamos fazer mal nenhum, porque a nossa infantaria não podia pelejar senão de dentro das casas, que faziam uns buracos por dentro das paredes que ficassem bem defronte do castelo, e metiam por os buracos os mosquetes. E assim como viam assomar algum castelhano, atiravam-lhe; assim como os castelhanos viam atirar, logo atiravam para aquela parte (…). E bem viam os buracos, porque a distância do [desde o] castelo a[té] onde os nossos estavam era coisa pouca. O nosso general logo mandou tomar umas casas em entrando dentro da vila para ele estar, mas não ficava da parte donde o inimigo lhe fizesse dano. E dali não saiu até que a vila e castelo se não tomou. Dali mandava as ordens do que se havia de fazer ao mestre de campo Manuel de Melo, que estava com o seu terço dentro das casas para dar ordem ao terço a pelejar e para mandar fazer as minas (…). (MMR, pgs. 375-376)

O terço de Olivença comandado por Manuel de Saldanha, bem como toda a cavalaria e a bagagem, permaneciam longe da vista dos moradores de Oliva, ocultados em outeiros e vales. Os soldados, desocupados de qualquer acção de combate, aproveitavam a lenha que podiam recolher livremente para se aquecerem com os grandes fogos que faziam, pois o frio era intenso. Entretanto, na vila prosseguia o tiroteio entre os defensores do castelo e o terço de D. Manuel de Melo. Os do castelo apupavam os portugueses, chamando-lhes “galegos” e  gritando-lhes que tinham escolhido mal o dia e “que levassem as casas da vila às costas” (as casas estavam completamente vazias, como refere Mateus Rodrigues; nada havia que pudesse ser pilhado); havia uma enorme confiança entre os defensores de Oliva acerca da inexpugnabilidade do castelo.

André de Albuquerque recebeu uma mensagem de D. Manuel de Melo: a pouco e pouco os soldados do seu terço iam consumindo as munições e alguns tombando, sem que se pudesse fazer qualquer dano aos castelhanos – aguardava, pois, instruções sobre o que fazer. André de Albuquerque mandou então que os mineiros começassem a abrir minas e mandou avançar as mantas. Curiosamente, na carta enviada ao Rei, D. João da Costa afirma que partiram dele estas ordens – mas o mestre de campo general não fez parte da expedição. Aliás, tanto o Conde de Ericeira como Mateus Rodrigues são claros quanto a quem comandou toda a operação, e o soldado de cavalos fez parte da força que nela participou.

(…) Mandaram logo preparar as mantas, que eram duas, que levava cada uma um petardo (…), e lançaram-nas por uma porta grande que estava em uma das casas. Assim como o inimigo as viu sair eram tantas as balas que se cobria o ar com elas. (…) As mantas são de prova de mosquete [ou seja, à prova de mosquete] e mui fortes, contudo lançou o inimigo uma ameia do muro abaixo e botando-a em cima de uma das mantas, a fez numa pasta, que como era grande altura e [a] ameia pesava mais de dez quintais, não pôde a manta sustentar o peso da pedra. E a outra deu fogo à muralha com o petardo, mas não fez nada, que estava já o soldado debaixo dela com grande medo, vendo o fim que a outra teve, e assim como deu fogo ao petardo, vendo que não obrava nada, veio-se embora com a manta, e o inimigo fazendo grande risada e galhofa (…). (MMR, pgs. 376-377)

A carta-relatório de D. João da Costa é muito prosaica a este respeito:

(…) Se arrimou um petardo à porta, e dando-se-lhe fogo três vezes, não tomou, pela humidade do tempo o impedir, até que com as pedras quebraram os castelhanos  as estacas em que se sustentam os petardos. (Livro 2º…, pg. 42)

Mais um ponto em que o discurso de D. João da Costa se afasta do que Mateus Rodrigues viu e escreveu.

(continua)

Léxico:

Manta – protecção de madeira, colectiva ou individual, revestida de peles de animais, sob a qual se abrigavam os soldados que deviam aproximar-se das muralhas ou portas para colocar o petardo.

Petardo – engenho explosivo em forma de sino que se fixava contra uma porta ou uma muralha, a fim de as rebentar.

Imagem: Modo de colocar um petardo. Gravura do século XVII, via The Artillery Garden.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (2ª parte)

A propósito de Oliva de la Frontera, Juan Antonio Caro del Corral enviou esta ligação para um artigo online de Alfonso Gil Soto, intitulado “El impacto de la Guerra de Secesion Portuguesa (1640-1668) en los territorios de la Extremeña: el caso de Oliva de la Frontera” (in Alcántara, 2001, pgs. 53-54):

http://ab.dip-caceres.org/alcantara/alcantara_online/53_54/53_54_006a.htm

Ao amigo Juan Antonio agradeço, mais uma vez, a sua oportuna colaboração.

Prossigamos a narrativa, seguindo as memórias de Mateus Rodrigues. Com tudo acertado para a operação, o terço de Moura começou a reunir mantimentos para 8 dias. Todas as bestas da vila de Moura, em número de 1.000, foram requisitadas para puxarem as carroças e transportarem os mantimentos e as munições, para além das que os soldados levariam em mochilas (designação dada na altura a grossos sacos usados a tiracolo). Tudo isto foi feito com o sigilo possível, para não despertar qualquer desconfiança no inimigo. O ponto de reunião das forças de cavalaria com a infantaria de Moura seria a vila de Mourão.

Dia de Reis, que foi em 6 de Janeiro de 1654, saiu o nosso general André de Albuquerque da cidade de Elvas pela manhã, pela porta da esquina fora, com duas companhias de cavalo, que era a sua e a minha (…), e com duas peças de artilharia de 24 libras cada uma, e quando saímos (…) não havia ninguém que soubesse para onde marchávamos (…). Havia um rumor de que levávamos aquelas peças para o castelo de Vila Viçosa e que ia lá o general para as mandar pôr, (…) e quando lá chegámos já não havia quem não soubesse que íamos a Castela, mas não adonde.

