The use of uniforms during the War of the Portuguese Restoration – infantry

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O presente artigo em língua inglesa é o primeiro de uma tradução de dois artigos já publicados há anos. Por curiosidade, num curto espaço de tempo alguns leitores de língua inglesa solicitaram-me que lhes fornecesse informações sobre o eventual uso de uniformes durante a Guerra da Restauração. Deste modo, a tradução dos dois artigos corresponderá à resposta a essas solicitações.

This post in English language is the first part of a translation of two posts published here years ago. Recently, several English speakers, followers of this blog, asked me about the use of uniforms in the course of the War of Portuguese Restoration. I decided to translate the two posts in order to answer their requests. The first of them is about the infantry.

Infantry

The clothes supplied to the infantrymen of the terços (optimistically, on an anual basis) did not follow a strict uniformity in colour or pattern. It is most probable that coats, shirts and breeches occasionally had a common pattern or colour based on the facility of approvisionment from the supplier, but this was not imposed by any rule. From contemporary paintings we can see that several shades of brown and grey were usual among foot soldiers. However, there was little distinction between military and civilian clothes during most of the period of the war. Changes on fashion, especially coming from France, would dictate some differences on the patterns of coats, breeches and hats as the conflict went by.

There are some misconceptions about 17th century military clothing that still survive, usually rendered by unadvised amateur illustrators, mining the understanding of the real evolution of military (and civilian) fashion. Thus, we can still find today some drawings and paintings supposedly of “infantrymen from the War of Portuguese Restoration” which are heavily based on (or even unashamed copies of) illustrations from Jacob de Gheyn’s The exercise of arms, published in 1607. Military and civilian fashion had evolved much in the 1640s, 50s and 60s and soldiers costums resembled little with those of the late 15th and early 17th centuries.

Foreign influence was behind the first signs of the use of uniforms by Portuguese infantry during the 1660s. French and English infantry that fought alongside the Portuguese in the 1660s wore uniforms: red coats lined in different colours for each of the English regiments, and pale grey (or grey-white), probably also lined in different colours, for the French regiments; and the German-Neapolitan regiment which changed sides in 1663, after the defeat of the Spanish army of Don Juan de Austria, was put under French command and received the same pale grey uniforms of the French infantry.

Except for the English, which began using uniforms in 1645 with the New Model Army of Cromwell, the examples mentioned above may have relied on the choices of the field commanders, though in France the use of uniforms was in course in the 1660s. Some units of the Spanish army were described using uniforms by this late period of the war as well. As for the Portuguese army, the most detailed contemporary account on the use of uniforms was published in the monthly newspaper Mercurio Portuguez, in April 1664:

“On the 14th (…) by the afternoon did a splendid parade and military exercise at the Terreiro do Paço [the large place in Lisbon by the river Tagus, which was rebuilt and further enlarged after the earthquake of 1755 and is now officially called Praça do Comércio, though the older name is still widely in use] (…) the Terço da Armada [the elite infantry terço of the Navy – or, as we would call them today, Marines], of which is mestre de campo Simão de Vasconcelos e Sousa; all of them went with green coats, faced and lined in yellow; those of the mestre de campo and the officers and of some soldiers were more expensive, conforming to the posessions of each one, but the colours were the same; and so were the colours [infantry flags] and the painting on the drums (…).”

“on the 17th, also by the afternoon (…), did a similar parade and exercise at the same Terreiro the new terço of the garrison of this City of Lisbon, of which is mestre de campo Roque da Costa, all of them with blue coats faced and lined in red, more or less expensive, depending on the posessions of the wearers.”

Note that the coats were certainly of contemporary French style, following the fashion introduced by Count Schomberg.

References: Mercurio Portuguez, com as novas da guerra entre Portugal, e Castella.

Image: Portuguese soldiers on parade on Terreiro do Paço, detail of a painting by Dirk Stoop, mid 1650s.

350 anos da batalha de Montes Claros (17 de Junho de 1665)

Passam hoje 350 anos sobre uma das mais importantes batalhas da Guerra da Restauração. O exército português, comandado por D. António Luís de Meneses (Conde de Cantanhede e Marquês de Marialva) e pelo Conde de Schomberg. compreendendo contingentes ingleses e franceses, derrotou nas proximidades de Vila Viçosa o exército espanhol comandado pelo Marquês de Caracena. Não foi uma batalha decisiva no imediato, mas contribuiu para apressar o final de um longo conflito que opunha as duas Coroas peninsulares.

Em breve será construído um Centro de Interpretação da Batalha de Montes Claros. A seu tempo serão aqui dadas mais informações.

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Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (8ª e última parte)

(Q)Foto Q (acima) – Local onde se formaram as linhas da cavalaria portuguesa, na ala direita do dispositivo português. O caminho que se vê na fotografia passa pelo local onde provavelmente estariam formados os batalhões da terceira linha. Ao fundo é reconhecível a zona onde o batalhão do extremo da primeira linha ficou formado:

No lado direito em o fim da várzea, onde a serra de Ossa tem princípio por aquela parte, se assinalou posto ao primeiro batalhão de cavalaria, e era o terreno que corria para a mão direita tão embaraçado de sanjas e valados, que ficava a cavalaria segura de ser atacada por aquele flanco; porém, alterada a forma, ocupou inutilmente este terreno. Deste sítio para o lado esquerdo continuava a campanha rasa (…). (Ericeira, 1946, IV, pg. 294)

(R)Foto Q (acima) – Na retaguarda das linhas de infantaria do exército português, sensivelmente na zona onde ficou posicionada a reserva. O terreno em frente e para a direita desta foto foi muito disputado e terá sido aqui que se jogou a fase decisiva da batalha, quando a sorte das armas podia ainda pender para qualquer dos lados e o exército espanhol parecia em condições de derrotar o português.

(…) [Os espanhóis] investiram valorosamente o corpo da infantaria e cavalaria [portuguesa] que lhes ficava oposta e, rompendo-o, chegaram até à vanguarda da segunda linha da infantaria e da terceira da cavalaria. Acudiu Dinis de Melo com grande prontidão e valor ao remédio deste dano, reforçando a peleja com novos batalhões, sem perder terreno nem mudar forma. A mesma constância tiveram os terços de Tristão da Cunha, Francisco da Silva e João Furtado; porém, ainda que repetiram incessantes cargas [tiros], entraram mais de mil cavalos pelo claro dos terços de Tristão da Cunha e Francisco da Silva, onde estava o general da artilharia [D. Luís de Meneses] e o Conde de São João e, atropelando algumas mangas da guarnição do lado direito do terço de Francisco da Silva, deixaram ferido ao mestre de campo e mortos trinta oficiais e soldados. (…)

O Conde de Schomberg, vendo que nesta parte era mais vigoroso o conflito, acudiu a ela com tão perigosa resolução, (…) que lhe foi preciso romper pelos batalhões inimigos para chegar ao posto onde estava o Marquês de Marialva, (…) socorrido dos seus três valorosos filhos com seus batalhões, do Conde de Rosan com a sua companhia e do Conde de Maré com o seu regimento (…). Os inimigos, perplexos na resolução que deviam tomar, intentaram romper os batalhões a que assistia Pedro César [de Meneses], Francisco de Távora e Bernardino de Távora; porém, achando-os constantes e impenetráveis, voltaram, perdida a resolução e mortos muitos oficiais e soldados, pela mesma parte por onde haviam investido, entendendo que poderiam romper pela retaguarda os três terços que primeiro encontrararm. Porém, desvaneceu-lhes esta suposição o Conde de São João e o general da artilharia, por haverem dado ordem às três últimas fileiras que voltassem as caras à retaguarda, calada a picaria e prevenidas as bocas de fogo, o que prontamente executaram, animados dos mestres de campos e oficiais, com tão feliz efeito que obrigaram aos inimigos a voltarem com furiosa torrente pelo mesmo claro por onde haviam investido (…). (Ericeira, 1946, IV, pgs. 300-302)

Termina aqui esta série de artigos sobre o campo de batalha de Montes Claros, tal como se encontra na actualidade. Procurou-se assim dissipar as dúvidas acerca do verdadeiro local onde a peleja teve lugar, tarefa sempre difícil, mas que uma análise cuidadosa das fontes permite estabelecer com alguma segurança.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (7ª parte)

(O)Foto O (acima) – Na retaguarda do dispositivo português erguia-se uma outra elevação, muito semelhante à que foi ocupada, mais adiante, pelos terços e pela artilharia do exército do Marquês de Marialva e do Conde de Schomberg. Foi daqui que os dois generais, ainda com o exército português em marcha, descortinaram a chegada das primeiras tropas do Marquês de Caracena ao local onde se travaria a batalha.

Chegado o Conde de Schomberg à eminência que ocupava o Conde de São João e o general da artilharia, observaram que os batalhões da cavalaria inimiga sucessivamente vinham saindo à campanha, havendo estado cobertos com a serra da Vigaira, e se formavam com tanta pressa, que manifestamente descobriam a deliberação de pelejar, sendo o Conde de Schomberg o primeiro que teve por infalível este discurso. (Ericeira, 1946, IV, pg. 293)

PFoto P (acima) – A planície onde chocaram as cavalarias dos dois exércitos, sobre a ala direita do exército português, olhando na direcção do dispositivo espanhol.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (6ª parte)

(L)Foto L (acima) – Ala esquerda do dispositivo espanhol. olhando para o flanco esquerdo. Estas posições eram ocupadas pela cavalaria. Realce-se a natureza plana do terreno, propício à manobra da cavalaria.

(M)Foto M (acima) – Zona de progressão da infantaria espanhola, olhando na direcção das linhas portuguesas. Terá sido nas imediações deste local que chocaram dois regimentos, um suíço e outro inglês, num combate renhido a golpe de pique, mas no qual também chegaram a ser arremessadas as pedras caídas dos muros que por ali havia. O regimento suíço, comandado pelo coronel Clofs, estava ao serviço da coroa espanhola. O inglês, sob o comando efectivo do tenente-coronel William Sheldon, era o regimento nominalmente comandado pelo próprio Conde de Schomberg. O tenente-coronel Sheldon perdeu a vida neste combate, tendo o seu regimento sofrido entre 40 e 50 mortos e cerca de 100 feridos. Entre os mortos contavam-se os capitães Jones, Heatfield e Rust e o tenente Boone, e entre os feridos os capitães Stansby, Roch, Turner e Langley, os tenentes Newsome, Sandys e Sherwood e os alferes (ensign, em inglês) Turner, Porridge e Emerson e também o cirurgião John Leadger. Conseguiram capturar 4 bandeiras ao inimigo (Relacion Verdadera…, pgs. 37-38, com cruzamento de referências para os nomes em Childs, John, The Army of Charles II, London, Routledge & Kegan Paul, 1976, appendix B, pgs. 238-239; contudo, Childs não fornece uma relação completa dos oficiais que serviram nos regimentos ingleses de 1662-68, faltando vários nomes que surgem em documentos portugueses).

V(N) reduzFoto N (acima) – vista a partir da primeira linha do dispositivo português, sobre a ala direita, onde estava disposta a maior parte da cavalaria e também dois terços de infantaria. É quase certo que os muros que se vêem sobre a direita sejam os que serviram de abrigo a duas peças de artilharia ligeira e a um destacamento de 100 mosqueteiros, adiantados para essa posição por ordem do general da artilharia D. Luís de Meneses antes do início da batalha. O destacamento era comandado pelo tenente-general da artilharia Marco Raposo Figueira e foi desalojado das posições pelos ferozes ataques do inimigo, depois de oferecer muita resistência. Os canhões assim perdidos viriam a ser recapturados pelos portugueses mais tarde, num contra-ataque comandado pelo sargento-mor de batalha Diogo Gomes de Figueiredo (Relacion Verdadera…, pg. 35).

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (5ª parte)

(I) Detail of the close terrainFoto I1 (acima) – Detalhe do terreno irregular em frente da primeira linha da infantaria portuguesa. Coube aos auxiliares talarem obstáculos como este, que obstruíam o campo de visão e de tiro, tarefa que custou a vida a muitos.

