Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (2ª parte)

As fontes narrativas de que dispomos para o estudo da batalha de Montes Claros são as seguintes:

– D’ABLANCOURT, Frémont (1701), Mémoires De Monsieur D’Ablancourt Envoyé de la Magesté Trés-Chrétienne Louis XIV, en Portugal; Contenant L’Histoire de Portugal, Depuis le Traité des Pyrenées de 1659, jusqu’à 1668, Amsterdam, J. Louis De Lorme.

– ERICEIRA, Conde de (1946), História de Portugal Restaurado, edição anotada e prefaciada por António Álvaro da Silva Dória, Porto, Livraria Civilização, vol. IV.

Relacion verdadera, y pontval, de la gloriosissima victoria que en la famosa batalla de Montes Claros alcançò el Exercito delRey de Portugal, de qve es Capitan General Don Antonio Luis de Meneses Marquez de Marialua, Conde de Cantañede, contra el Exercito delRey de Castilla, de qve era Capitan General el Marquez de Caracena, El dia diez y siete de Iunio de 1665. Con la admirable defensa de la plaça de Villa Viciosa, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliuera, 1665.

A estas, que definiria como principais, poderia juntar ainda duas outras:

– “A Relation of the last summers Campagne in the Kingdome of Portugall, 1665”, anonymous (by an officer of an English Regiment of Horse), 23 June 1665, The National Archives, London, State Papers Portugal, SP 89/7

– DUMOURIEZ, Charles François (1807), Campagnes du Maréchal de Schomberg en Portugal, depuis l’année 1662 jusqu’en 1668, Londres, De l’Imprimerie de Cox, Fils, et Baylis.

Estas são muito diferentes entre si. A obra de Dumouriez (que não é memorialista nem historiador, mas aventureiro e militar de carreira – um dos generais vencedores da batalha de Valmy em 1792, caído em desgraça perante a Convenção e que passou a servir os ingleses) navega muito à vista de D’Ablancourt e do Conde de Ericeira, não podendo por isso ser considerada fonte primária. Já a relação anónima de um oficial inglês de cavalaria é um manuscrito que traduzi para português num artigo publicado em 2009 (Lusíada, série II, nº 5/6, pgs. 341-355). Devido ao relato muito marcado pelo “nevoeiro de guerra” e ao discurso fortemente laudatório da participação inglesa na batalha, não é uma fonte que possibilite uma percepção geral dos acontecimentos, embora seja muito interessante como memória particular.

Voltando às fotografias publicadas no anterior artigo, comecemos pela primeira, em que se traçou a rota do exército português até ao campo onde se travou a batalha, e se indicou a rota que o mesmo deveria seguir até Vila Viçosa, não fora a chegada do exército espanhol. O Conde de Ericeira refere o seguinte:

(…) se assentou que o exército se pusesse em marcha  quarta-feira dezassete de Junho, com ordem que se tomasse o primeiro alojamento no sítio de Montes Claros, uma légua distante de Estremoz, outra de Vila Viçosa, considerando-se que nele se apartavam dois caminhos que iam demandar: o da mão direita, à serra de Lavra de Noite; o da mão esquerda, o outeiro da Mina, porque, com esta resolução, obrigávamos aos castelhanos, confusos na perplexidade do nosso intento, a dividirem o exército em defesa dos dois fortes que haviam fabricado. E para que a nossa marcha ficasse menos perigosa, na mesma noite de quarta-feira havia de ocupar um troço do exército a serra da Vigaira, que ficava eminente ao outeiro da Mina, e conseguido este intento, ganhar-se na mesma noite a serra de Barradas, distante da Vigaira um tiro de pistola, porque, ocupados estes dois postos, não parecia dificultoso socorrer a praça (…).