No dia 7, pela manhã, as duas companhias de cavalos formaram em frente à estalagem onde o general tinha pernoitado, e daí seguiram para Mourão, onde chegaram já de noite e onde já se encontrava D. Manuel de Melo com o seu terço. Os soldados de cavalos tiveram de suportar uma noite bem fria e chuvosa de Inverno, muito mal acomodados ou ao relento, pois os alojamentos (as casas dos moradores da vila) estavam já todos ocupados pelos soldados de infantaria e as cavalariças pelas bestas de carga do terço.

Na manhã do dia 8, a força seguiu pela estrada de Vilanova de Portugal (Villanueva del Fresno), percorrendo duas léguas até se reunir ao terço de Manuel de Saldanha e à cavalaria de Olivença. Segundo Mateus Rodrigues, o total das cavalgaduras que acompanhava o pequeno exército era de 3.000, mais do que o número de tropas pagas que ali marchava – uma cauda logística bem extensa. Em Vilanova tiveram pouco tempo para descansar e comer, pois a etapa até Oliva, onde tinham de chegar antes do amanhecer, ainda era longa (mais de 4 léguas e mau caminho para a infantaria, que não podia ir formada, nem a cavalaria tampouco). A coluna demorou bastante tempo a formar; a cavalaria toda na vanguarda (1.400, segundo Mateus Rodrigues, mais cem do que D. João da Costa aponta na sua carta), a infantaria (1.500 homens) na retaguarda, e toda a carriagem e cavalgaduras no meio. Em grande silêncio prosseguiu a marcha, passando a ribeira de Alcarrache, uma légua depois de Vilanova, e continuando por azinhais. A precaução destinava-se a não serem sentidos, mas bem podíamos ir com toda a galhofa e bulha, pois o inimigo estava de aviso. Com efeito, na sua carta o Conde de Soure refere que no dia 8 tinha o inimigo uma partida sobre Mourão, a qual, vendo marchar a nossa gente, avisou a sua, com o que nos esperavam recolhidos no castelo com as armas nas mãos. Mateus Rodrigues acrescenta mais detalhes: tinha sido o tenente Marim, com 10 cavaleiros, quem tinha detectado a força portuguesa, e à rédea solta correra a avisar as gentes de Oliva. E suposto que o inimigo já tinha parte do fato metido no castelo, assim como o tenente chegou e deu aquela triste nova, enquanto tiveram tempo meteram tudo quanto puderam no castelo, e deixaram as casas só com as paredes e alguma caixa vazia, e (…) meteu-se toda a gente dentro no castelo, e não deixaram fora mais que trinta homens e a companhia de cavalos que estava na terra. O capitão, que Rodrigues reputa de grande soldado, e antigo, tinha ido comandar as companhias de Talavera (até nisto foi o nosso general bem afortunado, pois se este capitão não tivesse sido transferido e estivesse dentro do castelo, nem o poder do mundo o havia de tomar, porque era homem do diabo e muito valente, chamava-se D. Diego Quexada). Mas era agora o tenente Marim que comandava a cavalaria. Este, logo que caiu a noite, meteu a sua mulher na igreja com as demais mulheres da vila e partiu com os seus soldados para uma ermida de Nosso Senhor que fica em um outeirinho junto da mesma vila, e daí lançou sentinelas para detectar a progressão da força portuguesa.

A um quarto de légua de Oliva, André de Albuquerque fez adiantar a cavalaria, para que fossem tomadas todas as vias de entrada e saída da vila. O general da cavalaria pensava que havia duas companhias de cavalos em Oliva, mas de facto, apenas ali servia a do tenente Marim – e mesmo essa fez o oficial espanhol retirar para Jerez de los Caballeros, não sem antes alertar os soldados que estavam de guarda na trincheira de que os portugueses se aproximavam.

(continua)

Bibliografia: Livro 2º…, pgs. 41-42; MMR, pgs. 369-374; veja-se a 1ª parte desta série para as referências completas.

Imagem: Oliva. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII. O outeiro onde se situa a ermida referida no texto é visível no canto superior direito da planta. Ao contrário do que eu tinha aqui escrito ontem, a colina visível no canto superior direito do mapa não se trata do outeiro da ermida, mas sim de “el Moriscote”. Veja-se o comentário nº 1, do Sr. Andrés Francisco Perez Cuecas (a quem eu agradeço a colaboração), para o completo esclarecimento.

O assalto a Oliva, 8 a 11 de Janeiro de 1654 (1ª parte)

Após o sucesso no combate de Arronches em 8 de Novembro de 1653 e da incursão ao Vale de Matamoros em 25 de Novembro do mesmo ano, o mestre de campo general e governador das armas interino do Alentejo, D. João da Costa, Conde de Soure, decidiu lançar um assalto à vila extremenha de Oliva. Os motivos para tal operação são explicados pelo próprio, em carta dirigida a D. João IV:

Enquanto o tempo não dá lugar de poder obrar o que desejo no serviço de Vossa Majestade, me pareceu livrar aos lugares de Mourão, Monsaraz, Terena e [A]landroal das contínuas moléstias que recebiam da guarnição e moradores da vila de Oliva, que consta de 400 vizinhos e um castelo.

Para se ganhar uma e outra coisa por interpresa, ordenei ao general da cavalaria [André de Albuquerque Ribafria] que com 1.300 cavalos e com os mestres de campo Manuel de Saldanha e Manuel de Melo investisse a vila e procurasse, com os petardos, ganhar o castelo. (ALMEIDA, Manuel Lopes de; PEGADO, César (pub.) –  Livro 2º do Registo das Cartas dos Governadores das Armas (1653-1657), Coimbra, Biblioteca da Universidade, 1940 (transcrição do ms. 540 da BGUC), pg. 41, adaptado para português corrente).

