Um recontro de cavalaria nas proximidades de Elvas – Cruz de Rui Gomes, 23 de Maio de 1647 (3.ª e última parte)

Continuação da transcrição do Manuscrito de Matheus Roiz:

Tanto que o meu tenente se viu ao ribeiro sem o inimigo, logo ficou mais contente, e passou o ribeiro livre. Mas apenas o passou, já o inimigo estava outra vez com ele, apertando-o grandemente até [à] atalaia, mas ele sempre pelejando, como dele se esperava, [a]té que se arrimou [à] atalaia. Mas naqueles apertos ainda o inimigo lhe captivou dois soldados e o furriel, que eram três, afora eu, que também me captivaram […].

[Q]uando eu ouvi o tiro que meu companheiro deu, a emboscada do inimigo já ia além, donde o inimigo estava, um tiro de mosquete sobre a partida do inimigo. Mas apenas ouvi o tiro, logo disse entre mim que meu companheiro dera com o inimigo e quis fazer alguma traça para me vir livrando dos dois cavalos do inimigo. Mas não me deram esse lugar, que assim como ouviram o tiro, logo presumiram que a sua emboscada era já fora, e assim se vieram a mim à rédea solta, e como eu não tinha ainda visto os mais castelhanos, fiz fugida para [a]  atalaia, pois era a mais breve retirada que tinha, mas assim como assumi correndo a um outeiro, vi toda a campanha cheia de castelhanos, que ainda andavam às voltas com a minha companhia, e se ia para lá metia-me nas suas mãos. Não tive outro remédio senão ir-me pela campanha abaixo, lá pelas vinhas da Terrinha, que é tudo campo como a palma da mão. E a tudo isto sempre apertando-me os dois cavalos grandemente, mas como o meu cavalo tinha já corrido muito, e correu ainda muito mais pelo decurso da carreira, chegaram os dois cavalos a mim e me captivaram, deixando-me em camisa, que só o que era meu [e] me tiraram valia de 20.000 réis, que me levaram um colete que me davam 10.000 [réis] por ele, e o demais tudo bom (1).

Finalmente me levaram a Badajoz com os mais e daí a 4 dias nos mandaram [de volta], e quando viemos nos mandou o Conde Martim Afonso de Melo dar munições de vestido e botas e couros a todos, porque estava bem informado de como todos fizeram bem sua obrigação, que o Conde daria tudo aos soldados que bem a fizessem. E quando vínhamos de Badajoz fomos primeiro a casa do meu capitão, que havia vindo de Lisboa com a patente da minha companhia de novo (2), e como ainda o não tínhamos visto fomos […] vê-lo. E logo fomos a falar com o Conde governador, e nos disse que se não estivera bem informado do nosso tenente o como procedemos, que nos não havia de dar nada. Viemo-nos cada um para seus alojamentos a tratar do que nos convinha, e ainda que vínhamos de Castela, vínhamos alegres.

(MMR, pgs. 166-168)

(1) O colete de couro (ou “coura”) era usualmente a única protecção dos cavaleiros de ambos os exércitos, como foi referido no artigo anterior. A ser verdade o que Mateus Rodrigues refere, tratar-se-ia de um colete de qualidade superior ao “colete de munição” distribuído aos soldados, provavelmente um despojo de guerra capturado a um oficial inimigo.

(2) A memória de Mateus Rodrigues prega-lhe mais uma rasteira aqui. D. João de Azevedo e Ataíde ainda não tinha caído em desgraça nesta altura (o combate da Atalaia da Terrinha que ditaria o seu afastamento ocorreria daí a poucos dias, a 5 de Junho), portanto não recebera “de novo” a patente da companhia. O comissário geral – a quem Mateus Rodrigues se refere por “meu capitão” num sentido mais lato de comandante da companhia – regressava de Coimbra, onde estivera sob licença entre Abril e Maio.

Imagem: Vista sobre a planície em direcção ao Caia e ao Guadiana, a partir do local onde se erguia a Atalaia da Terrinha. Toda a zona abrangida foi palco de muitos recontros entre as forças portuguesas e espanholas durante a Guerra da Restauração.

Um recontro de cavalaria nas proximidades de Elvas – Cruz de Rui Gomes, 23 de Maio de 1647 (1.ª parte)

Regressamos ao manuscrito de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), para transcrever o testemunho do soldado de cavalos acerca de um recontro nas proximidades de Elvas, no qual a companhia onde servia foi derrotada.

O sucedido ocorreu na ausência do comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde, comandante da companhia, que estava em Coimbra a tratar de assuntos pessoais. Antecedeu num par de meses a desgraça daquele oficial superior, que acabaria por perder o posto num outro desaire, de maiores proporções, também nos arredores de Elvas. Mas acompanhemos a pena de Mateus Rodrigues, numa escrita actualizada:

Estando a minha companhia de quartel na cidade de Elvas, lhe tocou fazer a guarda na campanha em 23 de Maio, véspera do Espírito Santo do ano de 1647. E como todas as companhias que fazem guarda na campanha saem logo para fora pela manhã, e como vão sempre duas, cada uma à sua atalaia, para a da Terrinha e outra para a do Mexia, e lá assistem todo o dia até noite, descobrindo tudo muito bem antes que lá cheguem, e com sentinelas em as parte mais vigilantes, de modo que saímos com a companhia para fora e não levávamos capitão, porque já se havia ausentado Dom João dela para Coimbra, e só o tenente ia com ela, por nome Agostinho Ribeiro, um dos bizarros soldados que a guerra botou de si. E como estivemos já lá no Rossio, mandou todos os batedores, cada dois para sua parte a descobrir aonde era costume, entre os quais fui eu com outro mais, por nome Pascoal Lopes, para um sítio a que chamam o outeiro da Padeira, e aí havíamos de ficar de sentinela todo o dia. Mas eu fui fazê-la a Badajoz por quatro dias!

Assim como chegamos ao outeiro, depois de ter já tudo muito bem descoberto, mas não dali para diante, que ficava ainda um posto por descobrir, arriscado. Mas não se havia de descobrir senão depois da tropa [ou seja, a companhia] ter chegado à atalaia, e aí havia o tenente de mandar um soldado em um bom cavalo a descobrir a Cruz de Rui Gomes e os carrascais dela. De modo que já nós ambos estávamos em o outeiro, vendo a companhia que já vinha chegando para a atalaia. E neste mesmo tempo ia um soldado da cidade a cavalo pela estrada abaixo, com tenção de ir segar erva em os vales de Úbeda, que havia muita. E estavam ali umas grandes casas, que eram de uma quinta de um fidalgo, as quais casas se descobriam sempre quando ia o soldado da atalaia a descobrir os carrascais. E o tal soldado que vinha da cidade andou demasiado em não procurar primeiro se se havia já descoberto as casas, pois sabia muito bem que haviam de descobri-las [o termo “descobrir” é usado como sinónimo de procurar inimigos emboscados – ou seja, também em linguagem militar, “bater um local”]. Mas não quis ser tão atilado, senão assim como chegou logo as quis descobrir, para segar a erva a seu gosto. E no mesmo tempo em que o soldado ia chegando às casas, a essa hora havia a minha companhia chegado [à] atalaia, e eu e mais o soldado lá de onde estávamos bem víamos […] ir o soldado a descobrir as casas, antes logo reparámos, dizendo mal do soldado […] ir tão cedo à erva a posto arriscado como era aquele antes que se descobrisse.

