Efectivos da província da Beira, partido de Penamacor, em 1648

Em Setembro de 1648, a propósito da insuficiência de dinheiro para pagamento de todas as forças da província da Beira, o governador das armas do partido de Penamacor (distrito militar – por vezes também referido como partido de Castelo Branco), D. Sancho Manuel de Vilhena, enviou ao Conselho de Guerra uma lista exaustiva dos efectivos de que dispunha. Através desse rol ficamos a conhecer o detalhe das unidades que serviam então no partido de Penamacor.

PRIMEIRA PLANA DA CORTE [mais do que um Estado Maior, era uma lista que abrangia todos os oficiais que tinham o privilégio de receberem em primeiro lugar a mesada destinada à província, mesmo que o que sobrasse não fosse suficiente para pagar aos restantes oficiais e praças das unidades; incluía oficiais sem unidade, mas com patente e privilégio passado por decreto régio, capitães-mores de algumas localidades do partido (mesmo de zonas afastadas da fronteira de guerra), “oficiais de pena”, ou seja, não combatentes, amanuenses, cirurgiões e outros]:

1 governador das armas; 1 tenente de mestre de campo general; 1 ajudante de tenente de mestre de campo general; 1 vedor geral; 1 pagador geral; 2 oficiais da Vedoria e da Contadoria Geral do exército; 1 guarda-livros da Vedoria e Contadoria Geral do exército; 1 ajudante do pagador geral; o mestre de campo Manuel Lopes Brandão; o capitão-mor da cidade de Coimbra; o capitão-mor da praça de Salvaterra [do Extremo]; 1 auditor geral; 1 administrador; 1 físico-mor [equivalente ao médico dos nossos dias]; 1 cirurgião-mor; 2 almoxarifes das armas e abastecimentos da praça de Penamacor; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Idanha a Nova; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Salvaterra [do Extremo]; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Segura;1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Rosmaninhal; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Zebreira; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Proença a Velha; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Monsanto; 1 almoxarife das armas e abastecimentos da praça de Penha Garcia; e uma praça morta [pensão por invalidez] que se paga por alvará régio a Francisco Sanchez Bueço. TOTAL: 26 elementos.

INFANTARIA

Terço do mestre de campo João Fialho

Primeira plana do terço: 1 mestre de campo, 1 sargento-mor, 2 ajudantes do número, 2 ajudantes supranumerários, 1 capitão de campanha [oficial de justiça], 1 furriel mor, 1 tambor mor. TOTAL: 9 elementos.

Companhia do mestre de campo: 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 1 capitão reformado, 3 alferes reformados, 1 sargento reformado [estes oficiais e sargentos reformados serviam como praças, recebendo um soldo inferior ao que correspondia à sua patente se estivessem providos nos respectivos postos; logo que vagassem postos numa companhia, poderiam vir a ocupá-los, tornando a receber o soldo correspondente à patente], 4 cabos de esquadra, 74 soldados. TOTAL: 89 elementos.

Companhia do capitão Paulo Craveiro: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 75 soldados. TOTAL: 87 elementos.

Companhia do capitão Simão da Costa Feio: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 46 soldados. TOTAL: 58 elementos.

Companhia do capitão Simão de Oliveira da Gama: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 67 soldados. TOTAL: 79 elementos.

Companhia do capitão Jorge Fagão: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 54 soldados. TOTAL: 66 elementos.

Companhia do capitão Mateus Álvares: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 45 soldados. TOTAL: 57 elementos.

Companhia do capitão Manuel de Brito: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 50 soldados. TOTAL: 62 elementos.

Companhia do capitão Diogo Freire: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 45 soldados. TOTAL: 57 elementos.

Companhia do capitão José de Oliveira: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 46 soldados. TOTAL: 58 elementos.

Companhia do capitão Manuel Correia: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 51 soldados. TOTAL: 63 elementos.

Companhia do capitão Fernão Monteiro: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 44 soldados. TOTAL: 56 elementos.

Companhia do capitão Domingos da Silveira: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 52 soldados. TOTAL: 64 elementos.

Companhia do capitão Simão Feitor: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 2 tambores, 4 cabos de esquadra, 70 soldados. TOTAL: 82 elementos.

Efectivo total do terço do mestre de campo João Fialho: 887 homens (111 oficiais, sargentos e outros, fazendo parte da primeira plana do terço e das primeiras planas de cada companhia; 776 cabos de esquadra e soldados), em 13 companhias.

Companhias soltas de auxiliares (assistindo nas diversas praças da fronteira)

Companhia do capitão Manuel de Araújo: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 44 soldados. TOTAL: 55 elementos.

Companhia do capitão António Estaço da Costa: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 55 soldados. TOTAL: 66 elementos.

Companhia do capitão João de Elvas: 1 capitão, 1 pajem, 1 alferes, 1 abandeirado, 1 sargento do número, 1 sargento supranumerário, 1 tambor, 4 cabos de esquadra, 56 soldados. TOTAL: 67 elementos.

Os oficiais e soldados das duas primeiras companhias, apesar de serem de auxiliares, recebiam o mesmo soldo que os seus congéneres do exército pago, o que constituía uma excepção; a companhia do capitão João de Elvas recebia apenas pão de munição por conta da fazenda real, como estava regulamentado para os auxiliares.

Efectivo total das três companhias auxiliares: 188 homens (21 oficiais e outros; 167 cabos de esquadra e soldados).

CAVALARIA

Por não haver na altura comissário geral da cavalaria naquele partido, toda a cavalaria (constituída inteiramente por arcabuzeiros a cavalo) era governada pelo capitão Gaspar de Távora e Brito. Existia, todavia, uma primeira plana da cavalaria.

Cavalaria paga

Primeira plana da cavalaria: 1 ajudante; 1 capelão mor. TOTAL: 2 elementos.

Companhia do capitão Gaspar de Távora e Brito: 1 capitão, 1 pajem, 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 47 soldados. Total: 59 elementos.

Companhia do capitão Manuel Furtado de Mesquita: 1 capitão, 1 pajem, 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 66 soldados. Total: 88 elementos.

Companhia que foi do comissário geral, governada pelo tenente João Colmar: 1 tenente, 1 alferes, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 52 soldados. Total: 62 elementos.

Efectivo total das três companhias de cavalaria paga: 200 homens (23 oficiais e outros; 177 cabos de esquadra e soldados).

Cavalaria da ordenança

Companhia do capitão João Cordeiro: 1 capitão, 1 tenente, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 85 soldados. Total: 95 elementos.

Companhia do capitão Henrique Leitão Rodrigues: 1 capitão, 1 tenente, 1 furriel, 1 capelão, 2 trombetas, 4 cabos de esquadra, 41 soldados. Total: 51 elementos.

Estas companhias recebiam apenas pão de munição e o centeio para o animais, por conta da fazenda real.

Efectivo total das duas companhias de cavalaria da ordenança: 146 homens (12 oficiais e outros; 134 cabos de esquadra e soldados).

O partido de Penamacor contava com 31 “Vigias do Largo” (montados, pois vêm referidos na parte correspondente à cavalaria), destinados dar o alerta de quaisquer entradas que o inimigo fizesse, os quais recebiam 160 réis por dia. Os cavalos deviam ser dos próprios e não recebiam qualquer provimento de cevada ou centeio para os animais nem pão de munição, pois nada consta a este respeito na minuciosa lista mandada elaborar por D. Sancho Manuel.

ARTILHARIA

Plana dos oficiais da artilharia: 1 capitão da artilharia, 1 gentil homem da artilharia, 2 condestáveis da artilharia, 10 artilheiros. Total: 14 elementos.

Como nota adicional, acrescente-se que a lista incluía nas despesas os gastos com 40 prisioneiros castelhanos, que recebiam cada mês um total de 1.200 pães de munição de um arrátel cada, as quantias com despesas secretas (destinadas a espionagem) e correios, e com 22 cavalos desmontados (provavelmente em adestramento para servirem nas companhias), os quais recebiam rações de centeio.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1648, mao 8-B, “Rellação da Gente de guerra, Infantaria, Caualaria e Artilharia, que assiste nesta Prouincia da Beira em o Partido das tres Comarcas Castelo Branco Viseu e Coimbra de que he Gouernador das Armaz D. Sancho Manuel…”, anexa à consulta de 11 de Dezembro de 1648.

Imagem: “Soldados numa aldeia” (1644), pintura de Joost Cornelisz (1586-1666).

O mestre de campo João Fialho

A propósito do mestre de campo João Fialho, acima referido como comandante do terço pago do partido de Penamacor, o leitor JCPort deixou aqui há algumas semanas comentários interessantes sobre aquele seu antepassado, que passo a reproduzir, agradecendo mais uma vez a sua colaboração:

João Fialho, natural de Alenquer, Vila Verde dos Francos, era Fidalgo da Casa Real por serviços prestados na sua acção durante a Guerra da Restauração, no comando de um terço de infantaria na zona fronteiriça do Alentejo [e principalmente na Beira, como é patente].

Conforme biografia incluída nos Livros de RGM – Ordens, nºs 2,7 e 10, na atribuição de duas Comendas na Ordem de Cristo entre 26-06-1644 e 15-02-1669 (S. Miguel do Outeiro e St.a Maria de Almendra), refere-se, na atribuição da Comenda de Sta. Maria de Almendra, que fora Mestre de Campo e Governador de Armas da Província da Beira no impedimento do proprietário [provavelmente por um breve período, como interino, pois não consta nas listas oficiais].

João Fialho teve um filho natural de nome Luís Fialho, que se destacou, como o pai, na defesa fronteiriça do Alentejo, e uma irmã Mariana, que casou com um João Correia (Felgueiras Gayo, título “Salinas”). Desconhece-se se eram filhos da mesma progenitora.

Companhias “soltas” de infantaria no exército da província do Alentejo em 1664

À margem dos terços de infantaria, existiam também algumas companhias pagas independentes (“soltas”, como se dizia na época), sobretudo na guarnição de localidades de menor importância. Todavia, a sua manutenção e capacidade operacional eram facilitadas com a integração num terço, de modo que as companhias soltas tinham normalmente uma duração limitada enquanto unidades independentes. Ou eram dissolvidas ao fim de algum tempo, ou passavam a fazer parte de um terço.

Um dos vários casos documentados respeita ao exército do Alentejo, no ano de 1664. Um decreto de 9 de Novembro desse ano ordenava que o Conselho de Guerra desse o seu parecer sobre o terço que, segundo o mestre de campo general do exército do Alentejo Gil Vaz Lobo, seria necessário formar com as companhias soltas de infantaria daquela província. O mestre de campo general afirmava que as companhias se poderiam conservar melhor desse modo, e solicitava que o comando do terço fosse atribuído ao mestre de campo António Tavares de Pina. O Conselho de Guerra pediu então informações mais detalhadas sobre as companhias e as praças onde se encontravam.

Em resposta, Gil Vaz Lobo escreveu de Estremoz uma carta, em 22 de Dezembro. Nela referia que, das 15 companhias (deveriam ser 16, mas uma ainda não estava formada), o Rei deveria mandar formar um terço a 12 companhias, agregando-se as 3 de Monsaraz ao terço da guarnição de Mourão. Em anexo à sua carta enviou uma relação detalhada, intitulada “Rellação das Companhias de infantaria soltas que ha na Provincia de Alentejo, e da gente com que se achão”. É com base nessa relação que a seguir se apresenta a situação das companhias de infantaria:

– 5 companhias da guarnição do Crato, que se encontravam nessa altura a guarnecer Valência de Alcântara: 20 oficiais e 240 soldados, dos quais 29 se encontravam doentes.

– 1 companhia que se levantou no Crato, para a guarnição de Montalvão: 4 oficiais, 50 soldados.

– 2 companhias da guarnição de Avis que assistem em Monforte: 8 oficiais, 40 soldados. Deveria haver uma terceira companhia da mesma guarnição, mas ainda não estava formada.

– 1 companhia da guarnição de Alter do Chão: 2 oficiais, 30 soldados.

– 1 companhia da guarnição de Fronteira, assistindo em Monforte: 3 oficiais, 28 soldados.

– 3 companhias da guarnição de Monforte: 9 oficiais, 34 soldados.

– 1 companhia da guarnição de Alegrete: 4 oficiais, 36 soldados.

– 1 companhia da guarnição de Marvão: 4 oficiais, 30 soldados.

– 3 companhias da guarnição de Monsaraz: 17 oficiais, 108 soldados.

Totais: 71 oficiais, 567 soldados, dos quais 29 se encontravam doentes.

Note-se que o conceito de “oficial” abrangia os postos de capitão, alferes e sargento. A praça de Valência de Alcântara, onde se encontravam os soldados doentes, tinha sido conquistada em 1664.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1664, maço 24-A.