Na operação participou a companhia de cavalos onde servia Mateus Rodrigues, companhia essa que era comandada pelo capitão Fernão Pacheco Mascarenhas. Mateus Rodrigues ainda se encontrava em convalescença das feridas recebidas no combate de Arronches e estava prestes a desertar do exército do Alentejo, onde servia desde Setembro de 1641. O soldado de cavalos deixou uma extensa narrativa do assalto a Oliva, a qual contrasta com a brevidade com que a operação é descrita pelo Conde de Soure e até pelo Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado (edição on-line facsimile da edição de 1759, Parte I, Livro XII, pgs. 439-440). Os pormenores da incursão ainda estavam frescos na memória quando começou a passar as suas recordações para o papel, poucos meses depois, já no sossego de Águeda.

O general André de Albuquerque Ribafria estava a recuperar das pisaduras sofridas no combate de Arronches (onde caíra do cavalo logo no início da refrega e fora atropelado pela sua própria cavalaria, tendo sido mesmo dado como morto) quando lhe foi atribuído o comando da operação. Embora tivesse ainda um braço imobilizado e não pudesse montar a cavalo, fez-se transportar numa liteira. A sua reputação estava no auge e era muito estimado pelos subordinados.

Este lugar ou vila de Oliva estava sete léguas pela terra dentro, e tudo mui grandes azinhais e terra de matos. Contudo era lugar que dava grandes enfados e perseguições, e os lugares (…) que lhe ficavam em a raia, como era a vila de Moura e Serpa e Mourão e Monsaraz e Terena e o [A]landroal, todos estes nossos lugares eram abrasados desta Oliva, em razão que tinha em si duas companhias de cavalos mui boas, e todos eram homens da mesma vila, que toda a nossa campanha sabiam a palmos e aos olhos fechados, e como assim fosse de sorte ventura lhe dávamos em partida nenhuma que entrasse dentro em qualquer lugar destes. Mas a quem este inimigo perseguia com mais continuação era a vila de Moura, por ser terra de maior tráfego de campo e lavouras e gados, e achava o inimigo ali mais certa a pilhagem do que em outro qualquer dos mais. Além de que Moura também tinha sempre duas e três tropas de cavalo, mas nunca jamais podiam apanhar nenhum castelhano, e quando lhe saíam alguma vez sempre os corriam cinco ou seis léguas. De modo que teve esta vila de Moura e mais lugares este aperto e sujeição treze anos, até que Deus se lembrou deles para ficarem descansados, fazendo suas lavouras à sua vontade. (Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita (AHM), pgs. 366-367).

Segundo Mateus Rodrigues, a iniciativa da operação não partiu directamente do Conde de Soure, mas do governador Moura e mestre de campo do terço de guarnição da vila, D. Manuel de Melo, filho do Porteiro-Mor do Reino, e do próprio André de Albuquerque. D. Manuel de Melo comandava o melhor e mais numeroso terço da província do Alentejo e governava a vila desde 1647, mas nunca ousara falar aos governadores das armas na sua vontade de atacar Oliva, pois sabia bem os riscos que essa operação envolvia. Só depois da vitória de Arronches e da superioridade que a cavalaria portuguesa obtivera a partir daí é que D. Manuel de Melo deciciu revelar o seu plano ao general da cavalaria e ao mestre de campo general. Escreveu cartas a ambos, para Elvas, e logo D. João da Costa foi conversar com André de Albuquerque, de modo a saber se este estava em condições de comandar a operação. Encontrou-o ainda muito combalido, mas sempre animoso e decidido a tomar parte na arriscada empresa. D. Manuel de Melo, para além de ser uma pessoa de grande consideração devido ao alto cargo exercido pelo pai na Corte, oferecia o seu terço para assaltar a vila, sem ser necessário arriscar a cavalaria. Com 1.400 homens bem equipados e bem treinados, tinha por certo  o sucesso. E assim, D. João da Costa deu o seu consentimento ao plano, embora receasse pela diminuída capacidade física de André de Albuquerque.

(continua)

Imagem:  A partida dos soldados. Quadro de Philips Wouwerman.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (3ª parte)

combate-de-cavalaria

Recebera D. João de Ataíde ordem de atacar a cavalaria inimiga, mas a progressão foi feita com tanto vagar que a força espanhola passou primeiro o ribeiro e ficou do lado oposto, à espera da reacção portuguesa. Conforme relatou o governador das armas Martim Afonso de Melo…

(…) como não o investimos antes de o passar, com quatro tropas [companhias] que o comissário tinha apartadas, depois foi com grande risco avançar com o inimigo passada a ribeira, o que fez o capitão António Jacques de Paiva e Lopo de Sequeira, tenente da companhia de António Saldanha [da Gama], que ficou na praça [de Elvas] mal disposto, e como estavam da outra banda carregaram todas as tropas do inimigo, que seriam oitocentos cavalos, sobre estas duas nossas, que não puderam aguentar o choque e voltando feriram alguns soldados e o mesmo capitão António Jacques de Paiva e o capitão de dragões [René] Grudé [francês] e o capitão Van Ingen [holandês], a quem levaram prisioneiro por se ir nas companhias que passaram a ribeira; o general da artilharia me fez queixa que os oficiais da cavalaria não fizeram o que ele lhe ordenara (…), e hei-de castigar com todo o rigor ao que achar culpado em não querer investir quando o mandaram, porque o certo é que anda mal acostumada esta nossa cavalaria, mas contudo o inimigo se retirou e largou o posto e nós ficámos nele até às cinco da tarde (…).