(I)Foto I2 (acima) – Do mesmo local, mas olhando para a direita do dispositivo português (esquerda do espanhol). É notório o suave declive do terreno, afundando na direcção onde se bateu a cavalaria dos dois exércitos e também parte da infantaria portuguesa.

(J)Foto J (acima) – Zona do terreno em frente à primeira linha do dispositivo português, olhando na direcção do mesmo, sensivelmente na zona de charneira entre os últimos terços da primeira linha portuguesa e os primeiros batalhões da cavalaria (havia ainda dois terços mais para o lado esquerdo da foto, interpolados entre os batalhões de cavalos). Esta terá sido a perspectiva que tiveram os cavaleiros da vanguarda do exército de Caracena, quando carregaram a cavalaria portuguesa e também os terços de Tristão da Cunha e de Francisco da Silva de Moura. Local onde a sorte da batalha esteve indecisa, após a cavalaria do exército espanhol ter rompido as primeiras linhas da congénere portuguesa e isolado momentaneamente os terços atrás referidos.

Segundo a Relacion Verdadera, no início da refrega o mestre de campo Francisco da Silva de Moura adiantou-se com o seu terço, aparentemente por querer demonstrar o seu valor, destacando-se da linha inicial do dispositivo (atitudes destas, em que a impetuosidade de um comandante punha em cheque a coesão do conjunto das forças, aconteciam com alguma frequência na época). E por isso foram rompidos os seus mosqueteiros; todavia, com admiração de todos se reformou duas vezes entre o furor do conflito, e a firmeza das picas [ou seja, dos piques] a nenhum dos que entraram deixou sair. (traduzido do castelhano original, pgs. 28-29)

(K)Foto K (acima) – Um pouco mais distante do local da foto anterior, mais próximo da zona de progressão da cavalaria e da infantaria espanhola, olhando para a ala esquerda do mesmo exército. Pequenos muros de pedra como o que se vê na imagem são referidos nas narrativas da batalha.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (4ª parte)

V(F)Foto F (acima) – Vista a partir das posições da infantaria portuguesa, sensivelmente do local da segunda linha do dispositivo e já um pouco sobre a ala esquerda, olhando na direcção do centro e para o terreno ocupado pelo exército do Marquês de Caracena (ao longe). Apesar de existirem algumas pequenas diferenças de pormenor entre a Relacion verdadera e a História de Portugal Restaurado, sendo a primeira fonte narrativa mais precisa em detalhes, poderemos socorrer-nos do Conde de Ericeira para corroborar o local identificado na foto:

As três linhas de cavalaria e a segunda linha da infantaria foram ocupando, em terreno igual ao referido, os claros dos batalhões e terços da vanguarda. O primeiro terço do lado direito era o de Tristão da Cunha; seguia-se para o esquerdo Francisco da Silva e João Furtado, formados na campanha rasa. O mestre de campo Pedro César e os mais, que se continuavam conforme a ordem referida, ocupavam a colina, tornando a baixá-la até topar com as vinhas que ficavam ao lado esquerdo (…). (Ericeira, 1946, IV, pgs. 294-295)

V(G) Towards Portuguese infantry positionsFoto G (acima) – Se exceptuarmos os elementos que a acção humana introduziu de há cerca de 350 anos para cá, esta era a perspectiva que a infantaria do exército espanhol, dos terços comandados pelos mestres de campo Mojica, Cordoba e Carpio, colocados na ala direita do dispositivo de batalha de Caracena, teria das posições do exército português imediatamente em frente. A elevação ao fundo, à esquerda, é a que se apresenta na foto F. As vinhas do lado esquerdo do dispositivo português ficam aqui, logicamente, à direita, pois o terreno ainda hoje é usado para a viticultura.

Continuando com a descrição do Conde de Ericeira: (…) e no alto desta eminência plantou o general da artilharia [D. Luís de Meneses] quatro peças ligeiras, que, começando a jogar logo que apareceram os primeiros batalhões castelhanos, ainda que a distância era larga, por ordem do general da artilharia se conseguiram ao mesmo tempo dois grandes efeitos: o primeiro, que ouvindo-se em todo o exército o estrondo desta militar tormenta, todos se aplicaram a buscar os postos que antecipadamente se lhes haviam sinalado, sem dependerem das ordens dos oficiais maiores (…); o segundo, servir de alento aos soldados, que não podiam examinar as distâncias, entenderem que os castelhanos começavam a receber o dano da artilharia (…). (Ericeira, 1946, IV, pg. 295)

(H)Foto H (acima) – Pormenor da “terra de ninguém”, um pouco mais para a esquerda do local da foto G, olhando na direcção do dispositivo português. Esta parte da paisagem foi modificada pela acção humana em anos recentes, todavia a zona de terreno era originalmente bastante irregular nesta zona, como se verá na próxima entrada.

Todas as fotos devem ser referenciadas pelas letras, usando o mapa apresentado na primeira parte desta série de artigos.

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (3ª parte)

Quando se procede à interpretação de uma batalha, para além da aferição e da comparação da plausibilidade das narrativas gerais ou parcelares sobre o evento, há que ter em consideração que as concepções tácticas e os alcances efectivos e práticos das armas do período estudado (estou a referir-me especificamente ao século XVII, mas é igualmente válido para outras eras) eram muito diferentes das actuais. A apreciação do terreno de batalha, se ele não estiver muito modificado em relação ao que serviu de palco à acção estudada, deve ter em conta esse princípio básico. Recordo que no tempo da batalha de Montes Claros, o alcance prático de um mosquete era inferior a 100 metros, o de um arcabuz ainda menos, o de uma pistola menos de 10 metros (contra couraças havia que disparar à queima-roupa para garantir maior probabilidade de penetração). E que na maior parte dos casos os combates se resolviam à arma branca. Portanto, a distância que separava as primeiras linhas de duas forças dispostas em batalha no início de uma refrega era relativamente reduzida (entre 300 a 400 metros, ou até menos), pois permitia a evolução das tropas a uma distância ainda segura, no caso da infantaria, e os preparativos para o lançamento ou recepção da carga (e do escaramuçar prévio com carabinas) por parte da cavalaria. A extensão de cada uma das linhas dependia do número das unidades e dos efectivos que as constituíam. Convém lembrar que os terços, no terreno, se formavam em esquadrões de 10 filas de profundidade, contando nestas as de mosqueteiros (normalmente as duas ou três primeiras fileiras de cada esquadrão, o qual continha nas alas mais 4 a 5 filas de arcabuzeiros – sobre o significado específico desta terminologia, consulte-se este artigo). E que, na verdade, cada esquadrão podia conter elementos de mais do que um terço, ou destacar mangas de atiradores para outros esquadrões, ou para serem interpolados com a cavalaria, ou para defenderem um ponto específico do terreno, actuando assim como pequenas unidades independentes.

O cálculo da extensão de cada uma das linhas deve levar em conta que os efectivos dos terços variavam muito, mas que cada esquadrão teria em média, no caso concreto da batalha de Montes Claros, entre 500 e 600 homens. Sem esquecer os claros, ou seja, os intervalos entre os esquadrões de infantaria ou os batalhões de cavalaria formados no terreno. Seguindo à risca o que estava determinado nos tratados militares, os claros deviam ter espaço suficiente para permitir a manobra de um esquadrão ou batalhão, o seu avanço ou recuo sem se embaraçar com as unidades amigas que estavam na sua frente ou retaguarda. Mas nem sempre assim acontecia, ou porque a natureza do terreno não o permitia, ou por motivos de coesão das próprias linhas. Foi precisamente o que aconteceu com os batalhões da cavalaria do exército espanhol em Montes Claros, que na sua carga sobre a ala direita portuguesa vieram reforçados, mas com prejuízo do intervalo entre as unidades. Após o sucesso inicial, em que desbarataram as primeiras linhas da cavalaria do exército português, não conseguiram reorganizar-se e foram derrotados pelo contra-ataque levado a cabo pelos portugueses.

Continuemos o nosso passeio pelo campo de batalha, passando às fotografias.

Foto C – A partir da ala direita do dispositivo espanhol (posição ocupada pelos terços de infantaria), olhando para o flanco esquerdo (no terreno mais ao fundo progrediria a cavalaria). À distância, a serra da Ossa. Note-se a natureza relativamente plana do terreno, mas com alguns espaços mais fechados, com pedras, árvores de pequeno porte e matagal, não muito diferente do que é descrito nas fontes narrativas. Foi por causa deste tipo de terreno que o Conde de Schomberg mandou formar um destacamento na vanguarda do exército, comandado pelo mestre de campo António de Saldanha, dos auxiliares da comarca de Tomar, com quinhentos infantes de todos os terços de auxiliares, que levavam ferramentas para abaterem os valados e facilitarem os passos dificultosos. (Ericeira, 1946, IV, pg. 290)

V(C) Spanish initial positionsFoto D – Vista sobre as posições espanholas, a partir do terreno em frente da primeira linha da cavalaria portuguesa, na ala direita do dispositivo (que contava com dois terços de infantaria de reforço nessa primeira linha, os dos mestres de campo José de Sousa Cid e Matias da Cunha, interpolados com seis batalhões de cavalaria). Foi através deste terreno que a cavalaria do exército espanhol progrediu para carregar congénere a portuguesa e os terços atrás mencionados, obtendo algum sucesso inicial.

(D)Foto E – Vista a partir das linhas intermédias e retaguarda do dispositivo espanhol, olhando para o flanco esquerdo, ocupado pela cavalaria. O pequeno lago que se pode ver na foto não existia em 1665.

V(E)

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (2ª parte)

As fontes narrativas de que dispomos para o estudo da batalha de Montes Claros são as seguintes:

– D’ABLANCOURT, Frémont (1701), Mémoires De Monsieur D’Ablancourt Envoyé de la Magesté Trés-Chrétienne Louis XIV, en Portugal; Contenant L’Histoire de Portugal, Depuis le Traité des Pyrenées de 1659, jusqu’à 1668, Amsterdam, J. Louis De Lorme.

– ERICEIRA, Conde de (1946), História de Portugal Restaurado, edição anotada e prefaciada por António Álvaro da Silva Dória, Porto, Livraria Civilização, vol. IV.

Relacion verdadera, y pontval, de la gloriosissima victoria que en la famosa batalla de Montes Claros alcançò el Exercito delRey de Portugal, de qve es Capitan General Don Antonio Luis de Meneses Marquez de Marialua, Conde de Cantañede, contra el Exercito delRey de Castilla, de qve era Capitan General el Marquez de Caracena, El dia diez y siete de Iunio de 1665. Con la admirable defensa de la plaça de Villa Viciosa, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliuera, 1665.

A estas, que definiria como principais, poderia juntar ainda duas outras:

– “A Relation of the last summers Campagne in the Kingdome of Portugall, 1665”, anonymous (by an officer of an English Regiment of Horse), 23 June 1665, The National Archives, London, State Papers Portugal, SP 89/7

– DUMOURIEZ, Charles François (1807), Campagnes du Maréchal de Schomberg en Portugal, depuis l’année 1662 jusqu’en 1668, Londres, De l’Imprimerie de Cox, Fils, et Baylis.

Estas são muito diferentes entre si. A obra de Dumouriez (que não é memorialista nem historiador, mas aventureiro e militar de carreira – um dos generais vencedores da batalha de Valmy em 1792, caído em desgraça perante a Convenção e que passou a servir os ingleses) navega muito à vista de D’Ablancourt e do Conde de Ericeira, não podendo por isso ser considerada fonte primária. Já a relação anónima de um oficial inglês de cavalaria é um manuscrito que traduzi para português num artigo publicado em 2009 (Lusíada, série II, nº 5/6, pgs. 341-355). Devido ao relato muito marcado pelo “nevoeiro de guerra” e ao discurso fortemente laudatório da participação inglesa na batalha, não é uma fonte que possibilite uma percepção geral dos acontecimentos, embora seja muito interessante como memória particular.