Imagem: Valência de Alcântara. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Cavalaria do exército do Alentejo em Junho de 1644

Joseph Parrocel

Cerca de um mês após o fraco desempenho da cavalaria do exército da província do Alentejo na batalha de Montijo, era este o efectivo das companhias portuguesas, segundo a mostra de 29 de Junho de 1644:

Companhia do general da cavalaria (Francisco de Melo, monteiro-mor do Reino): soldados montados – 82; apeados – 13; carabinas – 82; pistolas – 110; peitos – 65; espaldares – 63; murriões – 35.

Cª do tenente-general (D. Rodrigo de Castro, ausente por doença): soldados montados – 64; apeados – 0; carabinas – 46; pistolas – 57; peitos – 40; espaldares – 40; murriões – 38.

Cª do comissário-geral (Gaspar Pinto Pestana, exonerado e preso por ordem régia após a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 56; apeados – 14; carabinas – 38; pistolas – 54; peitos – 43; espaldares – 43; murriões – 40.

Cª do capitão D. António Álvares da Cunha: soldados montados – 76; apeados – 0; carabinas – 67; pistolas – 94; peitos – 96; espaldares – 96.

Cª do capitão Fernão Pereira de Castro (prisioneiro em Espanha desde a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 64; apeados – 2; carabinas – 51; pistolas – 61; peitos – 51; espaldares – 51.

Cª do capitão D. Francisco de Azevedo: soldados montados – 71; apeados – 5; carabinas – 44; pistolas – 95; peitos – 41; espaldares – 41.

Cª do capitão Francisco Barreto de Meneses: soldados montados – 59; apeados – 5; carabinas – 50; pistolas – 35; peitos – 24; espaldares – 24.

Cª do capitão D. Diogo de Meneses (prisioneiro em Espanha desde a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 55; apeados – 6; carabinas – 48; pistolas – 87; peitos – 53; espaldares – 53.

Cª do capitão António de Saldanha: soldados montados – 44; apeados – 1; carabinas – 28; pistolas – 30; peitos – 17; espaldares – 17.

Cª do capitão D. João de Azevedo e Ataíde: soldados montados – 91; apeados – 1; carabinas – 63; pistolas – 78; peitos – 44; espaldares – 47; murriões – 47.

Cª do capitão D. Henrique Henriques: soldados montados – 49; apeados – 7; carabinas – 42; pistolas – 61; peitos – 35; espaldares – 35; murriões – 30.

Cª do capitão João de Saldanha da Gama (morto em combate na batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 88; apeados – 0; carabinas – 66; pistolas – 80; peitos – 51; espaldares – 51; murriões – 51.

[dragões] do capitão António Teixeira Castanho: soldados montados – 56; apeados – 2; arcabuzes – 56.

Efectivos totais: 911 (855 soldados montados, 56 apeados); não entram nesta conta os oficiais das companhias, capelães, furriéis, trombetas e ferreiros. Conforme se verifica, apenas metade das companhias dispunha de murriões ou capacetes. É notória a falta de armas de fogo (recorde-se que a dotação nominal por soldado seria de um par de pistolas e uma carabina). Todas as companhias de cavalaria eram, de facto, de cavalos arcabuzeiros, mesmo que honorificamente as dos oficiais superiores fossem classificadas como couraças – os verdadeiros cavalos couraças só seriam introduzidos em Setembro dese ano, com equipamento defensivo mais completo para os seus militares.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, mç. 4-A, nº 264, doc. anexo à consulta de 12 de Julho de 1644, “Rezumo das Companhias de Cauallo que neste Ex.to Seruem a SMgde Apresentado na mostra que se comesou em 29 de Junho 1644″.

Imagem: “Combate de Cavalaria”, Joseph Parrocel, Museum der bildenden Künste, Leipzig.

Regimentos franceses de 1641 ao serviço da Coroa portuguesa (cavalaria e infantaria – organização teórica)

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Regimentos constituídos em Setembro de 1641, a partir do contingente enviado pelo Cardeal Richelieu. Organização teórica, nunca cumprida no terreno. A maioria dos regimentos de cavalaria só conseguiu alinhar duas companhias, inicialmente com 25-30 efectivos cada, quando era suposto terem quatro companhias de 40 a 50 efectivos cada uma, a do coronel incluída. Nunca combateram como unidades autónomas, e várias companhias actuaram como as portuguesas, isto é, independentes ou integradas em troços (agrupamentos) temporários, sob as ordens de um coronel estrangeiro ou um comissário geral português. Uma curiosidade: de acordo com as listas de equipamento apresentado nas mostras, a cavalaria francesa em Portugal nunca utilizou protecções metálicas (peito, espaldar e murrião), limitando-se a usar um colete de couro para protecção do tronco e chapéu de aba larga para a cabeça.

Os regimentos de infantaria nunca se formaram por falta de oficiais e soldados franceses em número suficiente. Os coronéis e restantes oficiais das companhias foram comandar ou integrar terços mistos de portugueses e estrangeiros.

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este assunto é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais.

Cavalaria (apesar das diferentes designações, os elementos da cavalaria ligeira e os carabineiros estavam equipados de maneira idêntica, correspondendo aos chevaux légers franceses: carabina e um par de pistolas; o regimento de dragões nunca se constituiu como tal, apesar de, em 1644, uma das duas companhias comandadas então pelo Marquês de Gravelines ser nominalmente de dragões, mas sem um único arcabuz entre os 20 elementos que a constituíam – presume-se que combatesse unicamente com espada, como a restante cavalaria)

Regimento de cavalaria ligeira de du Boucquoy. Coronel: Jean du Boucquoy de La Motte; capitães: Arnaud Bruneau de La Chabatière, Bernabé Brisson de La Touche, Théodore de Murasson.

Regimento de cavalaria ligeira de Montjouant. Coronel: Claude de Montjouant, Barão de Cornau; capitães: Jacques de Grille de Roubiac, Jean Danse d’Erbauvillins, Stéphane Paschier de Brussy.

Regimento de cavalaria ligeira de Gravelines. Coronel: Jean Pierre de la Roque, Marquês de Gravelines; capitães: Achim Avaux de Tamericurt, Jean Heitor de Nier, Stéphane Boule de Rosières (m. 1653).

Regimento de cavalaria ligeira de Chantereine. Coronel: François de Huybert de Chantereine; capitães: Louis de Chivray du Plessis, Henri de Belys de Billon, Michel du Bocage (a partir de Dezembro de 1641).

Regimento de cavalaria ligeira de Mahé. Coronel: Sebastian de Mahé de La Souche; capitães: Adrien de Mahé du Plessis, Pierre Guerineau de La Tortinière, Jacques Talonneau de La Popelinière.

Regimento de carabineiros de Boisemont. Coronel: Esme de Pillavoine de Boisemont; capitães: Jean Baptiste Lambert de Gransan, Urbain de Boissey de Chandonville, Nicolas Verniere de Lousières.

Regimento de dragões de Mazeros. Coronel: Pierre de Berfriert de Mazeros; capitães: Jean Chevallier de La Blanchardière, Jean de La Valée de Beaulieu, Henri de La Morlaye, o Maltês (m. 1642).

Nota: com os militares franceses chegou também a Portugal um capitão genovês, Francisco Fiesco, Conde de Lavagna, que comandou uma companhia de cavalos. Embora não estivesse originalmente integrada em nenhum regimento, a sua companhia é sempre incluída na cavalaria francesa nos documentos da época, pois os oficiais e soldados eram franceses. Francisco Fiesco foi capturado pelos espanhóis na batalha de Montijo, tendo passado alguns anos no cárcere.

Infantaria (os regimentos nunca tomaram forma)

Regimento de infantaria de Viole d’Athis. Coronel: Eustache Pierre Viole d’Athis (m. 1643); capitães: François Bouchel de Mirville, Stephan Damar de La Molière, Charles Yvelin de Roquemont.

Regimento de infantaria de Orelio (ou O’Reilly, irlandês). Coronel: Hugo Orelio (ou O’Reilly, irlandês); capitães: Carlos Orelio (ou O’Reilly, irlandês), Nicolas de La Rocca, Volant de Roufiat.

Regimento de infantaria de MacSuey (escocês). Coronel: Maurice MacSuey (escocês); capitães: Henri Marast de Loges, Louis de La Motte de La Prelle, Guillaume Giroult de La Vardin

Regimento de infantaria de Tirel (italiano). Coronel: Gualtiero Tirel (italiano); capitães: Rodrigo Chiogo (italiano – em 1644 deixou o exército e tornou-se frade), John Dungan (irlandês).

Imagem: Soldados franceses – um cavaleiro e um infante mosqueteiro da década de 1640. Gravura extraída da obra de Philip Haythornthwayte The English Civil War 1642-1651. An Illustrated Military History, London, Brockhampton Press,1994.

O combate de Castelo de Vide – 8 de Outubro de 1650 (1ª parte)

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“Na entrada do Inverno tornou o Conde de S. Lourenço a alcançar licença para vir à Corte, e ficou governando a Província de Alentejo o Mestre de Campo General D. João da Costa. Poucos dias depois de dar princípio ao seu governo, soube por inteligências que havia grangeado, que os Castelhanos juntavam algumas tropas, e que estas ameaçavam a campanha de Castelo de Vide, e Portalegre.”

É assim que o Conde de Ericeira começa a narrativa (História de Portugal Restaurado, pg. 333) do episódio que iria culminar no combate de Castelo de Vide, travado em 8 de Outubro de 1650. Entre as fontes disponíveis para esta ocorrência da pequena guerra de fronteira, sem dúvida a mais colorida é a que nos deixou o soldado de cavalaria Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), ele próprio participante na acção. E a sua parte da história começa deste modo:

“Estavam um dia (…) [alguns] capitães em casa do general [da cavalaria, André de Albuquerque Ribafria, em Elvas] e disse-lhe Lopo de Sequeira que fosse sua senhoria servido lhe desse licença, e mais a outros quatro ou cinco camaradas, que fossem com suas companhias a São Vicente e Albuquerque, a fazer uma entrada, e ver se podiam dar algum repelão às tropas que estavam naqueles lugares, que quando lhe não saíssem fariam lá mui boa presa, já que estavam ali ociosos, sem fazerem nada. Como estes homens (…) eram tanto seus amigos, disse-lhe o general logo que bem se podiam ir aprestar e com segredo, mas que não haviam de ir mais que cinco companhias (…), em primeiro lugar a sua, que era tenente capitão dela um Agostinho Ribeiro (…), e mais a companhia do meu capitão Francisco Pacheco [Mascarenhas], e mais a companhia de Dinis de Melo [de Castro, futuro Conde de Galveias], e a companhia de Diogo de Mendonça [Furtado] e a do capitão Lopo de Sequeira, que vinham a ser cinco, todas teriam 250 cavalos, de modo que logo os mandou que se fossem aprestar, para ir dormir aquele dia a Arronches, que no outro dia nos havíamos de partir daí para as terras nomeadas, que não são de Arronches lá mais de quatro léguas [c. de 20 Km], e de Arronches haviam de ir connosco uns 20 cavalos que aí estão de pilhantes, que são homens que sabem as terras de Castela a palmos de noite (…).”

O capitão Lopo de Sequeira, sendo o mais antigo dos que iam naquela jornada, foi como comandante da força. Por volta da meia-noite, estando já os soldados a dormir em Arronches, ouviu-se um grande estrondo de artilharia para os lados de Castelo de Vide, a sete léguas de distância (c. de 35 Km). Os capitães rapidamente conferenciaram e concluíram que eram tiros de aviso. O inimigo andaria com cavalaria por aqueles campos, e os tiros serviam para alertar os lugares vizinhos, de modo a que os camponeses guardassem os gados. Foi tomada a decisão de desistirem da entrada e rumarem a Portalegre, para investigar o que se passava, e logo mandaram montar os soldados. Foram escritas duas cartas, uma para o general da cavalaria, dando conta do sucedido, e outra para o mestre de campo comandante da guarnição de Castelo de Vide, informando-o que aquela força de cavalaria seguiria para Portalegre e aí aguardaria pela companhia de Monforte, comandada por D. Fernando da Silva, e que se fosse necessário qualquer auxílio a Castelo de Vide, estariam à disposição.

Chegados a Portalegre, mal tinham desmontado e começado a dar a ração de cevada aos cavalos, receberam um aviso do mestre de campo de Castelo de Vide, dando conta da entrada de uma força inimiga de cerca de 400 cavalos nos campos de Nisa, Alpalhão e Crato. O mestre de campo iria sair com o seu terço e a companhia de cavalos de Duarte Lobo da Gama, e indicava o local para o encontro com o reforço comandado por Lopo de Sequeira. “Podem vossas mercês marchar ao dito posto, que lá me acharão”, rematava a carta.

“Assim como os capitães leram a carta, começam todos com grande festa dizendo «Monta! Monta!». Começámos todos a tirar as mochilas das bocas dos cavalos, que ainda não tinham acabado de comer a sua ração, e mui depressa começámos logo a montar e marchar pela cidade fora na via de Castelo de Vide.” (Citações do Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM, pgs. 222-226).