O que aconteceu entre a ordem de atacar e a sua tardia e incompleta execução (estando a cavalaria espanhola já formada no lado oposto do ribeiro) é narrado pelo soldado Mateus Rodrigues, que participou na acção:

Dom João (…) chamou um ajudante da cavalaria para levar as ordens do que haviam de fazer, e como este tal ajudante lhe não eram os capitães fidalgos muito afeiçoados, por haver sido criado do mesmo Dom João de Ataíde, (…) quando (…) levou as ordens aos capitães houve uma descomposição com ele, e um capitão de cavalos, por nome João da Silva [de Sousa] lhe disse mui más palavras, e correu após dele com a espada na mão para lhe dar, e o dito ajudante se veio mui queixoso (…) ter com Dom João do que lhe haviam feito. De modo que o mesmo Dom João levou as ordens  pessoalmente a todos os capitães e mandou a um capitão, por nome António Jacques de Paiva, com três companhias, que era a sua e a do tenente Lopo de Sequeira e a (…) companhia de Dom João, que era a minha, e o cabo [ou seja, comandante] que ia na minha [era] o alferes Agostinho Ribeiro, e (…) disse Dom João ao capitão António Jacques que fosse sua mercê com aquelas três companhias a pelejar com o inimigo, mas que não passasse o ribeiro além (…), que assim como chegasse [a] averbar com o inimigo ao pé do ribeiro, lhe desse uma carga de cravinas e pistolas, mas que logo voltasse na mesma hora para trás, dando as costas ao inimigo, e que era força que, vendo-o o inimigo fugir, o havia de carregar logo, e tanto que o inimigo passasse o ribeiro após eles, era força que se havia de descompor (…).

D. João de Ataíde foi então dar as ordens aos capitães, para que atacassem todos ao mesmo tempo logo que o inimigo passasse o ribeiro em perseguição das companhias (quatro, segundo Martim Afonso de Melo; três, na versão de Mateus Rodrigues). Mas, segundo escreve o soldado, o mesmo foi dar-lhe[s] esta ordem que dizer-lhes que fugissem.  António Jacques de Paiva, por seu lado, excedeu as ordens que recebera, pois passou o ribeiro com as companhias, e na desorganizada retirada veio [o inimigo] logo sobre os nossos como um raio, fazendo tudo numa poeira. Mas o que os nossos batalhões haviam de fazer em investir o inimigo, fizeram em fugir todos à rédea solta para [a] Atalaia, e são [sic] o mais infame que jamais se há visto. Tanto que o inimigo (…) viu nossa pouca vergonha, aproveita-se logo da ocasião, seguindo-nos como uns cães, e o pior de tudo que quem ficava nas piores eram as três companhias que havíamos ido a picá-lo, pois lhe ficávamos mais à mão. E assim a perda que houve foi delas, que lhe tomou o inimigo mais de 60 cavalos (…), matando-lhe 20 ou 30 homens.

O general da artilharia André de Albuquerque, que estava na Atalaia com a infantaria, mal viu a fuga precipitada da cavalaria portuguesa, mandou avançar os terços.

(…) o inimigo, assim como viu nossa infantaria, logo se retirou mui depressa, visto haver feito já o que podia fazer, e se retirou a Badajoz, donde teve aquele capitão [D. Alonso Cabrera], que foi causa daquilo, grandes louvores do seu governador; e na verdade os merecia tanto como os nossos mereciam o castigo.

Do lado português, o governador das armas Martim Afonso de Melo ficou furioso com o sucedido. Das consequências finais tratará o derradeiro capítulo desta série.

(continua)

Citações: Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. I,  pgs. 144-145; Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 176-178.

Imagem: Adam Frans van der Meulen, “Combate de cavalaria”, Kunsthistorisches Museum, Viena.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (2ª parte)

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Prossigamos a narrativa do sucedido na Atalaia da Terrinha com a versão “oficial”, o relatório do governador das armas Martim Afonso de Melo (vertido para português corrente). Conforme foi referido, tratou-se da primeira acção de importância após a chegada a Elvas, em 22 de Maio, daquele cabo de guerra.

Hoje, que foram 5 do corrente, das sete para as oito do dia, veio o inimigo com duas tropas grandes dando em uma nossa que estava de guarda, a qual se veio retirando até perto dos muros desta cidade; e dando-se-me aviso mandei montar a cavalaria e lhe ordenei que fosse tomar o posto que a nossa tropa de guarda ocupava; e porque poderia suceder que carregasse muita cavalaria do inimigo sobre a nossa, mandei marchar a infantaria também para que estivesse dentro nos olivais dando favor à nossa cavalaria, e tendo nós tomado o posto se me avisou que a cavalaria do inimigo se havia descoberto e que estava repartida, uma da ribeira para cá, e outra da outra parte; ordenei ao general da artilharia André de Albuquerque (por ser o cabo maior que está nesta fronteira) que fossem investir o inimigo, estando ainda dividido desta nossa parte da ribeira, e não estando a não passassem nem empenhassem a nossa cavalaria, e que mandassem marchar a infantaria de modo que não fosse vista do inimigo, e que pudesse ajudar-nos se fosse necessário; foi o general da artilharia e diz que achando ainda três tropas do inimigo desta nossa parte mandara ao comissário geral Dom João de Ataíde que com quatro nossas as investisse, e ele com o restante fora baixando da Atalaia da Terrinha, que era o posto que ocupávamos, o que vendo o inimigo passou o ribeiro (…)

É tempo de voltar ao testemunho do soldado Mateus Rodrigues, que pinta o quadro do lado da cavalaria espanhola (provavelmente reconstituindo a memória do sucedido a partir das conversas que tivera com soldados de ambos os lados – episódios como este eram contados e recontados ao longo dos anos, e as conversas entre soldados dos dois exércitos eram frequentes, pois tanto uns como outros se encontravam de vez em quando ora na situação de cativos, ora na de guarda de prisioneiros)