Assim como o soldado se foi assomar às portas das casas, para ver dentro se havia castelhanos, quando lhe saem de dentro dez castelhanos em dez cavalos […]. Apenas eles saíram da casa sobre o soldado, logo eu donde estava e mais o companheiro os vimos e montámos a cavalo muito depressa, tocando arma [disparando um tiro de aviso] e escaramuçando no outeiro, para que a companhia visse que havia inimigo. Mas a atalaia onde a companhia estava também os viu logo e tocou arma. Assim como o soldado viu o inimigo das casas, pôs-se em fugida pela estrada adiante, correndo quanto podia o cavalo, que não fazia mal sua obrigação, mas não lhe valeram suas diligências, que o apanharam no decurso da carreira, que ainda correria 200 passos, e assim como o apanharam, viraram com ele para casa como uns raios, tomando a estrada de Badajoz adiante, que era por onde se havia de mandar descobrir da atalaia. E eu e mais o soldado que estava comigo logo fomos pelo outeiro abaixo à rédea solta para seguirmos a partida, que já vinha a minha companhia pela atalaia abaixo como um raio, que como não havia ninguém que lhe lembrasse que naquelas casas se havia metido o inimigo, era causa para nos mover para seguir a partida, vendo se lhe podíamos tomar o soldado, quanto menos fosse, que a tenção do meu tenente era segui-la até à ponte do Caia.

(MMR, pgs. 163-165) – CONTINUA NO PRÓXIMO ARTIGO

Imagem: Cena de combate de cavalaria, óleo de Philip Wouwerman, 1645-46, National Gallery of Art.

Ainda a emboscada na Atalaia da Terrinha em Março de 1646

Na série relativa à campanha de Telena, foi aqui apresentado o incidente que, de certo modo, serviu de prólogo à campanha: uma emboscada sofrida pela cavalaria portuguesa às ordens do comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde. a qual foi descrita, em pormenor, por Mateus Rodrigues nas suas memórias, e também referida pelo Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado. Contudo, tal como em outras partes da narrativa do soldado de cavalos, escrita oito anos depois deste particular incidente, há pequenos detalhes que apresentam alguma inexactidão.

No caso vertente, foi referido por Mateus Rodrigues que um seu camarada de armas, da companhia onde servia (a do próprio comissário geral), um tal Gaspar Rodrigues, soldado veterano de Elvas, fora morto a sangue frio pelos seus captores. Tal pode ter acontecido, de facto, mas o certo é que não aparece nenhuma indicação na breve nota manuscrita por D. João de Azevedo e Ataíde, que se encontra anexa a uma carta de Joane Mendes de Vasconcelos a propósito do incidente, e esta inclusa numa consulta do Conselho de Guerra. Do mesmo modo, Mateus Rodrigues parece ter inflacionado o número de cavalos levados pelo inimigo (60); segundo a nota de D. João de Ataíde, terão sido 21, ou seja, cerca de um terço do sugerido pelo seu subordinado. No entanto, em tudo o mais há consonância entre as várias fontes documentais, de origens diversas, que ao incidente se reportam.

Transcritos para português moderno, aqui ficam o texto da consulta, a decisão régia e a nota do comissário geral a propósito do desaire de Março de 1646 na Atalaia da Terrinha.

Na carta inclusa dá conta a Vossa Majestade Joane Mendes de Vasconcelos, mestre de campo general do Exército e Província de Alentejo, de como na madrugada de 20 deste mês teve aviso que haviam entrado alguns cavalos do inimigo nos nossos campos. E mandando sair com a cavalaria que se achava naquela praça, ao comissário geral Dom João de Ataíde, que chegou até à Terrinha, e ali deixou misturar com as suas tropas as do inimigo, que estavam de emboscada nas barrancas de Caia para a parte de Telena, onde perdemos os cavalos e soldados da memória que juntamente vai com a carta, examinada com todo o cuidado e diligência, e diz que a perda não é grande, mas é coisa muito considerável a falta de ânimo e disciplina com que obra a nossa cavalaria em algumas ocasiões, e estas, e maiores desordens haverá enquanto Vossa Majestade for servido que ela esteja no estado em que se acha de presente.

Ao Conselho pareceu dar conta a Vossa Majestade do que avisa o mestre de campo general acerca deste sucesso, para que seja presente a Vossa Majestade. Lembrando de novo a Vossa Majestade quanto convém a seu Real serviço não dilatar mais nomear generais da Cavalaria e Artilharia para o Exército de Alentejo, pelos inconvenientes que do conteúdo resulta.

Lisboa, 28 de Março de 1646.

[Resolução régia]

Nomeio para governador da cavalaria do exército de Alentejo a Dom Rodrigo de Castro, e para tenente-general dela a Dom João Mascarenhas [ilegível, tinta apagada devido à humidade – mas pode ser: e assim se dê] logo a cada um deles [ilegível, tinta apagada devido à humidade] lhe despachos com toda a brevidade. Lisboa, a 13 de Abril de 1646.

E vencerá Dom Rodrigo o mesmo soldo de general.

[Nota anexa de D. João de Ataíde]

Cavalos e soldados que faltaram na ocasião da Terrinha.

Da companhia do comissário geral faltaram soldados quatro.

Cavalos, entre mortos e que levaram o inimigo, sete.

Da companhia do capitão Gil Vaz, soldados dez.

Mais dez cavalos destes soldados, que ficaram desmontados.

Do regimento de Jaco[b] Nolano [irlandês].

Um cavalo.

Companhia de António de Saldanha.

Os que faltam dará rol à parte deste.

Quatro soldados cativos e trombeta, mais três cavalos de soldados que vieram desmontados.

Destes homens há sete feridos e nenhum morto [refere-se ao total de perdas].

Dom João de Ataíde

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1646, maço 6, consulta de 28 de Março de 1646.

Imagem: Couraça e capacete de cavalaria, séc. XVII. Museu Militar de Estocolmo. Fotografia de JPF.

