Bombardeiros da Nómina em 1641 – um documento

Os Bombardeiros da Nómina, corpo criado em 1515 por D. Manuel I e assim designado por serem os militares nomeados por designação régia, ainda existiam em 1641. Nesse primeiro ano da Guerra da Restauração estavam abaixo da dotação prevista de 100 elementos (mais um condestável, que os comandava). A relação, feita em 25 de Junho de 1641 e apontada no Livro da Nómina, contém a descrição de cada um. Aqui se transcreve essa relação, desdobrando as abreviaturas e vertendo para português corrente a grafia:

  • Domingos Fernandes, condestável da capitania da Armada, morador ao Ver-do-Peso, casado com Isabel Gonçalves, de 37 anos, pequeno do corpo, barba castanha.
  • João Francisco, morador a São Miguel de Alfama, casado com Ana Vieira, de 48 anos.
  • Noutel Dias, morador às Janelas Verdes, casado com Isabel Mendes, de 42 anos, meão, barba ruiva, cabelo da cabeça negro e crespo.
  • Estêvão Nunes, morador a São José na rua do Carrião, casado com Maria Rodrigues, de 29 anos, alvo do rosto, barba loura, nariz comprido.
  • João Gonçalves Bocarra, morador a Jubetaria Velha, casado com Domingas de Almeida, de 38 anos, boa estatura, ruivo da barba, uma ferida na mão direita.
  • Gabriel Gonçalves, viúvo, morador a São Paulo em casa de Maria Lopes, sua tia, de 35 anos, uma ferida no pulso da mão esquerda, seco, cabelo negro.
  • Domingos Ferreira, morador na Adiça, casado com Jerónima Luís, de 42 anos, seco da cara, esquerdo, um sinal de ferida na testa.
  • Pedro Gonçalves, morador a Santo Estêvão de Alfama, casado com Ana Fernandes, de 50 anos, alto, barba loura.
  • Jorge Rodrigues, morador no Beco do Espírito Santo em Alfama, casado com Antónia Dias, de 35 anos, meão, cheio de rosto, um sinal de ferida na testa.
  • Miguel João, morador ao Espírito Santo, casado com Maria Ribeiro, de 42 anos, seco de cara e amarela, moreno do cabelo.
  • Francisco Pereira, morador na Rua Nova da Palma, casado com Marquesa Antunes, de 35 anos, miúdo do rosto, meão, barba negra, sobrancelhas cerradas.
  • Vicente da Silva, morador no Castelo, casado com Maria Francisca, de 30 anos, alto, bem disposto, bigode castanho, olhos grandes.
  • Manuel Rodrigues, morador ao pé da Calçada de Santa Ana, casado com Isabel Branco, de 38 anos, homem pardo, bem disposto.
  • Luís Martins, morador na Calçada de São Francisco, casado com Maria Nunes, de 27 anos, alto, vermelho do rosto, pouca barba, olhos encovados.
  • Baltasar Gonçalves, morador no Adro de Santo Estêvão, casado com Joana Rodrigues, de 30 anos, boa estatura, a ponta do nariz romba, um sinal de ferida na testa.
  • João Rodrigues, morador ao Hospital das Chagas, casado com Lourença das Neves, de 30 anos, meão, pouca barba, sinais de pólvora no rosto.
  • Domingos Correia, morador a São Paulo, casado com Maria Jorge, de 38 anos, meão, moreno de cara, um dente de cima menos.
  • João Fernandes, morador à Porta da Cruz, casado com Damiana André, de 50 anos, meão, quase branco, uma ferida na testa.
  • Domingos dos Rios, morador à Rua do Saco, casado com Maria de Azevedo, de 66 anos, alto e seco, branco, um pique de ferida na testa.
  • João Rodrigues de Alhandra, morador no Castelo, casado com Maria Cardosa, de 45 anos, bem disposto, seco do rosto, barbinegro que começa pintar de branco.
  • Inácio Martins, morador no Castelo, casado com Bastiana Dias, de 36 anos, alto, moreno, nariz largo, cabelo negro e crespo.
  • Domingos da Costa, morador no Castelo, casado com Maria Ximenes, de 35 anos, cabelo negro, olhos grandes.
  • João Domingues Baldes, morador ao Chiado, casado com Maria Carvalha, de 39 anos, alto, bem disposto, barba castanha, cheio do rosto, montanhês.
  • Cosme Rodrigues, morador no Castelo, casado com Inês Fernandes, de 35 anos, meão, nariz agisenho e cabelo preto.
  • Pedro Fernandes, casado com Mariana da Costa, morador a São José, de 30 anos, miúdo do rosto, olhos encovados, estatura meã e magro.
  • António Soares, casado com Maria Quaresma, morador a São Nicolau, de 35 anos, alto e magro, sobrancelhas negras e cerradas, alvo do rosto.
  • Manuel de Lacerda, casado com Maria dos Santos, morador ao Hospital dos Palmeiros, de 30 anos, vermelho do rosto, nariz um pouco chato, e bem disposto.
  • Domingos Simões, casado com Bastiana Antunes, morador no Castelo, de 21 anos, alto, bem disposto, olhos grandes, uma ferida na cabeça, da parte direita.
  • Luís João, filho de João Coelho, natural de Colares, de 30 anos, moreno, uns sinais de costura por baixo da orelha direita, cabelo negro, sobrancelhas cerradas.
  • João Gonçalves, casado com Maria Manuel, morador a São João de Deus, de 45 anos, bexigoso, cabelo negro, e meão.
  • Simão Delgado, casado com Maria Jorge, morador no Adro de Santo André, de 30 anos, homem pardo.
  • Sebastião de Bonano, casado com Maria Pereira, morador na Rua do Caldeira, de 40 anos, bexigoso, italiano de nação.
  • Bernardo Martins, casado com Margarida Gomes, morador na Travessa da Espera, de 40 anos, alto, amarelo do rosto e pouca barba.

Fonte: ANTT, CG, Decretos, 1641, mç. 1, n.º 221, relação anexa ao decreto de 8 de Outubro.

Imagem: Lisboa no século XVII.

A Torre de Belém em Abril de 1657 – um levantamento do estado da fortaleza

baluarte de S. Vicente a par de Belém

Há alguns anos foi aqui publicado um artigo referente à Torre de Belém, a respeito de um levantamento efectuado em 1644 acerca da situação das fortalezas da costa portuguesa.

Treze anos mais tarde, quando se temia que uma armada espanhola atacasse Lisboa, concomitantemente à invasão que o exército comandado pelo Duque de San Germán estava prestes a encetar no Alentejo (e que culminaria na tomada de Olivença), a Torre de Belém encontrava-se no estado que uma consulta do Conselho de Guerra revela. O documento é aqui transcrito na íntegra, vertido para português corrente.

Senhor,

Ao Conde do Prado e Jorge de Melo mandou Vossa Majestade encarregar que fossem às torres da barra desta cidade, e que vendo o que necessitavam, as fizessem logo prover, ordenando a Rui Correia [tenente-general da artilharia – tratava-se do responsável supremo pela artilharia do Reino, hierarquicamente superior aos tenentes-generais da artilharia dos exércitos provinciais, apesar da designação ser idêntica] (ou por onde mais tocasse) lhes acudissem pontualmente com o que apontassem, até com efeito se repararem e proverem na melhor forma que convém. Deram princípio a esta comissão pela Torre de Belém, e conforme o que viram necessita precisamente do que se segue, e para logo.

– Há em Belém 13 peças de artilharia: 7 de 16 [libras], 1 de 24, 4 de 12 e 1 de 10. Toda esta artilharia está no chão, sem mais uso que se estivera em um armazém. Há mister [necessidade urgente de] reparos.

– Para segurar melhor a defesa são necessárias mais 6 peças de melhor calibre que for possível, e de melhor uso serão se forem de género colubrinas.

– Há um falconete de 2 [libras]. Convém haver mais 2 deste género para o ordinário serviço das salvas, porque se forra com isso grande gasto de pólvora. Pelo menos são necessárias mais 200 arrobas dela, porque se acham só 180.

– São necessárias 1.500 balas de 16 [libras], para as sete peças deste calibre que quase as não têm.

– São necessários 12 cestões para se cobrir a praça alta, que sem esta defesa impossível será laborar artilharia na ocasião.

– Há um condestável e cinco artilheiros. Pelo menos há-de haver um artilheiro para cada uma das peças, excepto o falconete.

– Não há nenhum mantimento, como costuma haver nas torres, de três anos a esta parte. Deve prover-se nesta parte como é estilo, reformando-se todos os anos, repartindo-se pelos soldados e tirando-se o novo emprego dos seus socorros.

– A casa baixa, que só é para os mantimentos, entra-lhe o mar pelas costuras da Torre. Há mister [ser] reparada.

– As covas da Torre hão mister o mesmo conserto, para se poder passar a elas a pólvora na ocasião; porque no alto está arriscadíssima, havendo-a.

– O rastilho está podre, sem serviço algum, deve-se-lhe acudir logo.

– Alguns fuzis das cadeias da ponte hão mister [ser] reformados, porque no estado em que estão não têm serviço algum.

– São necessárias 150 varas de pano para cartuchos, 12 peles para lanadas, enxárcia velha para tacos.

– Para as torneiras da praça baixa e principal são necessárias portas e argolas de bronze.

– São necessários 50 chuços, que são de grande serviço e não há nenhum na Torre.

– E porque Jorge de Melo está impedido ainda de assinar a ordem que ele e o Conde haviam de passar para este provimento, deu o Conde conta neste Conselho para que em consulta se faça a Vossa Majestade presente a necessidade de Belém, e porque se tem entendido de Rui Correia que há falta de dinheiro para este e semelhantes reparos que pedem remédio pronto. Parece ao Conselho que de qualquer efeito deve Vossa Majestade mandar acudir a tão grande falta, servindo-se Vossa Majestade de mandar nomear, no lugar de Jorge de Melo, outro conselheiro para com o Conde continuar nas mais fortalezas da barra esta diligência tão importante. E lembra o Conselho a Vossa Majestade que se se não houverem de remediar as faltas que se acharem, inútil coisa será ocuparem-se os ministros nesta comissão, perdendo o tempo que podem aproveitar em outras coisas do serviço de Vossa Majestade. Lisboa, 5 de Abril de 1657.

Acerca dos postos da artilharia portuguesa à época, nomeadamente o de condestável, veja-se este artigo.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, maço 17, consulta de 5 de Abril de 1657.

Imagem: Torre de Belém. Fotografia de JPF.