(…) de modo que o inimigo se veio encostando ao ribeiro da Veuda (…) e assim como ele se veio chegando para onde as nossas tropas estavam, mandou então André de Albuquerque ir as outras tropas que estavam detrás da Atalaia a incorporar-se com as outras que lá estavam. e uma ordem (…) mandou a Dom João de Ataíde que pelejasse com o inimigo, já que tinham tão boa ocasião, pois o inimigo fora desgraçado em vir naquela ocasião de ter ali a cavalaria das outras praças (…) [e] porque estava já averbado connosco [isto é, em contacto, ou a distância de fogo ou em escaramuça à espada] e não se podia já retirar sem pelejar, porque [senão] tinha a perdição certa. Mas um comissário que ali vinha de novo [ou seja, pela primeira vez] por cabo deles não queria pelejar, porquanto antevia a muita desigualdade que tinha, e como era a primeira vez que saía à campanha, não queria que logo lhe sucedesse uma desgraça. Mas vinha ali com eles um capitão de cavalos a que chamavam Dom Alonso Cabrera, natural de Badajoz, que foi o mais valente soldado que em os nossos tempos conhecemos ao inimigo, e assim como viu o seu comissário frio de pelejar e com determinação de se tornar a retirar e não pelejar, disse-lhe que no se havia de retirar que cuando no quisesse pelear que le dejase la ocasion por sua cuenta, que el se lo queria tomar a su cargo e que no tuviesse cuidado [Mateus Rodrigues mistura português e castelhano “aportuguesado” nesta parte].

E assim, com a confiança assente na experiência e bravura de D. Alonso Cabreira, o comissário geral espanhol decidiu pelejar. Do outro lado, D. João de Ataíde também recebera ordens de atacar…

(continua)

Citações: Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. I,  pg. 144; Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 175-176.

Imagem: O teatro de operações na região de Elvas; a Atalaia da Terrinha aparece destacada a verde. Nota: o norte encontra-se para a esquerda da imagem, o topo aponta a leste. Mapa de Nicolau de Langres, década de 1650. Biblioteca Nacional, Reservados, F2359.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (1ª parte)

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Os anos de 1646 e 1647 foram muito difíceis para a cavalaria portuguesa da província do Alentejo. Foi uma época de transição nos comandos, de mudança estratégica (as campanhas ofensivas do exército no Verão, que marcaram os anos de 1643 a 1646, foram suspensas a partir de 1647) e de reorganização administrativa (o Contrato com os capitães de cavalos entrou em vigor em Abril de 1647). No terreno, a supremacia da cavalaria espanhola sobre a portuguesa ficou exposta numa série de desaires para as armas lusas. Durante algum tempo, a cavalaria não teve general nem tenente-general a comandá-la no terreno. Esse papel coube a um comissário geral, o inepto D. João de Azevedo e Ataíde, a cuja companhia pertencia o soldado e memorialista Mateus Rodrigues. O combate da Atalaia da Terrinha, a cerca de uma légua (5 Km) de Elvas, marcou o fim da carreira militar do fidalgo. Os  ventos da Fortuna soprariam para longe na História, para o século seguinte, a fama imorredoira que o comissário sonhara para si, presenteando com ela um seu trineto, um tal Sebastião José de Carvalho e Melo…

Tudo começou com a chegada do novo governador das armas do Alentejo, o regressado Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço. Seria ele a recuperar a cavalaria do Alentejo, mas o começo não podia ter sido menos auspicioso. O governador das armas convocou todas as companhias de cavalos do exército para uma mostra na cidade de Elvas – existiam então 26 companhias, que alinhavam cerca de 1.000 efectivos. Estavam todas juntas na cidade quando tocou a rebate: havia cavalaria castelhana nos olivais das cercanias de Elvas! O general da artilharia André de Albuquerque Ribafria (que se distinguiria, anos depois, como brilhante general da cavalaria) mandou toda a cavalaria sair da cidade. Uma companhia foi adiante, para entrar em contacto com a força de reconhecimento inimiga, composta por 100 cavalos, e afastá-la das tropas que se formavam na encosta. Segundo recorda Mateus Rodrigues…

…assim como eles viram (…) a nossa cavalaria fora, foram (…) andando para a Atalaia da Terrinha; e a nossa cavalaria foi um vale abaixo, encoberta [para] que não a visse o inimigo, porque já se sabia muito bem que o inimigo tinha [montado] emboscada em Guadiana, que fica da nossa Atalaia um quarto de légua. (…) Desceram as tropas de Elvas abaixo à campanha, e as outras de Olivença e de Campo Maior deixaram-se ficar detrás da nossa Atalaia, que as não visse o inimigo. E já neste tempo o nosso general da artilharia André de Albuquerque estava na Atalaia com os três terços de Elvas, mas não via o inimigo nada. Assim como a sua [(dos espanhóis, entenda-se)] emboscada que estava em Guadiana viu (…) as tropas lá em baixo em o ribeiro da Veuda, saiu de Guadiana à rédea solta com 600 cavalos que lá tinha, não mais, e que em bem má hora vinha ele, se não houvera tanta desordem como houve ou, para melhor dizer, tanto medo e pouca vergonha entre todos [nós], que naqueles casos não se culpa mais senão tudo em geral, porque todos têm culpa. (Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 173-174)

(continua)

Imagem: “Combate de Cavalaria”, de Jan Martszen de Jonge, meados do séc. XVII.

Batalha das Linhas de Elvas, 14 de Janeiro de 1659

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Passam hoje 350 anos sobre a batalha das Linhas de Elvas.