A campanha do forte de Telena em 1646 – prólogo: a emboscada na Atalaia da Terrinha (Março de 1646)

A campanha de 1646, executada a partir da província do Alentejo, foi a última a ser levada a cabo em vida de D. João IV. Seria preciso esperar mais de 10 anos, e muito por força da iniciativa espanhola, para que a fronteira de guerra alentejana fosse, de novo, palco de grandes acções militares.

Dessa campanha de 1646 ficou célebre o assalto ao forte de Telena. Um episódio bélico frequentemente recordado no historial de cada indivíduo que nela participou, em especial entre os oficiais. Sempre que alguém era proposto para a ocupação de um posto ou cargo, invariavelmente apresentava na resenha da sua carreira o assalto ao forte de Telena. Do mesmo modo, em cartas patentes mais alongadas, o oficial promovido via ser mencionado esse acontecimento que, à época, foi considerado muito relevante. É do assalto ao forte de Telena que esta pequena série de artigos se ocupará. Mas, em jeito de prólogo, principiaremos por tomar conhecimento de um episódio corriqueiro da guerra de fronteira, igual a tantos outros e tantas vezes repetidos. Este, todavia, teria implicação na alteração do comando da cavalaria para campanha que se avizinhava.

A ideia de atacar o forte que os espanhóis tinham construído em Telena, localidade que os portugueses haviam atacado e queimado em 1643, surgira em finais de 1645. Francisco de Melo escrevera em Novembro desse ano ao Rei uma carta onde referia o episódio de Alcaraviça (já aqui tratado numa série de artigos, os principais dos quais da autoria do Sr. Santos Manoel), e nela dizia que depois deste encontro, veio o Castelhano ao seu lugar chamado Telena, légua e meia desta praça [de Elvas], que estava arrasado por nós, e nele fez um forte onde tem perto de 100 infantes e artilharia, e uma tropa de cavalos; depois deste feito, se retirou à nossa vista e nos derrubou uma atalaia nossa, depois dos defendentes, que eram só 12, pelejarem o que puderam e matarem alguns do inimigo, com esta facção se retirou, e nós agora queremos ir, e cuido que permitirá Deus nos paguemos em dobro. (Cartas dos Governadores da Província do Alentejo…, vol. II, pg. 103, carta de 22 de Novembro de 1645). Entre os objectivos da campanha de 1646 estaria, pois, o recém-construído forte de Telena.

Passou o Inverno, cujo rigor impedira a realização de muitas incursões predatórias. Em Março de 1646, quando se já se amanhavam as terras e os rios estavam capazes de ser vadeados, veio o inimigo armar emboscada à cavalaria que fazia a ronda habitual a partir da praça de Elvas. Conforme refere D. Luís de Meneses, à cavalaria que se alojava em Badajoz se uniram algumas companhias dos quartéis vizinhos, e juntos mil cavalos se emboscaram no rio Caia, na parte em que entra no Guadiana. Foi sentido o rumor das tropas das vigias que de noite ficavam sobre os portos dos rios; vieram com diligência dar parte a Joane Mendes [de Vasconcelos, governador das armas]. Logo que amanheceu, mandou sair o comissário geral da cavalaria D. João de Ataíde, com 400 cavalos que assistiam em Elvas. (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pg. 162).

A partir daqui, espreitemos as memórias de Mateus Rodrigues, o soldado da companhia de D. João de Ataíde que participou nessa operação.

(…) Naquele tempo estavam poucas tropas [portuguesas em Elvas], que estavam muitos em Vila Viçosa e em Estremoz dando verde aos cavalos, e não havia cabo nenhum da cavalaria na cidade mais que o comissário, que era Dom João de Ataíde, que na paz não há ninguém que tenha melhor voto para a disposição da guerra, mas lá na campanha, à vista do inimigo, era outra coisa. (…) Assim como o inimigo teve junta a sua cavalaria, se veio de Badajoz uma noite até à ponte do Caia onde estavam as duas sentinelas nossas. (…) [O inimigo formou] uma partida de 20 cavalos com um cabo e [o seu comandante] mandou que entrasse pela ponte e que se fosse emboscar dentro dos olivais de Elvas. (…) Assim que os nossos vigias da ponte sentiram passar os vinte cavalos, que logo os contaram, (…) metidos [os vigias] num bosque notável debaixo da ponte, (…) logo veio um deles dar aviso à cidade. (MMR, pgs. 125-126)

O objectivo da cavalaria espanhola era atrair a cavalaria da ronda portuguesa a uma emboscada. Dez outros cavaleiros deviam passar a ponte, prevendo (e bem) que outro vigia que por ali estivesse iria  rapidamente até Elvas dar o alarme. E foi isso precisamente que aconteceu. Já sem sentinelas portuguesas para dar conta da movimentação das tropas inimigas, passou o inimigo a ponte sem haver quem o sentisse, e marchou às vinhas da Terrinha, que ficam junto do Guadiana duas léguas de Badajoz, e como se viu nos barrancos, deixou-se estar ali com suas sentinelas à vista de toda a campanha, que se punham em cima de uns álamos mui altos que estão junto do Guadiana (…). (MMR, pg. 127)

Logo que Joane Mendes recebeu os avisos sobre a presença inimiga, mandou que D. João de Ataíde saísse com as tropas de cavalo, de forma a proteger à distância a companhia da ronda. Deviam ir até à Atalaia da Terrinha, naquela altura já destruída pelo inimigo, e se não houvesse nada de anormal, que regressassem a Elvas.

E assim como amanheceu saímos todos (…), e a companhia da ronda diante, fazendo o que era costume. E já estávamos todas as tropas em atalaia, que não eram mais de oito e mui pequenas, que não tinham mais de 200 cavalos, quando vem um batedor nosso, correndo, dizendo que uma partida do inimigo de 30 cavalos avançava aos batedores (…), mas que já já vinha pelo campo acima em retirada. (MMR, pg. 127) D. João de Ataíde mandou então o tenente Lopo de Sequeira, militar natural de Elvas com reputação de muito valente, que tomasse 40 cavaleiros escolhidos entre todas as companhias, e que com eles tentasse cortar a retirada à força inimiga; mas que a não seguisse por muito tempo, se visse que a não conseguia alcançar.