(continua)

Imagem: Detalhe da zona de operações mencionada no texto, in Novissima regnorum Portugalliae et Algarbiae descriptio, c. 1680, Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1681A.

Um crime em Abrantes (2ª parte)

Em 23 de Maio de 1648, o Rei D. João IV escreve uma carta ao governador das armas do Alentejo, Conde de São Lourenço, acerca de um crime praticado em Abrantes e dos procedimentos que deviam ser tomados a esse respeito (missiva aqui vertida para português corrente, para melhor entendimento):

Conde amigo. Eu, El-Rei, vos envio muito saudar, como aquele que amo. Da carta e outros que com esta se vos remetem, vereis o excesso que os soldados de cavalo da companhia do capitão Manuel Cornellis, que estiveram alojados na vila de Abrantes, cometeram matando a João Roiz, o Campos, que encontraram caçando na vila de Abrantes, e porque este caso, segundo se tem entendido, foi cometido com grande atrocidade, e não convém que fique sem castigo pelo geral escândalo que tem dado, sendo mandado ordenar ao corregedor da comarca passe logo àquela vila a tirar devassa dele, e tanto que a tiver acabada vo-la remeta para fazerdes sentenciar no juízo da auditoria geral os culpados nela, de que me pareceu avisar-vos para que o tenhais entendido. E vós ordenareis (se já o não tiverdes feito, em virtude da ordem que vos foi) que logo seja preso a bom recado o capitão Manuel Cornellis, e posto em prisão segura a respeito da graveza [gravidade] do delito até ser sentenciado. Escrita em Lisboa a 23 de Maio de 1648.

O oficial respondia pelo crime cometido por alguns dos seus subordinados. Uma desavença por causa da caça? Os documentos não esclarecem os motivos da morte do paisano João Rodrigues, mais conhecido por Campos (o uso de alcunhas era vulgar na época; por vezes, tornavam-se nomes de família, que a descendência já não conseguia descartar e acabava por adoptar como patronímico).

Quem era este oficial holandês, Manuel Cornellis? Como já foi referido, o seu pai era cônsul da Províncias Unidas (vulgo, Holanda) em Portugal. Fora tenente na companhia do comissário geral Alexandre van Harten, um dos militares sobreviventes do contingente holandês que em Setembro de 1641 entrara ao serviço de D. João IV. Mas a chegada de Cornellis a Portugal é muito posterior àquela data – provavelmente durante o ano de 1646. Em Março de 1647 recebe patente de capitão de cavalos couraças. É então que parte para a Holanda, disposto a comprar 100 cavalos e recrutar 100 soldados para a sua companhia. Regressa em meados de Agosto, trazendo os cavalos prometidos, mas somente 30 soldados. Para completar o efectivo previsto, a sua companhia terá de integrar soldados portugueses – e também alguns estrangeiros cujas companhias haviam sido reformadas, como foi o caso do alferes holandês Guilherme (Willem) Liner, que se oferece para a unidade de Cornellis.

Em Abril de 1648, a companhia de Manuel Cornellis encontra-se na província da Beira, para onde fora enviada com outras unidades, a fim de reforçar o exército que D. Sancho Manuel lançara em operações sobre Valência de Alcântara, no mês anterior. O capitão desespera por regressar ao Alentejo. Escreve ao Conde de São Lourenço, pedindo licença para levar os cavalos a tomar o verde a Estremoz ou Vila Viçosa. O Conde, por sua vez, pede autorização ao Rei. Afirma que se a companhia tardar muito e já não encontrar pastagens, os cavalos ficarão perdidos de todo. Mas a resposta demora a chegar, e Cornellis decide abandonar a Beira por sua iniciativa, precipitando os acontecimentos. O crime cometido pelos seus subordinados levá-lo-á a um penoso processo, que será descrito no próximo e derradeiro artigo.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Livros de Registos, Livro 10, fl. 7 e Livro 11, fl. 110 v; Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV, vol. I, pgs. 171, 210, 233, 246 e 250.

Imagem: Cavaleiros do período da Guerra Civil Inglesa, reconstituição histórica, Kelmarsh Hall, 2008. Foto emprestada pela English Civil War Society.

As mostras (2ª parte)

Concluindo com o Regimento do Vedor Geral do Exército da Província do Alentejo acerca das mostras

Mostras

Cap. 32 – E o mestre de campo, ou pelo menos o sargento-mor, assistirão presentes à mostra do seu terço, para a infantaria, e para a cavalaria o tenente-general, ou ao menos o comissário geral, porque têm mais razão de conhecer os seus soldados, e estando eles presentes não é de crer algum se atreva a passar mostra por outro, porque seria descrédito grande seu fazer isto em suas presenças, e da mesma maneira cada capitão assistirá à mostra de sua companhia, porque também conheça os soldados dela, e neles se castigará com grande culpa deixar passar praça suposta [ou seja, alguém fazer-se passar por outro soldado], pois é impossível deixar de conhecer os seus soldados; e sucedendo nisto algum engano a que o capitão não acuda, se lhe dará em culpa, e constando que a teve, e que conhecia o soldado que se chamava pela lista, e que não declarou ser aquele que se apresentou falsamente, será privado da companhia para nunca mais a haver.

(…)

Cap. 34 – E porque as mostras se fazem, não só para se pagar aos soldados com boa ordem, e sem engano, mas para se tomar notícia de como está o exército, e que gente há nele, e como está armada, e aparelhada, mando que os oficiais que assistirem às mostras, que serão os que faz menção o capítulo 31, terão particular cuidado se os infantes trazem as armas bem limpas e consertadas, e se os de cavalo trazem as suas como convém, e os cavalos bem pensados [isto é, com os devidos pensos, rações individuais de aveia], e as selas bem consertadas, e vendo que nisto há falta os castiguem conforme a culpa que tiverem, logo por conta de seus soldos fará rebater o vedor geral o que for necessário para conserto das armas e selas, e feitasestas diligências, e as contidas nos capítulos antecedentes, e achando-se que o soldado é aquele, e a arma boa para servir, e havendo-se-lhe assinalado com a letra que passou a mostra, lhe contará o pagador sobre a mesa o dinheiro que se montar nos dias que se der socorro [ou seja, a quantia a que o soldado tiver direito].

(…)

Cap. 39 – E acabada de tomar a mostra, e feitos os pagamentos em mão própria, logo sem dilação alguma nas mesmas listas, no papel que ficar em branco depois dos assentos dos soldados, se farão e encerrarão os pés de lista, dizendo-se que em tal parte, a tantos de tal mês, se tomou a mostra a tal companhia, e que se acharam nela tantos oficiais da primeira plana, e declarando-se o soldo de cada um se sairá com ele por algarismo à margem, e depois se dirá que se acharam tantas praças ordinárias de mosqueteiros, e tantas de cossoletes [piqueiros], e arcabuzeiros, que todos fazem número de tantas praças, e desde tantos de tal mês até tantos de que naquela mostra se deu socorro (…), e nesta forma se encerrarão os pés das listas, e o assinará o oficial que o fizer, e o capitão de cada companhia no da sua, e do mesmo modo se fará em todos.

Fica assim completa a descrição do procedimento que era tido em cada mostra – excepto nas secas, onde não pingava o dinheiro e, portanto, eram abreviadas.

Imagem: Militares dando de beber aos cavalos. Quadro de Philips Wouwerman, séc. XVII, Museu do Louvre.

As mostras (1ª parte)

Por sugestão de João Torres Centeno, autor do blog Lagos Militar, e a propósito de um assunto que ali foi recentemente tratado, deixo aqui um artigo em duas partes sobre as mostras.

As mostras consistiam numa formatura geral das unidades – terços de infantaria e companhias da cavalaria (a artilharia era tratada à parte) -, durante as quais eram passados em revista os militares e o estado do equipamento individual, bem como das montadas. Se a finalidade era apenas fazer uma contagem dos efectivos, confirmando (ou não) as listas previamente elaboradas pelos sargentos das companhias de infantaria ou furriéis das companhias de cavalaria, entregues aos respectivos oficiais comandantes e confrontadas com as da vedoria, chamava-se mostra seca. Esta era motivo de desapontamento para os soldados. A mais desejada era a mostra que terminava com o recebimento do soldo, conforme estava estipulado no Regimento do Vedor Geral. O vedor geral era o responsável máximo pela administração e finanças do exército de cada província – num futuro artigo irei abordar este cargo, bem como os outros oficiais de pena, isto é, funcionários não-militares do exército provincial. Por ora, passarei a transcrever (em português corrente, como é hábito neste blog para facilitar a compreensão do texto) o que estipulava o Regimento do Vedor Geral do Exército da Província do Alentejo acerca das mostras.

Mostras

Cap. 30 – O vedor geral procurará achar-se presente a todas as mostras que lhe for possível, para que assim se tome com maior satisfação, e quando não puder assistir mandará que assistam seus comissários [de mostras, ajudantes do vedor], e o dia antes que a mostra se houver de tomar dará conta ao governador das armas para que mande lançar os bandos [editais militares], nos quais se diga a parte e o lugar onde os terços e as companhias hão-de acudir, e que venham todos com suas armas, e que ninguém se atreva a passar mostra por outrem sob pena de quatro anos de galés [a condenação a servir, como remador, nas galés da armada de costa, era um castigo muito temido].

Cap. 31 – E quando a mostra se tomar estarão os soldados recolhidos em algum pátio, ou parte que não tenha mais saída que uma porta, aonde estará a mesa, e estarão os oficiais, convém a saber, o vedor geral com os seus, que para aquele acto forem necessários, o contador [geral] com os seus, e o pagador geral com os seus, e com o dinheiro para ir logo fazendo os pagamentos, e um dos oficiais lerá as listas, e começando primeiro pelos oficiais maiores do terço, os irá nomeando um por um, e eles irão acudindo assim como forem chamados, e reconhecendo que são aqueles pelo sinal do assento, lhe porão em cima dele uma letra do A B C somente, que será uma mesma a todos em cada mostra, começando-se na primeira mostra pelo A e continuando-se nas mostras seguintes com as outras.

(continua)

Fonte: Regimento do Vedor geral do exercito da Prouincia do Alentejo, Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1, cópia manuscrita, do séc. XIX, do original seiscentista.

Imagem: Formatura de uma companhia de infantaria. Note-se que se trata de uma reconstituição histórica (no caso, da Guerra Civil Inglesa), pelo que a “companhia” é necessariamente reduzida para efeitos de escala visual com o resto do “regimento” e do “exército” – todavia, na realidade, as companhias de infantaria do séc. XVII estavam por vezes tão desfalcadas de efectivos como as das sociedades de reconstituição histórica actuais. Foto do autor. Kelmarsh Hall, 2007.

Relação do saque e queima da vila de Membrio em 28 de Abril de 1644 (3ª e última parte)

Enquanto a força comandada pelo tenente de mestre de campo general Diogo Gomes de Figueiredo (pai) se preparava para iniciar o assalto a Membrio,

(…) O terço de Dom Nuno Mascarenhas (…) fez alto, formado em dois batalhões para aquela parte donde podia vir socorro inimigo, e os nossos batedores de cavalo bem ao largo do lugar por fora da cavalaria, para avisar se de Valença [Valencia de Alcántara], Ferreira [Herreruela], Carvajo [Carbajo] e outros lugares daqueles redores lhe vinha algum socorro.

É de notar a referência ao emprego, muito vulgar nas incursões, de uma força de cobertura e apoio, normalmente composta por um ou mais terços de infantaria e alguma cavalaria. A sua missão era aguardar, num determinado ponto afastado do objectivo, pelas unidades mais móveis que executavam o golpe de mão, evitando a intercepção destas por eventuais forças inimigas de reforço. Finda a acção de saque e pilhagem, a força pilhante incorporava-se com a de cobertura e apoio, regressando às suas praças de origem com o produto do saque. Este procedimento era posto em prática por ambos os exércitos beligerantes nas respectivas entradas em território inimigo. Mas prossigamos com a acção em Membrio:

Resistiram os nossos pelejando contra o inimigo fortificado na igreja mais de quatro horas, fazendo-lhe muito dano com a mosqueteria e granadas, e porque o principal intento era queimar o lugar depois de saqueado (…), brevemente ardeu de sorte que nenhuma casa ficou por abrasar, aproveitando-se do saque mais os moradores de nossas fronteiras do que os soldados, que nesta ocasião só se empregaram em pelejar, não largando nunca as armas da mão.