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (4ª parte)

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Os partidos [capitulações] pedidos pelo inimigo eram na maneira seguinte: que a praça se rendia, sendo servido o senhor Joane Mendes de lhe conceder levassem as duas tropas de cavalo que na praça estavam, e levassem todos o seu fato e bastimentos de Sua Majestade; e armas às costas e bala em boca e mecha calada, e que todos os portugueses que (…) lá houvessem ficado quando eles renderam a praça haviam de passar pelo partido de castelhanos, não se lhe fazendo agravo algum, e que querendo eles ficar outra vez na praça ficariam livres como de antes em suas fazendas, e se quisessem ir para Castela o poderiam fazer, e que poderia o seu governador levar uma peça de artilharia consigo, visto o privilégio de ser mestre de campo [o] concedia (…)

Representados estes partidos diante do senhor Joane Mendes de Vasconcelos e do senhor André de Albuquerque [Ribafria], mestre de campo general, e do senhor Dom Sancho Manuel, outrossim mestre de campo general, e do general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, começaram estes quatro senhores do governo, e juntos também alguns mestres de campo e outros oficiais maiores (…) para se deferir, a isto não constava o consentimento, em primeiro lugar do governador das armas e os dos mestres de campo generais, e nestes senhores consistia o deferir-se os partidos. Logo Dom Sancho respondeu que não havia lugar de consertos, pois eles tinham a muralha rota, de modo que se podia entrar nela batalhões de gente e debaixo da sua mosqueteria e com uma mina feita que havia de voar muita parte da muralha por onde pudessem avançar livremente, e que não largavam 80 ou 100 cavalos que lá estavam por coisa alguma; enfim, que Dom Sancho não era de parecer lhe aceitassem partidos. O senhor Joane Mendes, como mais experimentado e visto nestas coisas, e lhe parecer que sempre deferir ao inimigo os seus partidos é razão de Estado e o permite a guerra, agora o serem como eles os pedissem ou não, aí está o ponto. Contudo, respondendo o senhor Joane Mendes (…) que no tocante ao seu governador levar peça alguma, que nisso não consentia, nem tão pouco levarem nenhum género de mantimento, nem de munições d’El-Rei, nem coisa alguma, salvo o seu fato e bagagem de suas pessoas, que para levarem lhe daria todas quantas cavalgaduras eles houvessem mister até dentro de Olivença. (MMR, pgs. 436-438).

 

Imagem: “A capitulação”, de Jan Steen.

 

 

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (3ª parte)

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Pelos outros ataques, de roda da praça, estavam outros terços, e estes entravam uns e saíam outros de guarda cada vinte e quatro horas, para não terem uns o perigo e outros não.

Quando foi lá pelo decurso do dia de sexta-feira, já na muralha principal estava uma grande brecha aberta (…). Vendo o inimigo a muita obra que a nossa artilharia fazia, não deixou de ficar atemorizado (…) e logo se imaginou perdido de todo. Vendo o inimigo a impossibilidade de poder livrar a praça e o mais vendo não tinha aviso nenhum de socorro, se determinou a pelejar dentro da praça, fazendo pelas ruas grandes retiros e trincheiras, imaginando que nós os avançassemos a escalar sem partido, e de dentro fazia conta de se defender, e não há dúvida que nos fariam grande dano e matariam muita gente se acaso os escalassem.

Amanheceu o sábado 27 do mesmo Outubro e achou-se estar a mina que ia ao contramuro acabada, e dando-se fogo a ela, abriu uma brava brecha no muro pequeno, donde logo num improviso avançou o terço da Armada a meter-se dentro, e em seu seguimento muitos terços e cavalaria com bravo valor, botando fora às pancadas alguns castelhanos que de dentro dele pelejavam, e alguns ficaram pelas costas. Vendo o inimigo o contramuro ganhado, que já nos não podia ofender com armas de fogo, começaram a lançar muitos penedos grandes da muralha abaixo, através das casas, sobre os nossos, e papéis de pólvora, e como os nossos estavam muito baixos, não deixava o inimigo de lhe fazer muito dano, que ali feriu alguns e matou desta sorte (…). Nem por isso o inimigo fazia retirar a gente do posto que tinham, e a todo este tempo a nossa artilharia jogando fortemente e fazendo grande efeito na muralha principal, o que não se imaginava jamais por ser uma muralha muito antiga e muito forte (…), mas com tanta força jogavam os seis meios-canhões juntos (…) de tão perto da muralha, que estavam dela menos de tiro de pedra. E uma vez abalavam e outra vez derrubavam parte da muralha (…). E a nossa mosquetaria que não deixava assomar pessoa viva do inimigo à muralha, e assim estavam os nossos pelejando muito a seu salvo, mas um ora por outro morria algum nosso, que lá lhe buscava o inimigo jeito por onde obrasse.

(…) Visto a muralha estar daquela sorte, considerando isto o inimigo consigo, foi tanto o serviço que fez da muralha (…) para se defender dentro da praça (…), que foi uma coisa grande, que não havia rua lá dentro da vila que não tivesse seu retiro com trincheiras por todas as ruas, e covas, e ao pé da muralha, aonde estava a brecha aberta, da banda de dentro tinham uma trincheira feita, muito alta, com sua cova, em caso que os nossos avançassem, para dali nos fazerem grande dano.

Quando foi pelo decurso do dia de sábado, continuando sempre a nossa artilharia, se veio a fazer uma tão larga brecha na muralha e tão baixa, que já podiam entrar por ela como por uma rua (…). Vendo o inimigo o estado destas coisas, e que não podia livrar, e não tendo notícias algumas de socorro seu, se determinou a pedir consertos [ou seja, capitulações].

Chegada a aurora de 28, no domingo do dito, se determinou o inimigo  a pôr (…) logo uma bandeira branca na muralha, à vista do exército, para que cessasse o rigor das armas de ambas as partes, para efeito de tratarem os pactos que pediam. Estavam dentro da praça duas tropas de cavalos, que constavam de 80 cavalos, e por cabo delas um só capitão, por nome Dom Luís de Barrio, grande cavalheiro e muito fidalgo, que não havia dois meses que o havíamos cativado à roda da mesma praça (…).

Este Dom Luís de Barrio foi mandado pelo seu governador que lá estava, que era um mestre de campo, a tratar dos partidos. E assim como foi vista a bandeira branca na muralha, cessaram as armas de ambas as partes, e veio ao nosso exército o sobredito capitão, à tenda do senhor Joane Mendes de Vasconcelos, e logo lá foi outro capitão de cavalos, por nome Jerónimo de Moura Coutinho, para ficar na praça em refém [a troca de reféns durante a duração das capitulações, como garantia de boa-fé de ambas as partes, era um procedimento usual]. (MMR, pgs. 433-436).

Imagem: Mourão. Fotografia de JPF.

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (2ª parte)

IMG_1321Na quinta-feira, pelo meio dia, que se contaram 25 do dito Outubro, acabou de chegar todo o nosso exército à roda e circuito da praça, aonde se assentou muito bem entrincheirado. Que na verdade, por ser pouca gente, estava bem preparada e melhor governada, sem falta de coisa alguma, somente o dinheiro não era muito, que para quem o tivesse não lhe faltava tudo quanto por ele quisesse comprar.

Constava este exército de 14 terços de infantaria toda paga, que teriam sete para oito mil infantes, pouco mais ou menos, e muito boa gente, e dois mil e quinhentos cavalos, muito gentil cavalaria, é verdade, que neles entravam seis tropas que vieram da província da Beira, que tudo fazia número de dez mil homens, pouco mais ou menos.

Constava mais de catorze peças de artilharia, a saber: seis meios-canhões de 24 libras e as mais eram pequenas, de campanha, e todos de bronze.

Constava mais de três mil cavalgaduras, que carregavam os mantimentos e apetrechos de guerra. Andavam em os comboios levando mantimentos e coisas necessárias para o exército, que o vinham buscar aos lugares circunvizinhos, que por muito que um exército leva, não pode deixar de haver comboios.

Constava mais de quinhentas carretas que levavam os cavalinhos de pau e outras coisas muitas de apetrechos de guerra e mais de cem carros manchegos.

O nosso exército acabara de chegar ao sítio na quinta-feira pelo meio-dia, estando a praça já atacada do dia e noite antecedente (…). E assim como o exército chegou, se foram entrincheirando bravamente, com um fosso de grande altura [seria mais próprio dizer: de grande profundidade] e por fora ainda os cavalinhos de pau, que é um bravo engenho para reparo da cavalaria do inimigo. E não tão somente era o cuidado de se entrincheirarem, senão por todas as vias se trabalhava com bravo cuidado também nas minas, que uma se fazia para a muralha principal e outra para o contramuro. E na mesma noite se trabalhou tanto nas plataformas da artilharia, aonde ela se havia de pôr, para dali bater a muralha, que quando amanheceu na sexta-feira, 26 do dito Outubro, já seis meios-canhões de 24 libras estavam postos nas plataformas, muito bem cobertas de boa trincheira de muita sacaria de lã e de terra, que não se via da muralha donde o inimigo pelejava mais que as bocas das peças. E no mesmo tempo que eles começaram a jogar da muralha, começaram também a jogar os trabucos das bombas, que não tivemos artifício de fogo que mais dano fizesse ao inimigo (…), porque cada bomba das nossas pesava quatro arrobas [perto de 60 quilos], e mais é, em caindo uma bomba lá dentro na vila, fazia tanto estrago que aonde caía, se era em casa alguma, toda ficava por terra, (…) e as mesmas pedras das casas que as bombas arrasavam, essas matavam e feriam muitos castelhanos, e o que não caía senão em alguma rua ou terreiro, os pedaços que dela saíam, por onde davam, tudo levavam de coalho.

(…) Continuando-se (…) com a bateria das peças, que faziam tanto efeito que todo o exército se estava alegrando, vendo o muito que obravam, (…) assistia o general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, que fazia como grande soldado que ele é, e o tenente-general da mesma artilharia Paulo Vernola (…); assistia mais nesta bateria Dom Sancho Manuel, mestre de campo general (…), e estava também Luís Gomes de Figueiredo, mestre de campo do terço da armada, que é um bravo soldado e o terço é o melhor que há no exército. Vejam bem se estava a bateria das peças mal acompanhada. (MMR, pgs. 429-433).

Imagem: Mourão. Fotografia de JPF.

A última campanha de Mateus Rodrigues – a reconquista de Mourão, Outubro-Novembro 1657 (1ª parte)

IMG_1259A derradeira presença do soldado Mateus Rodrigues no Alentejo ocorreu entre 1657 e 1658, mas deste período apenas deixou uma descrição detalhada da campanha de Mourão. Abandonara o exército da província do Alentejo nos inícios de Fevereiro de 1654, ao fim de quase doze anos e meio de serviço e poucos dias antes da publicação do decreto régio que fixava em oito anos consecutivos o máximo tempo de serviço que um soldado pago devia cumprir antes de ser desmobilizado. Regressado à sua Águeda natal, ali casou, o que devia escusá-lo definitivamente de ser reconduzido ao cenário de guerra. No entanto, regressaria ao Alentejo três anos depois, obrigado pela fome. De acordo com as suas palavras,

(…) ninguém diga deste pão não hei-de comer, por farto que se veja, porque lá vem um ano mau de fome que obriga a comer (…) tudo quanto há. Pois o fim foi (…) que para mim houve tanta fome (…) que me obrigou a que fosse outra vez a ver as ditas guerras, desterrando-me a fortuna um ano inteiro fora de minha casa. (Memorial de Matheus Roiz, pg. 423)

O destaque dado à campanha de Mourão no derradeiro capítulo das suas memórias é justificado pelo soldado de cavalos pela sua afeição a Joane Mendes de Vasconcelos. Desejava assim destacar a “fama, valor e sabedoria” daquele cabo de guerra, logo secundado, na admiração e devoção do autor, pela figura de André de Albuquerque Ribafria.