Voltando às fotografias publicadas no anterior artigo, comecemos pela primeira, em que se traçou a rota do exército português até ao campo onde se travou a batalha, e se indicou a rota que o mesmo deveria seguir até Vila Viçosa, não fora a chegada do exército espanhol. O Conde de Ericeira refere o seguinte:

(…) se assentou que o exército se pusesse em marcha  quarta-feira dezassete de Junho, com ordem que se tomasse o primeiro alojamento no sítio de Montes Claros, uma légua distante de Estremoz, outra de Vila Viçosa, considerando-se que nele se apartavam dois caminhos que iam demandar: o da mão direita, à serra de Lavra de Noite; o da mão esquerda, o outeiro da Mina, porque, com esta resolução, obrigávamos aos castelhanos, confusos na perplexidade do nosso intento, a dividirem o exército em defesa dos dois fortes que haviam fabricado. E para que a nossa marcha ficasse menos perigosa, na mesma noite de quarta-feira havia de ocupar um troço do exército a serra da Vigaira, que ficava eminente ao outeiro da Mina, e conseguido este intento, ganhar-se na mesma noite a serra de Barradas, distante da Vigaira um tiro de pistola, porque, ocupados estes dois postos, não parecia dificultoso socorrer a praça (…).

O dia antecedente havia dado ordem o Conde de Schomberg ao comissário geral Bartolomeu de Barros [Caminha], que aquela noite saísse com seis batalhões [unidades tácticas de cavalaria] e ocupasse a serra da Vigaira e outras quaisquer eminências mais vizinhas ao exército que lhe fosse possível, e prontamente fosse mandando avisos de todos os movimentos que observasse; porém, a ordem se distribuiu tão confusamente, que Bartolomeu de Barros não saiu de Estremoz senão ao amanhecer do mesmo dia da batalha (…)

Neste tempo marchava, avançado do exército, o comissário geral Bartolomeu de Barros, levando os seis batalhões (…), pretendendo observar os movimentos dos castelhanos de algumas das eminências superiores àquela campanha, sem reparar que haviam ocupado o alto da serra da Vigaira as companhias da guarda do Marquês de Caracena. (Ericeira, 1946, IV, pgs. 288-291)

O comissário geral recebeu então ordem do Conde de S. João para que fizesse alto, e não se expusesse demasiado ao perigo. No entanto, a narrativa do Conde da Ericeira parece estar depurada, no que toca a este episódio, de uma eventual responsabilidade do general da cavalaria Dinis de Melo de Castro. Segundo D’Ablancourt, teria sido o general o responsável por enviar apenas 30 cavaleiros em reconhecimento à serra da Vigaira, tendo estes recuado quando viram a eminência ocupada pelo Marquês de Caracena. O Conde de Schomberg repreendeu Dinis de Melo pelo facto de não ter cumprido as ordens escritas, pois devia ter enviado os seis batalhões de cavalaria na noite anterior, o que não fez (D’Ablancourt, 1701, pg. 239).

Onde ambas as fontes coincidem é no facto de o terreno onde se desenrolou a batalha ser aquele que se estende pela planície irregular, com pequenas elevações, vinhedos e zonas de vegetação densa, em frente da serra da Vigaira.

Chegado o Conde de Schomberg à eminência que ocupava o Conde de S. João e o general da artilharia [D. Luís de Meneses], observaram que os batalhões da cavalaria inimiga sucessivamente vinham saindo à campanha, havendo estado cobertos com a serra da Vigaira. (Ericeira, 1946, IV, pg. 293)

Neste tempo vimos aparecer dez esquadrões castelhanos [D’Ablancourt utiliza o termo “esquadrão” para a unidade táctica da cavalaria, que ao tempo, entre portugueses e espanhóis, era designada por batalhão], que saíam por um vale que vinha por detrás da montanha de Montes Claros [a serra da Vigaira]; dez outros seguiam-se e em pouco tempo vimos duas linhas formadas que preenchiam toda a frente do vale, que iam aumentando do lado dos portugueses, cada linha tinha 22 esquadrões e estava distante da direita dos portugueses um tiro de canhão. (D’Ablancourt, 1701, pgs. 239-240; tradução minha)

Note-se que quando o exército espanhol iniciou o seu desdobramento, o exército português ainda estava formado em duas linhas, em marcha de costado, e com a vanguarda na direcção de Vila Viçosa, seguindo a rota que pretendia tomar para aquela localidade.

Para as fotos que a seguir são apresentadas, tome-se como referência a fotografia de satélite publicada no artigo anterior.

Foto A – Local onde se ergue o padrão comemorativo da batalha, um pouco à frente da primeira linha do exército espanhol, sobre o lado direito (onde estava disposta a infantaria).

V(A) Montes Claros MemorialFoto B1 – Vista a partir de um local adiantado ao flanco direito do dispositivo espanhol; tal como em 1665, toda a zona se encontra preenchida por vinhas.

V(B) Spanish rightFoto B2 – Do mesmo local, mas olhando para a serra da Vigaira, que em 1665 provavelmente não apresentaria vegetação tão densa como a que hoje a cobre.

V(B) Vigaira on the background

Périplo por um campo de batalha – Montes Claros, 17 de Junho de 1665 (1ª parte)

O objectivo desta pequena série de artigos é dar a conhecer o estado actual do campo onde se travou a batalha de Montes Claros. Recentemente considerado património nacional, graças ao empenho do Dr. Alexandre Patrício Gouveia e da Fundação Batalha de Aljubarrota, fica assegurada a sua preservação e abrem-se boas perspectivas para a construção de um núcleo museológico e interpretativo, a exemplo do que já existe em S. Jorge (batalha de Aljubarrota).

Todavia, muito está ainda por fazer quanto à interpretação da batalha. O estudo mais recente (Gabriel Espírito Santo, Montes Claros, 1665 – A Vitória Decisiva, Lisboa, Tribuna da História, 2005), conquanto tenha os seus méritos na maneira como procura integrar o acontecimento no contexto histórico-militar do período, falha precisamente no essencial: a identificação do terreno e a disposição das forças em confronto. Infelizmente, em alguma historiografia militar portuguesa tem existido a tendência para seguir à letra determinadas fontes narrativas sem as questionar, e descurando a pesquisa arquivística e o confronto com fontes históricas mais diversas. O resultado é a perpetuação de erros e mitos, que só um trabalho meticuloso de análise permite corrigir e desmontar.

Com este pequeno périplo pelo campo de batalha de Montes Claros, encetado no terreno há pouco mais de dois anos, tentarei justificar a minha interpretação acerca de onde e como se desenrolou a maior e mais importante batalha da Guerra da Restauração. Para estimular a curiosidade, deixo aqui, de momento, somente as primeiras fotografias, (retiradas do programa Google Earth). Os textos explicativos e a fundamentação do que aqui apresento irão sendo introduzidos a seu tempo.

Na primeira foto (Google Earth) assinalei a verde a marcha de aproximação do exército português comandado pelo Marquês de Marialva. A amarelo, a marcha que este general tencionava fazer com o mesmo exército rumo a Vila Viçosa, então cercada pelo exército espanhol sob o comando do Marquês de Caracena. Etapa que não chegou a efectuar-se, porque o Marquês de Caracena se antecipou na manobra e saiu ao encontro dos portugueses.

1 Route of approach of the Port Army (GoogleEarth)Na segunda foto, também de satélite, assinala-se:

– a amarelo, a marcha do exército espanhol comandado por Caracena, vindo de Vila Viçosa;

– a azul e a vermelho, as primeiras linhas do desdobramento inicial dos dispositivos português e espanhol, respectivamente (aqui apresentadas a título informativo, sem detalhe quanto às unidades ou à disposição da infantaria, cavalaria e artilharia, e omitindo as restantes linhas);

– o ponto vermelho assinala (aproximadamente, pois é impossível fazê-lo com exactidão) o local que o Marquês de Caracena escolheu para permanecer durante a batalha, na serra da Vigaira – à rectaguarda e sobre a direita do dispositivo espanhol; daí tinha uma excelente visão do campo de batalha, mas sem possibilidade de intervir prontamente e em pessoa na refrega, ao contrário do que sucederia com o Marquês de Marialva e o Conde de Schomberg;

– com letras, a referência dos locais por mim fotografados e que serão aqui publicados e identificados nas próximas entradas.

Montes Claros Google

Há 350 anos… Batalha do Ameixial, 8 de Junho de 1663

Não é este o espaço para tratar em profundidade uma das raras e mais importantes batalhas da Guerra da Restauração, sobre a qual decorrem hoje 350 anos. Continuo a trabalhar sobre a campanha de 1663, da qual a batalha do Canal ou do Ameixial (por vezes também recordada como batalha de Estremoz, sobretudo em documentos estrangeiros) constituiu o clímax, mas que não deve fazer esquecer a importância da tomada de Évora – então uma das principais cidades do Reino – por D. Juan de Áustria e a subsequente recuperação da urbe, após novo cerco, pelo exército português. Ao invés da repetição de narrativas de história-batalha respigadas das crónicas coevas, com pouca ou nenhuma investigação arquivística e nenhum esforço interpretativo, como infelizmente se pode encontrar em obras recentes, prefiro deixar maturar um trabalho que esteve para ir para o prelo há uns anos, continuando a ampliá-lo e a problematizá-lo com fontes nunca exploradas e bibliografia espanhola recente. A seu tempo voltarei a este assunto.

Será mais apropriado para o propósito de divulgação deixar aqui os escritos da época, pela pena de António Álvares da Cunha e D. Jerónimo Mascarenhas.

Começo pela narrativa de Cunha (pgs. 42-53, numa transcrição abreviada):

Era a campanha entre a vilas de Estremoz e a do Cano distante uma légua de ambas, não plana, porque quase toda por aquela parte é montanhosa. Ocupou o inimigo com a sua infantaria duas colinas e a pouca planície que havia entre uma e outra. Pelos costados estendeu a sua cavalaria, e a esta fomentavam alguns esquadrões de infantaria, que se formaram nas ladeiras das colinas que caíam para aqueles lados; entre esta infantaria acrescentava o número à vista, ainda que não ao proveito, um esquadrão na reserva, de três mil prisioneiros portugueses que saíram rendidos de Évora, os quais tiveram sempre metidos na Cartuxa, não curando mandá-los para Castela como eram as capitulações a respeito do nosso exercito vizinho.

O exército inimigo mudou a forma devido à falta da gente com que guarneceu Évora, e assim a 1ª linha da infantaria não tinha mais do que 7 esquadrões, o de D. Anielo de Gusmão e D. Luís de Frias tinha o corno direito, seguia-se-lhe o Conde de Escalante, a cujo cargo estava também o terço de D. Gonçalo de Córdova, morto no Degebe. O 3º era o de D. Rodrigo Moxica. O 4º de D. João Henriques e D. Lopo de Abreu. O 5º do Conde de Charni e do Conde de Losestain. O 6º do Marquês de Casin. O 7º de D. António Guindaço e D. Camilo de Dura.

Da cavalaria tinha a 1ª linha do corno direito da vanguarda 20 batalhões, os 4 das guardas dos generais e do tenente-general D. Diego Correa, 5 com o comissário geral D. Miguel Ramona, 5 com o comissário geral D. Luís de Sey e 5 com o comissário geral D. António Montenegro. A 2ª ala deste corno estava à ordem do tenente-general D. Belchior Porticarrero, tinha com a sua companhia 15 batalhões, porque 6 mandava o comissário geral D. João de Novales, 4 D. Josef de la Reatagui e 4 D. João de Ribera. A 1ª ala do corno esquerdo tinha o mesmo número que o direito, com o tenente-general D. António Moreira e os comissários gerais João Ângelo Valador e D. Francisco de Aguiar. A 2ª linha tinha a mesma igualdade que a do corno direito a que correspondia, a cargo do tenente-general D. Juan Jacome Mazacan e do comissário geral D. Hieronimo Garcia. Na reserva, que também tinha cuidado dos rendidos de Évora, estavam 12 batalhões com o comissário geral D. João Cortéz de Linhen.

Oito peças de artilharia em 4 postos coroavam as eminências; a retaguarda do exército cobria inumerável carriagem.