Vendo o tenente [de mestre de campo] general Diogo Gomes que tinha satisfeito com a ordem que levava, porque para o mais que a ocasião e o ânimo dos soldados lhe oferecia não levava instrumentos convenientes, e que os mesmos capitães, por falta deles, faziam torneiras [buracos por onde podiam disparar] nas paredes com as adagas e as espadas, e que as informações que se deram do lugar foram que não havia nele coisa forte, e que da igreja lhe matavam alguma gente, não podendo atalhar este dano por[que] as nossas granadas não eram de proveito por ser muita a distância, mandou pôr fogo às casas junto da igreja, para que com o fumo, ou não fôssemos vistos, ou se o inimigo saísse nós entrássemos com ele de companhia na sua fortificação. E reconhecendo tudo pessoalmente, ordenou aos capitães que retirasse a gente com estes intentos, o que se fez com muito vagar e boa ordem, e porque então com mais ousadia se descobria o inimigo, é provável que se lhe matou muita gente, assim o disse um prisioneiro (…).

Retirada toda a gente à parte donde havia desmontado a infantaria das cavalgaduras de albarda, juntamente cinco soldados mortos e dois artilheiros, catorze ou quinze feridos, entre os quais foi o capitão Inácio Pereira com três balázios, o ajudante António da Costa e três sargentos e os demais soldados, a que o padre Frei Simão de Lima acudia entre as balas a confessar e fazer curar com grande caridade e valor, e postos todos a cavalo por caminho mais breve se marchou para Castelo de Vide à vista de Valença, recolhendo a nossa cavalaria toda a sorte de gado que se achou por aqueles distritos, que foi muito, e fermoso.

O inimigo saiu de Valença com intento de impedir-nos o passo no rio de Sever, que por ali não é tão fragoso, e tendo disto notícia (…) [Diogo Gomes] se adiantou com 200 mosqueteiros e duas tropas de cavalos da vanguarda a ocupar primeiro aquele passo (…).

Passou a nossa gente o rio antes da noite, e (…) a sexta-feira de madrugada se entrou em Castelo de Vide, donde depois de se refrescarem os soldados e a cavalaria com pão e cevada que ali tinha Dom Nuno Mascarenhas, prevenido se partiu cada um a seu alojamento, entrando nesta cidade de Elvas ao sábado último de Abril passado (…).

Fonte: Rellação do saque e queima da Villa de Membrio em 28 de Abril deste prezente anno de 644 (AHM, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 2, nº 26).

Imagem: Cavalaria e infantaria do período da Guerra Civil Inglesa, contemporânea da Guerra da Restauração. Foto do autor. Kellmarsh Hall, 2007.

Relação do saque e queima da vila de Membrio em 28 de Abril de 1644 (2ª parte)

A força portuguesa comandada por Diogo Gomes de Figueiredo (pai) chegara a Portalegre e fazia os preparativos para a jornada até ao objectivo. Continuando a narrativa:

Chamados os homens práticos que havia[m] de guiar ao tenente [de mestre de campo] general (…) se resolveu que se não podia partir aquela mesma tarde, (…) porquanto se não podia ir amanhecer a Membrio pela distância do caminho, pela sua fragosidade, pelos ruins passos de dois rios que desembocam no Tejo, Sever e Alburrel, e pelo cansaço das cavalgaduras, que até então não haviam parado, nem comido, e que assim mais convinha partisse ao outro dia pelas nove horas, para ir ao lugar à quinta-feira ao amanhecer, tempo mais acomodado para semelhantes facções.

Marchou-se na hora sinalada a quarta-feira, por caminhos tão ásperos e estreitos que sempre iam soldados enfiados uns atrás outros. Fez-se alto de noite, depois de passar os rios, [a] duas léguas [c. 10 km] de Membrio até sair a lua, que foi pela meia-noite, em que houve tempo, ainda que breve, para refrescar a infantaria e cavalaria.

Daqui se começou a marchar com grande silêncio e boa ordem por não serem sentidos, e chegados ao romper da alva à vista do lugar de Membrio, ocupou a cavalaria os postos mais altos, rodeando, e detrás de umas árvores, a pouco mais de tiro de mosquete, se apeou a infantaria, e formada em troços de mosqueteiros, depois de reconhecidas as partes por onde se havia de investir o lugar, se repartiu a todos com grande brevidade as granadas, os fechos e as escadas que haviam de levar (…).

Separou o tenente [de mestre de campo] general 80 piques, que levava em um batalhão com suas guarnições, que todos pelo desejo que tinham de pelejar ficaram de má vontade, e logo adiante com quatro mangas de mosqueteiros (…) a bom passo se foi para o lugarejo debaixo de sua mosquetaria. Dividiu aos quatro capitães para quatro partes sinaladas, para que se investisse a praça, e detrás, em socorro destas mangas, ordenou outras quatro (…).

Com pouca resistência treparam as primeiras trincheiras até abarbarem de carreira com a igreja [para] onde o inimigo se retirou fugindo, e se fez forte, porquanto uma hora antes de se avistar o lugar foi a nossa gente sentida, ou já por se haverem adiantado uns cavalos holandeses a furtar o gado, ou já porque a gente solta de nosso país, que saiem à pilhagem, deram com uns lavradores, de que escapando algum, foi dar aviso à vila, e fez recolher com tempo a mais da gente e mulheres à igreja, que assim o disse (…) um castelhano que pouco antes se havia tomado, e que no lugar havia uma companhia de 80 homens pagos e mais de 300 que tomaram armas.

A narrativa terminará no próximo artigo.

Imagem: Tropa de Cavalaria. Quadro de Peter Snayers, c. 1640. Kunsthistorisches Museum, Viena.

Relação do saque e queima da vila de Membrio em 28 de Abril de 1644 (1ª parte)

A relação que hoje aqui trago não consta do rol de narrativas propagandísticas impressas, nomeadamente do levantamento coordenado por Martinho da Fonseca em 1927 (Elementos bibliográficos para a história das guerras chamadas da Restauração 1640-1668, separata de Arquivo de História e Bibliografia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1927). Dela existe uma cópia manuscrita no Arquivo Histórico Militar, feita provavelmente nos finais do século XIX. Não sendo muito diferente de outras narrativas apologéticas, esta tem um interesse acrescido pela informação detalhada acerca dos procedimentos tácticos numa incursão mista de cavalaria e infantaria (na versão de dragões improvisados).

A acção ocorreu depois da primeira incursão do governador das armas do Alentejo, Matias de Albuquerque (futuro Conde de Alegrete), à vila de Montijo, cerca de um mês antes da segunda incursão que culminaria na célebre batalha campal. Eis a relação dessa entrada, nas passagens mais significativas e numa escrita actualizada.

Depois de vir o senhor Matias de Albuquerque da jornada de Montijo em 20 de Abril passado, começou a dispor outra, para a qual elegeu por cabo a Diogo Gomes de Figueiredo, tenente de mestre de campo general deste exército [do Alentejo], que com 800 mosqueteiros montados de dois em dois, em quatrocentas bestas de albarda, e duzentos cavalos a empreendeu com particular disposição pela maneira seguinte.

Dos terços que aqui se acham nesta praça de Elvas escolheu oito companhias de infantaria, a 90 mosqueteiros e a dez piques cada uma, e foram os capitães Domingos Carneiro, Inácio Pereira de Aragão e Fulgêncio de Matos, do terço do mestre de campo João de Saldanha, e do terço de Luís da Silva os capitães João de [A]Morim, André de Araújo, Francisco Fernandes o Canastreiro [o mesmo que iria participar na defesa da ponte de Olivença, dois anos mais tarde] e Fernão de Mesquita, e do terço do Conde do Prado o capitão Cristóvão Pantoja; levou consigo para a distribuição das ordens o capitão Bernardim de Sequeira, ajudante de tenente [de mestre de campo general] e os ajudantes Francisco Manuel e António da Costa, aquele do terço de João de Saldanha, e este do terço de Luís da Silva, e todos estes oficiais levaram soldados de muito valor (…). A cargo de um gentil-homem de artilharia [posto de oficial artilheiro] iam doze artilheiros com cem granadas, cem fechos, seis escadas, quatro cargas de pólvora, quatro de corda e quatro de balas sortidas; acompanhou ao tenente [de mestre de campo] general o cirurgião-mor do terço da Armada, e o capelão-mor do terço de João de Saldanha, o padre Frei Simão de Lima, que para isso se lhe ofereceu, como também o fez o capitão reformado Amador Rodolfo.

Partiu desta cidade segunda-feira pela manhã, que se contavam 25 do passado [Abril] (…), e pelo caminho de Barbacena e de Assumar se foi dormir a Portalegre, que são oito léguas [c. de 40 km] desta cidade, e ao outro dia a Castelo de Vide, donde pelo ruim caminho chegou às três horas da tarde, ali deu umas ordens que levava do governador das armas ao mestre de campo Dom Nuno Mascarenhas [morreria na batalha de Montijo, um mês depois], que assiste naquela cidade com o seu terço, e outro ao capitão de cavalos João de Saldanha da Gama, que por mais antigo governava as companhias de cavalo que ali se achavam, como eram a de António de Saldanha, a de Fernando Pereira de Castro, e as Holandesas de Vagenheim, e outra de dragões da mesma nação, com mais uma companhia de cavalos da ordenança de Portalegre.

Achou aqui o tenente [de mestre de campo] general Diogo Gomes de Figueiredo segunda ordem do Senhor Matias [de Albuquerque] para que com o mestre de campo Dom Nuno e os capitães de cavalos, assentassem a parte aonde ele havia de ir fazer a facção, porquanto aquela para que o tenente [de mestre de campo] general trazia as primeiras ordens se havia alterado com segunda informação de Dom Nuno, (…) porque a primeira ordem era uma praça distante de Castelo de Vide 12 léguas [c. de 60 km], e os soldados não levavam mantimentos para gastar tantos dias, e assim se resolveu que a empresa fosse à vila de Membrio, 7 léguas [c. de 35 km] distante daquela praça.

Era esta vila de mais de 100 vizinhos [c. de 450 habitantes] e com fama de rica pelo trato que tinha das lãs, situada em um lhano, e quase toda de casas terreiras, estava cercada de trincheiras de terra e barro, e as mais das bocas das ruas com suas costaduras da mesma; tem no meio uma igreja com sua torre quadrada, alta e coroada de ameias, donde se descortinavam as mais das ruas, ou por suas bocas, ou por cima dos telhados das casas, por serem baixas, defronte da porta da igreja todo o terreno, adro à maneira de meia lua, com uma parede de altura de dois homens, e vinte pés afastada do adro outra parede a modo de barbacã, que testavam nas esquinas das ruas que iam para a igreja, pelo lado esquerdo dela havia um cercado, onde estava algum gado, e pela direita outro cercado a modo de cemitério, que tornejava a sacristia, tudo com suas torneiras, donde se disparava.

Está montado o cenário. Será continuada a narrativa na próxima entrada.

Nota: os tenentes de mestre de campo general eram considerados oficiais colaterais, que hoje diríamos de Estado-Maior, destinados a distribuir as ordens emanadas do mestre de campo general pelas unidades. Não deveriam comandar contingentes de tropas, excepto em circunstâncias muito extraordinárias. O prestígio de Diogo Gomes de Figueiredo e Bobadilha (pai – o seu filho homónimo também se celebrizou durante a guerra) foi motivo para uma dessas excepções.

Imagens: em cima, Membrio (grafado como Membrilho, forma que aparece por vezes na narrativa transcrita) no mapa de João Teixeira Albernaz, c. de 1650. Biblioteca Nacional, Iconografia, CC254A; em baixo, Membrio na actualidade. Reprodução de imagem obtida a partir do programa Google Earth.

O batalhão, formação táctica da cavalaria

Qualquer que fosse a doutrina táctica adoptada – e a que privilegiava o choque e o combate com espada era a dominante entre as cavalarias do exército português e espanhol, durante a Guerra da Restauração – a formação básica consistia no batalhão (termo de significado diferente e que não corresponde, por isso, à actual unidade composta por várias companhias). Por vezes era também designado por esquadrão, embora este termo fosse aplicado com mais propriedade às formações tácticas da infantaria.

Uma companhia podia bastar para formar um batalhão, ou seja, para se dispor no terreno formada a três fileiras de profundidade, à maneira sueca, ou a quatro ou mais, com uma frente de 20 elementos, por vezes até superior. Tudo dependia do número de efectivos e da disposição no terreno ordenada pelo comissário geral, tenente-general ou general que comandasse a força de cavalaria. Quando os efectivos de uma companhia não fossem suficientes, podiam ser reforçados com os de outra, de modo a dar consistência à formação. Em casos mais raros, mas documentados (como o da companhia do general da cavalaria Dinis de Melo de Castro em 1665), uma companhia numerosa, com mais de 100 efectivos, podia constituir dois batalhões.

Os soldados mais experientes e valorosos eram sempre escolhidos para as duas primeiras fileiras. A distância entre fileiras podia variar entre o comprimento de dois cavalos e um mínimo que quase compactava os animais das fileiras anteriores e posteriores (neste último caso, quando se tratava de receber imóvel e firme o choque provocado pela carga da cavalaria inimiga).