Olivença e Mourão caíram em poder dos espanhóis no decurso da campanha de 1657. Se a primeira daquelas praças, tomada em Maio, foi uma perda de monta, principalmente pelo impacto negativo no moral (era uma das principais da fronteira alentejana e um dos vértices do triângulo defensivo Elvas-Campo Maior-Olivença), já Mourão – perdida em Junho – se revelou um problema maior para os portugueses. A partir dali, o inimigo fazia incursões nos campos do termo de Monsaraz, rapinando lavouras e gado, aldeias e montes, o que levava muitos moradores a abandonarem os seus haveres e casas, não se sentindo seguros.

Entradas de maior envergadura e alcance levaram a cavalaria inimiga até demasiado perto de Évora. Daí as repetidas queixas e solicitações à Rainha regente, para que ordenasse a reconquista de Mourão e o fim dos sobressaltos. É que sendo a região em redor de Olivença pouco povoada, não dava a perda daquela praça tantas preocupações como Mourão, cuja posse abria caminho ao controlo ou saqueio de vastas e férteis terras.

A Rainha acabou por ordenar a Joane Mendes de Vasconcelos que preparasse uma campanha destinada a retomar a praça. Todo o processo foi mantido em segredo, para que não constasse o verdadeiro objectivo do exército a formar. A partir daqui, sigamos a narrativa de Mateus Rodrigues.

Junta a gente das províncias, como era um terço de infantaria do Algarve muito bom, mas pequeno; e os de Lisboa, um terço novo da Câmara, e o da Armada; e com as tropas da Beira e muita quantidade de auxiliares de todas as comarcas deste Reino, para ficarem de guarnição nas praças, se saiu na maneira seguinte:

Aos vinte e um dias de Outubro, ao domingo à tarde, saiu o senhor Joane Mendes e o senhor André de Albuquerque com a maior parte do exército e com toda a artilharia, que constava de seis meios-canhões de 24 libras e oito peças de 12 libras e trabucos e outros artifícios de fogo.

Chegaram a Vila Viçosa pela manhã, onde fizeram alto até à tarde, donde se puseram outra vez em marcha. E chegando no outro dia pela manhã a Terena, que são duas léguas, mas muito grandes e de muito mau caminho para a artilharia, (…) aí fizeram alto e por decurso da tarde começaram a marchar, chegando à quarta-feira a Monsaraz, que já não fica mais de uma légua de Mourão. E aí se fez alto até de noite, que começou a marchar a carriagem para Mourão.

Tornando agora (…) atrás, digo que Dom Sancho Manuel, mestre de campo general na província do Alentejo, que suposto governa o partido de Penamacor, foi feito por Sua Majestade, na ocasião desta campanha, mestre de campo general, e daí ficou para sempre, (…) que merece como todos o metam na conta, como é o general da artilharia Afonso Furtado de Mendonça, que obrou em seu cargo como adiante se verá.

Digo que Dom Sancho Manuel marchou diante do grosso do exército com seis terços de infantaria e um grosso de cavalaria de 600 cavalos com suas bagagens, e quando o nosso exército chegou a Monsaraz à quarta-feira, já Dom Sancho tinha amanhecido com o seu grosso à roda de Mourão, atacando a praça, de modo que nunca foi possível poder o inimigo lançar fora aviso algum, e alguns que botava, todos lhos apanhavam cá fora. E como o inimigo não via mais que aquele pouco grosso, fazia zombaria dos nossos. Começou a jogar com sua artilharia e mosquetaria, mas com pouco efeito, porquanto os nossos estavam encobertos e não recebiam dano do inimigo, nem o inimigo também recebia dos nossos, porque eles não podiam pelejar em forma até que não chegasse o nosso exército todo junto. (MMR, pgs. 427-429)

Imagem: Monsaraz. Fotografia de JPF.

 

Material de guerra existente nas praças de Riba Coa em Março de 1657

Duas cartas de D. Rodrigo de Castro para o Conselho de Guerra, datadas de 4 e de 11 de Março de 1657, dão conta da situação das praças do partido de Riba Coa, que o futuro Conde de Mesquitela governava, e do material de guerra aí existente.

Havia à época 42 peças de artilharia naquele partido militar, com o seguinte detalhe:

Artilharia para sair em campanha:

– 5 meios-canhões de bronze que necessitavam de reparos, com suas guias e carros matos. Com a ferragem que havia nos velhos, podiam ferrar-se três reparos com dois pares de rodas, e podiam consertar-se, com pouco custo, as rodas para as guias e um carro. Faltavam demais sobressalentes e tabuões para as respectivas esplanadas (posições preparadas onde eram colocadas as peças) e calabreses grossos e miúdos para serem tiradas em campanha.

– 4 quartos de canhão de bronze, para os quais eram necessários 4 reparos com guias e outros tantos carros matos. Havia reparos nos velhos para três reparos com rodas, e havia dois pares delas sem ferragem. Faltavam-lhe sobresselentes, tabuões para as esplanadas e calabreses miúdos e grossos para estas peças serem tiradas em campanha.

– 4 falconetes de bronze. Havia ferragem para os reparos, rodas e guias, era necessário sobressalente, tabuões para as esplanadas e calabrês para saírem em campanha.

A artilharia que não estava prevista sair em campanha também era referida em detalhe:

– Para 2 colubrinas de bronze, faltava tudo o que não fosse ferragem para um reparo com as respectivas rodas.

– Para 1 colubrina de bronze faltavam rodas e ferragem.

– Para 1 meio-canhão de bronze, havia ferragem para o reparo e rodas.

– Para 6 sacres de bronze, havia somente ferragem para três reparos com as respectivas rodas.

– Para 2 meios-canhões de ferro havia ferragem para um reparo e rodas.

– Para 17 peças de ferro, havia ferragem para 5 reparos e rodas.

Necessitava-se, para as peças que haviam de estar na muralha, de madeira para guaritas, e de cocharas, lanadas e soquetes para todas.

Material de guerra existente nos armazéns

Nos armazéns da província havia 117 arcabuzes consertados, 770 piques, 230 forquilhas, 720 frascos, 630 bandolas de mosquete e arcabuz, e 30 de carabinas. Alguns dos frascos estavam desconsertados, e havia 144 arcabuzes e 333 mosquetes desconcertados (ou seja, avariados ou truncados). Para a infantaria havia 104 corpos de armas, mas nenhuns para a cavalaria, nem carabinas e pistolas, do que estava a cavalaria muito necessitada. Por isso, D. Rodrigo de Castro solicitava o envio de 200 carabinas, 150 pares de pistolas e 200 corpos de armas.

Outras necessidades: 1.513 quintais e 116 arráteis de pólvora, 25.200 balas, e para os 9.000 homens que haviam de guarnecer as praças, à razão de meio arrátel por dia, e a dois arráteis por todo o tempo dos dois meses que haviam de sair em campanha, eram precisos 1.210 quintais e 76 arráteis de pólvora; e de balas sorteadas de outros tantos, e o mesmo de morrão, para o que só havia nos armazéns 211 quintais de pólvora, 116 de balas sorteadas, 225 de morrão, 2.011 balas de artilharia. Destas, escrevia D. Rodrigo, havia no Fundão grande quantidade, embora ainda não soubesse ao certo o número de balas.

Na segunda carta, de 11 de Março, dá conta D. Rodrigo de Castro que se preparava para reunir os 3.000 infantes e 200 cavalos que a Coroa mandou estarem a postos para acudir ao Alentejo, dos quais infantes, no entanto, não poderiam ir só os pagos e auxiliares, porque todos juntos não perfaziam os 3.000 necessários. Seriam necessários 4.500 infantes para guarnecer as 9 praças principais, acasteladas, que havia na raia, com fortes e artilharia, e de um pé de exército de 3.000 ou 4.000 homens.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, cartas anexas à consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: “Combate de cavalaria” (pormenor), pintura de Pieter Meulener.

A fortaleza de Vila do Conde em 1659

Em 1659, a Rainha regente D. Luísa ordenou ao Visconde de Vila Nova de Cerveira que informasse o Conselho de Guerra acerca da situação da praça de Vila do Conde e do que seria necessário fazer para que esta ficasse com toda a segurança. Em carta de 10 de Junho de 1659, o Visconde deu conta do estado em que se encontrava a praça, que era da jurisdição da Casa de Bragança e tida como muito importante para a conservação da província de Entre Douro e Minho. Numa relação anexa, que aqui se transcreve para português corrente, surgem todos os detalhes sobre a fortaleza.

Lista da gente, armas e munições que de presente tem a Praça de Vila do Conde

Por Governador Manuel Gaio.

Tenente João Gomes de Faria.

Sargento Francisco Mendes.

Cabo Domingos Rodrigues.

Condestável Francisco Fernandes.

Tambor Domingos de Lima.

Domingos Fernandes Barcelos [sem qualquer designação de posto, é provável que se tratasse do único artilheiro da praça para além do condestável].

Artilharia de ferro

No baluarte S. Boaventura, três peças de 4 até 5 libras.

No de São João 3 peças, uma de 16 libras, partida, outra de 10, outra de 4.

No de Nossa Srª da Guia duas peças de cinco libras.

Baluartes do Salvador e S. Catarina estão por acabar, e não têm artilharia.

A plataforma duas peças de 4 libras.

Destas só duas laboram por falta de carretas.

Armas e munições

Doze mosquetes.

Dois quintais de pólvora.

Quatro quintais de corda.

Cem balas de calibre de artilharia.

Um quintal de pelouros de arcabuz.

Uma barra de chumbo.

Obras

A abóbada do baluarte S. Boaventura, onde está o armazém das munições, está arruinado. Os alojamentos, o mesmo. As guaritas descobertas; o fosso entupido; a contra-escarpa desfeita. A porta principal tapada de pedra. Serve-se o castelo pela Porta do Mar, que não tem fechadura por estar gastada.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Lista da gente, Armas e monições que de prezente tem a Praça de Villa do Conde”, anexa à consulta de 23 de Junho de 1659.

Imagem: Vista parcial da fortaleza de Vila do Conde, na actualidade. Fotografia retirada deste blog.

Postos do exército português (21) – O gentil homem da artilharia e o condestável

O gentil homem da artilharia era o responsável por um determinado número de peças de artilharia do respectivo trem na marcha do exército, ou tinha a seu cargo uma bateria constituída por um número variável de peças, quando estas eram dispostas em campanha ou num cerco. Segundo se pode ler  no título 23 da proposta de Ordenanças Militares de 1643,

Os gentis homens da artilharia hão-de ser eleitos de capitão de gastadores ou sargentos reformados; e hão-de exercitar o meneio e carruagem de seis peças, e assistir no marchar, alojar e plantar as baterias, fazendo que se conduza e haja tudo o necessário para elas.