Imagem: Local onde se colocou, em formação de batalha, a maior parte da cavalaria de D. Juan de Áustria, na ala direita do exército, junto ao monte onde estava disposta a infantaria. A foto foi obtida no ponto por onde se estenderia a 1ª linha da cavalaria. As elevações eram, à época, totalmente desprovidas de arvoredo, como aliás ainda o eram no início do século XX. A densa vegetação que hoje cobre o terreno impede que se tenha uma percepção clara do espaço de cerca de 500 metros que separava os dois exércitos – a colina onde se formou em batalha a infantaria portuguesa mal é visível nesta foto, ao fundo, sobre o lado direito. Foto de JPF.

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Pouco diferente sítio coube ao nosso exército, pois sobre ganhar uma colina não eminente às do exército contrário, mas quase igual, se contendeu a maior parte da manhã, e à viva força chegaram a ocupá-la pelas 11.00 do dia o mestre de campo João Furtado de Mendonça com o seu terço, e o coronel James Apsley com o seu regimento. Nesta e nas planícies que se estendem por seus lados formámos o nosso exército sem mais alteração, que por ser a campanha pelo corno direito dele asperíssima, impossibilitando o manejo da cavalaria, se incorporou toda no corno esquerdo, ficando no direito só 5 batalhões à ordem do comissário geral Matias da Cunha. E porque se tinha tirado da 1ª linha para interpolar com a cavalaria o terço do mestre de campo Lourenço de Sousa, que depois ao dar da batalha tornou ao seu posto, puxaram da 2ª para aquele lugar com o seu terço ao mestre de campo D. Diogo de Faro e Sousa.

A mesma dificuldade de terreno achou o inimigo e usou da mesma união da cavalaria, deixando porém com menos número o seu corno esquerdo.

E por ser chegado ao exército o terço do mestre de campo Bernardo de Miranda, depois de o formar o reservou para a sua pessoa o Conde de Vila Flor, para o empregar aonde fosse maior a necessidade, e se incorporou na reserva. Era a crescença do dia, e a calma [grande calor] afadigava tanto aos soldados, que pareceu a todos não começar por então a atacar a batalha.

Estavam os exércitos propícios à contenda, quando D. João de Áustria mandou intimar por um papel aos seus cabos, e que eles o fizeram manifesto aos seus soldados, mostrando-lhe nele a razão que tinham pelejarem com aquela constância que esperava dos corações espanhóis, e como deviam entrar na contenda com as esperanças em Deus, e para que lhes fosse favorável encomendava a todos o interior arrependimento dos vícios, e a exterior satisfação deles, e como a causa era justa, assim esperava de justiça a vitória. Persuadia mais o papel a observância das ordens militares, e algumas não piedosas, pois ordenava se não desse quartel a ninguém na batalha, mais que ao general português [Conde de Vila Flor], dando sinais de sua pessoa, e prometendo premiosa sua prisão.

O que D. João de Áustria fez por um papel, obrou o Conde de Vila Flor por sua pessoa, e a esquadrão por esquadrão assegurou a todos a vitória, e animou à peleja, ainda que foi supérflua esta segunda persuasão, porque cada soldado se exortava a si próprio ao combate; mostrou-lhes a justiça que defendiam para ter propícia a vontade divina; a liberdade que nos usurpavam, para que fosse constante a peleja; os companheiros cativos, para que com ânsia os resgatassem; a campanha destruída, para que com raiva se satisfizesse; os despojos que levavam, para que o desejo os incitasse; as vezes que foram por nós vencidos, para que os desbaratassem com confiança. A estas razões exortatórias se seguiram as ordens militares, e dado o nome, que mais nos podia assegurar a vitória que muitas ordenanças, pois foi o da purissima Conceição da Virgem Santa, nossa padroeira e protectora deste Reino. Valorosa e porfiadamente esperavam todos o sinal da batalha.

Às três da tarde começou o exército inimigo dar mostras de querer retirar-se, e o podia fazer pelo caminho de Veiros a Arronches, deixando o nosso exército pelo lado direito; mas o Conde de Vila Flor entendendo esta resolução, mandou aos generais da cavalaria Dinis de Melo e Manuel Freire, começassem a atacar a batalha, que recebiam mais a ordem como alvitre aos seus desejos, que preceito a suas obediências. Opôs-se o inimigo valorosamente à resistência, e passando os nossos uma pequena sanja, começaram a travar a peleja. Era dobrado o número da cavalaria inimiga, assim foi forçoso que os generais fossem o maior exemplo para os soldados. Assistiam nesta refrega todos os cabos da cavalaria e demais a pessoa do mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, e todos eram necessários, porque se pelejava pessoa por pessoa, esquadrão por esquadrão, linha por linha.

Não sucedia o mesmo à cavalaria castelhana, porque lhe faltava a pessoa do seu general, que como temos dito, exercia juntamente o posto de mestre de campo general; e enquanto assistia por este ofício à ordem do exército, faltava ao outro no combate da cavalaria, e se quisesse acudir a esta, áquele poderia suceder se desordenasse. Não sei a que attribua isto que seguem os mais dos governos do mundo, julgando um sujeito capaz de muitos lugares e os mais deles encontrados [quer dizer: contrários, em contradição].

Intercalo aqui a narrativa de D. Jerónimo Mascarenhas, vertida para português (o original encontra-se em castelhano):

Marcharam contra os espanhóis, com muito sossego, os seis batalhões [de cavalaria inglesa e francesa, pois foram os primeiros a entrar em acção] referidos, e com a própria gravidade as duas linhas que os seguiam, talvez para não cansar com o trote os infantes das mangas [isto é, as mangas de mosqueteiros e arcabuzeiros que os portugueses intercalaram entre os seis batalhões de cavalaria da vanguarda], e atacando os primeiros a outros tantos batalhões espanhóis do corno direito, que era o mais luzido da primeira linha (pois entravam neles as guardas de couraças e arcabuzeiros do Senhor Don Juan, compostas na maior parte de reformados escolhidos e soldados de satisfação), ao passar das armas de fogo às espadas logo se descompuseram. Culparam alguns da desordem a pouca prática do Marquês de Espinardo, seu capitão, que ainda que procurou luzir os brios do seu sangue e a circunstância de haver começado a militar com aquele emprego, não o pôde lograr senão com feridas mortais e perda de seu cavalo, ficando desbaratadas as suas tropas.

Com a mesma fatalidade e exemplar ao momento que com bem breve intervalo carregou a primeira linha dos portugueses, que seguiam os seis batalhões, toda a dos espanhóis caiu posta em fuga sobre a segunda e a desbaratou completamente. O Duque de San Germán via atónito este mau princípio desde o alto da colina, detrás do esquadrão do mestre de campo Don Anielo de Guzmán, que era o primeiro da vanguarda do corno direito, e querendo-o remediar, despachou de imediato um tenente de mestre de campo general, mandando que um terço só da infantaria italiana, que ocupava a retaguarda, baixasse a deter o ímpeto dos vencedores. E como ele destacou um terço só de um esquadrão que se compunha de diferentes terços, era operação que requeria mais tempo do que o apresto necessitava, voltou o mesmo [Duque de San Germán] a todo o galope para ordená-lo com mais eficácia em pessoa. Mas persuadindo-o a confusão que via de caminho naquelas tropas, que o caso não tinha remédio, tomou sem parar (senão para perguntar por guias) o caminho de Arronches, acompanhando-o o tenente de mestre de campo general Don Luís de Venegas, e alcançando-o pouco depois um mestre de campo e outros oficiais de menor esfera.

Imagem: A mesma colina, vista da planície onde se deu o choque das cavalarias, olhando a partir da ala direita para o centro do dispositivo inicial do exército espanhol. Sobre a esquerda, no alto da colina, estava o Duque de San Germán. Foi por esta encosta que desceu, em confusão, o terço de italianos. Para o lado direito desta foto, numa outra colina, ficavam as posições iniciais da infantaria portuguesa. Foto de JPF.

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Voltando ao texto de António Álvares da Cunha:

Enquanto as cavalarias contendiam tão fortemente, não estava ociosa a infantaria, nem a artilharia que a fazia empregar com todo o excesso o seu general D. Luís de Meneses. Era a 1ª linha muito larga, pela qual razão necessitava de mais cabos que a levassem em ordem, e por isso se encomendou o corno direito dela ao Conde da Torre, que governava a segunda, ficando governando o esquerdo André Furtado, que aquela manhã tinha chegado de Estremoz, para onde o tinha mandado o general na noite de 5, quando o inimigo se alojou no Espinheiro depois do recontro do Degebe, persuadindo-se poderiam os castelhanos ir com algum troço áquela praça, que estava a seu cargo. Em ambas as jornadas o acompanharam o mestre de campo Manuel de Sousa de Castro e Jerónimo de Mendonça Furtado.

Com a sobredita ordem abalou o Conde Schomberg à 1ª linha, e se resolveram os esquadrões a trepar pelas ásperas colinas donde estava formado o inimigo, e começaram pica a pica e corpo a corpo os portugueses a investir, e os castelhanos a defender. E vendo que em largas horas de combate se não conhecia diferença de vitória a favorecer ambas as partes, se abalaram ambas as segundas linhas, e porque a campanha era asperíssima, não conservavam aquela primeira forma estas batalhas, porque chegavam a contender primeiro aqueles esquadrões que acharam menos impedimento nos penedos, para não o acharem nos combates, com o que os esquadrões que governavam o Conde da Torre, que eram dos mestres de campo Sebastião Correia, Lourenço de Sousa de Meneses, Miguel Barbosa da Franca e D. Diogo de Faro e Simão de Sousa. Começaram a coroar a colina em que estava a artilharia inimiga, sendo o mestre de campo Simão de Sousa o primeiro que lhe pôs as mãos, donde saiu ferido de uma rigorosa bala, que quis com o seu sangue este dia esmaltar este sucesso, assim como com o seu voto sempre motivar esta vitória. E porque a 2ª linha castelhana, que estava favorecendo aquela parte, poderia ocasionar algum destroço, a carregou os batalhões que comandava o comissário geral Matias da Cunha, e esta cavalaria, com a infantaria que o Conde da Torre governava, achando pouca resistência na cavalaria inimiga que cobria aquele lado, obrigou a voltar as espaldas aos castelhanos, que os rompeu até à última fileira da sua segunda linha, sem resistir a esta fúria a mesma pessoa do seu generalíssimo, que por vezes se pôs a pé a ser companheiro de seus soldados. Estavam os nossos por esta parte tão avançados, que se enganavam os oficiais castelhanos, e muitos se aprisionaram, mandando por suas as nossas mangas, e um deles se chegou tanto ao Conde da Torre, que desconhecendo-o, o mandava como soldado seu, mas a obediência que esperava, foi contenda em que perecera se se não valera mais dos pés do cavalo, que dos braços próprios. Foi conhecido, e confessado pelos seus por tão grande pessoa, que se dissera neste papel o seu nome, a não se haver já dito a retirada.

Seguiam ao Conde da Torre em todas estas árduas contendas D. Pedro Mascarenhas e o mestre de campo Roque da Costa, já convalescido, cujo terço foi rendido em Évora, e nelas mataram o cavalo a D. Pedro, que entre todo o risco recobrou outro para continuar nos progressos da vitória.

Achou mais resistência a parte que mandava Afonso Furtado, que como tinha o seu lado coberto com a sua cavalaria, só pela frente era o combate. Os mestres de campo que contendiam por aquela banda eram Fernão Macarenhas, Tristão da Cunha, Francisco da Silva de Moura, João Furtado de Mendonça e o coronel James Apsley, que com o seu regimento sofrendo uma carga de um terço de espanhóis, que lhe ficou por frente, com o calor [ou seja: apoio] que lhe dava o mestre de campo Paulo Freire de Andrade com o seu terço, que pela razão sobredita se tinha adiantado da reserva, o degolou todo, sem que nenhum pudesse dar conta do sucesso. Contendiam os demais porfiadamente, e com o favor da nossa segunda, e terceira linha, ganhadas ambas as colinas e a artilharia delas, a mandou logo voltar contra o inimigo o general D. Luís de Meneses, que em toda a parte estava, e começaram a sentir a sua perda dos mesmos instrumentos que traziam para suas vitórias.