O dia antecedente havia dado ordem o Conde de Schomberg ao comissário geral Bartolomeu de Barros [Caminha], que aquela noite saísse com seis batalhões [unidades tácticas de cavalaria] e ocupasse a serra da Vigaira e outras quaisquer eminências mais vizinhas ao exército que lhe fosse possível, e prontamente fosse mandando avisos de todos os movimentos que observasse; porém, a ordem se distribuiu tão confusamente, que Bartolomeu de Barros não saiu de Estremoz senão ao amanhecer do mesmo dia da batalha (…)

Neste tempo marchava, avançado do exército, o comissário geral Bartolomeu de Barros, levando os seis batalhões (…), pretendendo observar os movimentos dos castelhanos de algumas das eminências superiores àquela campanha, sem reparar que haviam ocupado o alto da serra da Vigaira as companhias da guarda do Marquês de Caracena. (Ericeira, 1946, IV, pgs. 288-291)

O comissário geral recebeu então ordem do Conde de S. João para que fizesse alto, e não se expusesse demasiado ao perigo. No entanto, a narrativa do Conde da Ericeira parece estar depurada, no que toca a este episódio, de uma eventual responsabilidade do general da cavalaria Dinis de Melo de Castro. Segundo D’Ablancourt, teria sido o general o responsável por enviar apenas 30 cavaleiros em reconhecimento à serra da Vigaira, tendo estes recuado quando viram a eminência ocupada pelo Marquês de Caracena. O Conde de Schomberg repreendeu Dinis de Melo pelo facto de não ter cumprido as ordens escritas, pois devia ter enviado os seis batalhões de cavalaria na noite anterior, o que não fez (D’Ablancourt, 1701, pg. 239).

Onde ambas as fontes coincidem é no facto de o terreno onde se desenrolou a batalha ser aquele que se estende pela planície irregular, com pequenas elevações, vinhedos e zonas de vegetação densa, em frente da serra da Vigaira.

Chegado o Conde de Schomberg à eminência que ocupava o Conde de S. João e o general da artilharia [D. Luís de Meneses], observaram que os batalhões da cavalaria inimiga sucessivamente vinham saindo à campanha, havendo estado cobertos com a serra da Vigaira. (Ericeira, 1946, IV, pg. 293)

Neste tempo vimos aparecer dez esquadrões castelhanos [D’Ablancourt utiliza o termo “esquadrão” para a unidade táctica da cavalaria, que ao tempo, entre portugueses e espanhóis, era designada por batalhão], que saíam por um vale que vinha por detrás da montanha de Montes Claros [a serra da Vigaira]; dez outros seguiam-se e em pouco tempo vimos duas linhas formadas que preenchiam toda a frente do vale, que iam aumentando do lado dos portugueses, cada linha tinha 22 esquadrões e estava distante da direita dos portugueses um tiro de canhão. (D’Ablancourt, 1701, pgs. 239-240; tradução minha)

Note-se que quando o exército espanhol iniciou o seu desdobramento, o exército português ainda estava formado em duas linhas, em marcha de costado, e com a vanguarda na direcção de Vila Viçosa, seguindo a rota que pretendia tomar para aquela localidade.

Para as fotos que a seguir são apresentadas, tome-se como referência a fotografia de satélite publicada no artigo anterior.

Foto A – Local onde se ergue o padrão comemorativo da batalha, um pouco à frente da primeira linha do exército espanhol, sobre o lado direito (onde estava disposta a infantaria).

V(A) Montes Claros MemorialFoto B1 – Vista a partir de um local adiantado ao flanco direito do dispositivo espanhol; tal como em 1665, toda a zona se encontra preenchida por vinhas.

V(B) Spanish rightFoto B2 – Do mesmo local, mas olhando para a serra da Vigaira, que em 1665 provavelmente não apresentaria vegetação tão densa como a que hoje a cobre.

V(B) Vigaira on the background

Exemplo de uma carta patente: o caso do capitão Bartolomeu de Barros Caminha

Uma carta patente era um documento passado pelo monarca, através do qual se empossava um oficial de patente igual ou superior a capitão no respectivo posto. Muitas cartas patentes incluíam um resumo da carreira do oficial e das acções em que estivera envolvido, pelo que constituem fontes importantes para o estudo da História Militar e também das Mentalidades do período.