Assim fez Lopo de Sequeira, e em pouco tempo estabeleceu contacto visual com o inimigo. Impetuoso, o tenente lançou os seus homens na perseguição, mas a pequena força intrusa foi tomando o caminho das vinhas da Terrinha, onde o grosso da cavalaria espanhola estava emboscado. Segundo Mateus Rodrigues, os soldados começaram a recear que se tratasse de uma armadilha, mas não ousaram dizer nada ao tenente. Só o furriel-mor da cavalaria, Afonso Rodrigues Tourinho, outro grande soldado, conterrâneo e amigo do tenente, levantou a voz para advertir o oficial: “Homem, que fazes, estás doido? Não vês que o inimigo nos foge para onde não tem porto nem saída? Não está bem claro que aquela partida nos leva de fio à sua emboscada? Não sigamos tal partida, que nos perdemos!” (MMR, pg. 128) Mas era Lopo de Sequeira homem de pouco miolo, segundo a expressão de Mateus Rodrigues, e vendo o inimigo quase alcançado, não quis passar por fraco dando ordem de volver. E respondeu ao furriel-mor que não lhe desse conselhos e que seguisse a partida do inimigo.

O inevitável acabou por acontecer. Já perto das vinhas, os 30 cavaleiros inimigos suspendem a fuga e voltam-se para enfrentar os seus perseguidores. Esta manobra acicatou ainda mais Lopo de Sequeira, que se lançou desenfreadamente para a armadilha. Com efeito, ao mesmo tempo que a pequena força fazia volte-face, a restante cavalaria espanhola saía do seu esconderijo e atacava  os 40 portugueses. Para Mateus Rodrigues – um dos escolhidos para integrar o destacamento de Lopo de Sequeira – e seus camaradas, foi tempo de debandar:

(…) Não fizemos mais que volver cada qual podia correr mais pelo campo acima, para a atalaia onde estava Dom João de Ataíde com as tropas, mas como os nossos cavalos iam muito cansados e a campanha atolava muito, (…) assim como voltámos logo o inimigo nos foi apanhando pouco a pouco, que quando chegámos à atalaia onde estava a nossa gente  não vínhamos mais de treze homens dos 40; só algum que tinha cavalo forte e aturador, esse escapou. (MMR, pg. 129)

Mateus Rodrigues acusa o comissário geral de tudo ter visto a partir da posição segura onde estava, e nada ter feito para ajudar quando a emboscada do inimigo se revelou. Com ironia, escreveu que D. João de Ataíde fez então o que podia fazer, que foi deixar-se estar ao pé da atalaia para nos dar calor [isto é, para dar apoio]. E assim se esteve até que o inimigo averbou com ele. E assim como lhe deu uma carga, virou à rédea solta para Elvas, pois não tinha outro remédio. E dali à cidade é uma légua, que toda ela nos foi o inimigo seguindo bem até dentro dos olivais, tomando ainda alguns soldados. E à entrada dos olivais houve muita bulha, em razão que caiu o cavalo a Dom João numa azinhaga. E porque o inimigo o não cativa[sse], se fizeram ali cava uns poucos nossos, onde se assinalaram grandemente o mesmo Lopo de Sequeira, que havia escapado lá de baixo e já havia feito na retirada milagres. E ali os fez muito maiores o meu alferes, que então era um Tomé Gomes de Carvalho, que por estar em casa do mesmo Dom João e o ver no perigo, fez o que se esperava dele e trouxe uma cutilada pelas costas. E assim mais fez grandes coisas o meu furriel (…) Agostinho Ribeiro, que foi o assombro dos soldados, que não há dúvida que, se não foram estes homens e outros mais, que Dom João se [haveria de] ver em grande risco.

(…) Assim como ele estava já em seguro, se foram retirando todos os mais para a cidade, porquanto o inimigo vinha já com o grosso, chegando-se muito, e desta vez entraram pelos olivais dentro sobre nós, bem até o meio deles, que lá lhe matámos ainda um cavalo, contudo o inimigo se volveu levando-nos 60 cavalos, e mui bons, e bons soldados. Mataram ali então a um bizarro soldado da minha companhia, por nome Gaspar Rodrigues, natural de Elvas. E mais, mataram-no depois de rendido, a sangue -frio. De sorte que toda esta perda e aperto em que nos vimos foi causa o dito Lopo de Sequeira, por não admitir os conselhos de quem tanta experiência e mais que ele tinha. E não deixou de levar mui boas repreensões, assim de D. João de Ataíde como do governador. (MMR, pgs. 129-130)

O próprio D. João de Azevedo e Ataíde não escapou a uma apreciação negativa por parte de Joane Mendes de Vasconcelos, o que corrobora a crítica à indecisão e à incapacidade como comandante que o soldado Mateus Rodrigues lhe faz nas memórias. D. Luís de Meneses narra assim o sucedido: Empenhou-se com tão pouca cautela, (…) que deu tempo ao inimigo a sair da emboscada e a se avançar, de sorte que, quando D. João se quis retirar, foi preciso ser com tanta pressa, que se lhe deu nome menos decoroso. (…) Sentiu Joane Mendes tanto a pouca prudência de D. João de Ataíde, e o receio dos soldados, e pedindo remédio a El-Rei para atalhar este dano, resolveu El-Rei que se passasse patente de governador da cavalaria a D. Rodrigo de Castro, com o mesmo soldo de oitenta mil réis cada mês que levava o Monteiro-mor general dela [Francisco de Melo], que se havia desobrigado daquele posto a respeito da sua muita idade; e foi juntamente provido no posto de tenente-general da cavalaria D. João de Mascarenhas, hoje Conde de Sabugal, que tinha chegado de Castela por França, e servido em Flandres de capitão de cavalos [tinha participado na batalha de Rocroi, em 1643]. (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pgs. 162-163).

Mudava-se, assim, o comando da cavalaria do Alentejo, empalidecendo a reputação militar de D. João de Ataíde, que receberia a definitiva machadada no ano seguinte, precisamente no mesmo cenário da Atalaia da Terrinha. Mas nesse ano de 1646 ainda haveria muita peleja. Sobre a campanha e o assalto ao forte de Telena nos ocuparemos nas partes seguintes.

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (4ª parte)

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O desaire da Atalaia da Terrinha não foi diferente de muitos outros que ocorreram durante o conflito, fossem os vencidos do exército português ou do espanhol. Contudo, este sucedeu num período particularmente difícil para a cavalaria do exército do Alentejo. Martim Afonso de Melo, recém-nomeado governador das armas, tratou de afastar D. João de Azevedo e Ataíde do comando da cavalaria. O fidalgo foi preso e depois enviado a Lisboa para tratar de assuntos pessoais (uma forma airosa de não embaraçar ainda mais o comissário geral, que em 1641 levantara à sua custa a companhia de cavalos que comandava e fora dos primeiros combatentes na fronteira do Alentejo). Não escapou a um processo e consequente condenação, por causa do comportamento da cavalaria no combate da Atalaia da Terrinha. Como bom conhecedor das leis, D. João de Ataíde soube defender-se brilhantemente, interpondo recursos que resultaram na anulação da desonrosa sentença de perda do posto. Mateus Rodrigues refere que o seu comandante se retirou para os domínios que possuía em Coimbra, deixando definitivamente a fronteira do Alentejo e a carreira das armas. Mas uma carta de Martim Afonso de Melo ainda menciona uma operação levada a cabo por D. João de Ataíde em Junho de 1648, uma incursão ao outro lado da fronteira em represália pelo fracassado assalto espanhol a Olivença, durante o qual morreu o engenheiro João Pascácio Cosmander. Ter-se-á tratado de um breve regresso ao Alentejo para provar que vencera a argumentação legal e mantinha o posto, dele saindo só por sua vontade e com a honra intacta. Antes e depois desta ocasião, a companhia onde servia Mateus Rodrigues foi comandada interinamente pelo tenente Agostinho Ribeiro, sendo posteriormente entregue ao capitão Francisco Pacheco Mascarenhas.