Desbaratadas de todo as primeiras linhas da cavalaria com perda considerável do regimento inglês, e com a morte do seu tenente-coronel Michael Dongan, puxou o general Dinis de Melo (que bem mostrou na fúria do combate o valor com que defendia o seu parecer, que foi sempre de que se esse esta batalha, e o mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, já ferido em uma mão) pelo restante dela, e com valor e constância os meteram na peleja. Estava já ferido mortalmente pela cabeça com uma bala o general Manuel Freire, que lhe havia tirado de todo a fala, e ainda assim com os acenos mandava, e morreu 3 dias depois da batalha em Estremoz (tendo estado na campanha os tendo dias necessários à segurança dela).

Não havia já corpo de cavalaria de uma e de outra parte formado, mais que os batalhões da reserva, que mandava o tenente-general D. Manuel de Ataíde e os comissários gerais João do Crato e Gonçalo da Costa de Meneses, que ficando muitas vezes entre o inimigo, não descompondo nunca a forma, foi sempre ganhando terreno.

As tropas inglesas e francesas, obrando maravilhas, se avantajavam às portuguesas, senão no excesso do combate, na razão da peleja, que se os portugueses pelejavam pela vitória, também defendiam a liberdade, e eles só pela vitória contendiam, e tão bizarramente com o exemplo do Barão de Schomberg e seu irmão [filhos do Conde de Schomberg], nos quais se verificou aquele provérbio, que as águias não produzem pombas.

Obrou esta cavalaria e estes cabos e os fidalgos portugueses que assistiam naquele exército acções nunca vistas em nenhuma batalha, pois repetidas vezes os soldados soltos e desbaratados os encorporavam diante da reserva, e tornavam á contenda; e esta é a razão porque tão pouco número prevaleceu contra quase dobrada gente, pois foi cada batalhão várias vezes novo com multiplicadas forças.

Estava já o dia nas últimas horas quando o general Dinis de Melo, que desde as primeiras da batalha até aquelas estvera sempre diante dos seus batalhões, fazendo pelejar a todos, para concluir de todo com a vitória, ordenou ao tenente-general D. Manuel de Ataíde cerrasse com os três batalhões que conservava, com sete que ainda o inimigo tinha formados. E vendo o Conde de Vila Flor a disparidade do número, mandou o mestre de campo Bernardo de Miranda com o seu terço, conduzido pelo sargento-mor de batalha Diogo Gomes de Figueiredo, a quem havia dito por vezes que aquele terço lhe havia de dar a vitória, que carregasse rijamente aquela cavalaria. O que fez a tão bom tempo e com tão bom sucesso, que as cargas do terço, e a fúria com que o tenente-general os carregou, os obrigou a deixar o campo e a declarar-se a vitória por Portugal, a qual por espaço de meia légua foi aclamando o tenente-general entre os mesmos inimigos. Esta foi a celebrada vitória do Canal, que assim se chamava o lugar donde se conseguiu, tanto antes esperada dos portugueses; na qual os castelhanos perderam toda a sua infantaria, bagagem e artilharia, quarenta bandeiras, vinte estandartes, entre eles o do generalíssimo [D. Juan de Áustria], que um francês valorosamente tomou, apesar de quem o defendia (costumada é esta nação a alcançar estes troféus).

Imagem: Vista para a retaguarda do exército espanhol, a partir da planície (ala direita do exército espanhol, esquerda do português). A extensa carriagem de D. Juan de Áustria seguia pela estrada que serpenteava por entre as elevações que se vêem ao fundo, bem como os prisioneiros portugueses trazidos de Évora, que acabariam por ser libertados na confusão da fuga do que restava das forças invasoras. Foto de JPF.

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Imagem final: O monumento que marca o local onde se travou a batalha, na planície onde chocaram as cavalarias de ambos os exércitos, tal como hoje se encontra. Estando grande parte do terreno de batalha preservado – ou seja, não urbanizado -, é lamentável que não exista sequer um núcleo museológico ou um centro de interpretação.

No entanto, é com imenso gosto que actualizo a informação aqui constante: graças ao empenho pessoal do Dr. Alexandre Patrício Gouveia, da Fundação Batalha de Aljubarrota, os campos de batalha do Ameixial, Montes Claros e Linhas de Elvas foram classificados oficialmente como Património Nacional. Está assegurada assim a sua preservação e decerto surgirão aí, no futuro, os núcleos museológicos a que acima me referi.

Foto de JPF.

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Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – de 5 a 8 de Junho

 

Aelbert_Cuyp_Descanso no acampamento, c1660 Musée des Beaux Arts, Rennes_X

Na noite de 5 para 6 de Junho alojou o exército português sobre as vinhas junto ao Degebe, começando a fortificar a posição, com a intenção de esperar naquele sítio todos os movimentos do inimigo, até chegar a ocasião da contenda. Porém, na manhã de 6 de Junho verificou-se que o inimigo se tinha posto em marcha.

Com toda a rapidez ordenaram Vila Flor e Schomberg que o exército marchasse, cortando pela estrada de Évoramonte, caminhando toda a noite, e a 7 de Junho se alojou diante do inimigo com as costas no rio Tera, que também o exército de D. Juan atingiu. Na manhã de 8 de Junho avistaram-se os dois exércitos.

Imagem: “Descanso no acampamento”, óleo de Aelbert Cuyp, c. 1660, Museé des Beaux Arts, Rennes.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – 5 de Junho

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Às 5 da madrugada do dia 5 de Junho, coberto pelo fogo da sua artilharia, começou o exército de D. Juan de Áustria a baixar das colinas contra o exército português, para intentar a passagem do ribeiro, o qual, ainda que não levasse água, tinha algumas dificultosas abertas. (Cunha, pg. 39)

De acordo com D. Jerónimo Mascarenhas, o português havia gastado toda a noite a fortificar as margens mais expostas ao acometimento, e ocupado pela manhã cedo as passagens mais oportunas para embaraçá-lo e reprimir a vivacidade dos que o fossem atacar. O Senhor Don Juan, que bem supunha esta diligência nos contrários, fez avançar de manhã cedo as tropas em parte de onde não estivessem descobertas (…). Dali passou a dar vista sobre a mão esquerda ao rio, donde mais provavelmente julgava poder obrar, não o permitindo pelos bordos altos ocupados em frente pela artilharia e tropas inimigas, que a todo transe trabalhavam na sua trincheira, dominando o terreno oposto, onde precisamente haviam de dobrar os espanhóis, se queriam intentar passagem por aquele costado. Porém durante este intervalo (ainda que menos de meia hora) que passou este Príncipe naquele reconhecimento, acompanhado do Duque de San Germán, quis supri-lo cegamente o ardor do corno direito [da cavalaria], que não conhecendo a importância da dilação, se moveram os primeiros batalhões, sem que se haja podido averiguar depois com qual ordem, até à margem da ribeira, expondo-se ao fogo das peças e mosquetaria inimiga. Acudiu logo Sua Alteza ao ruído, sem poder remediá-lo antes que os tiros portugueses estropiassem até sessenta homens, e entre eles ao mestre de campo Dom Gonzalo de Cordoba, irmão do Duque de Sessa, e a outros três oficiais de suposição, que depois morreram em Évora de seus ferimentos. (Mascarenhas, fl. 28v)

A artilharia portuguesa fora colocada por D. Luís de Meneses em tão proveitoso sítio que não havia peça que jogasse tiro em vão (Cunha, pg. 39). Mesmo assim, apesar de considerável dano, continuaram a avançar os espanhóis. Travando-se a escaramuça, encontraram tão rija resistência pelo corno esquerdo da 1ª linha portuguesa, à ordem do mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, que foram obrigados a desistir da empresa, recolhendo-se com perda até à margem do ribeiro.

Tentando outra passagem menos defendida, resolveu a cavalaria inimiga passar uma sanja não muito profunda, quando carregou contra ela o genera da cavalaria Dinis de Melo de Castro. Tocava aquela parte por aquele dia a Jorge Furtado de Mendonça, capitão de uma companhia de cavalos da província da Estremadura, que se bateu muito bem. (Cunha, pg. 40)

Avisado da determinação do inimigo, desfilou o Conde de Schomberg o exército pela outra margem do Degebe a impedir o posto que se imaginava ser investido. Já nele tinha plantado D. Luís de Meneses 5 meios-canhões. O inimigo sofreu ainda mais nesta segunda investida do que na primeira, e foi aqui que, segundo Álvares da Cunha, perdeu pessoas de conta como  o mestre de campo D. Gonçalo de Córdova, que o autor português identifica erradamente como filho do Duque de Sessa.

Frustrados por repetidas vezes estes intentos, o exército espanhol foi alojar na planície que domina o convento do Espinheiro. Dali foram enviados a guarnecer Évora 3.000 infantes e 800 cavaleiros. Ao amanhecer começou a abalar a sua retaguarda para a parte da Venda do Duque. A sua carriagem tinha marchado por toda aquela noite, com a vanguarda e a batalha, pelo mesmo caminho que havia trazido.

Imagem: Zona nas imediações do convento do Espinheiro, onde alojou o exército de D. Juan de Áustria na sua retirada de Badajoz. Foto de JPF.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – 4 de Junho

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No dia 4 de Junho, Vila Flor e Schomberg ficaram a saber que as tropas enviadas a Alcácer eram já recolhidas e as outras vinham pelo caminho de Montemor, a fim de se desviarem do exército, sendo impossível interceptá-las. Assim, nesse dia foi o exército português tomar quartel a Vale de Gramaxo, da outra parte do rio Degebe, contra Montoito, a 1 légua de Évora, sítio com comodidades para dispor um exército.

 Na tarde de 4 de Junho saiu de Évora o exército inimigo em batalha, nesta forma:

Vanguarda, 9 esquadrões, o 1º a cargo dos mestres de campo D. Anielo de Guzmán e D. Luís de Frias; o 2º a cargo de D. Gonzalo de Córdova e do Conde de Escalante; o 3º ao de D. Pedro da Fonseca e D. Juan Barbosa; o 4º ao de D. Rodrigo Moxica; o 5º ao de D. Ignacio de Alatriva, Rui Pires da Veiga e D. Joseph de Pinóz; o 6º ao Conde de Charni e D. Francisco Franqui; o 7º ao Barão de Carandolet e ao Conde de Losestain; o 8º ao Conde de Sartirana e D. Fabrizio Rosin; o 9º ao de D. Camilo de Dura e D. Márcio Origlia.

A 2ª linha repartia-se em 8 esquadrões. Destes, os comandantes eram: o 1º, os mestres de campo D. Lopo Gomes de Abreu e D. João Henriques; o 2º, D. Diego de Alvarado e Bracamonte e o terço de D. Francisco Tello, que não veio nesta campanha; o 3º de D. Juan de la Carrera; o 4º, D. Baltazar de Orbina e D. Diego Fernandez de Vera; o 5º de D. Francisco de Araújo, D. Gil de Villalva e os franceses de D. Jacques de Gomin; o 6º, Barão de Casestain; e por fim, o do Marquês de Cazin (um dos esquadrões é omitido). Total da infantaria: 15.612 oficiais e soldados.

 Os lados desta infantaria cobriam 20 batalhões por cada costado da 1ª linha, e 19 da segunda. A reserva constava de 12, quatro por cada lado e quatro atrás da bagagem. As companhias das guardas estavam entre as alas da infantaria. No corno direito as de D. Juan de Áustria, no esquerdo as do Duque de S. German. Governava a cavalaria da 1ª ala do corno direito o general D. Diego Caballero de Velásquez, o tenente-general da cavalaria D. Diego Correa e os comissários gerais D. Miguel Ramona, D. Luís de Sey e D. António Montenegro. O corno esquerdo da 1ª linha estava a cargo dos comissários gerais Juan Angelo Valador e D. Francisco de Aguiar, à ordem do tenente-general da cavalaria D. Alexandre Moreira. À 2ª ala do corno direito assistia o tenente-general da cavalaria D. Belchior Portocarrero, com os comissários gerais D. Juan de Novales, D. Joseph de la Reatagui e D. Juan de Ribera. A 2ª ala do corno esquerdo tinha a seu cargo o tenente-general da cavalaria D. Juan Jacome Mazacan e o comissário geral D. Hierónimo Garcia. As reservas estavam a cargo dos comissários gerais D. Carlos Tasso e D. Juan Cortés de Liña. Eram 94 batalhões com 6.300 cavalos. Havia 15 peças de artilharia.