D. João de Mascarenhas, Conde de Sabugal, refere de sua lavra nos comentários à obra Maneio da Cavallaria (pgs. 15-15 v) que

(…) reparando na cavalaria com que nos defendemos, que sendo sempre menos que a de nossos inimigos, que não devemos fazer os corpos tão grossos, porque ficaremos diminutos na forma, sendo-o sempre na quantidade, e assim me parece que podemos regular os nossos batalhões ao número de 80 cavalos cada um, porque ainda que os dos castelhanos sejam mais (como eu vi este ano [1663]), contudo poucos passavam de 60, com que os nossos tiverem de menos na forma, terão de mais na resistência, e à forma da batalha sempre se pode acomodar a quantidade da cavalaria, e não será pior por mais unida, antes tenho para mim (segundo os nossos países) que será de mais fortaleza.

Os batalhões eram dispostos no terreno habitualmente em duas linhas, por vezes três, numa formação em xadrez. O intervalo lateral entre cada batalhão designava-se por claro. Serviam os claros para que um batalhão que viesse carregado pelo inimigo pudesse escapar e voltar a formar na retaguarda, ao mesmo tempo que a formação que o perseguia era contra-carregada por uma outra unidade da segunda linha.

Gravura: Modo de formar os batalhões numa disposição em xadrez – note-se que os intervalos entre batalhões (os claros) eram mais espaçosos do que o que aqui está representado. Desenho do autor.

Uma entrada nos campos de Brozas – Dezembro de 1652 (1ª parte)

Num cenário mais a jusante do que foi descrito no artigo imediatamente anterior ocorreu a incursão que a seguir é narrada. Os campos de Brozas foram o alvo da rapinagem perpetrada pelas forças portuguesas. Desta feita, a propaganda coeva dá lugar à palavra escrita pela pena de um combatente, o soldado Matheus Roiz (Mateus Rodrigues), em cujo testemunho se baseia a descrição da operação – corresponde ao capítulo 49 da versão transcrita, pertencente ao acervo do Arquivo Histórico Militar e já aqui referida.

Os campos de Brozas ficam já no distrito da província da raia da parte de Cidade Rodrigo e A Sarça [La Zarza], onde está um comissário do inimigo por nome Mazacan, que tem o seu regimento 700 cavalos, e como estes campos de Brozas são terras aonde o inimigo traz sempre muita quantidade de gados, quis o nosso mestre de campo general e governador das armas [do Alentejo] Dom João da Costa ver se por esta via podia armar ao inimigo a que lhe saísse, de modo a que pelejasse com ele.

Observe-se a semelhança de propósitos entre os chefes militares de ambos os lados, confrontando com o que foi descrito no artigo anterior. Era a constante da pequena guerra, causadora de desgaste para as forças militares, mas principalmente para as desgraçadas populações raianas. Era também um modo de assegurar alguns recursos para os combatentes, uma vez que os soldos eram escassos no provimento.

E assim se determinou a mandar aos ditos campos 10 ou 12 tropas de cavalo, porque tinham boa entrada pela parte de Campo Maior indo por Albuquerque, de modo que não fossem sentidas (…). Dois dias antes que Dom João da Costa o fosse aguardar, entrou [o capitão] João da Silva [de Sousa] ao longo de Albuquerque uma légua, mas não foi sentido, que nisso constava sua segurança.

Agora atentemos na disposição táctica da força mista de cavalaria e infantaria em marcha:

Assim como lhe pareceu a Dom João da Costa que eram horas de sair [de noite], marchou com os três terços de Elvas e com toda a mais cavalaria. (…) [Levou] toda a cavalaria de vanguarda e uma companhia muito mais avançada diante, que ia descobrindo a campanha, e levava batedores por todas as partes e a companhia que então ia diante era a minha, e o capitão dela Francisco Pacheco Mascarenhas, (…) levava o meu capitão dois batedores de cada lado, avançados da tropa um tiro de cravina [carabina], e um pela estrada adiante, (…) [que] era eu.

Na noite de claro luar, a cavalaria passou um curso de água conhecido por ribeiro do Judeu, que ficava no meio do caminho para Campo Maior, mas teve de deter-se para dar tempo a que a infantaria atravessasse o ribeiro, o que levou muito tempo. Enquanto se estava neste impasse e o grosso da cavalaria aproveitava para desmontar e descansar os animais, o batedor Mateus Rodrigues vigiava uma vereda que era habitual ponto de passagem de tropas espanholas quando faziam as suas incursões. Foi então que

(…) eu vi vir uma partida de seis ou 7 cavalos, uns atrás dos outros, pela mesma vereda; (…) não podiam ser dos nossos, que os [nossos] batedores eram menos e além disso iam já adiante, e tanto que os vi levanto o cão da pistola, que a tinha na mão, (…) e perguntando-lhe[s] quem vive duas ou três vezes (…) me não responderam nada senão avançar a mim à rédea solta, ao que eu logo toquei arma [ou seja, disparou um tiro de aviso] com a pistola.

Toda a cavalaria portuguesa entrou em alvoroço e o que se passou a seguir foi confuso. Mateus Rodrigues fugiu para junto da sua companhia. Procuraram os supostos inimigos, mas não toparam ninguém, pelo que Mateus Rodrigues foi acusado pelos camaradas de ter confundido tropas portuguesas com castelhanos. O memorialista manteve-se firme na afirmação de que avistara um grupo de 6 ou 7 cavaleiros inimigos, e segundo escreve, no decurso da operação os factos demonstraram que tinha tido razão. Encerremos por ora esta primeira parte com a narração da aproximação e entrada em território hostil:

Fomos marchando até Campo Maior aonde já os dois terços nos estavam aguardando cá fora no rossio; e assim como chegámos logo nos pusémos em marcha, (…) e quando o sol saía já nós íamos passando a ribeira de Xévora; fomos marchando pela campanha à vista de Albuquerque, que era aonde nós íamos fazer a espera da nossa gente que ia a Brozas, e assim quando era a tarde com duas horas de sol já tínhamos chegado ao posto que chamam ali As Duas Hermanas, porque são dois cabeços mui altos que estão um à vista do outro e por isso lhe puseram tal nome.

Bibliografia: Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952, pgs. 310-313.

Imagens:

Em cima, zona dos campos de Brozas na actualidade (a amarelo, a linha de fronteira); reprodução de imagem obtida a partir do programa Google Earth.

Em baixo, “Combate sobre uma ponte”, água-forte do pintor flamengo Peter Snayers (1592-c. 1667), Courtauld Institute of Arts, Londres.

Postos do exército português (8) – o capitão de infantaria

O capitão de infantaria comandava uma companhia. A insígnia do seu posto era uma gineta, espontão rematado com borlas na parte superior da haste. Em combate, o capitão podia encarregar o seu pajem do transporte da gineta e armar-se com um pique, um mosquete ou (o que era mais vulgar) combater com espada e rodela. O posto de capitão de infantaria era considerado inferior ao de capitão de cavalos, todavia era um posto de grande consideração na hierarquia militar seiscentista. Sobre a maneira de prover os capitães das companhias, tanto das tropas pagas como das milicianas, esclarece o título 9 do projecto de Ordenanças Militares de 1643:

Para capitães das companhias de infantaria se elegerão alferes reformados e ajudantes, em que uns e outros hajam servido oito anos na guerra com praça assentada debaixo de bandeira, que tenham as partes necessárias para exercitarem com prática e experiência o muito que a cada um deles se oferece e encarrega cada hora que exercitar, e os que forem de mais serviços e aprovados merecimentos nas ocasiões para maiores riscos e empenhos, precederão para serem escolhidos (…).

Porém, como em muitas outras passagens das Ordenanças Militares de 1643, Joane Mendes de Vasconcelos discordou de pormenores do projecto. No caso dos capitães de infantaria, a proposta ia contra a prática assente e instituída de facto, pelo que o experiente cabo de guerra contrapôs:

Nos terços fazem vantagem aos alferes reformados e vivos [isto é, no activo] os que são actualmente da companhia do mestre de campo, porque como governam (de ordinário) a melhor companhia deles, têm maior capacidade a este respeito que os outros, escusa consultarem-se a segunda companhia, que vaga em seu tempo, como também nos esquadrões a segunda manga de bocas de fogo do corno direito se lhes entrega firme. [Note-se, na parte final deste comentário, a referência à disposição e comando táctico.]

Também se devem admitir os alferes vivos para capitães de infantaria, toca também ao alferes entrar em capitão quando em ocasião de peleja morre o capitão da companhia, achando-se o tal alferes na mesma ocasião e proceder nela conforme as suas obrigações, e em sua pessoa concorrem as partes e requisitos convenientes.

As observações de Joane Mendes de Vasconcelos foram todas dirigidas à promoção dos alferes ao posto de capitão nas companhias de infantaria, pois que as funções inerentes ao posto eram bastante claras e sabidas, nem sendo sequer focadas no projecto – excepto no que respeitava aos ditames de ordem comportamental e moral que o capitão devia seguir. Mas aí, a resposta de Mendes de Vasconcelos foi clara:

A repreensão dos vícios que contém este capítulo toca a todos os postos, e assim me parece que se devia encomendar em título particular a conta que hão-de ter os conselheiros e os generais e não proporem a Vossa Majestade para os cargos militares pessoas conhecidas perniciosas, com escândalo.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 55-56.

Imagem: Nesta foto de uma reconstituição histórica levada a cabo pela English Civil War Society, representando uma força de infantaria do New Model Army de Oliver Cromwell, é visível em primeiro plano, à direita, com gola de aço (protecção para o peito), um capitão carregando a gineta (sem borlas). Repare-se na diferença entre a gineta e as alabardas dos sargentos que marcham na primeira fileira da formação, mais atrás.

O trombeta

Trombeta não era propriamente um posto, mas um cargo. Existia somente nas unidades de cavalaria, cumprindo a sinalização sonora das ordens que na infantaria cabia aos tambores (ou atambores, como na época também se dizia). O instrumento de sopro designava o cargo. Mas as funções do trombeta não se limitavam aos toques de bota-sela, cerra a eles! (a “carga!” de tempos posteriores, pois no tempo da Guerra da Restauração o termo carga significava disparar uma arma de fogo), retirada e outros. Era um elemento importante como parlamentário na altura dos contactos com o inimigo, mensageiro entre unidades, até espião, quando as circunstâncias o proporcionavam. Sobre o trombeta escreveu D. João de Azevedo e Ataíde na página 28 do seu rascunho:

O ofício de trombeta não é de si mecânico como os tambores da infantaria, antes podem subir e vir a montar por suas partes [isto é, ascender na hierarquia militar pelo valor demonstrado]. Convém que sejam práticos e entendidos, para que quando suceder haverem de levar algum recado ou embaixada ao campo inimigo, o saibam dar e notarem o que lá virem para o referir pontualmente, com tal sagacidade que o inimigo não possa tirar deles coisa alguma, com que venha em conhecimento de algum segredo escondido, além do que um bom trombeta ornamenta uma companhia.

Convém que saiba ler e escrever para tomar as listas das guardas por escrito, e ir avisá-las quando for mandado (…). Costuma ter uma companhia dois trombetas. Um aloja em casa do alferes, aonde está o estandarte, e o outro com o capitão da companhia. Ambos devem de ordinário trazer consigo os trombetas para que, oferecendo-se por necessário haverem de tocar, não façam dilação nenhuma.

A referência ao ofício mecânico dos tambores de infantaria alude ao trabalho braçal, o qual desvalorizava o indivíduo na hierarquia social. Na representação mental dos valores sociais da época, o trombeta tinha assim um ofício mais honrado. O trajo do trombeta era (quando possível) mais vistoso e elaborado do que os demais militares, daí a alusão à “ornamentação” que proporcionava à companhia. Embora isso não seja realçado pelas fontes iconográficas disponíveis para o exército português do período, era comum entre exércitos estrangeiros.

Alguns trombetas do exército português eram de raça negra. Como nota final, registe-se que da trombeta (instrumento de sopro) pendia uma bandeirola com o escudo real português.

Imagens: Em cima, pormenor de um painel do biombo do Visconde de Fonte Arcada (arte sino-portuguesa), representando trombetas do exército português. Museu Nacional de Arte Antiga. Ao meio, pormenor da água-forte de Dirk Stoop sobre a Batalha das Linhas de Elvas, 1659 – note-se o trombeta à margem do combate; Biblioteca Nacional, Iconografia, E1090V. Em baixo, trombeta aguardando que um oficial componha a mensagem que irá entregar. Quadro de Gerard Terborch (década de 60 do séc. XVII), Gemäldegalerie, Dresden.