Note-se que a as seis peças por gentil homem acima referidas não eram necessariamente uma dotação fixa, sendo a composição da artilharia num exército variável de acordo com os fins pretendidos e as disponibilidades materiais. Isso mesmo é observado num comentário por Joane Mendes de Vasconcelos a propósito de um outro título das Ordenanças, o 47, que pretendia regulamentar a distribuição da artilharia em proporção ao efectivo total de infantaria e cavalaria. Conforme apontou o reputado general, a artilharia se regula com as facções [ou seja, com a natureza das operações], e não com o número, e assim não é matéria para Vossa Majestade decidir em Ordenanças Militares. A propósito dos gentis homens da artilharia e do título 23, Joane Mendes mostrou algumas reservas a propósito da intenção régia (ou de quem aconselhou em privado o Rei nesse ponto) de fazer ascender ao posto os capitães de gastadores e sargentos reformados:

Se (…) tiverem suficiência para ocupar este cargo (…), se poderá eleger deles, quando não de condestáveis práticos e autorizados, sendo este um dos postos que se deve prover mais pela prática que por outro algum merecimento.

O posto de condestável não tinha nada que ver com o prestigioso cargo militar do período medieval. Era o chefe de peça, sendo também um deles o ajudante do gentil homem da artilharia.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 65 e 83-84.

Imagem: Artilheiros em acção. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa. Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. Freitas.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (9) – Fortaleza de Peniche

Com esta nona parte encerra-se a transcrição do documento relativo ao estado das fortalezas da barra de Lisboa, de Setúbal e de Peniche em 1644. Recordo que já aqui tinha sido publicada uma entrada sobre a Fortaleza de Peniche relativa ao mesmo ano de 1644, mas acerca de outro assunto, que complementa a informação aqui deixada.

Fortaleza de Peniche

Há nesta fortaleza sete peças de bronze, a saber:

Três meios-canhões reforçados de 15 libras, com suas carretas novas, mas não estão alcatroadas por não haver alcatrão.

Uma meia-colubrina de dez libras com sua carreta.

Outra meia-colubrina bastarda de 14 libras.

Um sacre acolubrinado de 3 libras.

Um sacre de cinco libras.

Há mais nesta fortaleza quinze peças de ferro que tiram a sete, seis, cinco, e três libras. Uma só peça destas tem carreta nova, as demais velhas e de mui pouco serviço.

Necessita de mais vinte peças de bronze com suas colheres, atacadores e lanadas; e para todas as mais peças.

E de balas enramadas [ou seja, de grilhão ou cadeia] de toda a sorte.

Cada peça necessita de duas outras carretas de sobresselente.

Há nesta fortaleza cinquenta barris de pólvora, que levam 40 quintais.

Balas de até seis libras, cento e sessenta.

De sete libras, 35.

De dez libras, 133.

De doze libras, 200.

De catorze libras, 50.

Há mais mil balas de seis e cinco libras que estão misturadas.

Quinze cagetas de pelouros de mosquete e arcabuz.

Trinta e um quintais de morrão.

E enxadas 150, mas muitas delas rotas.

Picaretas 100, mas muitas que se não pode trabalhar trabalhar com elas.

Camartelos, 4.

Alavancas, 6.

Necessita também de mais pólvora.

E de pelouros e de morrão em grande quantidade, para que havendo alguma ocasião não faltem.

E de grande quantidade de serrinhas pequenas, que não há nenhuma.

E de capas e paus, para que se possam entrincheirar no posto que se lhe mandar ocupar.

Há nesta fortaleza trinta quintais de arroz em três pipas.

Um quarto de duas arrobas de açúcar.

Meia pipa de azeite.

Seis alqueires de ameixas e seis de lentilhas.

Necessita de pão, vinho e legumes, e que disto se lhe meta a quantidade a respeito da gente que houver de assistir naquela praça.

Que será conveniente haver nela seis companhias de guarnição, que se poderão tirar das duas comarcas de Leiria e Torres Vedras.

Fonte: “Relação da gente paga, artelharia armas munições carretas mantimentos e mais cousas que ha nas fortalezas da barra desta cidade e nas de Setuual, e do que necessita cada huã dellas”, anexa à consulta do Conselho de Guerra de 12 de Agosto de 1644 (ANTT, CG, Consultas, 1644, maço 4-B).

Imagem: Vista parcial da Fortaleza de Peniche na actualidade. Fotos de Jorge P. de Freitas.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (8) – Fortaleza de São Sebastião da Caparica

O historial da Fortaleza de São Sebastião da Caparica (também conhecida por Torre de São Sebastião ou Torre Velha) pode ser encontrado num artigo bastante interessante e fiável da Wikipédia, pelo que dispenso acrescentar mais pormenores. O relatório de 1644 referia o seguinte:

Fortaleza de São Sebastião de Caparica

Há nesta fortaleza seis peças de artilharia, a saber: dois canhões de 44 libras; um pedreiro acamarado de 30 libras de pedra; uma colubrina de 14 libras; um meio-canhão de 24 e um falconete de duas, em que se ensinam os artilheiros. Necessita de duas colubrinas de 16 até 18 libras.

Estas peças estão todas encarretadas. Necessitam de uma carreta cada uma de sobresselente.

Balas de artilharia

Tem a colubrina 163 balas. Necessita de 200 mais.

O pedreiro, 120. Necessita de outras 200 mais.

Os dois canhões, 400. Necessitam de 200 mais.

O meio-canhão, 200. Necessita de outras 200.

O meio-falconete [sic], 100. Necessita de 200 mais.

Há mais nesta fortaleza 100 balas de cadeia, cinquenta de 24 libras e cinquenta de 14.

Armas

Há nesta fortaleza cinquenta mosquetes. Necessita de outros 50 mosquetes.

20 arcabuzes, 16 piques e 9 chuços.

Para os mosquetes há três quintais e meio de balas, para os arcabuzes 4 quintais. Necessita de outra tanta quantidade.

Pólvora

Há 20 quintais de pólvora em 18 barris. Necessita de outros 20 quintais dela.

Mantimentos

Há nesta fortaleza 40 quintais de biscoito.

10 de arroz.

Quatro pipas e vinho.

Seis almudes de azeite.

Duas arrobas de açúcar.

Seis alqueires de lentilhas.

E seis de ameixas.

Havia mais nesta fortaleza 60 arrobas de toucinho, dois moios de feijões, um de chicharros e meio de favas, que por terem recebido algum dano, e se não perderem e corromperem de todo, se deram por ordem do Conselho da Fazenda para a galé, e agora se anda requerendo nele se lhe restituam.

E por estes mantimentos, para cinquenta pessoas de ração que há na dita fortaleza, não bastarem mais que para dois meses, convirá que se metam nela mantimentos para quatro.

Necessita esta fortaleza de uma cisterna dentro, porque não tem nenhuma água.

E que se lhe acabe a ponte que está começada, pois tem a madeira para isso já dentro.

Fonte: “Relação da gente paga, artelharia armas munições carretas mantimentos e mais cousas que ha nas fortalezas da barra desta cidade e nas de Setuual, e do que necessita cada huã dellas”, anexa à consulta do Conselho de Guerra de 12 de Agosto de 1644 (ANTT, CG, Consultas, 1644, maço 4-B).

Imagem: A Fortaleza de São Sebastião da Caparica (ou o que resta dela) na actualidade. Foi nesta “Torre Velha” que esteve preso D. Francisco Manuel de Melo. Foto de Pateb, reproduzida de acordo com a licença em vigor, a partir daqui.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (7) – Fortaleza de São Filipe de Setúbal

A Fortaleza de São Filipe de Setúbal – também conhecida por Forte de São Filipe e por Castelo de São Filipe (esta última designação era frequente no período da Guerra da Restauração) – foi mandada edificar por Filipe II de Espanha e I de Portugal, e destinava-se a controlar a entrada da barra do rio Sado e o acesso à então vila de Setúbal. As obras iniciaram-se em 1582, tendo ficado concluídas em 1600. Entre 1649 e 1655 (portanto, já em plena Guerra da Restauração, mas em período posterior à descrição que aqui se transcreve), a fortaleza recebeu melhoramentos, de modo a que a artilharia pudesse cobrir com maior eficácia o porto de Setúbal.

Fortaleza de São Filipe de Setúbal

Há nesta fortaleza nove peças de artilharia de diferentes calibres, a saber: quatro canhões, duas colubrinas, um pedreiro e duas peças mais. Necessita de nove peças mais, de artilharia miúda.

E de alçaprimas e lanadas.

E de cartuchos, por ter poucos.

E de se lagearem duas praças, para correr melhor a artilharia.

Dos canhões, um é encampanado, e o outro rendido pelos munhões.

Esta artilharia está encavalgada. Necessita de reparos de sobresselente.

Há algumas rodas por ferrar, e havendo coronhas e eixos se poderão fazer quatro ou cinco reparos.

Balas de artilharia há em abundância para tirarem 20 peças de artilharia.

Mosquetes biscaínhos, noventa e tantos.

Arcabuzes, cento e quarenta e tantos.

Trezentos piques.

Morrão em abundância.

De pólvora, sessenta barris, que parecem ser de duas arrobas.

Soldados, oitenta, pouco mais ou menos, que é a lotação desta fortaleza.

Nove artilheiros. Necessita de mais, havendo mais artilharia.

Tem bastantes ferramentas.

É necessário argamassar toda esta praça, e retelhar os quartéis dos soldados, porque chove em tudo.

Há mister duas estacadas, cordas e cabos e pedras pelas muralhas, por ser a melhor defesa que há em castelos roqueiros.

Bastimentos [mantimentos] tem nenhuns.

E diz António de Barros Cardoso, governador desta fortaleza, que em mão de Brás Aranha há cento e oitenta mil réis procedidos dos bastimentos passados, e que tem por arrecadar coisa de cinquenta mil réis dos soldos que devem os soldados, para arrecadação dos quais há mister tempo. E que o dinheiro que está feito bastará para azeite, vinho e legumes, e com Sua Majestade dar biscoito ficará esta praça abastecida.

E que tem esta fortaleza quarenta e tantos mil réis para as obras em mão do tenente Sanches.

Fonte: Veja-se a 1ª parte desta série.

Imagem: A Fortaleza de São Filipe numa planta de cerca de 1700. Biblioteca Nacional, Iconografia, E3962P.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (6) – Fortaleza de Cascais

Fortaleza de Cascais

Há nesta fortaleza sete peças de artilharia de diferentes calibres com seus encavalgamentos novos e o mais tocante a elas. Necessita de mais artilharia e de pólvora, e morrão, porque há muito pouco e mau. E também de lanadas e tacos para a artilharia.

Pelouros de canhão, 450.

De colubrina, 170.

De meia-colubrina, 130.

Pelouros de pedra de pedreiro, 60.

Trezentos e quarenta arcabuzes com 20 frascos de pouco serviço. Necessita de dez frascos de arcabuzes.

26 mosquetes com 20 frascos, e os seis desmanchados. Necessita de mais 29 com seus frascos.

Dez quintais de pelouros de chumbo de mosquete e arcabuz, onde entram quatro pastas de chumbo.

Dezanove piques velhos, a metade sem ferro e carunchoso. Necessita de cinquenta chuços.

Há nesta fortaleza vinte e três pipas de vinho.

50 quintais de biscoito.

30 de toucinho.

23 de arroz.

Quatro moios de legumes sorteados.

Um quarto com seis alqueires de lentilhas.

Outro com duas arrobas de açúcar.

Outro com seis cântaros de azeite.