Aqui fica um breve resumo do evento. Um exército de socorro (8.000 infantes, 2.900 cavaleiros e 7 peças de artilharia), sob as ordens do Conde de Cantanhede, D. António Luís de Meneses, foi enviado para tentar pôr fim ao cerco de Elvas, que o exército espanhol comandado por D. Luís de Haro (inicialmente, 14.000 infantes, 5.000 cavaleiros e 19 peças de artilharia) mantinha desde Outubro de 1658. A 14 de Janeiro, pelas 8 horas da manhã, beneficiando do denso nevoeiro que cobriu a aproximação da força, e também do erro de julgamento de D. Luís de Haro, o exército português rompeu as linhas de cerco inimigas e desbaratou os sitiantes, os quais fugiram precipitadamente, imitando o seu comandante-em-chefe. Ao mesmo tempo, D. Sancho Manuel, comandante das forças sitiadas, fez uma surtida para ajudar ao êxito das forças portuguesas. Somente cerca de 5.000 infantes e 300 cavaleiros das forças sitiantes conseguiram chegar a Badajoz. Para trás deixaram toda a artilharia, o depósito de munições, mantimentos e os pertences de D. Luís de Haro, incluindo toda a secretaria com importantíssima documentação. As baixas portuguesas também foram pesadas, com saliência para a morte de André de Albuquerque Ribafria, general da cavalaria.

Apesar desta vitória portuguesa, que apagou a lembrança do tremendo fracasso que tinha sido o cerco de Badajoz no ano anterior, a iniciativa da guerra continuou a pertencer ao exército de Filipe IV. Só as derrotas espanholas nas batalhas campais da década seguinte (1663, Ameixial, e 1665, Montes Claros) levariam a uma inversão dos papéis, até à ratificação da paz no início de 1668.

Imagem: Cerco de Elvas, 1659, por Pedro de Santa Colomba. Biblioteca Nacional, Iconografia, E1090V.

O combate de Castelo de Vide – 8 de Outubro de 1650 (3ª parte)

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Conclui-se hoje a narrativa do combate, segundo a descrição que é feita pelo soldado de cavalaria Mateus Rodrigues, que nele participou.

“Duraria a força da pendência uma hora, (…) mas como o inimigo viu que andava (…) já desbaratado, e além disso as companhias que lhe ficavam pela retaguarda, assim como nos viram, imaginaram que era toda a nossa cavalaria e logo se puseram em fugida, que deram ocasião a que os demais o fizessem também (…), de que nós tivemos grandíssimo gosto, que logo lhes fomos zurzindo em cima, daí uma grande légua até noite escura. E quando o inimigo se pôs em fugida, foi passando pelas barbas do nosso terço, mas já não havia lugar de lhe dar carga [quer dizer, disparar as armas de fogo], porquanto nós íamos já muito baralhados com eles, mas o mestre de campo [Gonçalo Vaz Coutinho], com a muita alegria de ver que nos fugia o inimigo, não se pôde ter que não mandasse dar carga aos soldados, que mais valera que nunca a dera, pois mataram de um mosquetaço o tenente do capitão Lopo de Sequeira, que era um bizarro moço, e alguns soldados mais.”

Note-se que o termo “bizarro”, aqui, significa “valente”. Os cavaleiros portugueses só abandonaram a perseguição após meia légua (c. 2,5 Km) percorrida, já anoitecia, na ermida de S. Amador. Os espanhóis tinham aí deixado perto de 800 infantes, mas este facto só veio a ser conhecido no dia seguinte.

Outro aspecto digno de nota é a inexperiência revelada pelo mestre de campo Gonçalo Vaz Coutinho numa situação de combate, ao dar ordem para os mosqueteiros e arcabuzeiros do terço dispararem sobre a cavalaria que passava ao seu alcance, sem ter em consideração que havia soldados portugueses colados ao inimigo.

“Agora direi o que sucedeu aos cem cavalos que o inimigo botou por cima, a tomar as entradas da vila. Assim como eles sentiam lá com as suas tropas a bulha, foi tratando do seu livramento, mas ainda levou seu esfola gato, que o corremos mui bem e ainda lhe ficaram mais de 20 cavalos dos que levava. E o capitão escapou pelo pó do gato, que esteve bem arriscado a matarem-no ou cativarem-no. Assim como foi noite começámos a juntar-nos e começaram a marchar para a vila de Castelo de Vide, que estava dali meia légua. E como fazia então mui bom luar, víamos mui bem o que havíamos de fazer, contudo, ainda não sabíamos quem nos faltava. Fomos para a vila levando connosco uma procissão de nus dos castelhanos (…).”

Era prática comum, tanto na Guerra da Restauração como em outros conflitos da era pré-industrial, despir os mortos e prisioneiros de guerra, a fim de aproveitar as roupas e todo o equipamento militar que fosse possível. Daí a referência aos prisioneiros nus.

Entre os mortos portugueses contava-se o tenente Agostinho Ribeiro, que comandava naquela ocasião a companhia do general da cavalaria André de Albuquerque Ribafria. Foi a sua morte muito sentida entre todos, principalmente pelo memorialista Mateus Rodrigues e pelos seus camaradas veteranos, pois Agostinho Ribeiro era um velho companheiro de armas, tendo começado a guerra como furriel da companhia de D. João de Ataíde, onde servia Mateus Rodrigues, quando esta foi formada em 1641 (depois de D. João de Azevedo e Ataíde ter deixado o exército em 1647, a companhia passou a ser comandada pelo capitão Francisco Pacheco Mascarenhas). Também o general da cavalaria ficou muito desgostoso com a morte do seu tenente, acontecimento que ensombrava a vitória alcançada e a captura de 250 cavalos.

“O capitão Dinis de Melo [de Castro] trouxe uma pelourada em uma perna, mas não foi coisa que fizesse mal (…). Morreriam 40 homens nossos e feridos mais de 80, mas o inimigo perdeu 5 capitães, 4 mortos e um cativo, destes 250 cavalos que nós lhe tomámos viriam 200 homens prisioneiros, e os mais morreram, de sorte que a minha companhia só trouxe 28 cavalos da ocasião (…). Mas não há dúvida que foi um sucesso notável, com o tão pouco poder que nós tínhamos, que o inimigo trazia treze tropas mui grandes, que constavam de 700 cavalos, e as nossas tropas eram 7, (…) que não éramos mais que 380.”

Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM, pgs. 230-232.

Veja-se também a descrição do combate em ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line, pgs. 333-334.

Imagem: Jan Martszen de Jonge, Combate de cavalaria (meados do séc. XVII).

O combate de Castelo de Vide – 8 de Outubro de 1650 (1ª parte)

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“Na entrada do Inverno tornou o Conde de S. Lourenço a alcançar licença para vir à Corte, e ficou governando a Província de Alentejo o Mestre de Campo General D. João da Costa. Poucos dias depois de dar princípio ao seu governo, soube por inteligências que havia grangeado, que os Castelhanos juntavam algumas tropas, e que estas ameaçavam a campanha de Castelo de Vide, e Portalegre.”

É assim que o Conde de Ericeira começa a narrativa (História de Portugal Restaurado, pg. 333) do episódio que iria culminar no combate de Castelo de Vide, travado em 8 de Outubro de 1650. Entre as fontes disponíveis para esta ocorrência da pequena guerra de fronteira, sem dúvida a mais colorida é a que nos deixou o soldado de cavalaria Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), ele próprio participante na acção. E a sua parte da história começa deste modo:

“Estavam um dia (…) [alguns] capitães em casa do general [da cavalaria, André de Albuquerque Ribafria, em Elvas] e disse-lhe Lopo de Sequeira que fosse sua senhoria servido lhe desse licença, e mais a outros quatro ou cinco camaradas, que fossem com suas companhias a São Vicente e Albuquerque, a fazer uma entrada, e ver se podiam dar algum repelão às tropas que estavam naqueles lugares, que quando lhe não saíssem fariam lá mui boa presa, já que estavam ali ociosos, sem fazerem nada. Como estes homens (…) eram tanto seus amigos, disse-lhe o general logo que bem se podiam ir aprestar e com segredo, mas que não haviam de ir mais que cinco companhias (…), em primeiro lugar a sua, que era tenente capitão dela um Agostinho Ribeiro (…), e mais a companhia do meu capitão Francisco Pacheco [Mascarenhas], e mais a companhia de Dinis de Melo [de Castro, futuro Conde de Galveias], e a companhia de Diogo de Mendonça [Furtado] e a do capitão Lopo de Sequeira, que vinham a ser cinco, todas teriam 250 cavalos, de modo que logo os mandou que se fossem aprestar, para ir dormir aquele dia a Arronches, que no outro dia nos havíamos de partir daí para as terras nomeadas, que não são de Arronches lá mais de quatro léguas [c. de 20 Km], e de Arronches haviam de ir connosco uns 20 cavalos que aí estão de pilhantes, que são homens que sabem as terras de Castela a palmos de noite (…).”

O capitão Lopo de Sequeira, sendo o mais antigo dos que iam naquela jornada, foi como comandante da força. Por volta da meia-noite, estando já os soldados a dormir em Arronches, ouviu-se um grande estrondo de artilharia para os lados de Castelo de Vide, a sete léguas de distância (c. de 35 Km). Os capitães rapidamente conferenciaram e concluíram que eram tiros de aviso. O inimigo andaria com cavalaria por aqueles campos, e os tiros serviam para alertar os lugares vizinhos, de modo a que os camponeses guardassem os gados. Foi tomada a decisão de desistirem da entrada e rumarem a Portalegre, para investigar o que se passava, e logo mandaram montar os soldados. Foram escritas duas cartas, uma para o general da cavalaria, dando conta do sucedido, e outra para o mestre de campo comandante da guarnição de Castelo de Vide, informando-o que aquela força de cavalaria seguiria para Portalegre e aí aguardaria pela companhia de Monforte, comandada por D. Fernando da Silva, e que se fosse necessário qualquer auxílio a Castelo de Vide, estariam à disposição.

Chegados a Portalegre, mal tinham desmontado e começado a dar a ração de cevada aos cavalos, receberam um aviso do mestre de campo de Castelo de Vide, dando conta da entrada de uma força inimiga de cerca de 400 cavalos nos campos de Nisa, Alpalhão e Crato. O mestre de campo iria sair com o seu terço e a companhia de cavalos de Duarte Lobo da Gama, e indicava o local para o encontro com o reforço comandado por Lopo de Sequeira. “Podem vossas mercês marchar ao dito posto, que lá me acharão”, rematava a carta.

“Assim como os capitães leram a carta, começam todos com grande festa dizendo «Monta! Monta!». Começámos todos a tirar as mochilas das bocas dos cavalos, que ainda não tinham acabado de comer a sua ração, e mui depressa começámos logo a montar e marchar pela cidade fora na via de Castelo de Vide.” (Citações do Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM, pgs. 222-226).

(continua)

Imagem: Detalhe da zona de operações mencionada no texto, in Novissima regnorum Portugalliae et Algarbiae descriptio, c. 1680, Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1681A.

“Um general, em uma batalha ou em choque, não há-de levar insígnia nenhuma de general”

Este fragmento das memórias de Mateus Rodrigues refere um caso curioso, passado durante os preparativos para o combate de Arronches (8 de Novembro de 1653):

Assim como o nosso famoso general André de Albuquerque viu ao inimigo, parece que viu o céu aberto, por ver que lhe mostrava Deus o que havia tanto tempo andava buscando; que era dos desejos de se encontrar com o inimigo, de modo que pelejassem ambos e assim como compôs mui bem a cavalaria, (…) foi passando pela vanguarda com a espada na mão, (…) ia mui bem armado e mudado dos fatos, que tirou os que levava e os deu a um pajem seu e vestiu os do pajem para ficar desconhecido, porque um general em uma batalha ou em choque não há-de levar insígnia nenhuma de general. (Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 345-346)

O excerto indica uma prática que não era invulgar na época. Convém esclarecer, no entanto, que o autor pode estar a referir-se a uma capa ou casaca usada sobre a protecção de couro e a couraça, não ao equipamento militar na totalidade. O propósito de André de Albuquerque Ribafria seria, talvez, tornar menos evidente ao inimigo a sua posição, uma vez iniciada a confusão do combate corpo-a-corpo. No caso, de pouco lhe valeu, pois foi derrubado logo no início da peleja, tendo ficado bastante ferido.