O exército espanhol não fez mais do que avistar o português nos altos do Degebe, em cujas colinas colocou a sua artilharia e quebrou o sossego da noite com os seus tiros.

Fonte: António Álvares da Cunha, Campanha de Portugal pella provincia de Alemtejo, na Primavera do anno de 1663, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1663, pgs. 36-39.

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, óleo de Pieter Meulener.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – de 1 a 3 de Junho

 

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O Conde de Vila Flor permaneceu no Alandroal de 25 de Maio até 1 de Junho, tendo incorporado os socorros de Lisboa (sob o comando do comissário geral Gonçalo da Costa de Meneses) e da Beira (comandados pelo general da cavalaria Manuel Freire de Andrade). Foi no Alandroal que tomou conhecimento da força de cavalaria e infantaria enviada por D. Juan de Áustria para Alcácer do Sal. Por isso decidiu partir apressadamemte rumo a Évora, procurando apanhar o inimigo dividido. Segundo a narrativa de António Álvares da Cunha (Campanha de Portugal pella provincia de Alemtejo, na Primavera do anno de 1663, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1663), como a campanha do Alandroal a Évora é capacíssima, marchou sempre o exército em batalha, na forma seguinte; a qual se guardou em todas as marchas, e sò no dia da batalha do Canal [nome pelo qual foi inicialmente conhecida a batalha do Ameixial] se alterou, como referiremos (p. 33).

O exército dividia-se em 20 esquadrões de infantaria e 64 batalhões de cavalaria. Na vanguarda marchavam 18 peças de artilharia de vários calibres com o general D. Luís de Meneses. A 1ª linha constava de 5.000 infantes em 9 esquadrões, que governavam os mestres de campo Sebastião Correia de Lorvela, Lourenço de Sousa de Meneses (Aposentador Mor de Sua Majestade), Miguel Barbosa da Franca, Fernão Mascarenhas, Simão de Sousa de Vasconcelos, Tristão da Cunha, Francisco da Silva de Moura, João Furtado de Mendonça e James Apsley, coronel de um regimento inglês. Esta linha ficou a cargo de Afonso Furtado de Mendonça.

A 2ª linha constava de 3.500 infantes em 8 esquadrões, comandados pelos mestres de campo Pedro César de Meneses, D. Diogo de Faro e Sousa, Jacques Alexandre Tolon (francês), Martim Correia de Sá, Alexandre de Moura, João da Costa de Brito, Manuel Ferreira Rebelo e Thomas Hunt (tenente-coronel do outro regimento inglês). Esta linha ficou sob o comando de D. João Mascarenhas, Conde da Torre e futuro Marquês de Fronteira.

A reserva constava de 1.500 infantes em 3 esquadrões a cargo dos mestres de campo Paulo de Andrade Freire, Lourenço Garcês Palha, Luís da Silva e António da Silva de Almeida.

Cobriam os lados da 1ª linha de infantaria 1.500 cavalos em 30 batalhões, 15 por cada parte. No corno direito estava o general da cavalaria Dinis de Melo de Castro com os seus tenentes-generais D. João da Silva e D. Luís da Costa e o comissário geral Duarte Fernandes Lobo. O corno esquerdo da cavalaria desta linha era comandado pelo general da cavalaria da Beira Manuel Freire de Andrade, com o seu tenente-general D. Martinho de Ribeira e o comissário geral Gomes Freire de Andrade.

A 2ª linha guarnecia o mesmo número, com a mesma ordem. Regia o corno direito o tenente-general da cavalaria D. Manuel de Ataíde e os comissários gerais João do Crato e Gonçalo da Costa de Meneses; e o esquerdo o comissário geral D. António Maldonado.

A reserva era coberta por 300 cavalos em 4 batalhões, comandados pelo comissário geral Matias da Cunha.

 A disposição de tudo estava à ordem do Conde de Schomberg, a quem assistia o sargento-mor de batalha João da Silva de Sousa e os tenentes de mestre de campo general António Tavares de Pina, Pedro Craveiro de Campos e Fernão Martins de Seixas, e reformados do mesmo posto os franceses Clairan e Balandrin.

O Conde de Vila Flor, como cabeça daquele corpo, acudia a toda a parte, assistido pelo sargento-mor de batalha Diogo Gomes de Figueiredo. No mesmo exército iam particulares, como Jerónimo de Mendonça Furtado, D. Pedro Mascarenhas e António Jacques de Paiva, este destinado ao governo de Monsaraz, mas que preferiu seguir com o exército, ajudando aqueles de quem tantas vezes fora companheiro em outras contendas.

Sexta-feira, 1 de Junho: o exército acampa a 2 léguas do quartel do Alandroal, contra o Redondo. Sábado, 2 de Junho: aquartelou no ribeiro de Pardielas, 3 léguas de Évora. Domingo, 3 de Junho: apresentou-se no decantado rego da Várzea em forma de batalha, já à vista da cidade de Évora. Neste ponto se incorporou o mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, deixando em Campo Maior o terço do mestre de campo Bernardo de Miranda Henriques, que trazia consigo do partido de Penamacor. E porque a este posto se chegou tarde, não pôde o exército passar ao Azambujal do Conde, onde queria alojar naquela noite para cortar a gente que havia de vir de Alcácer, mandada regressar por D. Juan. Houve escaramuças, nas quais carregou com a sua companhia o Barão de Schomberg (filho do Conde de Schomberg), a quem tocava a guarda naquele dia, os batedores contrários, pondo-os em fuga. Toda aquela noite foi rigorosíssima de água, conservando o exército a mesma forma e o mesmo posto (Cunha, pgs. 33-36)

Por seu lado, D. Jerónimo de Mascarenhas refere que D. Juan, antecipando a chegada do exército português, mandara chamar a toda a pressa a Alcácer as tropas de Juan Jacome Mazacan. Porém, por causa da falta de disciplina e dos maus caminhos, não lhe foi possível chegar senão no domingo, bastante diminuída, cansada e dispersa por via da recolha dos despojos dos saques.

Imagem: “A emboscada”, óleo de Philips Wouwerman, in http://www.wouwerman.org

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – 25 de Maio

IMG_2753Neste dia, o exército português comandado pelo Conde de Vila Flor e pelo mestre de campo general Conde de Schomberg encontrava-se no Alandroal. Em conselho, ficou decidido que, enquanto se aguardava pelos reforços enviados de outras províncias, o exército do Alentejo devia limitar-se a cortar as comunicações e os abastecimentos entre a cidade de Évora e a fronteira.

Entretanto, na cidade recentemente conquistada, D. Juan de Áustria tomou conhecimento do dinheiro e material de guerra capturados ao exército português. Pouco antes de se iniciar o sítio de Évora, dera entrada naquela praça o numerário para o pagamento dos soldos do exército, num montante que ascendia a 45.000 escudos (um escudo correspondia a 16 reais de prata, ou 32 de bulhão, em moeda espanhola). Todo este dinheiro caiu nas mãos do exército invasor. Quanto ao material de guerra capturado, a relação dá conta de quatro peças de bronze, mil quintais de pólvora, alguma corda (morrão), duas mil balas para canhão, muito madeiramento e outros apetrechos menores para a artilharia, bem como quantidade de trigo e cevada.

(Uma relação bibliográfica será publicada no final desta série dedicada aos 350 anos da campanha de 1663, que por motivos de força maior não pôde ser iniciada no início deste mês, como eu pretendia).

Imagem: Évora – largo fronteiro à porta de Avis, por onde entrou triunfalmente D. Juan de Áustria em 22 de Maio de 1663. Ao fundo, o aqueduto. Para a direita deste fica o forte de Santo António. Foto de JPF.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – de 14 a 24 de Maio

forte Sto António

Chegado às imediações de Évora em 14 de Maio de 1663, o exército comandado por D. Juan de Áustria iniciou as operações de cerco à cidade no dia 17, após se ter apossado do forte de Santo António na véspera. O convento do Espinheiro servia de quartel-general a D. Juan. Évora caiu em poder dos espanhóis em 22 de Maio.

Assinadas as capitulações, D. Agnelo de Guzmán, filho do Duque de Medina de la Torre, foi tomar posse da cidade. Entrou pela porta de Avis e aí, no largo, esperou por D. Juan de Áustria, que ficara no forte de Santo António. O senado, os prelados e os juízes da cidade também ali foram receber o príncipe. Faltou apenas o reitor do colégio, mas instado por dois padres espanhóis, acabou mais tarde por ir ter à presença de D. Juan. De resto, os novos senhores de Évora fizeram os possíveis por cativar as boas graças dos vencidos. O Duque de Eliche presenteou o mestre de campo do terço do Algarve, Manuel de Sousa de Castro, com um riquíssimo telim, pela maneira como defendera o convento do Carmo.

No dia 23, D. Juan de Áustria foi ouvir missa à Sé, tendo sido recebido com toda a solenidade. Terminado o ofício, recolheu-se ao palácio dos Condes de Basto. O exército português encontrava-se em Évoramonte. Foi aí que D. Sancho Manuel, Conde de Vila Flor, e o mestre de campo general Conde de Schomberg tomaram conhecimento da rendição de Évora. No dia 24, enquanto Vila Flor e Schomberg entravam no Redondo com o exército português, D. Juan acompanhava em Évora a procissão do Corpo de Deus.Todos os oficiais do seu exército, bem como os soldados, se apresentaram cuidadosamente vestidos e equipados. Mas o povo da cidade, por temor ou em sinal de resistência, não compareceu nem enfeitou as janelas. Nesse mesmo dia começaram os trabalhos de fortificação da cidade, antecipando um cerco por parte dos portugueses.

Imagem: Forte de Santo António (Évora). Foto de JPF.

Postos do exército português (22) – o sargento-mor de batalha

O posto de sargento-mor de batalha foi criado, no exército português, nos inícios de 1663, por insistência de D. Sancho Manuel de Vilhena, Conde de Vila Flor. Foi introduzido desde logo no exército do Alentejo, e os primeiros oficiais que para aquele posto se nomearam foram Diogo Gomes de Figueiredo e Bobadilha (filho) e João da Silva de Sousa.

D. Sancho Manuel argumentou, junto do Conselho de Guerra, a favor da criação do novo posto. A primeira razão que expôs foi a existência daquele posto nos exércitos do Imperador do Sacro Império, a cuja imitação, por se acharem grandes conveniências nestes postos, se tem criado nos de Castela (ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1663, maço 23, carta anexa à consulta de 20 de Fevereiro). A este respeito, recorde-se que ainda antes de 1653 o Marquês de Aytona tinha proposto a introdução do posto de sargento-maior de batalha nos exércitos de Espanha, com autoridade sobre todos os mestres de campo, seguindo uma solução idealizada na Flandres (MOLINET, Diego Gómez, El Ejército de la Monarquía Hispánica a través de la Tratadística Militar, 1648-1700, Madrid, Ministerio de Defensa, 2007, pg.80; o tratado era o seguinte: Discurso Militar proponense algunos inconvenientes de la Milicia destos tiempos y su reparo al Rey nuestro señor por el Marques de Aytona, Valencia, Bernardino Noguès, 1653).