Outro de seis almudes cheio de ameixas.

Necessita também de um sino para a sentinela e de um cabo para guindar a artilharia.

Fonte: Veja-se a 1ª parte desta série.

Imagem: Fortaleza de Cascais na actualidade. Foto de Carlos Luís M. C. da Cruz, reproduzida de acordo com a licença em vigor, a partir daqui.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (5) – Forte de Santo António da Barra


Forte de Santo António da Barra

Há neste forte três canhões de bronze de 36 libras de bala. Uma colubrina de dezoito. Duas meias-colubrinas de dez. Todas estas peças são de bronze e estão encavalgadas com seus reparos novos.

Há três caixas velhas, e delas há uma só que pode servir pondo-se-lhe rodas novas, e a ferragem das outras poderá servir para outras novas de sobresselente.

Há para os três canhões 481 balas.

Para a colubrina 158 balas.

Para as duas [meias-]colubrinas 56 balas. É necessário quantidade de balas para estas duas peças.

Há mais 54 balas de 12 até 13 libras e 359 de seis até oito libras, que não servem para esta artilharia.

Para os três canhões há duas colheres. É necessária outra.

Para a colubrina há outra colher.

Para as duas [meias-]colubrinas há uma colher. É necessária outra.

Há sete soquetes com suas lanadas. São poucas.

Um martinete com seu fuso.

Uma escaleta com seu perno.

Dois banquinhos.

Três alçapremas. São necessárias mais.

Seis pés de cabra.

Quarenta espeques.

Oitenta e dois cartuchos para os dois canhões. São necessários mais.

Vinte e dois cartuchos para a colubrina. São necessários mais.

Quarente e sete cartuchos para as duas meias-colubrinas. São necessários mais.

Dezasseis pães de chumbo grandes.

Doze bombas muito velhas.

Sete sotroços.

Armas

Três esmerilhões com suas bandeirolas.

Vinte e cinco mosquetes de pinçote [suporte para encaixar na muralha]. São necessárias bandeirolas para eles, que as não têm.

Vinte e um mosquetes biscaínhos aparelhados.

45 arcabuzes com vinte e seis frascos. São necessárias bandeirolas para os mais.

Há mais nove frascos biscaínhos.

Há em três barris quantidade de balas de mosquete e arcabuz.

Há sessenta formas para se fazerem balas de mosquete e arcabuz.

Vinte e três piques.

Catorze chuços com cabos e sem eles.

Três enxadas. São poucas.

Dezoito picões. Sessenta e oito picaretas. Cento e cinquenta e quatro pás de ferro. Para todas estas coisas são necessários cabos, que os não há.

Morrão e pólvora

De morrão haverá cinco quintais, pouco mais ou menos, e muito antigos e algum podre da humidade. É necessário mais.

Mantimentos que se meteram em Julho 1643

50 quintais de biscoito.

25 quintais de arroz.

30 quintais de carne de porco.

Seis cântaros de azeite.

Seis alqueires de ameixas passadas.

Seis de lentilhas.

Duas arrobas de açúcar.

Oito pipas de vinho.

Há quantidade de lenha de pinho.

De legumes sorteados, feijões, chicharros, favas, grãos e lentilhas poderá haver quatro moios e meio, pouco mais ou menos, e estes estão maltratados, por haver três anos que se meteram.

Necessita este forte de Santo António de uma cancela na primeira porta, por ser podre a que tem e não ter ferrolho, e a porta levadiça da porta da ponte está no mesmo estado. O rastilho necessita também de conserto. E é necessário, para serviço da artilharia, de ferramentas, como é machado, enxó e serra, porque as não há.

Fonte: Veja-se a 1ª parte desta série.

Imagem: “Ciudad de Lisboa, 1661, a 4 de febrero. Verdadera Relación del porto de Lisboa y sus fortificaciones modernas que aún non están acabadas”. Mapa das defesas costeiras da barra de Lisboa e de Setúbal, elaborado por um espião ao serviço de Filipe IV de Espanha, e publicado em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (4) – Fortes de Paço de Arcos e de São João das Maias

Dando continuidade à descrição da situação da defesa costeira portuguesa entre as barras de Setúbal e de Peniche, e tendo iniciado esta descrição pela barra do Tejo, seguindo o documento apresentado ao Conselho de Guerra em Agosto de 1644, cabe hoje a vez aos Fortes de Paço de Arcos (ou São Pedro de Paço de Arcos) e de São João das Maias.

O primeiro destes fortes já não existe. Tendo sido erguido em 1641, tal como o segundo acima referido, foi definitivamente destruído em 1975, para dar lugar aos novos edifícios da Escola Militar de Electromecânica. O Forte de São João das Maias ainda subsiste e localiza-se no moderno passeio marítimo de Oeiras, mas encontra-se no lamentável estado de degradação que a foto documenta.

Forte de Paço de Arcos

Há neste forte dez peças de artilharia de ferro de vários calibres, com seus reparos, cunhas e soleiras.

Dezasseis arcabuzes com dezasseis bandolas.

Quarenta e nove piques grandes e pequenos.

Cento e uma palanquetas de ferro, de seis e sete libras [palanqueta era um tipo de munição constituído por duas balas ligadas por uma haste de ferro – veja-se a este respeito, e para ilustração, um artigo já aqui publicado].

Setenta palanquetas de ferro de duas libras.

Trezentas balas rasas de ferro.

Mais cinquenta palanquetas de ferro.

Cem balas de cadeia.

Necessita este forte de Paço de Arcos de trinta soldados.

De dois meios-canhões de bronze com balas em quantidade, duzentas de seis libras; e duzentas de duas e quatro [libras]; e cento de oito [libras].

E de um martinete para encavalgar a artilharia.

Quatro colheres de artilharia.

Dez soquetes de toda a sorte.

Um botafogo de campanha.

Duas arrobas de cevo.

Dois sacatrapos e dois rascadores da artilharia.

Doze pés de cabra.

200 cartuchos de toda a sorte.

Doze peles para lanadas.

Seis hásteas de sobresselente.

Doze quintais de morrão.

Dezasseis quintais de pólvora.

Trinta e quatro mosquetes com suas forquilhas e frascos.

Oito quintais, uma arroba e vinte e quatro arrobas de balas de mosquete e arcabuz.


Forte de São João das Maias

Há neste forte cinco peças de artilharia de ferro com seus reparos, cunhas e soleiras.

Duas colheres de artilharia com dois soquetes e suas lanadas.

Quatro botafogos de campanha.

Duas arrobas de cevo.

Dois sacatrapos.

Duzentos cartuchos de pano sorteados.

Cinco arrobas de balas de mosquete e arcabuz.

Vinte e cinco piques velhos.

Necessita este forte das Maias de 20 soldados e dez artilheiros com um condestável.

De três colubrinas de alcance, balas para elas e para as demais peças de ferro em quantidade.

Seis pés de cabra e 24 espeques.

De uma alçaprima, e uma cavilha para ela.

De uma cabrilha para encavalgar a artilharia.

De doze peles para lanadas, e seis hastes para elas.

De doze arandelas e vinte sotroços de ferro.

De doze quintais de pólvora.

De seis quintais de morrão.

De trinta mosquetes e vinte chuços.

Imagem: O Forte de São João das Maias na actualidade. Fotografia de Adrião, reproduzida de acordo com a licença em vigor, a partir daqui.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (3) – Torre da Cabeça Seca (Forte de São Lourenço da Cabeça Seca, ou Bugio)

Conhecida durante a Guerra da Restauração como Torre da Cabeça Seca, esta fortificação é actualmente designada por Forte de São Lourenço da Cabeça Seca, ou simplesmente Forte do Bugio.

Torre da Cabeça Seca

Tem esta força sete peças de artilharia de diferentes calibres.

662 balas de artilharia de todo o calibre, em que entram 32 balas de pedra.

9 barris de pólvora.

4 caixões de balas de mosquete e arcabuz.

5 colheres de todo calibre.

3 sacatrapos.

24 mosquetes com doze frascos.

Um arcabuz.

Quatro pés de cabra.

Mantimentos

Doze quintais de biscoito.

4 de arroz.

3 de toucinho.

40 alqueires de grãos.

Duas pipas de vinho.

Necessita de 25 soldados, [e] dez artilheiros com um bom condestável.

De três colubrinas e quatro canhões com suas talhas e bargeiros para estarem na praça baixa, junto ao mar.

E de dois pedreiros [peça de artilharia] mais com a mesma prevenção.

Necessita também de hastes, soquetes, cocharras e lanadas para toda a artilharia, e de reparos.

E de 300 balas para a artilharia que for de novo, e de cem palanquetas.

E de seis quintais de morrão.

40 varas de setelarã para cartuchos.

E acudir-se com brevidade ao parapeito da plataforma de cima, que levou o mar, antes que arruine de todo.

Imagem: O Forte do Bugio, com o seu farol, na actualidade. Foto de Jorge P. Freitas.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (2) – Fortaleza de São Gião (São Julião da Barra)

Continuando a transcrição iniciada aqui, passemos à Fortaleza de São Gião, hoje designada por São Julião da Barra.

Fortaleza de São Gião

Há nesta fortaleza [espaço em branco] peças de artilharia de bronze de diferentes calibres.

344 quintais e 22 arráteis de pólvora.

813 mosquetes de toda a sorte, velhos e novos; oito esmerilhões [espingarda antiga de cano comprido] de ferro.

128 arcabuzes velhos, e os mais deles sem caixas.

209 frascos de mosquetes velhos e novos.

193 bandolas de mosquetes.

235 forquilhas.

705 piques.

48 dardos.

31 quintais de morrão.

24 colheres de todo o calibre.

45 soquetes e lanadas já velhas.

Duas cabrilhas de encavalgar a artilharia.

12 pés de cabra.

4.608 balas de artilharia de toda a sorte.

Um monte de balas de pedra, e outro de ferro, miúdas, que não servem na artilharia que há.

30 quintais de balas de mosquete e arcabuz.

41 pães de chumbo.

140 cartuchos de pano de toda a sorte.

Mantimentos

200 quintais de biscoito.

Duas pipas de vinho.

Oito moios de grãos, favas, e chicharros.

12 quintais de bacalhau.

80 quintais de toucinho.

60 barris de arroz velho, e muito velho.

5 moios de feijões brancos velhos, 35 de feijões fradinhos, moio e meio de chicharros velhos.

4 pipas de vinagre.

Mantimentos de sobresselente

Trinta pipas de vinho, 4 de azeite e seis de vinagre.

Trezentos quintais de biscoito, de mais dos mantimentos que há na dita fortaleza, os quais convém se renovem, principalmente o toucinho, arroz e bacalhau.

Há nesta fortaleza 180 soldados e necessita de mais gente para guarnecer os três fortes da Cabeça Seca, Maias e Paço de Arcos, e levantar-se mais para este é preciso uma companhia, como Sua Majestade tem mandado.

Necessita também de 4 colubrinas de alcance, e seis pedreiros para as casamatas.

De 36 reparos.

50 peles para lanadas.

1.000 tachas para as pregar.

50 soquetes de todo o calibre.

100 espeques.

50 sotroços de ferro, e 50 arandelas.