Outros oficiais foram castigados em consequência do desastre militar na Atalaia da Terrinha. O capitão João da Silva de Sousa, que além de correr atrás do ajudante de D. João de Ataíde de espada na mão, insultou o comissário geral e o desafiou para um duelo (um crime muito grave), foi preso e condenado a degredo na província de Entre-Douro-e-Minho. Mas também este oficial soube mover influências, pelo que continuou a servir no Alentejo com a sua companhia. Outro capitão que foi preso, Luís Gomes de Figueiredo, acabaria de igual modo perdoado, tendo mesmo sido promovido a comissário geral. Poucos meses depois, em Setembro de 1647, seria mortalmente ferido num combate.

Em Outubro de 1647, a Atalaia da Terrinha foi palco da desforra portuguesa, com o general da cavalaria D. João de Mascarenhas (futuro Conde de Sabugal) a derrotar uma incursão do congénere espanhol recém-chegado à fronteira. Apenas mais um episódio, entre os muitos combates que se travaram nas proximidades da Atalaia durante a Guerra da Restauração.

Fonte: Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. I,  pgs. 149, 171, 195 e 288.

Imagem: Cavalaria inglesa do período da Guerra Civil entre Realistas e Parlamentários. A aparência e o equipamento eram muito semelhantes ao da cavalaria portuguesa e espanhola da época. Reconstituição histórica, Kelmarsh Hall Festival of History, 2007. Foto de Jorge P. de Freitas.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (3ª parte)

combate-de-cavalaria

Recebera D. João de Ataíde ordem de atacar a cavalaria inimiga, mas a progressão foi feita com tanto vagar que a força espanhola passou primeiro o ribeiro e ficou do lado oposto, à espera da reacção portuguesa. Conforme relatou o governador das armas Martim Afonso de Melo…

(…) como não o investimos antes de o passar, com quatro tropas [companhias] que o comissário tinha apartadas, depois foi com grande risco avançar com o inimigo passada a ribeira, o que fez o capitão António Jacques de Paiva e Lopo de Sequeira, tenente da companhia de António Saldanha [da Gama], que ficou na praça [de Elvas] mal disposto, e como estavam da outra banda carregaram todas as tropas do inimigo, que seriam oitocentos cavalos, sobre estas duas nossas, que não puderam aguentar o choque e voltando feriram alguns soldados e o mesmo capitão António Jacques de Paiva e o capitão de dragões [René] Grudé [francês] e o capitão Van Ingen [holandês], a quem levaram prisioneiro por se ir nas companhias que passaram a ribeira; o general da artilharia me fez queixa que os oficiais da cavalaria não fizeram o que ele lhe ordenara (…), e hei-de castigar com todo o rigor ao que achar culpado em não querer investir quando o mandaram, porque o certo é que anda mal acostumada esta nossa cavalaria, mas contudo o inimigo se retirou e largou o posto e nós ficámos nele até às cinco da tarde (…).

O que aconteceu entre a ordem de atacar e a sua tardia e incompleta execução (estando a cavalaria espanhola já formada no lado oposto do ribeiro) é narrado pelo soldado Mateus Rodrigues, que participou na acção:

Dom João (…) chamou um ajudante da cavalaria para levar as ordens do que haviam de fazer, e como este tal ajudante lhe não eram os capitães fidalgos muito afeiçoados, por haver sido criado do mesmo Dom João de Ataíde, (…) quando (…) levou as ordens aos capitães houve uma descomposição com ele, e um capitão de cavalos, por nome João da Silva [de Sousa] lhe disse mui más palavras, e correu após dele com a espada na mão para lhe dar, e o dito ajudante se veio mui queixoso (…) ter com Dom João do que lhe haviam feito. De modo que o mesmo Dom João levou as ordens  pessoalmente a todos os capitães e mandou a um capitão, por nome António Jacques de Paiva, com três companhias, que era a sua e a do tenente Lopo de Sequeira e a (…) companhia de Dom João, que era a minha, e o cabo [ou seja, comandante] que ia na minha [era] o alferes Agostinho Ribeiro, e (…) disse Dom João ao capitão António Jacques que fosse sua mercê com aquelas três companhias a pelejar com o inimigo, mas que não passasse o ribeiro além (…), que assim como chegasse [a] averbar com o inimigo ao pé do ribeiro, lhe desse uma carga de cravinas e pistolas, mas que logo voltasse na mesma hora para trás, dando as costas ao inimigo, e que era força que, vendo-o o inimigo fugir, o havia de carregar logo, e tanto que o inimigo passasse o ribeiro após eles, era força que se havia de descompor (…).

D. João de Ataíde foi então dar as ordens aos capitães, para que atacassem todos ao mesmo tempo logo que o inimigo passasse o ribeiro em perseguição das companhias (quatro, segundo Martim Afonso de Melo; três, na versão de Mateus Rodrigues). Mas, segundo escreve o soldado, o mesmo foi dar-lhe[s] esta ordem que dizer-lhes que fugissem.  António Jacques de Paiva, por seu lado, excedeu as ordens que recebera, pois passou o ribeiro com as companhias, e na desorganizada retirada veio [o inimigo] logo sobre os nossos como um raio, fazendo tudo numa poeira. Mas o que os nossos batalhões haviam de fazer em investir o inimigo, fizeram em fugir todos à rédea solta para [a] Atalaia, e são [sic] o mais infame que jamais se há visto. Tanto que o inimigo (…) viu nossa pouca vergonha, aproveita-se logo da ocasião, seguindo-nos como uns cães, e o pior de tudo que quem ficava nas piores eram as três companhias que havíamos ido a picá-lo, pois lhe ficávamos mais à mão. E assim a perda que houve foi delas, que lhe tomou o inimigo mais de 60 cavalos (…), matando-lhe 20 ou 30 homens.

O general da artilharia André de Albuquerque, que estava na Atalaia com a infantaria, mal viu a fuga precipitada da cavalaria portuguesa, mandou avançar os terços.