Imagem: André de Albuquerque Ribafria, um dos melhores generais da cavalaria portuguesa durante a Guerra da Restauração. Morreu na batalha das Linhas de Elvas em 14 de Janeiro de 1659.

Uma entrada nos campos de Brozas – Dezembro de 1652 (2ª parte)

Continuemos a narrativa de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), que deixámos com o resto da força incursora já em território espanhol, na zona de Albuquerque, nos cabeços denominados As Duas Hermanas.

Assim como chegámos começaram logo de ir acomodando tudo mui bem para que ficasse bem formado de noite; e logo mandaram muitas partidas ao largo, a vigiar a campanha, e a tudo isto fazendo o mais notável frio e água que nunca fez, e o pior de tudo que nunca o mestre de campo general quis deixar fazer fogo a ninguém, para que o inimigo não soubesse aonde ele estava, nem lhe visse o poder que levava. (…) [O inimigo] veio aquela mesma noite com 100 cavalos por uma estrada que vem de Badajoz para Albuquerque para ver o nosso poder e onde estávamos; mas nunca o pôde saber, porquanto por donde ele vinha estava um tenente nosso, muito grande soldado, por nome Francisco de Matos, o Coxo, com 40 cavalos todos escolhidos das tropas, e tendo as sentinelas postos mui ao largo na estrada e fora dela.

Dado o alarme, foi alertado D. João da Costa, que enviou reforços ao tenente Francisco de Matos. No entanto, a força de cavalaria espanhola não atacou, nem houve mais incómodos durante aquela noite. Mas o governador de Badajoz fôra posto a par da incursão, desconhecendo todavia a real dimensão da força portuguesa. Mandou buscar reforços de cavalaria a todas as guarnições da região, pensando que seria o bastante para enfrentar o inimigo, sem saber que havia terços de infantaria entre os invasores.

Assim como amanheceu, logo Dom João da Costa se começou [a] aparelhar para marchar, para ir esperar as tropas que tinham ido a Brozas, porque já lhe parecia que faziam mais dilação [ou seja, demora] do que eles tinham lançado conta, e assim que pondo-se em marcha para as ir esperar quando logo vem um aviso de que vinham já as tropas. Folgou muito Dom João da Costa, porque lhe davam elas grande cuidado, e assim que as viu as mandou logo incorporar connosco, porque não traziam pilhagem de consideração, porquanto foram sentidos na entrada e não acharam que trazer mais que 200 bois e 1.000 carneiros.

Incorporadas as forças regressadas da expedição a Brozas e iniciada a marcha, chegou a notícia de que o inimigo ia aparecendo á vista com muita cavalaria, mas sem infantaria. Logo D. João da Costa tratou de formar em batalha o seu pequeno exército – nesta época ainda não se praticava a marcha de costado, ou seja, as forças marchando em formação de batalha, a qual, embora fosse conhecida em teoria pelos portugueses, só após 1661 foi utilizada, graças ao Conde de Schomberg. Ofereceu-se o capitão francês Stéphane Boule de Rosières para dispor as forças em formação de batalha, o que foi aceite por D. João da Costa, conhecedor da grande experiência na matéria por parte daquele oficial (promovido a comissário geral, Rosières morreria no ano seguinte ao desta incursão, em consequência de ferimentos recebidos no combate de Arronches). Não demorou muito para que ficasse o exército pronto para a peleja.

(…) Quando neste meio tempo vem o inimigo apresentar-se por cima de uns outeiros com tanta cavalaria que a todos nós pôs certeza de haver choque (…); e assim que logo começaram muitos a buscar confessor para se confessarem, e o nosso general da cavalaria André de Albuquerque se vestiu de suas couraças, com suas plumagens brancas na viseira do murrião mui bizarro, fazendo grandes práticas [ou seja, discursos] aos capitães e soldados, que todos cuidavam que não passasse o dia sem choque.

O combate acabaria por não se dar. A força de cavalaria espanhola contava 1.800 efectivos, mas o seu comandante, verificando que o total da sua força era muito inferior aos 1.400 cavalos e 3.000 infantes dos portugueses, optou por retirar-se. Apenas aconteceu uma escaramuça entre companhias que faziam o reconhecimento de ambos os lados, na qual entre 20 a 30 cavaleiros espanhóis foram capturados. Curiosa é a observação de Mateus Rodrigues a respeito do general da cavalaria inimiga, que não nomeia, mas que

(…) os soldados castelhanos bem o diziam, enquanto ele serviu, que su general de la cavalaria era bueno para fraile, mas para soldado no, pues no queria pelejar nunca jamás [em castelhano no original].

Quanto ao saldo da incursão, depois de três dias de muita chuva e muito frio, só 200 bois foram pilhados, e esses acabaram por ser repartidos entre os generais, mestres de campo e capitães de cavalos. Mateus Rodrigues não esconde o seu desapontamento a este respeito. Ficaram a perder os soldados… e as populações às quais o gado fora roubado.

Bibliografia: Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952, pgs. 314-318.

Imagem: “O alto dos cavaleiros numa floresta”, Peter Snayers, década de 1650, Museu Hermitage, S. Petersburgo. Note-se a cena de pilhagem, à direita – uma constante da passagem de militares por qualquer zona povoada, mesmo que minimamente o fosse.