200 varas de setelarã [tecido grosseiro] para cartuchos.

Oito barris de alcatrão e 6 quintais de breu.

200 granadas e 200 alcancias.

Dois quintais de enxofre.

4 pães de cevo e cabos velhos em quantidade para tacos.

500 balas de 24 libras e 200 de cinco.

250 quintais de pólvora e 200 palanquetas.

80 quintais de morrão para sobresselente.

50 tabulões.

400 sacos, ou pano para eles, para servirem de parapeitos.

400 carradas de lenha para esta fortaleza de São Gião e Cabeça Seca, e um barco de sal.

Fonte: Ver aqui.

Imagens: Em cima, planta da fortaleza de São Gião, c. de 1655, publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII. Em baixo, a fortaleza de São Julião, na actualidade, vista de norte para sul. Foto de Jorge P. Freitas.

A defesa da costa portuguesa em 1644 (1) – Torre de Belém

Por decreto de 30 de Julho de 1644, D. João IV ordenou que o Conselho de Guerra desse o seu parecer sobre consulta que o Conselho da Fazenda fizera sobre os artilheiros, o material de guerra e as provisões existentes nas fortalezas da barra de Lisboa, e nas de Setúbal e de Peniche, bem como sobre o que era necessário prover. As listas exaustivas de tudo quanto se encontrava em cada fortaleza surgem em anexo à consulta do Conselho de Guerra de 12 de Agosto de 1644.

Nessa consulta, o Conselho de Guerra apoiou o parecer do Conselho de Fazenda para que as fortalezas de Setúbal e Peniche, como distavam mais de Lisboa, tivessem tudo quanto fosse necessário dentro das suas muralhas, e para esse efeito o tenente-general da artilharia devia visitar aquelas fortalezas passado o mês de Setembro, numa época do ano em que os seus afazeres eram menores na capital do Reino. Quanto às fortalezas da barra de Lisboa, poderiam ser abastecidas do que estivesse em falta em qualquer altura, não requerendo muita urgência, à excepção da pólvora e das balas de diferentes calibres, que deveriam ser providenciadas de imediato. O Conselho de Guerra advertiu, por fim, que a consignação de 1.000 cruzados (400.000 réis) que se tinha atribuído ao tenente-general da artilharia era insuficiente para as necessidades das fortalezas, pelo que seria conveniente atribuírem-se outros mil cruzados, provenientes das tenças.

Passemos à transcrição (com ortografia actualizada) da parte relativa à…

Torre de Belém

A Torre de Belém tem 14 peças de artilharia de bronze e de diferentes calibres, a saber:

Um canhão de 24 libras de bala.

Sete meios-canhões de 16 [libras].

4 meias-colubrinas de 12 e outra de dez [libras].

Um falconete de uma libra.

Os sete meios-canhões têm duzentas balas. Necessitam de 600 balas novas e 200 de cadeia.

Tem 4 colheres [instrumento utilizado para carregar a peça com bala, pela boca]. Necessita de três mais. Necessitam também de cinco reparos com suas rodas.

As 4 meias-colubrinas têm bastantes balas. Tem uma colher. Necessitam de mais 3. Também faltam 4 rodas para os reparos; 12 hásteas de 21 palmos, duas dúzias de soquetes [peça em madeira que servia para impelir a carga na alma da peça, quando se carregava], uma [dúzia] de 16 [libras] e outra de 12; e duas dúzias de granadas de pau para as lanadas [hastes envolvidas em lã numa das extremidades, para limpar o interior das peças após cada tiro].

À meia-colubrina, falta-lhe um reparo e rodas.

Tem a Torre de Belém 65 quintais de pólvora – faltam-lhe 35 mais.

Tem 50 mosquetes de Flandres com suas bandolas. E 40 de sobresselente de Barcarena, com seus frascos; tem mais 28 mosquetes e arcabuzes. Tem mais 50 piques.

Tem necessidade a dita Torre de 14 pranchadas de chumbo para os fogões da artilharia. Duas dúzias de cortiças para as bocas das peças. Meia dúzia de talhas para abocar a artilharia com seus montões, para a praça de baixo. De 50 varas de pano de linho para cartuchos, por não haver mais que 120 de todos os calibres. Necessita também de 2 quintais de cevo, 4 de breu, 4 de alcatrão, e de uma dúzia de soleiras e de duas dúzias de peles curadas ao vento.

Há na dita Torre 10 quintais de murrão. Tem necessidade de 20 quintais mais. Faltam-lhe também 12 quintais de amarra velha para tacos; meia dúzia de lanternas e meia dúzia de lampiões.

Necessita também de 8 tinas para a artilharia e uma pipa de vinagre. E de biscoito, vinho e legumes, conforme à dotação da mesma Torre.

Tem esta Torre 90 arrobas e três arráteis de arroz, que se lhe meteu em 16 de Abril de 1641, que está ruim e mal acondicionado. É necessário outro [arroz], conforme à dotação desta Torre.

Tem mais 6 alqueires de lentilhas e 6 de ameixas passadas. Necessita de mais. Tem também necessidade de lenha e de 60 cobertores e outros tantos enxergões para os soldados.

Tem 40 e tantos soldados. Faltam os mais para oitenta, que há-de haver nela conforme sua dotação.

Fonte: “Relação da gente paga, artelharia armas munições carretas mantimentos e mais cousas que ha nas fortalezas da barra desta cidade e nas de Setuual, e do que necessita cada huã dellas”, anexa à consulta do Conselho de Guerra de 12 de Agosto de 1644 (ANTT, CG, Consultas, 1644, maço 4-B).

Imagem: Torre de Belém na actualidade. Foto de J. P. Freitas.

O estado do exército português em 1661, segundo o Conde de Schomberg

Em 1661, Frederick Hermann, Conde de Schomberg, entrado ao serviço da Coroa portuguesa nos finais do ano anterior, fez um reconhecimento da situação militar no principal palco de operações da Guerra da Restauração – o Alentejo. Para isso, visitou a província e procedeu a um extenso reconhecimento das praças e das suas defesas, do estado do exército e da sua capacidade operacional. Teve oportunidade de presenciar a campanha de 1661, a qual não correu bem para os portugueses. Numa carta que escreveu à Rainha regente e ao Conselho de Guerra em Lisboa, pouco depois de regressar da província transtagana, Schomberg expôs as suas conclusões e considerações sobre o que devia ser a reforma do exército português, de foma a torná-lo mais eficaz. Nem todos os conselhos e sugestões foram seguidos, mas o retrato que ficou feito do exército português e das suas necessidades é aqui exposto, a partir da transcrição parcial da carta anexa à Consulta de 26 de Outubro de 1661, vertida para português corrente:

1. A principal razão porque fiz esta jornada, foi para lembrar a Vossa Majestade algumas coisas necessárias ao bom governo do Exército e a defesa das praças da Província do Alentejo. E começando por esta última parte, digo que nas praças fortificadas são necessários governadores experimentados para a defesa delas, e tenentes que os ajudem e assistam dentro das praças todo o ano, aos quais se deve encomendar muito particularmente seu reparo e conservação, e que façam provisão de faxina, estacas, pranchas e tudo o mais que parecer necessário para a defesa delas, porque a pouca notícia que têm alguns sujeitos do que podem haver mister [termo arcaico que significa necessidade], os reduzirá a grande extremo se o inimigo as sitiar, e como toda a defesa da Província de Alentejo consiste em bem acabar as praças fortificadas, e por não fazer este papel tão largo, deixo de dizer as razões que há de fazer acabar as fortificações de Estremoz, Évora e Serpa. E o que nos pode custar um dia esta dilação, somente me explicarei sobre a praça de Campo Maior, por onde se podem julgar as outras, a qual, tanto por seu mau sítio como por sua fortificação estendida, é necessário para a defender e ao forte ao menos três mil homens. E no lugar mais fraco, que é atrás do castelo, está mais imperfeita a fortificação, e a estrada encoberta está por acabar. Se o inimigo a sitiara o ano passado como entendíamos [ou seja, como prevíamos], tivéramos visto que se não achava dentro a terça parte das estacas, e pranchas, carrinhos, picaretas e outros materiais necessários, como medicamentos e cirurgiões. Entre as munições que com mais aperto pedi ao general da artilharia, foram granadas, sobre que escreveu muitas cartas a Manuel de Andrade [Freire], a que lhe respondeu que em dez anos não fora tão importunado por elas como depois que eu passei ao Alentejo. E como nos sítios [ou seja, cercos] se tem visto a utilidade delas, é necessário mandar a todas as praças maior quantidade, e fazer exercitar alguns soldados a lançá-las, e dar-lhes alguma coisa mais por isto, como costumavam fazer em Flandres Dom João de Áustria, o Príncipe de Condé e o Marquês de Caracena.

Note-se aqui a referência à necessidade de especialização dos soldados que lançavam as granadas e ao bónus a que deveriam ter direito nas pagas – o embrião das companhias de granadeiros de um futuro ainda distante – e o emprego destas tropas pelo exército espanhol na guerra contra a França, na Flandres.

(…)

6. Como o inimigo vai atacando a Província de Alentejo com exército mais considerável, me parece que Vossa Majestade deve mandar levantar maior número de infantaria, e será conveniente fazer dois terços mais, cada um de oitocentos homens, dos quais se não acham efectivos na campanha seiscentos, e para os governar escolher oficiais vigilantes e experimentados, para dar uma melhor forma à disciplina militar.

7. Que o governador das armas tenha poder de castigar e tirar os postos aos oficiais que não fazem sua obrigação, e que não permitam que os mestres de campo façam capitães e alferes sem serem bem conhecidos por seus serviços na guerra, porque a experiência mostra que a maior parte destes são seus criados, e os estão actualmente servindo depois de providos nos postos, e isto aniquila o serviço de maneira que nenhuma pessoa de qualidade quer passar pelos postos de alferes e outros, os quais não se devia dar companhias sem que primeiro passassem por estes inferiores. E tem-me mostrado a experiência que alguns capitães têm pouco cuidado de suas companhias, deixando fugir os soldados, porque sabem que não recebem menos paga do que os que têm maior número de gente, com que será necessário reformar alguns destes.

8. Tocante à cavalaria, não repito o que já na infantaria relatei. Os defeitos que se acham são: a disciplina militar muito alterada parte dos capitães, acostumados a grande descanso; o seu maior cuidado é de se aproveitarem de suas companhias, quando vão à campanha deixam alguns dos melhores cavalos nas guarnições para os mandarem a pilhagens, de maneira que na campanha passada [1661] achei [de] menos mais de trezentos cavalos do que havíamos de ter, entre os soldados muitos rapazes e muitos mal armados, alguns sem pistolas e a maior parte sem mais que uma. É necessário considerar que a força do inimigo há de ser maior que na ocasião passada, e como não podemos ter tanta cavalaria, a que Vossa Majestade tem se deve trazer na melhor forma e disciplina possível. E como El-Rei de Castela manda a esta guerra os melhores oficiais que o serviam em Catalunha, Itália e Flandres, insto na mesma opinião que propus a Vossa Majestade sete ou oito meses há, que a cada quatro companhias se dê um cabo [oficial superior, no caso um coronel] que as governe.