(…) o inimigo, assim como viu nossa infantaria, logo se retirou mui depressa, visto haver feito já o que podia fazer, e se retirou a Badajoz, donde teve aquele capitão [D. Alonso Cabrera], que foi causa daquilo, grandes louvores do seu governador; e na verdade os merecia tanto como os nossos mereciam o castigo.

Do lado português, o governador das armas Martim Afonso de Melo ficou furioso com o sucedido. Das consequências finais tratará o derradeiro capítulo desta série.

(continua)

Citações: Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. I,  pgs. 144-145; Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 176-178.

Imagem: Adam Frans van der Meulen, “Combate de cavalaria”, Kunsthistorisches Museum, Viena.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (2ª parte)

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Prossigamos a narrativa do sucedido na Atalaia da Terrinha com a versão “oficial”, o relatório do governador das armas Martim Afonso de Melo (vertido para português corrente). Conforme foi referido, tratou-se da primeira acção de importância após a chegada a Elvas, em 22 de Maio, daquele cabo de guerra.

Hoje, que foram 5 do corrente, das sete para as oito do dia, veio o inimigo com duas tropas grandes dando em uma nossa que estava de guarda, a qual se veio retirando até perto dos muros desta cidade; e dando-se-me aviso mandei montar a cavalaria e lhe ordenei que fosse tomar o posto que a nossa tropa de guarda ocupava; e porque poderia suceder que carregasse muita cavalaria do inimigo sobre a nossa, mandei marchar a infantaria também para que estivesse dentro nos olivais dando favor à nossa cavalaria, e tendo nós tomado o posto se me avisou que a cavalaria do inimigo se havia descoberto e que estava repartida, uma da ribeira para cá, e outra da outra parte; ordenei ao general da artilharia André de Albuquerque (por ser o cabo maior que está nesta fronteira) que fossem investir o inimigo, estando ainda dividido desta nossa parte da ribeira, e não estando a não passassem nem empenhassem a nossa cavalaria, e que mandassem marchar a infantaria de modo que não fosse vista do inimigo, e que pudesse ajudar-nos se fosse necessário; foi o general da artilharia e diz que achando ainda três tropas do inimigo desta nossa parte mandara ao comissário geral Dom João de Ataíde que com quatro nossas as investisse, e ele com o restante fora baixando da Atalaia da Terrinha, que era o posto que ocupávamos, o que vendo o inimigo passou o ribeiro (…)

É tempo de voltar ao testemunho do soldado Mateus Rodrigues, que pinta o quadro do lado da cavalaria espanhola (provavelmente reconstituindo a memória do sucedido a partir das conversas que tivera com soldados de ambos os lados – episódios como este eram contados e recontados ao longo dos anos, e as conversas entre soldados dos dois exércitos eram frequentes, pois tanto uns como outros se encontravam de vez em quando ora na situação de cativos, ora na de guarda de prisioneiros)

(…) de modo que o inimigo se veio encostando ao ribeiro da Veuda (…) e assim como ele se veio chegando para onde as nossas tropas estavam, mandou então André de Albuquerque ir as outras tropas que estavam detrás da Atalaia a incorporar-se com as outras que lá estavam. e uma ordem (…) mandou a Dom João de Ataíde que pelejasse com o inimigo, já que tinham tão boa ocasião, pois o inimigo fora desgraçado em vir naquela ocasião de ter ali a cavalaria das outras praças (…) [e] porque estava já averbado connosco [isto é, em contacto, ou a distância de fogo ou em escaramuça à espada] e não se podia já retirar sem pelejar, porque [senão] tinha a perdição certa. Mas um comissário que ali vinha de novo [ou seja, pela primeira vez] por cabo deles não queria pelejar, porquanto antevia a muita desigualdade que tinha, e como era a primeira vez que saía à campanha, não queria que logo lhe sucedesse uma desgraça. Mas vinha ali com eles um capitão de cavalos a que chamavam Dom Alonso Cabrera, natural de Badajoz, que foi o mais valente soldado que em os nossos tempos conhecemos ao inimigo, e assim como viu o seu comissário frio de pelejar e com determinação de se tornar a retirar e não pelejar, disse-lhe que no se havia de retirar que cuando no quisesse pelear que le dejase la ocasion por sua cuenta, que el se lo queria tomar a su cargo e que no tuviesse cuidado [Mateus Rodrigues mistura português e castelhano “aportuguesado” nesta parte].

E assim, com a confiança assente na experiência e bravura de D. Alonso Cabreira, o comissário geral espanhol decidiu pelejar. Do outro lado, D. João de Ataíde também recebera ordens de atacar…

(continua)

Citações: Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. I,  pg. 144; Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 175-176.

Imagem: O teatro de operações na região de Elvas; a Atalaia da Terrinha aparece destacada a verde. Nota: o norte encontra-se para a esquerda da imagem, o topo aponta a leste. Mapa de Nicolau de Langres, década de 1650. Biblioteca Nacional, Reservados, F2359.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (1ª parte)

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Os anos de 1646 e 1647 foram muito difíceis para a cavalaria portuguesa da província do Alentejo. Foi uma época de transição nos comandos, de mudança estratégica (as campanhas ofensivas do exército no Verão, que marcaram os anos de 1643 a 1646, foram suspensas a partir de 1647) e de reorganização administrativa (o Contrato com os capitães de cavalos entrou em vigor em Abril de 1647). No terreno, a supremacia da cavalaria espanhola sobre a portuguesa ficou exposta numa série de desaires para as armas lusas. Durante algum tempo, a cavalaria não teve general nem tenente-general a comandá-la no terreno. Esse papel coube a um comissário geral, o inepto D. João de Azevedo e Ataíde, a cuja companhia pertencia o soldado e memorialista Mateus Rodrigues. O combate da Atalaia da Terrinha, a cerca de uma légua (5 Km) de Elvas, marcou o fim da carreira militar do fidalgo. Os  ventos da Fortuna soprariam para longe na História, para o século seguinte, a fama imorredoira que o comissário sonhara para si, presenteando com ela um seu trineto, um tal Sebastião José de Carvalho e Melo…

Tudo começou com a chegada do novo governador das armas do Alentejo, o regressado Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço. Seria ele a recuperar a cavalaria do Alentejo, mas o começo não podia ter sido menos auspicioso. O governador das armas convocou todas as companhias de cavalos do exército para uma mostra na cidade de Elvas – existiam então 26 companhias, que alinhavam cerca de 1.000 efectivos. Estavam todas juntas na cidade quando tocou a rebate: havia cavalaria castelhana nos olivais das cercanias de Elvas! O general da artilharia André de Albuquerque Ribafria (que se distinguiria, anos depois, como brilhante general da cavalaria) mandou toda a cavalaria sair da cidade. Uma companhia foi adiante, para entrar em contacto com a força de reconhecimento inimiga, composta por 100 cavalos, e afastá-la das tropas que se formavam na encosta. Segundo recorda Mateus Rodrigues…