Postos do exército português (6) – o alferes

No que respeita ao alferes, não é possível estabelecer qualquer comparação com as atribuições actuais do oficial com aquela patente. No século XVII, a função primária do alferes era a de transportar a bandeira ou estandarte da companhia, ou o guião do general – função idêntica, no essencial, à de épocas mais recuadas, até à da génese árabe do termo, introduzido na Península Ibérica com a invasão muçulmana de 711. Contudo, ao invés do alferes comandante de um pelotão nos nossos dias, o do século XVII podia comandar uma companhia. Interinamente em caso de ausência do capitão, ou mesmo por inerência de cargo quando, num terço de infantaria, era porta-bandeira da companhia do mestre de campo.

Para ser provido no posto de alferes de infantaria, segundo a apreciação de Joane Mendes de Vasconcelos ao projecto de Ordenanças Militares de 1643, título 22º,

a um homem de qualidade [quer dizer, da nobreza] podem bastar dois anos, aos demais quatro de guerra viva, ou seis debaixo de bandeira, e não devem bastar os anos de serviços, senão que também se hão-de considerar o valor e partes e procedimento do nomeado, para se haver de prover, por que se for homem vil e afrontado, ou tiver algum grande e conhecido defeito, não deve ser admitido; (…) e merecendo o sargento da companhia passar a este posto, deve ser preferido a todos.

No caso da cavalaria aconselhava D. João de Azevedo e Ataíde, a pgs. 29-31 do seu tratado, que

querendo o capitão fazer escolha de algum alferes para a sua companhia, fará entre os soldados da mesma companhia, escolhendo entre os mais nobres [termo aqui empregue com o sentido actual de honrado] o mais brioso e ambicioso da honra, e que melhor tiver provado diante dele como aquele a quem os outros devem imitar e seguir como a sua guia. Marchando, vai sempre diante da companhia, pouco atrás do capitão, mas levando estandarte se porá no meio da primeira fileira.

O alferes de infantaria tinha um pagem – o abandeirado – cujo estatuto não era o de um militar, embora constasse na orgânica dos terços. Cabia-lhe transportar a bandeira sempre que o alferes tivesse de desempenhar outras tarefas. Tratava-se do prolongamento, no universo castrense, das funções que eram esperadas da criadagem. É um conceito estranho ao mundo actual, onde o exemplo mais próximo, mas mesmo assim anacrónico e pouco correcto, porque desempenhado por um militar de facto, é o do impedido.

Havia alferes nas companhias pagas e nas milicianas de infantaria. Na cavalaria, só as companhias de cavalos couraças (do exército pago, portanto) deveriam ter alferes, mas era muitíssimo frequente encontrá-los também nas de cavalos arcabuzeiros do exército pago que não respeitavam a proibição de terem estandartes.

Imagem: Companhia portuguesa de cavalos couraças (couraceiros). O alferes transporta o estandarte. Painel representativo da Batalha do Ameixial (1663), “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira. Foto do Comandante Augusto Salgado.

Postos do exército português (5) – o sargento

O posto de sargento só existia nos terços de infantaria do exército pago e nos terços milicianos de auxiliares e da ordenança (que em Lisboa tinham a designação tradicional de regimentos).

Sobre o sargento especificava o projecto de Ordenanças Militares de 1643 no título 24, aqui transcrito em português actual:

Os sargentos hão-de nomear os seus capitães [entenda-se: os capitães hão-de nomear os seus sargentos] de cabos de esquadra ou soldados, de partes, e valor, e que hajam servido na guerra quatro anos, e aprovados na mesma forma que os alferes; (…) e os ditos sargentos ajudam aos mesmos capitães, em todo o governo e meneio das companhias, e neles vem a consistir a maior parte da observância das ordens militares.

Ao que Joane Mendes de Vasconcelos respondeu nos seus comentários:

Os sargentos devem ser eleitos com os mesmos anos de serviços e considerações que se disse dos alferes sobre o seu título [quatro anos de guerra viva – ou seja, servindo em zonas de combate – ou seis debaixo de bandeira, mesmo sem participar em acções militares].

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 65.

Imagem: Armas de infantaria usadas pelos sargentos: na vertical, uma alabarda, arma pessoal e insígnia do posto. Vê-se também um capacete ou murrião (ambos os termos eram comuns na época e designavam qualquer tipo de protecção metálica para a cabeça), um peito de armas (peitoral, como se diria mais tarde) e um estoque. Foto do autor, Museu da Escola Prática de Infantaria, Mafra.

Os dragões em acção – 1642

O emprego táctico dos dragões ficou registado em algumas fontes narrativas. O clérigo elvense Aires Varela refere uma acção ocorrida em Junho de 1642, nas imediações de Elvas, quando a companhia era comandada pelo capitão António Teixeira Castanho (o trecho que se segue foi vertido para português corrente):

Vendo que o Castelhano não se resolvia [a atacar], mandou [o general da cavalaria Francisco de Melo] ao comissário [Gaspar] Pinto Pestana travasse a escaramuça, assim o fez, lançou algumas tropas, o inimigo as recebeu com valor, deram carga [ou seja, dispararam] destramente, entraram logo o capitão António Teixeira, e o tenente António Banha com os dragões, quando foi tempo fizeram sua obrigação com destreza, e perda do inimigo, e montaram sem nenhum dano pela guarnição que lhes assistia.

Como se percebe, os dragões operavam como infantaria, desmontando para combater a pé. No entanto, era norma acompanharem a cavalaria.

Meses mais tarde, em Outubro, os dragões estiveram envolvidos noutra acção bastante perigosa, narrada pelo soldado Mateus Rodrigues. Nela participou, como comandante das forças portuguesas, o coronel francês François de Huybert de Chantereine :

[O coronel Chantereine] mandou ao comissário [Gaspar Pinto Pestana] que, em chegando à ribeira de Valverde, (…) se pusessem os dragões metidos na ribeira entre os alandroeiros, que os havia pela ribeira mui altíssimos, e emboscados ali para darem carga ao inimigo, que nos havia de apertar muito na passagem da tal ribeira, como de feito assim o fez, que se não foram os dragões com suas cargas, que imaginou o inimigo que estava na ribeira a nossa infantaria, que ele ali não ia apertando bravamente, e logo se fizeram ao largo com toda a cavalaria em um alto, e nós da banda de além da ribeira em outro, mas os dragões nunca se tiraram da ribeira até que o inimigo se foi, para não os verem sair.

Como curiosidade, o baptismo de fogo do soldado Mateus Rodrigues aconteceu em Setembro de 1641, junto à ribeira do Caia, precisamente contra uma unidade de dragões irlandeses ao serviço do exército de Filipe IV. Os dragões desmontaram para receber a tiro a cavalaria portuguesa, fazendo fogo com o arcabuz apoiado na sela. No entanto, dado o tiro logo montaram e tentaram pôr-se em fuga, mas foram alcançados e abatidos pelos portugueses.

Bibliografia:

VARELA, Aires, Sucessos que ouve [sic] nas fronteiras de Elvas, Olivença, Campo Maior e Ouguella, o segundo anno da Recuperação de Portugal, que começou em 1º de Dezembro de 1641 e fez fim em o ultimo de Novembro de 1642, Elvas, Typografia Progresso de António José Torres de Carvalho, 1906 (excerto: pg. 66).

Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952 (referência ao baptismo de fogo: pgs. 5-6; excerto: pgs. 33-34).

Imagem: Mosqueteiros cercados: o grande problema da infantaria (e dos dragões apeados) quando enfrentava tropas montadas sem a protecção dos piqueiros. Habitualmente pedia quartel (rendia-se) ou… era massacrada. Foto do autor, reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kellmarsh Hall, 2007.

Organização do exército português (5) – Dragões

Existiu apenas uma companhia portuguesa de dragões durante a Guerra da Restauração. Foi formada nos inícios de 1642 e fazia parte do exército da província do Alentejo. O seu primeiro comandante foi António Teixeira Castanho, ex-tenente de uma companhia de cavalos arcabuzeiros, um indivíduo com prévia experiência militar ao serviço da monarquia dual. O tenente era António Banha, referido em algumas Relações de feitos de armas. A partir de 1646, os dragões tiveram sempre oficiais franceses a comandá-los. A companhia não tinha alferes, pois não usava estandarte. Em princípio teria duas caixas de guerra (tambores) em vez de trombetas. Quanto ao resto, seguia a estrutura de uma companhia de cavalos, embora fosse considerada infantaria montada. No entanto, os soldos pagos aos oficiais eram idênticos aos da cavalaria – e portanto, superiores aos da infantaria. O armamento defensivo dos dragões consistia de um colete de couro e o ofensivo de um arcabuz de mecha e uma espada.

Apesar de indicações para que fossem constituídas mais unidades de dragões, nenhuma outra portuguesa tomou forma. Em Março de 1648, a companhia foi transformada em cavalos arcabuzeiros. Na opinião do governador das armas do Alentejo que ordenou essa conversão – Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço – os dragões serviam pouco e os oficiais faziam a mesma despesa que os da cavalaria. Chegava ao fim a breve história dos dragões na Guerra da Restauração. Como curiosidade, refira-se que a companhia tinha como local habitual de alojamento a vila de Olivença – localidade que aparece, numa época posterior, associada àquele tipo de força militar.

Um procedimento relativamente comum durante toda a Guerra da Restauração era fazer montar em mulas parte da infantaria dos terços – os arcabuzeiros, principalmente, mas também piqueiros e mosqueteiros – para lançar incursões em território inimigo ou acudir a alguma ocasião de maior necessidade. Dois soldados por animal era a “dotação” habitual. No entanto, não devem ser considerados dragões no sentido operacional (apesar de algumas fontes narrativas se lhes referirem confusamente como tal), pois não faziam operações de reconhecimento, emboscadas ou protecção do dispositivo em marcha. Os animais serviam apenas de meio de transporte aos militares.

Quanto a unidades estrangeiras de dragões no exército português, houve 4 companhias holandesas que serviram entre 1641 e 1644. Mas esse assunto será tratado num artigo próprio.

Imagem: “Escaramuça de Cavalaria”, quadro de Philips Wouwerman, c. 1640-45.

Os dragões na Guerra da Restauração: desfazendo um mito

Não é raro ver referências à existência de dragões como um dos dois tipos de cavalaria existentes durante a Guerra da Restauração, sendo o outro os cavalos couraças. Esta confusão entre dragões e arcabuzeiros a cavalo é um dos mitos sobre o período que mais tem persistido, em boa parte pela repetição de erros surgidos em obras de autores dos séculos XIX e primeira metade do XX, como Rebelo da Silva, Fortunato de Almeida e Carlos Selvagem (cujo Portugal Militar é uma verdadeira armadilha para quem o toma como “manual” de História Militar de Portugal).

Acontece que os dragões, nesta época histórica, eram infantaria montada. O seu emprego táctico era diferente da cavalaria: combatiam sempre desmontados, dando cobertura à infantaria e à cavalaria a partir de posições abrigadas (em pequenos bosques, atrás de muros, sebes, em casas ou ruínas, etc.) e emboscando o inimigo. Um dos exemplos célebres da utilização de uma força de dragões emboscada, surpreendendo um dos flancos do dispositivo inimigo, aconteceu na batalha de Naseby em 1645, durante a Guerra Civil Inglesa (o regimento do coronel Okey, do New Model Army de Cromwell). Além disso, ao contrário da cavalaria, estavam armados com arcabuzes de mecha e não com carabinas, o que impedia a sua utilização a partir da sela.

Dois motivos contribuíram para a origem desta confusão. O primeiro radica na origem dos genuínos dragões, surgidos no século XVI como infantaria montada – piqueiros e arcabuzeiros montados em rocins, para lhes conferir maior mobilidade. Os arcabuzeiros passaram a acompanhar regularmente a cavalaria pesada (os lanceiros e mais tarde os couraceiros, sobrevivência da cavalaria pesada medieval) e acabaram por dar origem ao tipo de cavalaria ligeira designada por arcabuzeiros a cavalo. A função táctica e o armamento foram sendo adaptados ao combate montado, e embora os dragões continuassem a ser utilizados, foram remetidos ao seu papel original de infantaria montada, separando-se dos arcabuzeiros a cavalo. Só na parte final do século XVII é que os dragões passaram a ser considerados como um tipo de cavalaria, podendo combater tanto a cavalo como desmontados.

O outro motivo tem origem em algumas fontes do período, onde se patenteiam os confusos saberes (ou melhor, a falta de conhecimentos sólidos) por parte dos conselheiros militares da Coroa portuguesa, logo após a Aclamação de D. João IV. Porventura fruto de leituras mal digeridas de tratados militares do início do século XVII e até do século anterior, o certo é que o projecto de Ordenanças Militares de 1643 preconizava a constituição (anacrónica e confusa) de companhias de lanças, couraças e dragões! Joane Mendes de Vasconcelos, nos seus comentários à proposta das Ordenanças Militares, procurou corrigir o absurdo – tratava-se de um militar com experiência de combate de cavalaria e tinha conhecimento de causa. Foi este general que aconselhou a formação de companhias de couraceiros e de arcabuzeiros a cavalo, esclarecendo que os dragões, conquanto fossem úteis, eram infantaria montada e não deviam, portanto, fazer parte da cavalaria.