É o início da proposta de reforma da cavalaria, que de companhias independentes devia passar ao sistema regimental. Não teve sucesso, porém, pois apesar de haver sucessivos pareceres favoráveis no Conselho de Guerra, a forte resistência dos capitães das companhias (que assim iriam perder privilégios) e a incapacidade  da Coroa em sustentar as companhias sem o auxílio financeiro dos capitães obstaram a que a reforma tivesse lugar. Só em 1707, no início do reinado de D. João V e em plena Guerra da Sucessão de Espanha, o sistema regimental se concretizou em Portugal.

9. Os Auxiliares da Província de Alentejo, tanto cavalaria como infantaria, não chegarão à terça parte a incorporar-se com o Exército, e faltam-lhe bons oficiais para os governar e exercitar, os mestres de campo a maior parte não vão com seus terços, e como são da mesma terra favorecem muita gente e não castigam geralmente os que fogem; a cavalaria, a maior parte rapazes sem armas, será necessário remediar tudo isto e ordenar um tenente-general que veja a gente e os faça exercitar.

10. A artilharia, como os oficiais dela não são bem pagos, desculpam-se com isto quando se não faz o serviço, o vedor geral [é] pouco prático [experiente] para a campanha e coisas necessárias para ela; fica este corpo muito confuso, rouba-se a cevada, perdem-se as mulas; os artilheiros estrangeiros há quatro meses que se lhe[s] não paga, o vedor geral trata-os mal, declarando-se que os não há mister; passado um mês lhe[s] fizeram um exame para saber seu préstimo, e como acharam que se não serviam de compassos, réguas, e outros instrumentos, julgaram que não prestavam para nada, e que se podiam licenciar [dispensar]. Como em diversos sítios em que me tenho achado nunca os vi servirem-se de instrumentos para ajustarem seus tiros, não estranho que não sejam costumados a usar deles; não me parece conveniente licenciar esta gente prática, que custou tanto trabalho a buscar e tirar de França. Julgo que o motivo de quererem despedir esta gente procede de alguma inveja e imaginação, que partidos eles, o dinheiro que se lhes dá se empregará em pagar os oficiais e artilheiros portugueses. Se na província os houvera suficientes, eu fora o primeiro que dera meu voto que se mandassem para a sua terra os franceses. Não tenho mais afeição aos estrangeiros que aos naturais, e em todas as partes por onde servi nunca fiz distinção das nações, mas só [ou seja, excepto] por sua capacidade e utilidade ao serviço aonde assistia;

12. […] O meu parecer não é que se confiem os postos aos mais antigos, mas aos de que Vossa Majestade tiver informado que se tem achado nas ocasiões, por suceder nisto que um oficial em três ou quatro anos terá nisto mais que alguns outros capitães ou mestres de campo em quinze, os quais, por mais antigos pretendem ser mais experimentados, e talvez terão gastado a maior parte do tempo em suas casas, murmurando [isto é, criticando] com descanso o trabalho e acções dos outros. E como vemos que estes homens cada dia pretendem por antiguidade e recebem acrescentamentos em seus postos, não se fazendo distinção das pessoas que servem bem, se faz o serviço com pouco zelo e cuidado. E como agora a guerra é muito diferente da passada [Schomberg refere-se às características da guerra de fronteira nas décadas de 40 e 50], e a força de Castela muito aumentada no número e na ciência dos oficiais que serviram em outras partes, Vossa Majestade arriscará muito o seu Reino, e a vida e reputação dos cabos mais afectos, se lhes não der uma ordem muito absoluta (…).

14. Que acabada a campanha se façam listas, como na França e na Alemanha e noutras partes onde servi, da gente activa que ficava e das munições e da artilharia, para se tratar no tempo em que todas as coisas se acham mais baratas.

(…)

16. Tendo notícia de alguns sujeitos que fazem profissão de murmurar [criticar] de tudo, suposto que por este modo se acreditam com o povo do Exército, os danos que resulta nele destes amotinadores, Vossa Majestade o tem experimentado em muitas ocasiões, segundo me têm dito, e se não se remediar, virá alguma cujo dano exceda a todo o remédio; estes tais quiseram desacreditar as marchas, alojamentos e batalhas com que se dispôs o Exército este ano, por não haverem visto nos seus cartapácios [hoje diríamos “calhamaços”, livros volumosos] velhos as vantagens que nestas novas formas acharam os grandes capitães destes tempos. Eu tivera por particularmente ordenar Vossa Majestade que estes tais viessem diante os ministros de Vossa Majestade com os seus discursos, para se ver q não são nem foram capazes de entender o que reprovavam.

Esta última parte reporta-se à introdução da marcha de costado na campanha de 1661 – a progressão do exército no terreno já em formação de batalha – e às críticas de uma parte da elite sociomilitar a esta inovação. Uma ignorância crassa, pois já na sua Arte Militar, publicada em 1612 (mas iniciada em finais do séc. XVI), Luís Mendes de Vasconcelos, pai de Joane Mendes de Vasconcelos, preconizava e descrevia aquele tipo de progressão de um exército em campanha, mais eficaz do que a tradicional marcha dos esquadrões de infantaria, batalhões de cavalaria, trem de artilharia e comboio de víveres em longa coluna.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, maço 21-A, carta anexa à consulta de 26 de Outubro de 1661.

Imagem:  Planta de Campo Maior, uma das praças visitadas e referidas por Schomberg no seu relatório. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Balas de grilhão ou cadeia

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Já tinham sido referidas num artigo sobre os tipos de munição de artilharia e sua eficácia. Fica aqui o registo fotográfico desta munição, utilizada no mar para destruir o velame dos navios inimigos, e em terra para causar danos terríveis nas formações de batalha – na cavalaria principalmente, mas também na infantaria.

Imagem: Balas de cadeia ou grilhão. Exposição “Piratas, os Ladrões do Mar”, Forte do Bom Sucesso, Belém. Foto de Jorge P. de Freitas.

Artilharia (6) – Artilharia da Praça de Elvas em 1663

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Descrição pormenorizada do número de peças existentes, em 31 de Dezembro de 1663, na praça de Elvas. Em primeiro lugar, é referido o local, em segundo, o número e tipo de peça, e em terceiro, o calibre em libras (lb). Remeto os leitores para os artigos já publicados sobre a artilharia, de modo a compreender as designações das peças e respectivos calibres.

Castelo: 1 meio canhão de 24 lb; Baluarte de S. João: 1 meio canhão de 24 lb, 1 meia colubrina de 16 lb, 1 meio sacre de 4 lb; Baluarte de S. Vicente: 1 meio canhão de 12 lb, 1 sacre de 7 lb; Baluarte de Stª Maria: 1 sacre de 7 lb; Quartina de S. Domingos: 1 quarto de canhão de 10 lb; Baluarte de S. Pedro: 1 meio canhão de 24 lb, 1 sacre de 7 lb, 1 pedreiro de 10 lb; Quartina da Porta de Olivença: 1 peça de Suécia de 6 lb; Baluarte da Cruz: 2 meios canhões de 24 lb; Muralha junto à cisterna: 1 falcão de 2 lb; Porta da Esquina: 4 meios canhões de 24 lb, 1 pedreiro de 8 lb; Muralha de trás do trem: 1 peça de Suécia de 9 lb; Baluarte do Príncipe: 1 falcão de 2 lb; Forte de Stª Luzia: 2 meios canhões de 24 lb, 2 terços de canhão de 16 lb; 3 peças de Suécia de 9 lb; 1 quarto de canhão de 10 lb, 1 sacre de 7 lb.

Peças montadas no trem: 1 terço de canhão de 16 lb, 3 meias colubrinas de 12 lb, 1 quarto de canhão de 10 lb, 3 peças de cavalaria de 4 lb, 1 falcão de 2 lb, 1 peça de ferro de 4 lb, 1 falcão da escola de 1 lb.

TOTAL: 42 peças.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1664, maço 24, relação anexa à consulta de 30 de Janeiro de 1664, reportada a 31 de Dezembro de 1663.

Imagem: Mapa do cerco de Elvas (Outubro 1658-Janeiro 1659), in La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Artilharia (5) – mais algumas narrativas dos seus efeitos

Episódios ocorridos durante o cerco de Badajoz em 1644, narrados por Aires Varela, Sucessos que houve nas fronteiras (…), o terceiro anno da Recuperação de Portugal, que começou em o 1º de Dezembro de 1643, Elvas, Typografia Progresso de António José Torres de Carvalho, 1900:

(…) Uma bala de dez libras deu entre dois soldados do capitão Jerónimo Correia, e ficaram quase cobertos com o pó que levantou, e em seu seguimento outra, que entrou pelo valado mais de doze palmos. (pgs. 104-105)

Uma bala de dez libras fazendo chapeletas entrou nos alojamentos, e quase fria matou ao padre Manuel Braz Fialho, capelão dos dragões; não se lhe achou ferida no corpo. (pg. 105)

As pesadas e maciças balas de artilharia produziam uma onda de choque com uma pressão bastante forte quando o projéctil passava perto da vítima, podendo matar uma pessoa sem lhe deixar qualquer marca no corpo. Curiosamente, um episódio semelhante é citado por Roy Adkins no seu livro Trafalgar – The Biography of a Battle (London, Little, Brown, 2004). Cerca de 160 anos separam o evento ocorrido durante a célebre batalha naval e o narrado por Aires Varela, mas o tipo de artilharia manteve-se praticamente inalterado durante o período. Contudo, dada a referência às “chapeletas” (resultantes de ricochetes), é provável que o infeliz capelão tenha sofrido alguma concussão fatal.

Imagem: Artilheiros e peça de artilharia do período da Guerra Civil Inglesa. Ilustração presente na obra de Philip Haythornthwayte The English Civil War 1642-1651. An Illustrated Military History, London, Brockhampton Press,1994.

Artilharia (4) – Peças e munições existentes em Campo Maior em 1659

Artilharia

Meios canhões de 24 [libras] – 8 ; Terços de canhão de 16 [libras] – 3; Quartos de canhão – 3; Meias colubrinas de 12 [libras] – 2; Meia colubrina de 10 [libras] – 1; Sagres [sacres] de 7 libras – 3; Peças de ferro de 7 libras – 3; Peças de ferro de 4 libras – 6; Peça de cavalaria de bronze – 1; Trabuco que tem de boca 85 libras – 1

Balas de artilharia

De 24 [libras] – 4.241; de 16 [libras] – 1.000; de 12 [libras] – 654; de 10 [libras] – 1.972; de 7 [libras] – 2.832; de 6 [libras] – 400; de 4 [libras] – 875

É de notar, nesta relação, a designação de terços de canhão e de quartos de canhão para as peças de 16 e de 12 libras, respectivamente, havendo também meias colubrinas de 12 e de 10 libras. As peças de ferro, mais raras, mais pesadas e menos eficazes do que as de bronze, aparecem também no rol.

Fonte: Rellação da Artilharia e Armas e muniçoens que se acharão na Praça de Campo Mayor feita pello Comissário geral da Artilharia Manuel de Villanoua em quinze de Setembro de 659, relação anexa à consulta de 22 de Janeiro de 1661, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21.