…assim como eles viram (…) a nossa cavalaria fora, foram (…) andando para a Atalaia da Terrinha; e a nossa cavalaria foi um vale abaixo, encoberta [para] que não a visse o inimigo, porque já se sabia muito bem que o inimigo tinha [montado] emboscada em Guadiana, que fica da nossa Atalaia um quarto de légua. (…) Desceram as tropas de Elvas abaixo à campanha, e as outras de Olivença e de Campo Maior deixaram-se ficar detrás da nossa Atalaia, que as não visse o inimigo. E já neste tempo o nosso general da artilharia André de Albuquerque estava na Atalaia com os três terços de Elvas, mas não via o inimigo nada. Assim como a sua [(dos espanhóis, entenda-se)] emboscada que estava em Guadiana viu (…) as tropas lá em baixo em o ribeiro da Veuda, saiu de Guadiana à rédea solta com 600 cavalos que lá tinha, não mais, e que em bem má hora vinha ele, se não houvera tanta desordem como houve ou, para melhor dizer, tanto medo e pouca vergonha entre todos [nós], que naqueles casos não se culpa mais senão tudo em geral, porque todos têm culpa. (Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 173-174)

(continua)

Imagem: “Combate de Cavalaria”, de Jan Martszen de Jonge, meados do séc. XVII.

O episódio da «Passagem de Alcaraviça», 1645 – 1ª parte; artigo do Sr. Santos Manoel

Do estimado amigo e investigador Sr. Santos Manoel recebi um muito interessante artigo, que aqui será publicado na íntegra, em duas partes. Agradeço a gentileza do Autor e a sua permissão para aqui partilhar o resultado da sua investigação com os caríssimos leitores.

O episódio da «Passagem de Alcaraviça»

Entre as batalhas de Montijo – em cuja discussão sobre se vitória ou derrota dos portugueses peço licença para não entrar, embora hoje pareça consensual que se tratou de uma das ‘derrotas mais vitoriosamente celebradas’ dos nossos exércitos – e de Montes Claros, o conflito entre portugueses e espanhóis por os primeiros terem reafirmado a sua independência, permaneceu em estado pouco mais que de tensão fronteiriça, interrompida por algumas entradas de parte a parte nos territórios alheios para causar algum dano pontual, colher alguma glória para soldados mais sedentos desse tipo de despojo ou mesmo para o roubo de algum mantimento, em falta crónica de ambos os lados. Esta memória procura resgatar um desses episódios de encontros entre forças opostas nas regiões fronteiriças, porventura um dos que os portugueses não saíram de cabeça erguida, mas que acabou por resultar numa iniciativa de reforço do treino militar, princípio básico da boa preparação dos exércitos.

O episódio foi citado como o ‘sucesso’ (no sentido de ‘acontecimento’, claro está), a ‘ocasião’, o ‘desastre’ da ‘passagem’ ou da ‘rota’ de Alcaraviça, e deu-se em data incerta entre 27 de Outubro e 2 de Novembro de 1645.

As crónicas

Na ‘História Geral de Portugal e Suas Conquistas’ de Damião A L Faria de Castro publicado um século e meio depois, o capítulo que narra este episódio começa com o título pouco prometedor de ‘Continuam os sucessos do Reino no ano de 1645′, como se de uma continuação enfadonha se tratasse, e imediatamente avança para um exórdio francamente desanimador, que não está muito longe do parágrafo com que comecei este texto, pelo menos para o ano em questão. Diz Faria e Castro que ‘Pouco dignos de narração dilatada são, na Província do Alentejo, os sucessos do ano que entro a escrever’. Vejamos.

D João não sabia o que fazer para atrair para o comando das forças do Alentejo uma mente capaz, à qual seria também bem-vindo juntar-se alguma sorte nas armas. O Cde. de Alegrete, relator coberto de glória da meia vitória portuguesa em Montijo, no meio de um ataque de orgulho ferido, tinha-se demitido quando no fim de 44 D João mandou Joane Mendes de Vasconcelos para o comando das forças em campo para libertar Elvas do sítio que lhe punha o Marquês de Torrecusa. Agora que (por razões que ficam para outra memória …) Joane Mendes se revelava uma escolha de difícil manutenção, D João voltava-se para o Cde. de Castelo Melhor. De notar que do lado espanhol as coisas não estavam diferentes. Incomodada pela pouca acção de Torrecusa, a liderança de Castela substituiu-o pelo Marquês de Legañes, com maiores forças e bem mais experimentadas nos campos do que é hoje o norte de Itália.

Dois novos comandos em ambos os lados da fronteira, só por si, fariam adivinhar novos combates quanto mais não fosse para experimentar mutuamente as têmperas e tácticas. Mas o que se segue nas discussões do Conselho de Estado e Guerra demonstra que D João poderia estar menos interessado em apoiar arroubos de bravura que em esperar para ver. Castelo Melhor tentara atacar Badajoz, mas teve tantos percalços no transporte da artilharia que se atrasou, expôs os movimentos e perdeu o elemento surpresa, abortando-se a operação. Castelo Melhor insistia numa acção ofensiva, e com Cosmander congeminou e apresentou no Conselho de Guerra a tomada do Forte de S. Cristóvão para melhor preparar um ataque a Badajoz. No entanto na corte as expectativas, provavelmente baseadas em informação que Castelo Melhor não tinha, viravam-se mais para a preparação de defesas. A presença de um exército experimentado na fronteira, simultaneamente com uma armada em Cádis assim o impunham.

O Conselho recusou o ataque ao forte de S. Cristóvão, próximo de Badajoz. E o Rei sai de Lisboa.

O receio do desencadear para breve do grande ataque conjunto por terra e mar era tal que D João chegou mesmo a nomear a 2 de Novembro de 45 a D Jorge Mascarenhas, Marquês de Montalvão, do Conselho de Estado e Guerra, seu Vedor da Fazenda e presidente do Conselho Ultramarino, como Mestre de Campo General «junto à pessoa d’el Rei», uma espécie de intendência da sua segurança privada, chefia da sua guarda pessoal.

Mas voltemos ao Alentejo, onde neste ambiente de perigo iminente está prestes a dar-se o caso de Alcaraviça.