O facto é que, durante alguns anos, houve uma companhia (portuguesa) de dragões no exército português e a sua organização era semelhante à das companhias de arcabuzeiros a cavalo. Além disso, houve várias ocasiões em que alguma infantaria dos terços foi montada em rocins e sendeiros, transformando-se assim provisoriamente em… dragões! Mas isso será tema para uma próxima entrada.

Imagem: Parte de equipamento de dragão – capacete, colete de couro, espada, bolsa e bandoleira com frascos. A bandoleira era idêntica à utilizada pelos mosqueteiros e arcabuzeiros da infantaria. Ilustração retirada da obra de P. H. Ditchfield, Vanishing England, London, Methuen & Co. Ltd., 1910.

Organização do exército português (4) – Cavalaria: a estrutura das companhias

A companhia era a unidade administrativa básica da cavalaria portuguesa, quer para as forças pagas (exército profissional), quer para as milícias da ordenança, auxiliares, moradores e pilhantes ou amunicionados. Em 1661 houve uma proposta do Conde de Schomberg para que a cavalaria portuguesa passasse a adoptar o sistema regimental. Nada se concretizou devido às fortes resistências encontradas, entre outros motivos porque essa alteração implicaria a perda de prerrogativas sociomilitares dos capitães, muito arreigadas na tradição. O mais que se conseguiu, a partir de 1664, foi a introdução de troços, agrupamentos regulares de companhias sob o comando de um comissário geral. Na verdade, antes daquela data já existiam troços, visto que era a designação em uso para qualquer agrupamento de companhias, mas só depois assumiram um carácter normativo: oito companhias por troço, incluindo a do comissário geral. No entanto, não eram unidades permanentes, uma vez que só em período de campanha se formavam os troços.

O número de efectivos previstos por companhia do exército profissional variou muito ao longo da guerra. O máximo de 100 militares fixado no início do conflito desceu pouco tempo depois para 80, voltou aos 100, de novo aos 80, depois 60, outra vez 100 e regressou aos 80, tudo isto entre o início de 1641 e os finais de 1648. A influência do Conde de Schomberg levou à fixação de 65 militares por companhia, a partir de Novembro de 1661. Mas uma coisa era a força prevista no papel e outra a que realmente era possível apresentar no terreno. Deste modo, tanto era possível encontrar companhias com cerca de duas dezenas de cavalos, como outras, mais raras, com efectivos acima da centena! O mais vulgar, no entanto, era alinharem entre 30 e 60 cavalos. O efectivo teórico das companhias de auxiliares foi estabelecido em 50, logo no ano da criação daquela força miliciana montada (1650). A cavalaria da ordenança e as companhias de moradores e pilhantes não tinham um efectivo estipulado, embora fosse esperado que imitassem a dotação das forças pagas.

Qualquer que fosse o seu total de efectivos, uma companhia compunha-se de uma primeira plana com capitão, tenente, alferes (embora oficialmente não existissem nas companhias de arcabuzeiros a cavalo, muitas tinham-nos), furriel, capelão, dois trombetas, ferrador e um pagem por cada oficial. O restante efectivo era repartido em esquadras de 20 a 25 soldados, cada uma comandada por um cabo de esquadra. Esta organização era idêntica para o exército profissional e para todo o tipo de forças milicianas. No entanto, até nas forças pagas era difícil dotar as companhias de capelão e ferrador, e muitas só tinham um trombeta.

O capitão, cuja patente era atribuída por decreto régio, nomeava os restantes oficiais e os cabos de esquadra. No caso das companhias da ordenança, eram as câmaras que nomeavam ou elegiam os capitães. Os oficiais das companhias de auxiliares podiam provir das forças pagas, mas nesse caso recebiam um soldo mais reduzido. Pelo menos uma companhia de pilhantes chegou a ser comandada, no início da década de 50, por um oficial estrangeiro (francês) proveniente das forças pagas.

Imagem: Companhias portuguesas de cavalos arcabuzeiros, também designadas por arcabuzeiros a cavalo, carabinas, cravinas ou clavinas. Painel representativo da Batalha do Ameixial (1663), “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira. Foto do Comandante Augusto Salgado.

Organização do exército português (3) – os tipos de cavalaria

A maioria da cavalaria existente em Portugal durante a Guerra da Restauração era do tipo ligeiro, designada de diversos modos: arcabuzeiros a cavalo, cavalos arcabuzeiros, clavinas, cravinas ou carabinas. Era semelhante à cavalaria mais vulgarmente encontrada na Europa central e ocidental. Os militares estavam equipados ofensivamente com espada, um par de pistolas e uma carabina de fecho de pederneira (e nunca o arcabuz, se bem que a designação tenha sido herdada das origens quinhentistas, quando então, sim, o arcabuz de mecha era a arma utilizada). Defensivamente, usavam peito e espaldar de aço sobre um colete ou casaca de couro (ou só esta última protecção) e um capacete (este termo era utilizado na época, embora o nome mais vulgar fosse murrião), que frequentemente era substituído por um chapéu de aba larga.

A maioria das companhias do exército pago (profissional) era de cavalos arcabuzeiros; as unidades milicianas de auxiliares (criadas a partir de 1650) e da ordenança eram todas deste tipo. Uma hipotética excepção pode ter ocorrido no Reino do Algarve (designação tradicional da província mais meridional de Portugal) durante o primeiro ano da guerra, onde a cavalaria da ordenança poderá ter prolongado por algum tempo o uso de lança e adarga – como se usava ainda nas praças portuguesas do Norte de África -, equipamento registado num arrolamento de efectivos em 1639. Havia ainda companhias milicianas de moradores, cavalos pilhantes ou amunicionadas, que começaram a ser criadas em 1647 – antes dos auxiliares, mas contemporâneas da cavalaria da ordenança. A diferença entre estes cavalos arcabuzeiros milicianos e os restantes é que as suas unidades eram formadas voluntariamente, enquanto os efectivos para a ordenança e os auxiliares eram recrutados compulsoriamente.

A partir de Setembro de 1644, no seguimento da experiência colhida na batalha de Montijo, foi introduzido um outro tipo de cavalaria: os couraceiros (ou cavalos couraças). Estes existiam antes daquela data na designação honorífica no papel (havia companhias de couraceiros, mas sem qualquer diferença no equipamento em relação aos cavalos arcabuzeiros). O seu equipamento ofensivo era semelhante ao da cavalaria ligeira, excepto (em teoria, que na prática nem sempre foi assim) a carabina. O equipamento defensivo era mais completo, com celada (elmo fechado), peito e espaldar sobre colete de couro, guarda-rins, coxotes, braçais e manoplas, ou pelo menos uma manopla para a mão que segurava a rédea. Todavia, ainda na década de 40 os couraceiros foram aligeirando o seu equipamento defensivo, ao ponto de muitas companhias não se distinguirem dos cavalos arcabuzeiros, regressando assim às origens meramente honoríficas. Só existiam unidades de couraceiros no exército pago, pois eram consideradas tropas de elite – mas não se confunda com o conceito actual, pois mais do que à capacidade operacional da unidade, era sobretudo ao prestígio individual do comandante que se atendia na distinção.

Gravuras: Arcabuzeiro a Cavalo e Couraceiro, imagens extraídas do tratado militar de John Cruso, Militarie Instructions for the Cavall’rie, Kineton, The Roundwood Press, 1972 (fac-simile da edição de 1632; comentada e anotada pelo Brigadeiro Peter Young).

Bandeiras, estandartes, guiões – exército português (2)

As bandeiras, os estandartes e os guiões eram habitualmente confeccionados em diversos tipos de seda, como por exemplo damasco, tafetá, ruão, etc. Existem referências quanto às dimensões dos estandartes da cavalaria, que teriam uma vara de lado (ou seja, 1,1m). As bandeiras e guiões eram maiores, embora não tenha encontrado referências precisas às dimensões.

guião real (por vezes designado por estandarte real) tinha numa das faces as armas do Reino (sobre o lado, como no guião de capitão general já aqui apresentado – o qual poderá ser, porventura, um guião real); e na outra, desde 1646, a representação de Nossa Senhora da Conceição. Quanto à cor do fundo, presume-se que fosse branco, havendo até a sugestão de uma hipotética orla azul, mas aqui, tal como nos outros casos da vexilografia restauracionista, as certezas são poucas. De concreto, sabe-se que  só fazia a a sua aparição quando um exército saía em campanha. Quando cumpria à companhia do general da cavalaria transportá-lo, era ao alferes da dita companhia que cabia a honra, o qual ia metido no meio da fileira intermédia da formação (Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição dactilografada do Arquivo Histórico Militar, pg. 116).

As fontes iconográficas do período mostram, com muita frequência, as bandeiras da infantaria e os estandartes da cavalaria ostentando a Cruz de Cristo. Tratava-se de um elemento identificativo das forças portuguesas, tal como a Cruz de Borgonha o era para o exército espanhol. Há um ou outro pormenor dissonante desta aparente ubiquidade – por exemplo, a bandeira que surge no quadro de Dirk Stoop referente ao cortejo no Terreiro do Paço, já aqui tratado noutra entrada.

Havendo uma bandeira ou estandarte por companhia (note-se que os terços de infantaria não tinham bandeiras identificativas da unidade como um todo, apenas as das suas companhias), é provável que houvesse variantes nas cores e até no símbolo de cada uma. Gastão de Melo de Matos (ver bibliografia) duvidava da uniformidade do verde como cor de campo das bandeiras e estandartes, conforme fora sugerido no estudo do padre Ernesto Sales. O eclesiástico tomara como fonte iconográfica segura a este respeito o biombo do Visconde de Fonte Arcada (Pedro Jacques de Magalhães, general durante a Guerra da Restauração), hoje patente no Museu Nacional de Arte Antiga. Mas Gastão de Melo de Matos argumentava que as bandeiras talvez tivessem cores diferentes, fundamentando-se em fontes literárias muito diversas, como obras de tratadistas militares anteriores à Restauração (Luís Mendes de Vasconcelos, 1612; João Brito de Lemos, 1631), ou poemas laudatórios do período da guerra (Epinício lusitano à memorável victoria de Montes Claros, de João Pereira da Silva; Phaenix da Lusitania, de Manuel Tomás). Do Epinício… respiga:

“Mil vezes dezasseis Lusos armados/(…)/Em terços vinte e nove moderados/(…)/Volteando tafetás de várias cores/Dão lisonjas ao vento, enveja às flores” (estrofe 68).

Já da Phaenix da Lusitania cita o seguinte: “Animan ondeandose, as bandeiras/Os terços com as cores variadas” (Livro X, estrofe 48).

Há outras fontes que sugerem o uso da Cruz de Cristo em campo branco. De resto, não será difícil admitir a predominância do verde e do branco como fundo para bandeiras e estandartes, pois estas eram então as cores da Casa de Bragança (foram mudadas em 1707 para azul e vermelho).

Imagens: Em cima, alferes volteando bandeira com cruz verde em fundo branco (pormenor de um quadro atribuído a Dirk Stoop, Museu da Cidade de Lisboa); em baixo, pormenor de estandartes de cavalaria, ilustração de Pedro de Santa Colomba (1662) relativa à batalha das Linhas de Elvas; bandeira ou estandarte, ilustração do mapa de João Teixeira Albernaz, c. 1650 (Biblioteca Nacional, Iconografia, respectivamente E1090V e CC254A). Nestes dois últimos documentos está presente a Cruz de Cristo, o que não acontece no primeiro.

Bandeiras, estandartes, guiões – exército português (1)

É escasso o que nos resta de documentação sólida sobre este assunto. Em 1755, o arquivo da Tenência (Arsenal do Exército) foi destruído pelo Terramoto, e nos anos 30 do século XIX, um incêndio consumiu o arquivo da Junta dos Três Estados, privando-nos assim de informações preciosas sobre as bandeiras, estandartes e guiões utilizados durante a Guerra da Restauração pelo exército português. O que existe, tanto em fontes escritas como iconográficas, é muito fragmentado. Tanto quanto conheço, resta apenas uma relíquia do período, provavelmente um guião de capitão-general do exército – e nesse caso seria o do Marquês de Marialva, ostentado na batalha de Montes Claros em 1665. Foi oferecido à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Vila Viçosa, e aí se mantém em exposição.