Os motivos para a introdução do posto, porém, eram diferentes. Enquanto o tratadista espanhol procurava solucionar o problema da hierarquia entre os vários mestres de campo envolvidos numa operação, não considerando satisfatória a solução de os submeter ao comando de um general da artilharia ad honorem, já no caso português a questão era mais complexa. Neste caso concreto, tratou-se de  um ataque pessoal ao Conde de Schomberg, que o Conde de Vila Flor receava viesse a ser nomeado mestre de campo general do exército do Alentejo (como efectivamente o foi, por carta régia de 15 de Março de 1663). Na mesma carta em que fundamentava a criação do novo posto, D. Sancho Manuel escrevia: com este posto se escusa o de mestre de campo general, como se vê nos exércitos do Imperador [do Sacro Império], onde o não há, porque servindo os sargentos maiores de batalha às semanas, exercitam o mesmo posto estando às ordens dos generais do exército. Vila Flor não desejava ver Schomberg como seu subordinado no exército do Alentejo. De uma penada, procurou afastá-lo, através da dispensa do mestre de campo general.

Todavia, o resultado prático foi nulo e veio introduzir ainda maior complexidade na cadeia de comando. Não só continuou a existir o posto de mestre de campo general, como os sargentos-mores de batalha iriam ter funções semelhantes aos tenentes de mestre de campo general. Em teoria, um sargento-mor de batalha estaria directamente subordinado a um capitão-general ou tenente-general do exército, ou ao governador das armas – ou seja, ao comandante supremo de um exército provincial; mas na prática, acabava também por estar subordinado ao mestre de campo general.

Imagem: “A morte de Schomberg”. Gravura inglesa representando o fatídico episódio ocorrido na batalha de Boyne (12 de Julho de 1690), onde Schomberg, aos 75 anos, era o segundo-comandante do exército de Guilherme de Orange.

O estado do exército português em 1661, segundo o Conde de Schomberg

Em 1661, Frederick Hermann, Conde de Schomberg, entrado ao serviço da Coroa portuguesa nos finais do ano anterior, fez um reconhecimento da situação militar no principal palco de operações da Guerra da Restauração – o Alentejo. Para isso, visitou a província e procedeu a um extenso reconhecimento das praças e das suas defesas, do estado do exército e da sua capacidade operacional. Teve oportunidade de presenciar a campanha de 1661, a qual não correu bem para os portugueses. Numa carta que escreveu à Rainha regente e ao Conselho de Guerra em Lisboa, pouco depois de regressar da província transtagana, Schomberg expôs as suas conclusões e considerações sobre o que devia ser a reforma do exército português, de foma a torná-lo mais eficaz. Nem todos os conselhos e sugestões foram seguidos, mas o retrato que ficou feito do exército português e das suas necessidades é aqui exposto, a partir da transcrição parcial da carta anexa à Consulta de 26 de Outubro de 1661, vertida para português corrente:

1. A principal razão porque fiz esta jornada, foi para lembrar a Vossa Majestade algumas coisas necessárias ao bom governo do Exército e a defesa das praças da Província do Alentejo. E começando por esta última parte, digo que nas praças fortificadas são necessários governadores experimentados para a defesa delas, e tenentes que os ajudem e assistam dentro das praças todo o ano, aos quais se deve encomendar muito particularmente seu reparo e conservação, e que façam provisão de faxina, estacas, pranchas e tudo o mais que parecer necessário para a defesa delas, porque a pouca notícia que têm alguns sujeitos do que podem haver mister [termo arcaico que significa necessidade], os reduzirá a grande extremo se o inimigo as sitiar, e como toda a defesa da Província de Alentejo consiste em bem acabar as praças fortificadas, e por não fazer este papel tão largo, deixo de dizer as razões que há de fazer acabar as fortificações de Estremoz, Évora e Serpa. E o que nos pode custar um dia esta dilação, somente me explicarei sobre a praça de Campo Maior, por onde se podem julgar as outras, a qual, tanto por seu mau sítio como por sua fortificação estendida, é necessário para a defender e ao forte ao menos três mil homens. E no lugar mais fraco, que é atrás do castelo, está mais imperfeita a fortificação, e a estrada encoberta está por acabar. Se o inimigo a sitiara o ano passado como entendíamos [ou seja, como prevíamos], tivéramos visto que se não achava dentro a terça parte das estacas, e pranchas, carrinhos, picaretas e outros materiais necessários, como medicamentos e cirurgiões. Entre as munições que com mais aperto pedi ao general da artilharia, foram granadas, sobre que escreveu muitas cartas a Manuel de Andrade [Freire], a que lhe respondeu que em dez anos não fora tão importunado por elas como depois que eu passei ao Alentejo. E como nos sítios [ou seja, cercos] se tem visto a utilidade delas, é necessário mandar a todas as praças maior quantidade, e fazer exercitar alguns soldados a lançá-las, e dar-lhes alguma coisa mais por isto, como costumavam fazer em Flandres Dom João de Áustria, o Príncipe de Condé e o Marquês de Caracena.

Note-se aqui a referência à necessidade de especialização dos soldados que lançavam as granadas e ao bónus a que deveriam ter direito nas pagas – o embrião das companhias de granadeiros de um futuro ainda distante – e o emprego destas tropas pelo exército espanhol na guerra contra a França, na Flandres.

(…)

6. Como o inimigo vai atacando a Província de Alentejo com exército mais considerável, me parece que Vossa Majestade deve mandar levantar maior número de infantaria, e será conveniente fazer dois terços mais, cada um de oitocentos homens, dos quais se não acham efectivos na campanha seiscentos, e para os governar escolher oficiais vigilantes e experimentados, para dar uma melhor forma à disciplina militar.

7. Que o governador das armas tenha poder de castigar e tirar os postos aos oficiais que não fazem sua obrigação, e que não permitam que os mestres de campo façam capitães e alferes sem serem bem conhecidos por seus serviços na guerra, porque a experiência mostra que a maior parte destes são seus criados, e os estão actualmente servindo depois de providos nos postos, e isto aniquila o serviço de maneira que nenhuma pessoa de qualidade quer passar pelos postos de alferes e outros, os quais não se devia dar companhias sem que primeiro passassem por estes inferiores. E tem-me mostrado a experiência que alguns capitães têm pouco cuidado de suas companhias, deixando fugir os soldados, porque sabem que não recebem menos paga do que os que têm maior número de gente, com que será necessário reformar alguns destes.

8. Tocante à cavalaria, não repito o que já na infantaria relatei. Os defeitos que se acham são: a disciplina militar muito alterada parte dos capitães, acostumados a grande descanso; o seu maior cuidado é de se aproveitarem de suas companhias, quando vão à campanha deixam alguns dos melhores cavalos nas guarnições para os mandarem a pilhagens, de maneira que na campanha passada [1661] achei [de] menos mais de trezentos cavalos do que havíamos de ter, entre os soldados muitos rapazes e muitos mal armados, alguns sem pistolas e a maior parte sem mais que uma. É necessário considerar que a força do inimigo há de ser maior que na ocasião passada, e como não podemos ter tanta cavalaria, a que Vossa Majestade tem se deve trazer na melhor forma e disciplina possível. E como El-Rei de Castela manda a esta guerra os melhores oficiais que o serviam em Catalunha, Itália e Flandres, insto na mesma opinião que propus a Vossa Majestade sete ou oito meses há, que a cada quatro companhias se dê um cabo [oficial superior, no caso um coronel] que as governe.

É o início da proposta de reforma da cavalaria, que de companhias independentes devia passar ao sistema regimental. Não teve sucesso, porém, pois apesar de haver sucessivos pareceres favoráveis no Conselho de Guerra, a forte resistência dos capitães das companhias (que assim iriam perder privilégios) e a incapacidade  da Coroa em sustentar as companhias sem o auxílio financeiro dos capitães obstaram a que a reforma tivesse lugar. Só em 1707, no início do reinado de D. João V e em plena Guerra da Sucessão de Espanha, o sistema regimental se concretizou em Portugal.

9. Os Auxiliares da Província de Alentejo, tanto cavalaria como infantaria, não chegarão à terça parte a incorporar-se com o Exército, e faltam-lhe bons oficiais para os governar e exercitar, os mestres de campo a maior parte não vão com seus terços, e como são da mesma terra favorecem muita gente e não castigam geralmente os que fogem; a cavalaria, a maior parte rapazes sem armas, será necessário remediar tudo isto e ordenar um tenente-general que veja a gente e os faça exercitar.

10. A artilharia, como os oficiais dela não são bem pagos, desculpam-se com isto quando se não faz o serviço, o vedor geral [é] pouco prático [experiente] para a campanha e coisas necessárias para ela; fica este corpo muito confuso, rouba-se a cevada, perdem-se as mulas; os artilheiros estrangeiros há quatro meses que se lhe[s] não paga, o vedor geral trata-os mal, declarando-se que os não há mister; passado um mês lhe[s] fizeram um exame para saber seu préstimo, e como acharam que se não serviam de compassos, réguas, e outros instrumentos, julgaram que não prestavam para nada, e que se podiam licenciar [dispensar]. Como em diversos sítios em que me tenho achado nunca os vi servirem-se de instrumentos para ajustarem seus tiros, não estranho que não sejam costumados a usar deles; não me parece conveniente licenciar esta gente prática, que custou tanto trabalho a buscar e tirar de França. Julgo que o motivo de quererem despedir esta gente procede de alguma inveja e imaginação, que partidos eles, o dinheiro que se lhes dá se empregará em pagar os oficiais e artilheiros portugueses. Se na província os houvera suficientes, eu fora o primeiro que dera meu voto que se mandassem para a sua terra os franceses. Não tenho mais afeição aos estrangeiros que aos naturais, e em todas as partes por onde servi nunca fiz distinção das nações, mas só [ou seja, excepto] por sua capacidade e utilidade ao serviço aonde assistia;

12. […] O meu parecer não é que se confiem os postos aos mais antigos, mas aos de que Vossa Majestade tiver informado que se tem achado nas ocasiões, por suceder nisto que um oficial em três ou quatro anos terá nisto mais que alguns outros capitães ou mestres de campo em quinze, os quais, por mais antigos pretendem ser mais experimentados, e talvez terão gastado a maior parte do tempo em suas casas, murmurando [isto é, criticando] com descanso o trabalho e acções dos outros. E como vemos que estes homens cada dia pretendem por antiguidade e recebem acrescentamentos em seus postos, não se fazendo distinção das pessoas que servem bem, se faz o serviço com pouco zelo e cuidado. E como agora a guerra é muito diferente da passada [Schomberg refere-se às características da guerra de fronteira nas décadas de 40 e 50], e a força de Castela muito aumentada no número e na ciência dos oficiais que serviram em outras partes, Vossa Majestade arriscará muito o seu Reino, e a vida e reputação dos cabos mais afectos, se lhes não der uma ordem muito absoluta (…).

14. Que acabada a campanha se façam listas, como na França e na Alemanha e noutras partes onde servi, da gente activa que ficava e das munições e da artilharia, para se tratar no tempo em que todas as coisas se acham mais baratas.

(…)

16. Tendo notícia de alguns sujeitos que fazem profissão de murmurar [criticar] de tudo, suposto que por este modo se acreditam com o povo do Exército, os danos que resulta nele destes amotinadores, Vossa Majestade o tem experimentado em muitas ocasiões, segundo me têm dito, e se não se remediar, virá alguma cujo dano exceda a todo o remédio; estes tais quiseram desacreditar as marchas, alojamentos e batalhas com que se dispôs o Exército este ano, por não haverem visto nos seus cartapácios [hoje diríamos “calhamaços”, livros volumosos] velhos as vantagens que nestas novas formas acharam os grandes capitães destes tempos. Eu tivera por particularmente ordenar Vossa Majestade que estes tais viessem diante os ministros de Vossa Majestade com os seus discursos, para se ver q não são nem foram capazes de entender o que reprovavam.

Esta última parte reporta-se à introdução da marcha de costado na campanha de 1661 – a progressão do exército no terreno já em formação de batalha – e às críticas de uma parte da elite sociomilitar a esta inovação. Uma ignorância crassa, pois já na sua Arte Militar, publicada em 1612 (mas iniciada em finais do séc. XVI), Luís Mendes de Vasconcelos, pai de Joane Mendes de Vasconcelos, preconizava e descrevia aquele tipo de progressão de um exército em campanha, mais eficaz do que a tradicional marcha dos esquadrões de infantaria, batalhões de cavalaria, trem de artilharia e comboio de víveres em longa coluna.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, maço 21-A, carta anexa à consulta de 26 de Outubro de 1661.