O exemplo que aqui se traz é o de uma dessas cartas patentes, respeitante ao capitão de cavalos Bartolomeu de Barros Caminha, datada de 1659. Como é usual nestes casos, verteu-se o conteúdo para português actual.

Dom Afonso, por graça de Deus Rei de Portugal etc. Faço saber aos que esta minha carta patente virem que, tendo consideração aos merecimentos e mais partes que concorrem na pessoa de Bartolomeu de Barros Caminha, e aos serviços que me tem feito há mais de seis anos a esta parte na província do Minho e exército do Alentejo, achando-se naquela em todas as ocasiões que em seu tempo se ofereceram, e particularmente na do forte de Santiago, saque e incêndio dos lugares de Santo Adrião, Leirado, Taboeira, Forteiros, Linhares, Porto Pedroso, e outros, no encontro que houve com a infantaria e cavalaria do inimigo na campanha de Salvaterra da Galiza, sempre com dois criados à sua custa; e pelo conseguinte no Exército de Alentejo, onde se achou no rendimento do castelo de Oliva, sendo um dos primeiros que entraram no lugar; choque e derrota que se deu à cavalaria de Castela no termo de Arronches, onde foi ferido de uma bala na perna esquerda, havendo sido prisioneiro no encontro que houve a Campo Maior, e ultimamente se achar na campanha de Olivença o ano de seiscentos cinquenta e sete, procedendo em todas as ocasiões com assinalado valor. E por entender dele que em tudo o que o encarregar corresponderá inteiramente à confiança que faço de sua pessoa, por todos estes respeitos hei por bem, e me apraz de o nomear (como por esta carta o nomeio) por capitão da companhia de cavalos arcabuzeiros que no exército do Alentejo vagou por falecimento de Dom António de Ataíde, o qual posto exercitará enquanto eu houver por bem, e com ele haverá de soldo por mês trinta e dois mil réis, pagos na conformidade de minhas ordens, e todas as preeminências, liberdades, graças, isenções e franquezas que pertencem aos mais capitães de cavalos de meus exércitos; e por haver de entrar neste posto, supro ao dito Bartolomeu de Barros todo o tempo que lhe faltar para satisfação do capítulo quinze do regimento das Fronteiras; pelo que ordeno ao governador das armas da província e exército de Alentejo, e general da cavalaria dele, lhe mandem dar a posse desta companhia, e aos mais oficiais e soldados dela obedeçam e guardem suas ordens tão pronta e inteiramente como devem e são obrigados; e antes da posse, jurará na forma costumada de não faltar às qualidades deste posto, o soldo do qual se lhe assentará nos livros da Vedoria e Contadoria Geral daquele exército, para lhe ser pago a seus tempos divididos. Por firmeza do que lhe mandei passar esta carta por mim assinada, e selada com o selo grande de minhas armas. Dada na cidade de Lisboa aos vinte e um dias do mês de Julho. João de Matos a fez. Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil seiscentos cinquenta e nove. Francisco Pereira da Cunha a fez escrever.

(Assinaturas: Rainha; O Conde do Prado; Pedro César de Meneses)

Acrescente-se, como mera nota de curiosidade a respeito deste oficial, que Bartolomeu de Barros Caminha seria em 1661 condenado a degredo para a província de Entre Douro e Minho, por causa de um crime praticado em Campo Maior. No entanto, viu ser-lhe comutada a pena e consequente perda da companhia de cavalos que a patente acima transcrita lhe conferia, com a condição de continuar a servir no Alentejo durante um ano sem receber soldo e ficando proibido de entrar em Campo Maior.

Fonte: “Documentos relativos à Restauração de Portugal” existentes no Arquivo Histórico Militar”, in Boletim do Arquivo Histórico Militar, 10º Vol., Vila Nova de Famalicão, s. n., 1940, pgs. 74-75.

Imagem: Cavaleiros franceses e um alferes de infantaria fazem uma pausa junto a uma tenda de vivandeiros. Pintura da década de 40 do séc. XVII.