Apesar das ambivalências dos termos, podemos tentar discernir, através da frequência com que são empregues, algumas diferenças no uso: o guião, apesar de Diogo do Couto (séc. XVI) se lhe referir como “pequena bandeira”, designava no século XVII uma bandeira principal, destinada a guiar o exército, ou a assinalar a presença de um general. Apresentava forma rectangular. A bandeira era de uso regulamentar em cada companhia de infantaria, fosse do exército pago (profissional) ou da milícia de auxiliares ou de ordenança. Tinha forma quadrada. Do mesmo formato, mas mais pequeno, era o estandarte das companhias de cavalaria. Por norma, só as companhias de couraceiros (cavalos couraças) deviam ter direito a estandarte (e portanto, incluírem um alferes na sua composição) mas, na prática, era vulgar as companhias de cavalos arcabuzeiros também os terem. Curiosamente, D. Luís de Meneses, 3º Conde de Ericeira, refere que, enquanto general da artilharia do exército do Alentejo em 1663, se fazia acompanhar de dois estandartes (em rigor, seriam guiões) – um com as armas reais (provavelmente semelhante ao que se conserva em Vila Viçosa) e outro com as suas próprias armas, “e ao pé delas uma peça de artilharia [bordada ou pintada], entre as quais se viam umas letras de ouro, que diziam: Sine qua non” (História de Portugal Restaurado, 1946, vol. IV, pg. 212).

Este tema continuará a ser abordado nas próximas entradas.

Bibliografia:

MATOS, Gastão de Melo de, Bandeiras militares do século XVII e a bandeira da Aclamação, sem local, sem nome, 1940.

SALES, Ernesto Augusto Pereira de, Bandeiras e Estandartes Regimentais do Exército e da Armada e outras Bandeiras Militares, Lisboa, Centro Tipográfico Colonial, 1930.

Foto: Guião de capitão-general do exército, batalha de Montes Claros (1665), preservado em Vila Viçosa. Note-se que era esta a configuração do guião – a haste à qual se prendia ficava do lado esquerdo da presente foto. As armas reais apareciam “sobre o lado”.

Organização do exército português (2) – Infantaria: o equipamento das companhias

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Além da organização em terços, a infantaria portuguesa também compreendia companhias independentes (soltas, como então se dizia). No exército profissional eram raras e normalmente de curta duração, acabando quase sempre absorvidas por um dos terços existentes. O mesmo sucedia entre a milícia de auxiliares. Já na milícia de ordenanças, a companhia era a estrutura básica de organização, pois os terços eram formados ad hoc, isto é, para uma operação ou uma campanha específica.

Em qualquer dos casos, a organização interna das companhias seguia o previsto no projecto de Ordenanças Militares de 1643 (já aqui referido), que por sua vez reflectia a prática existente nos exércitos português e espanhol. De um modo geral, a proporção entre os soldados atiradores equipados com mosquete (de mecha) ou arcabuz (também de mecha)  e os soldados armados de pique não se afastava muito do que o projecto de 1943 preconizava. Tudo dependia da escassez temporária de determinado tipo de armamento – sobretudo, das armas de fogo – mas, ainda assim, os desvios não eram muito significativos. Os registos de certidões de contas de armas existentes para o período 1647-1654 no Arquivo Histórico Militar mostram que havia, em média, equipamento ofensivo para 90 a 100 soldados por companhia, sendo que a proporção dos mosquetes oscilava entre os 33% (mínimo) e os 49,5% (máximo), a dos arcabuzes entre 20,2% e 32,5%, e a dos piques entre 30,3% e 34,5%.

As companhias da ordenança eram equipadas com arcabuzes e piques, numa proporção de 2 para 1. Mas era possível encontrar companhias totalmente equipadas com arcabuzes. Sendo o mosquete mais pesado do que o arcabuz (e também com maior alcance efectivo, e mais potente), esta arma de fogo era encaminhada preferencialmente para as companhias de tropas pagas.

O equipamento defensivo referido nos registos mostra que o uso de cossoletes compostos por peito e espaldar (ou espaldas, como se dizia na época) era uma raridade entre a infantaria. Só os oficiais e os piqueiros tinham direito a este tipo de protecção, mas as proporções são baixíssimas em relação ao armamento ofensivo existente em cada companhia. Os peitos e espaldares variam entre 0,4% (mínimo) e 7,6% (máximo), os morriões entre 0,4% e 8,3% (e este máximo só é atingido em 1647, sendo cada vez mais escassos nos anos posteriores), as rodelas (escudos redondos utilizados pelos capitães) entre 0,2% e 0,4% e as golas (gorgeiras) entre 0,1% e 0,3%. No caso das rodelas e das golas, o uso exclusivo destas pela oficialidade justifica o reduzido número encontrado nas listas, mas ainda assim eram muito raras. Os capitães podiam optar por combater com pique ou com espada e rodela, ou com mosquete ou arcabuz, se assim preferissem.

O abandono de qualquer protecção metálica para o corpo era uma tendência evidente na infantaria. O Conde da Ericeira refere que cerca de 3.000 cossoletes de infantaria foram adaptados para couraças da cavalaria em 1663, por já não serem usados pelos infantes [História de Portugal Restaurado, 1945-46, vol. IV, pg. 101]. Por outro lado, o uso de couras (coletes ou casacas de couro) pela infantaria dependia da capacidade de cada militar se abastecer – por exemplo, despindo os mortos, feridos e prisioneiros inimigos, principalmente os cavaleiros e os oficiais. Não existe qualquer referência a este tipo de protecção nos registos, pois não era fornecida aos militares por conta da fazenda real.

Outro material que era fornecido e que constava nos registos eram as forquilhas (apoio para os mosquetes), os frascos (polvorinhos) e as bândolas (bandoleira de onde pendiam frasquinhos de madeira contendo o cartucho com a bala e a pólvora necessária para um tiro; normalmente cada bandoleira tinha 12 frasquinhos, daí serem conhecidas em Inglaterra por “doze apóstolos”). Havia forquilhas para mais de metade dos mosquetes, na maior parte dos casos; os frascos chegavam para cerca de 2/3 dos atiradores (os restantes teriam de providenciar os seus próprios polvorinhos ou utilizar o de um camarada, provavelmente); já as bândolas eram mais raras, na maior parte dos casos nem a terça parte dos atiradores as usavam.

Cada companhia tinha uma bandeira e duas caixas de guerra (tambores), mas algumas companhias só dispunham de uma caixa de guerra.

Os vestidos de munição (casaca, camisa, calças e meias), bem como chapéus e sapatos, eram entregues aos soldados uma vez por ano, contra desconto no soldo. Era à vedoria geral do exército de cada província que cabia esta tarefa. As espadas também eram entregues aos soldados pela vedoria, não sendo contabilizadas nos registos das companhias.

A companhia era uma unidade administrativa, não uma unidade táctica. Devido à composição heterogénea das companhias, estas eram desarticuladas quando os terços formavam em esquadrão (formação táctica, também designada por batalhão). Este assunto será tratado em breve.

 Fotos do autor (não mostram forças portuguesas ou espanholas, mas sim tropas inglesas do New Model Army; todavia, o equipamento era muito semelhante em qualquer exército da época): em cima, em primeiro plano, soldados atiradores transportando ao ombro um tipo mais leve de mosquete, o qual dispensava forquilha;  note-se o polvorinho, as bandoleiras com os “doze apóstolos” e a variedade de mochilas (o termo era empregue na época para designar os sacos de lona usados a tiracolo) e bornais, bem como o modo de segurar a mecha (segundo soldado a contar da esquerda); em baixo, piqueiros em marcha, protegidos por cossoletes sem escarcelas e usando morriões; vê-se ainda um sargento com alabarda a fechar a coluna e, mais atrás, um oficial (provavelmente um capitão); ambos usam golas. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa (conflito contemporâneo da primeira década da Guerra da Restauração),  levada a cabo em Kellmarsh Hall em Agosto de 2007.

Organização do exército português (1) – Infantaria: a estrutura dos terços

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A grande unidade administrativa para a infantaria era o terço, designação de origem espanhola (tercio) que remonta ao século XVI. Correspondia ao regimento, termo então em uso em vários exércitos da Europa central e do norte: agrupamento de várias companhias, cujo comando era atribuído a um coronel. Em Portugal, os termos regimento e coronel, na infantaria, só eram aplicados por tradição às unidades da ordenança de Lisboa. O terço era comandado por um mestre de campo, coadjuvado por um sargento mor, a quem competia a parte técnica.

1. A organização segundo a proposta das Ordenanças Militares de 1643 

Segundo o preconizado no projecto de Ordenanças Militares (regulamento – não confundir com a categoria militar das ordenanças) de 1643, cada terço devia constar de 1.500 homens, compondo-se de uma primeira plana (Estado-Maior, com o mestre de campo, o sargento-mor, dois ajudantes e um tambor mor) e de 12 companhias a 125 homens. Cada companhia, para além da respectiva primeira plana (capitão, alferes, abandeirado, capelão, dois sargentos, dois tambores e um pífaro), compreendia 40 piqueiros, 60 mosqueteiros e 25 arcabuzeiros, distribuídos por 5 esquadras, cada uma comandada por um cabo de esquadra. O mestre de campo comandava a primeira companhia, a qual não tinha, por isso, capitão – todavia, o comando efectivo era sempre delegado no alferes. No total, haveria num terço 480 piqueiros (32% do efectivo), 720 mosqueteiros (48%) e 300 arcabuzeiros (20%). Esta era a dotação preconizada pela proposta de regulamento de 1643 que, embora nunca tivesse passado do rascunho, reflectia a prática organizativa então vigente. Note-se que os efectivos globais apontados não contemplavam os elementos das primeiras planas. Contudo, entre o idealizado no papel e o que tomava forma no terreno existiam várias discrepâncias.

2. A organização segundo as listas existentes nas unidades

Uma das divergências mais evidentes  era no número de companhias, na verdade já fixadas em 10 por terço ainda antes da proposta de Ordenanças Militares ter sido elaborada. Ocasionalmente era possível encontrar terços com um número de companhias superior ao estipulado (12 e 13, por exemplo), em virtude da agregação de companhias soltas, mas os decretos do Conselho de Guerra são peremptórios na imposição do máximo de 10 companhias.

Segundo organizações detalhadas de 1645 e 1646, cada terço compreendia uma primeira plana com 8 elementos: mestre de campo, sargento-mor, dois ajudantes do número, um ajudante supranumerário, um tambor-mor, um cirurgião e um capelão (estes dois últimos elementos, porém, nem sempre estavam presentes, dada a falta de pessoas que servissem como cirurgiões e capelães militares). A primeira companhia (a do mestre de campo) tinha 5 elementos na primeira plana: um alferes, um sargento, um abandeirado (não se tratava de um oficial, mas de um pagem do alferes, cuja função era transportar a bandeira da companhia quando o alferes estivesse ocupado com outra tarefa – o seu estatuto e pagamento era inferior ao de um soldado) e dois tambores; as restantes 9 companhias tinham, cada uma, 7 elementos na primeira plana: os mesmos acima referidos, mais o capitão (comandante da unidade) e um pagem de gineta, que carregava o espontão (gineta) que era a insígnia do posto do capitão, quando este oficial estava ocupado nas funções de comando da companhia; ao contrário do abandeirado, o pagem de gineta recebia a mesma paga que um soldado. As 10 companhias do terço tinham 4 cabos de esquadra e 96 soldados cada. O total perfazia 76 elementos das primeiras planas do terço e das companhias, e no conjunto das companhias 40 cabos de esquadra e 960 soldados – 1.076 elementos no total de um terço. Não havia diferenças entre a estrutura interna de um terço de tropas pagas e um terço de auxiliares.

Esta era a organização efectiva, de acordo com as listas emanadas dos comandos provinciais. No entanto, podia haver ocasionalmente algumas diferenças entre províncias, sobretudo no número de indivíduos pertencentes à primeira plana dos terços. Ainda assim, estas listas destinavam-se ao cálculo das despesas para efeitos de pagamento das tropas, pelo que apenas faziam referência aos efectivos completos. A realidade que transparece de outras listas – as que eram elaboradas nas ocasiões das mostras, quando se contavam os efectivos reais, ou quando se fazia o levantamento do material de guerra existente – era muito menos uniforme. Mas aí estamos já a entrar numa outra esfera, a do atrito provocado pela guerra sobre a estrutura dos terços. Será um tema a tratar proximamente, quando passarmos em revista a composição e o material de guerra de que dispunha cada companhia, de acordo com os registos de certidões de armas de que cada oficial tinha de dar conta quando entrava e saía do comando da unidade. É que, se o terço era a grande unidade administrativa para a infantaria no que tocava a pagamentos, já para o material de guerra toda a administração se efectuava tendo por base a companhia. Tais documentos, ainda que parciais, permitem estabelecer, por exemplo, a relação entre os soldados munidos de armas de fogo e os que estavam equipados com piques por companhia.

Bibliografia de base para o estudo da organização da infantaria portuguesa e espanhola nos séculos XVI e XVII:

MATOS, Gastão de Melo de, Notícias do têrço da Armada Real (1618-1707), separata dos Anais do Club Militar Naval, Lisboa, Imprensa da Armada, 1932.

QUATREFAGES, René, Los Tercios, Madrid, Servicio de Publicaciones del Estado Mayor del Ejército, 1983.

 

Foto: Combate entre piqueiros – reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa; foto do autor.