É um grupo das forças de Legañes que entra pelo território português até próximo do que na altura se chamavam as Vendas de Alcaraviça, não a actual povoação de Alcaraviça, mais a Sul, mas o que é hoje a localidade da Orada, a Norte de Borba (curioso entretanto que nas duas descrições conhecidas e nos documentos da época não se faça nunca referência à ermida da Srª da Orada ou à povoação actualmente com esse nome). As Vendas de Alcaraviça ficavam à beira da estrada ancestral entre Elvas e Estremoz, a que vem por Vila Boim e passa pela Orada e S Lourenço de Mamporcão. A importância dessa via à época confirma-se por ser também a que Filipe III de Espanha fez quando veio visitar Portugal, perdendo na passagem da fronteira um ‘I’ que o seu filho voltou a encontrar. Em 23 de Março de 1619 o rei Filipe envia cartas ao presidente da câmara de Lisboa e ao Marquês de Alenquer descrevendo o seu trajecto a partir de Elvas, onde iria comer, onde iria dormir, quantas léguas a percorrer em cada troço, tudo como o seu pai tinha feito quando veio a Portugal em 1581: «… A comer – de Vila Boim às Vendas de Alcaraviça – duas léguas e meia; A dormir – destas Vendas a Estremoz – duas léguas e meia; …». As Vendas seriam de facto isso, locais de paragem para viajantes com venda de comida a meia jornada entre dois locais maiores capazes para dar dormida. Pelos vistos o lote de personagens ilustres que se refastelou com os cozinhados da Alcaraviça chegou a incluir pelo menos dois reis castelhanos. Pena é que também tenha assistido ao sacrifício de uns tantos bravos defensores do Reino.

A ‘História’ de Faria de Castro (Tomo 18, Livro 47, Cap. V, Ano de 1645) narra o episódio de forma breve como a maior das pequenas acções que Legañes executou durante o seu comando, narração quase que frustrada por um exército de 15000 homens não ter feito muito mais que tomar o forte da Ponte de Olivença e deitar abaixo alguns arcos da dita para cortar as comunicações da praça. Diz esse historiador que um Major (sic) João da Fonseca Barreto, tratado pejorativamente como ‘inconsiderado’, com 400 infantes encontrou-se com um corpo de tropas espanholas próximo à Venda de Alcaraviça. Ao invés de se fortificar e esperar socorro da cavalaria de D Rodrigo de Castro que supostamente o seguia, atacou, e foi destroçado.

Faria de Castro diz que o Rei sentiu essa ‘pequena desgraça’, mas foi compensado com um acto de bravura de 15 soldados e um alferes na Atalaia da Terrinha, que se defenderam contra 2000 infantes e 1000 cavaleiros de Castela, tendo-se perdido alguns e salvado outros após rendição.

No ‘Portugal Restaurado’, de 1751, a narrativa de Ericeira é ligeiramente mais desenvolvida. Os 15000 homens de Legañes eram em pormenor 12000 a pé e 3000 a cavalo, apoiados por dez peças de artilharia.

Fica aqui atestado que o episódio da Terrinha descrito em Faria de Castro, a ter os números por certos, contou então com nada menos que um sexto dos infantes! e a terça parte da cavalaria inimiga!, parcela essa a necessária para derrotar os tais 16 portugueses … As descrições dos cronistas fazem-nos concluir que Legañes, tendo dificuldades em combater pessoas, em alternativa virou-se para as estruturas, no caso os arcos da ponte de Olivença. Enfim, dados os devidos descontos, continuemos com Ericeira cuja descrição segue.

Foi a 25 de Outubro que o marquês espanhol saiu com os seus 15000 de Badajoz e chegou à vista da ponte da Ajuda, onde após dois dias de bombardeio, tomou o forte de Stº António e o pequeno castelo da ponte, e minou-lhe os arcos. Castelo Melhor resolveu mandar socorros a Olivença uma vez que pensava que Legañes a queria sitiar. No entanto desde que este se instalara na zona da ponte que toda a região ficava sob perigo de emboscadas. O terreno ondulado permitia que corpos de tropas de dimensão considerável se movimentassem e posicionassem nos fundos dos vales sem serem detectados, o que tornava muito arriscada a jornada de cerca de seis léguas entre Estremoz e Elvas pela tal estrada de visitas reais. A táctica recomendada para lidar com estas condições de terreno seria mandar batedores pelos cabeços a verificar a presença de tropas inimigas, avaliá-las e por conseguinte garantir a segurança do trajecto, fosse ou não dar-se-lhes combate.

Um corpo de 400 infantes (soldados a pé) da Comarca de Évora chefiados pelo Sargento-mor (sic) João da Fonseca Barreto sai de Estremoz e avista próximo à Venda da Alcaraviça 600 castelhanos a cavalo que tinham saído da ponte na noite anterior com a intenção precisa de praticar acções de emboscada na dita estrada, que sabiam crucial para comunicações entre as duas maiores praças da fronteira e para o abastecimento de Elvas.

Fonseca Barreto ou seria um soldado pouco experimentado e pusilânime, como insinua Ericeira, ou apenas alguém que num dia de pouca inspiração e mau conselho toma uma decisão errada. Ao invés de ocupar uma tapada de parapeito alto, uma das muitas que há na zona, e guarnecê-la, parece ter dado ordem de ataque ou de receber a carga em campo aberto. Fica para o segredo da história se foi como insinua Ericeira ou se Barreto terá sido por sua vez surpreendido e atacado tão rapidamente que nem teve tempo de se refugiar. O resultado foi uma carnificina em que pereceram quase todos os soldados de infantaria da Comarca que o acompanhavam. Ericeira também refere que ‘se’ ao menos Fonseca Barreto se fortificasse, e ‘se’ tivesse conseguido mandar mensageiros a D Rodrigo que vinha de Elvas para Vila Viçosa com 700 cavalos, ao que eu junto ‘se’ Barreto estivesse informado dessa deslocação, ‘se’ o mensageiro conseguisse vencer as duas léguas até encontrar D Rodrigo num ponto qualquer entre Elvas e Vila Viçosa que teria obviamente de adivinhar qual seria, ‘se’ D Rodrigo saísse imediatamente e conseguisse chegar a tempo, entre outros ‘ses’ (junte também o seu: agora, como na época em que Ericeira escreveu, pouca diferença faz).

Terá tudo isso ficado por aí? ‘Enterrar os mortos e cuidar dos vivos’, como sempre que se pôde se fez, bem antes de Pombal o ter glosado? Deixando os relatos históricos e passando aos documentos, alguns Decretos do Conselho da Guerra indicam que não. D João não deixou passar o evento em branco, e os textos adiante permitem esclarecer alguns pontos, revelar alguns detalhes relevantes e medir a justa importância do episódio considerado o mais relevante no quadro geral das operações do Outono desse ano.

(continua)

Imagens: Em cima, Orada (a antiga Venda de Alcaraviça) na actualidade. Fotografia extraída do programa Google Earth. Em baixo, reconstituição de um combate envolvendo tropas de infantaria, Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. de Freitas.