Imagens: Em cima, planta da fortificação de Campo Maior (década de 1650), da autoria do engenheiro militar francês Nicolau de Langres, in Desenhos e Plantas de todas as praças do Reyno de Portugal pelo Tenente General Nicolao de Langres Francez, que servio na guerra da Acclamação. Biblioteca Nacional, Reservados, Cód. 7445 (microfime: F2359). Em baixo, preparação de peças de campanha; trata-se de peças ligeiras, que disparavam balas de 3 a 7 libras. Reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Artilharia (3) – Os tipos de munição e a sua eficácia

Os projécteis mais utilizados pelas peças de campanha, designados por pelouros ou balas, eram esféricos, sólidos e de ferro. O diâmetro do projéctil era sempre inferior ao diâmetro da boca da peça, para que aquele não ficasse entalado no cano. Como as peças eram de alma lisa, por muito experiente que fosse o oficial artilheiro encarregado de calcular a elevação necessária à peça e a distância relativamente ao alvo, o efeito do tiro estava sujeito a algumas das contingências aqui apontadas para as armas de fogo pessoais. No entanto, ao contrário das balas de mosquete ou arcabuz, os pesados projécteis de artilharia podiam manter um efeito devastador, mesmo perdendo a velocidade inicial, e a imprevisibilidade da sua trajectória era agravada pelo facto de ricochetearem no solo e continuarem a ser letais. Filas ou fileiras inteiras podiam ser vítimas de uma única pelourada. O efeito sobre os indivíduos atingidos é por vezes descrito nas narrativas coevas:

O inimigo continuava com a artilharia, de que os nossos recebiam dano; uma bala arrancou dos ombros a cabeça a António Machado da França, capitão de cavalos. [Episódio ocorrido durante o cerco de Badajoz em 1644] (Aires Varela, Sucessos que houve nas fronteiras (…), o terceiro anno da Recuperação de Portugal, que começou em o 1º de Dezembro de 1643, Elvas, Typografia Progresso de António José Torres de Carvalho, 1900, pg. 109)

Mateus Rodrigues descreve um acontecimento semelhante, mas situa-o na campanha do forte de Telena em 1645. Contudo, pode tratar-se do mesmo evento descrito por Aires Varela, pois confusões deste tipo surgem com alguma frequência nas memórias escritas – mais de dez anos depois dos acontecimentos – pelo ex-soldado:

E vinha ali um capitão de cavalos na sua companhia, por nome Manuel da Gama, um bizarro soldado e mui cavalheiro e grande músico e mui bem entendido, que tinha seus dedos de poeta, (…) mui querido de todos os fidalgos, (…) vem uma peça do inimigo a dar-lhe só nele e tira-lhe a cabeça fora dos ombros, ficando o corpo a cavalo por espaço de um bom credo, sem cair no chão [e] sem a bala ofender mais a ninguém (…). (Manuscrito de Matheus Roiz, pg. 118 )

Havia outros tipos de munição, como as balas de cadeia ou grilhão, utilizadas frequentemente pela marinha de guerra para derrubar o cordame, rasgar o velame ou desmastrar os navios inimigos. Em terra firme era temível na ceifa de cavaleiros ou infantes em densa formação de batalha. Algumas variantes são mostradas na gravura acima. A forma mais básica consistia em duas balas ligadas por uma corrente. O disparo exigia mais pólvora e o alcance efectivo era muito inferior ao do tiro com munição normal, pelo que era reservado para o tiro contra formações inimigas a curta distância, sendo o alvo preferencial a cavalaria. Este tipo de munição também sujeitava o cano a um desgaste mais intenso. No entanto, foi expressamente requisitado por D. João da Costa em 1646, para o exército do Alentejo (Balas de cadeia, ou grilhão, 200 balas – carta anexa a um decreto de 11 de Agosto de 1646).

Para distâncias mais curtas utilizava-se a carga oca repleta de balas de mosquete: os sacos de bala miúda. Bastante eficaz contra cavalaria, conforme relata Mateus Rodrigues, ainda a propóito da campanha de Telena em 1645:

(…) Logo o inimigo veio com toda a cavalaria carregando-nos com grã força e trazendo duas peças entre a mesma cavalaria, com seis mulas cada peça, que corriam com elas como a mesma cavalaria, e assim como chegavam a tiro davam carga com elas que faziam muito dano, porque ia a nossa gente toda numa pinha e não podia deixar de matar muita gente, porque fazia o tiro de perto. (Manuscrito de Matheus Roiz, pg. 113)

Vinte anos mais tarde, na batalha de Montes Claros, fica registado o uso dos projécteis de carga oca pela artilharia portuguesa:

(…) E o Conde de S. João e o general da artilharia (…) deram ordem que as peças de artilharia, que estavam carregadas de sacos de balas miúdas, não dessem a primeira carga, senão ao tempo que os inimigos estivessem na distância de cinquenta passos (…); e foi tão notável o dano que padeceram, que os batalhões do corno direito, obrigados do receio, voltaram os meios corpos dos cavalos com aparência de quererem fugir (…). (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, Porto, Livraria Civilização, 1945-46, vol. IV, pg. 300)

Os trabucos e morteiros disparavam projécteis sólidos de ferro, ou esféricos e ocos, neste caso com uma carga de pólvora que era detonada por um fuso (na versão mais simples, um morrão que se incendiava com o disparo propulsor). Conforme o fuso, assim o projéctil poderia explodir pouco depois do impacto no alvo ou mesmo no ar. No entanto, os efeitos sobre as tropas não eram tão devastadores como as munições explosivas empregues a partir do século XIX. Os alvos principais deste tipo de artilharia de cerco eram edifícios e fortificações.

Imagem: Vários tipos de munição de artilharia, nomeadamente variantes de balas de cadeia (ao centro, o modelo mais usual) e palanquetas (balas ligadas por uma haste de ferro). Gravura apresentada em JÖRGENSEN, Christer, e outros, Fighting Techniques of the Early Modern World, AD 1500-AD 1763, Equipment, Combat Skills and Tactics, London, Amber Books, 2005.

Artilharia (2) – as categorias das peças de campanha

As referências à artilharia eram geralmente feitas de acordo com o peso do projéctil disparado. Apesar da variedade de calibres e designações, é possível traçar um esboço da valoração e do agrupamento das peças de bronze em “categorias” baseando-nos no testemunho competente de D. Luís de Meneses, Conde de Ericeira, que foi general da artilharia do exército do Alentejo. Assim, na sua História de Portugal Restaurado (edição da Livraria Civilização, Porto, 1945-46, vol. IV, pg. 291) descreve a composição do trem de artilharia presente na batalha de Montes Claros, em 1665, agrupando as 20 peças do seguinte modo:

Quinze peças de 7, 6 e 4 libras.

Três peças de 12 libras.

Duas peças de 24 libras.

Como se vê, nenhuma se enquadra em absoluto nos exemplos mostrados no quadro que foi aqui apresentado, mas podemos arriscar que as de 7 e 6 libras seriam sacres ou meias colubrinas e as de 12 libras provavelmente colubrinas. As de 24 libras eram certamente os meios canhões que surgem também destacados noutras passagens da obra do Conde de Ericeira, como por exemplo a respeito da artilharia do exército de D. Juan de Áustria na campanha do Alentejo em 1663:

Constava (…) [de] dezoito peças de artilharia, em que entravam seis meios canhões, três morteiros, quantidade de munições e mantimentos (…). (Obra citada, vol. IV, pg. 103)

Destaque que prossegue mais adiante, ao referir-se às unidades e material militar ao dispor do Conde de Sartirana para a defesa de Évora, que os espanhóis haviam tomado:

(…) Treze peças de artilharia, em que entravam seis meios canhões (…). (ob. cit., vol. IV, pg. 124)

Os meios canhões eram as peças mais pesadas da artilharia de campanha em serviço nos exércitos português e espanhol na década final do conflito. Se quase toda a artilharia era de lenta deslocação, o peso destas peças maiores atrasava ainda mais a progressão do exército, exigindo cada peça muitos animais de tiro.

No entanto, foi também na última década do conflito que mais se empregaram peças de menor calibre, que apoiavam em proximidade a cavalaria e a infantaria com o seu tiro, sendo intercaladas entre os esquadrões e os batalhões. Não se tratava propriamente de uma novidade – há referências a peças ligeiras hipomóveis que acompanhavam a cavalaria em campanha no Alentejo, já nos anos 40, bem como à experimentação de canhões de couro, semelhantes aos usados pelo exército sueco de Gustavo Adolfo – mas o seu emprego táctico era agora mais frequente e eficaz.

Sobre os tipos de munição e a sua eficácia será aqui colocado em breve um artigo.

Imagem: Artilharia em acção. Trata-se de uma peça de pequeno calibre (3 ou 4 libras), usada no apoio próximo das formações de infantaria. Reconstituição histórica, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Artilharia (1) – uma pequena introdução

Para facilitar o nosso entendimento e com a ressalva de que esta sistematização não coincide na totalidade com qualquer distinção oficial usada na época, poderemos agrupar a artilharia em três categorias:

a) Artilharia de campanha, composta por peças de grande e médio porte e variados calibres. Era móvel, sendo as peças assentes em reparos dotados de rodas. Tirada por juntas de bois, mulas ou, mais raramente, cavalos. Exemplos deste tipo: canhões, meios canhões, colubrinas, sacres.

b) Artilharia ligeira, composta por peças mais leves, de calibres variados. O falconete é um exemplo deste tipo. Assente em reparos com rodas, o seu peso não exigia o emprego de muitas bestas de tiro. Algumas peças podiam ser deslocadas pela força de braços de um ou mais homens.

c) Artilharia de cerco. Peças de grosso calibre destinadas ao tiro curvo de projécteis explosivos e incendiários, regulados por fusos, como morteiros e trabucos. Eram transportadas em carros ou carretas, pois os seus reparos não estavam dotados de rodas.

Embora a variedade de calibres e de designações em uso na época seja impeditiva de uma sistematização coerente, uma passagem da obra de Philip Haythornthwaite sobre a Guerra civil Inglesa (The English Civil War 1642-1651. An Illustrated Military History, London, Brockhampton Press, 1994, pg. 53) dá-nos uma ideia dos calibres, peso das peças e dos respectivos projécteis:

Peça

Calibre

Peso da peça

(em quilos)

Peso da munição

(em libras e quilos)

Falconete

Sacre

Meia colubrina

Colubrina

Meio canhão

Canhão

51 mm

89 mm

114 mm

127 mm

152 mm

178 mm

95

1.134

1.633

1.814

2.722

3.175

1¼ lb/0,6 kg

5 ¼ lb/2,4 kg

9 lb/4,1 kg

15 lb/6,8 kg

27 lb/12,3 kg

47 lb/21,3 kg

Estes valores não devem ser tidos como absolutos, dadas as variações dentro do mesmo tipo de peça. Nas fontes portuguesas, para além das designações das peças, surgem por vezes as referências ao peso do projéctil que disparavam (em libras). O assunto será retomado num futuro artigo, no qual será tratado o tipo de munição, a cadência de tiro e o efeito da artilharia.

Imagem: Peça de artilharia ligeira. Reconstituição histórica, Old Sarum. Foto do autor.