Imagem:  Planta de Campo Maior, uma das praças visitadas e referidas por Schomberg no seu relatório. Planta publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Regimentos ingleses ao serviço da Coroa portuguesa (1662-1668)

casacas vermelhas

Na sequência do Tratado de Aliança celebrado entre Portugal e Inglaterra em Junho de 1661, ficou acordado que a Coroa inglesa enviaria para Portugal dois regimentos de cavalaria e dois regimentos de infantaria. Os primeiros teriam um efectivo de 500 homens cada e os segundos contariam, cada um, com 1.000 infantes. Uma força de 3.000 militares profissionais, assim se esperava.

Os efectivos totais enviados para Portugal ficaram abaixo do esperado. A cavalaria contou apenas com um regimento composto, inicialmente, por 8 companhias, num total de 400 homens. Uma força bastante heterogénea, com militares provenientes do antigo exército da Commonwealth de Oliver Cromwell e outros que se tinham batido no campo oposto – os Realistas – durante a Guerra Civil Inglesa, incluindo irlandeses. Aliás, o primeiro comandante do regimento foi um irlandês, o coronel Michael Dongan, que até 1661 tinha servido como mestre de campo no exército de Filipe IV. Já os dois regimentos de infantaria embarcaram para Portugal com um efectivo total de 2.200 homens, todos eles voluntários e antigos militares do exército de Cromwell. Após a restauração da monarquia em Inglaterra, Carlos II desmobilizou a maior parte das unidades criadas por Oliver Cromwell, mas algumas mantiveram-se ao serviço da monarquia. Era o caso de três regimentos que tinham a sua guarnição na Escócia, a partir dos quais se formaram os dois que viajaram para Portugal em 1662. A infantaria veio equipada com uniformes de cor vermelha (casaca, colete e calça), provavelmente com vivos nos canhões das mangas de cor diferente para cada regimento, como era usual na época. O vermelho tornara-se cor predominante (embora não a única utilizada) nos uniformes ingleses desde a criação do New Model Army em 1645. Em suma, o efectivo inicial do contingente inglês era de 2.600 militares (2.200 infantes e 400 cavaleiros).

A deserção e o atrito das campanhas fez oscilar grandemente os números ao longo dos anos da guerra, sempre com a tendência para a diminuição, pois as reposições das perdas foram escassas. Por exemplo, na batalha do Ameixial, em Junho de 1663, o contingente inglês compunha-se de 1.600 infantes, em dois regimentos, e 300 cavaleiros, num regimento a 6 companhias. Nos finais de 1666, o regimento de cavalaria mantinha cerca de 300 soldados nas fileiras (graças a um reforço de irlandeses), mas os dois regimentos de infantaria não conseguiam, em conjunto, alinhar mais do que 700 soldados. O contingente tinha então  pouco mais da terça parte do efectivo inicial.

Os ingleses bateram-se com brio e coragem em muitas ocasiões, sendo a sua experiência militar muitísismo importante para os sucessos alcançados na batalha do Ameixial (1663), tomada de Valência de Alcântara (1664) e batalha de Montes Claros (1665).

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este tema é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais. Aqui ficam os comandantes das unidades:

Comando do contingente: Murrough O’ Brien, Conde de Inchinquin (Julho-Novembro 1662); Christopher O’ Brien (Novembro 1662-Janeiro 1663); Conde de Schomberg (1663-1668).

1º Regimento de infantaria: Coronel James Apsley. A partir de 1665, o regimento passou para o comando pessoal do Conde de Schomberg, mas o comando efectivo foi delegado no tenente-coronel William Sheldon. Este oficial liderou o regimento na batalha de Montes Claros, em 1665, tendo morrido aí em combate.

2º Regimento de infantaria: Coronel Henry Pearson; o regimento foi comandado pelo tenente-coronel Thomas Hunt na batalha do Ameixial. Thomas Hunt morreu em 1664, no ataque a Valência de Alcântara, passando o regimento a ser comandado pelo major John Rumpsey. Foi este oficial que conduziu o regimento em 1665, na batalha de Montes Claros, pois Pearson continuava ausente em Inglaterra.

Regimento de cavalaria: Murrough O’ Brien, Conde de Inchinquin (Julho-Novembro 1662); Conde de Schomberg (comandante honorário. 1662-1668). O comando efectivo do regimento foi desempenhado pelo tenente coronel Michael Dongan, até à sua morte na batalha do Ameixial. Depois,  foi entregue ao major Lawrence Dempsey, e quando este morreu em 1664, coube ao Marquês de Schomberg, o filho mais velho do Conde, chefiar a unidade até ao final da guerra.

Bibliografia:

CHILDS, John – “The British Brigade in Portugal, 1661-1668”, in Journal of the Society for Army Historical Research, vol. LIII, 1975, pp. 135-147.

Id. – The Army of Charles II, London, Routledge & Kegan Paul, 1976. (O apêndice sobre o contingente inglês, no final do volume, contém erros a respeito das unidades em que os oficiais serviram)

HARDACRE, P. H. – “The English Contingent in Portugal, 1662-1668”, in Journal of the Society for Army Historical Research, vol. XXXVIII, 1960, pp. 112-125.

Imagem: Piqueiros ingleses do período da Guerra Civil. É pouco provável que em Portugal tenham usado peitos e espaldares – embora alguns oficiais os utilizassem: numa ocasião, foram as boas armas de corpo usadas por James Apsley que o salvaram de receber danos de armas de fogo. Também as casacas seriam de um modelo diferente, mais compridas, de acordo com a moda da década de 60. Foto de J. P. Freitas – Kelmarsh Hall, “History Day” 2007.

A vedoria geral sob o olhar de um estrangeiro

Nicolas Frémont d’Ablancourt foi enviado pelo marechal Henri de la Tour d’Auvergne, Monsieur de Turenne, à corte portuguesa, a fim de controlar os assuntos das forças francesas aqui presentes a partir dos finais de 1660. Convém recordar que o contingente francês comandado pelo Conde de Schomberg estava oficialmente em Portugal “contra a vontade” do rei Luís XIV, devido ao tratado de paz estabelecido em 1658 entre aquele monarca e Filipe IV (a Paz dos Pirenéus). Frémont D’Ablancourt deixou as suas memórias sobre o período final da Guerra da Restauração, as quais foram publicadas em 1701, em Amesterdão. São uma fonte preciosa para o estudo da época.

Em relação à vedoria geral do exército do Alentejo, D’Ablancourt refere que o vedor tinha sob o seu controlo uma quantidade de comissários, e estes têm o registo de todos os cavaleiros e infantes, listas onde cada um é designado pelo nome próprio, apelido, idade, parentesco, local de nascimento, altura e sinais [particulares], onde se marcam as ausências e se abate às suas pagas o tempo que estiveram fora; usa-se a mesma precaução para os cavalos, para além da descrição que se faz, corta-se-lhes o topo da orelha direita e marca-se-lhes [com um ferro em brasa] o número da companhia, mas todas estas precauções não impedem ainda uma quantidade de abusos.

Regressarei a este assunto como uma referência mais detalhada às listas.

Fonte: FRÉMONT D’ABLANCOURT, Nicolas, Mémoires De Monsieur D’Ablancourt Envoyé de la Magesté Trés-Chrétienne Louis XIV, en Portugal; Contenant L’Histoire de Portugal, Depuis le Traité des Pyrenées de 1659, jusqu’à 1668, Amsterdam, J. Louis De Lorme, 1701, pg. 197.

Imagem: O marechal Turenne na batalha das Dunas (1658), quadro de Charles-Philippe Larivière. Frémont D’Ablancourt era um diplomata muito próximo do marechal, sendo ambos protestantes (tal como era, aliás, o Conde de Schomberg) e personagens muito influentes nos bastidores da política francesa. Turenne foi responsável pelo envio das forças francesas para Portugal durante a década de 60 do século XVII.

Postos do exército português (13) – o mestre de campo

Os mestres de campo ou são feitos por grande qualidade [fidalguia] ou por grandes serviços [desempenhados na guerra].

(carta de Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete, 22 de Agosto de 1644, in Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, publicadas e prefaciadas por P. M. Laranjo Coelho, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. II, pgs. 57-58).

O posto de mestre de campo tinha grande prestígio. Ao tempo da Guerra da Restauração existia também nos exércitos espanhol e francês. Encontrava-se apenas na infantaria e correspondia ao posto de coronel, designação que em épocas posteriores iria substituir por completo a de mestre de campo. Em rigor, havia coronéis no exército português em simultâneo com mestres de campo, pois por tradição as grandes unidades da ordenança de Lisboa eram designadas regimentos (e não terços, embora este nome surja de vez em quando nos documentos, um pequeno erro gerado pelo hábito).

De facto, atendendo ao que exigiam as regras militares, reflectidas no projecto de Ordenanças Militares de 1643, para se ascender ao posto de mestre de campo era necessário ter servido durante 12 anos em cenário de guerra, dos quais 4 no posto de capitão. Desta conformidade estavam isentas as pessoas de qualidade e nobreza, o que na prática significava que os terços podiam por ser entregues a elementos da fidalguia sem a necessária experiência militar. Sobre o sargento-mor recaía então uma responsabilidade maior.

De qualquer modo, se exceptuarmos os primeiros anos da guerra, esta situação foi relativamente rara. Houve fidalgos que se revelaram bons mestres de campo. Ao posto ascenderam também vários soldados de fortuna, com tirocínio feito nos escalões inferiores, vários deles estrangeiros. Isto no exército pago, pois nos auxiliares e na ordenança era frequente o sargento-mor ter de desempenhar o comando efectivo do terço, dado o absentismo dos mestres de campo, ou a sua inexperiência militar.

O mestre de campo dispunha de um cavalo, se bem que houvesse quem preferisse desmontar e munir-se de espada e rodela, combatendo a pé no calor da refrega.

Imagem: Combate de infantaria. Recriação histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor. Reorganizar o esquadrão de infantaria depois da confusão do choque era uma tarefa difícil, mesmo que se rompesse o contacto com alguma ordem. A maioria dos mestres de campo confiava na experiência dos seus sargentos-mores para esse fim.

O uso de “uniformes” na cavalaria

Com toda a propriedade, devemos colocar entre aspas a palavra uniformes quando nos referimos à indumentária da cavalaria durante a Guerra da Restauração. Se, entre a infantaria, o uso de uniformes no sentido moderno da palavra começava a dar os primeiros passos, mais por iniciativa pessoal dos comandantes dos terços do que por institucionalização, já entre a cavalaria seria difícil levar a cabo a distinção de unidade para unidade com base no equipamento usado. Em primeiro lugar, porque o equipamento defensivo da cavalaria era muito semelhante em qualquer exército do ocidente europeu do período – coletes ou casacas de couro e couraças de aço. Em segundo lugar, porque a companhia continuava a ser a unidade administrativa básica nos exércitos português e espanhol e as preocupações imediatas que sobrecarregavam os capitães em termos financeiros tinham que ver com a manutenção das montadas e do material de guerra imprescindível aos combatentes. A aparência distinta da sua unidade em relação às demais era um luxo impensável para a esmagadora maioria dos comandantes de companhia.

Além disso, é questionável que o conceito actual de uniforme estivesse formado na época. O uso de casacas de cores idênticas no seio de uma unidade, distinguindo-a das outras do mesmo exército, se não constituía novidade (veja-se como exemplo o exército sueco de Gustavo Adolfo), era pouco frequente, e quase sempre encontrado na infantaria. É provável que a preocupação de um comandante como Roque da Costa Barreto em dotar a sua unidade com casacas de cores específicas relevasse mais da ideia de libré (cor tradicional usada pela criadagem de uma casa nobre), do que aquilo que a partir dos finais do século XVII seria tido como norma militar. Mesmo nos casos em que uma determinada cor predominava num exército, ao ponto de se tornar um símbolo de identificação do mesmo (o vermelho das casacas inglesas, introduzido a partir do New Model Army de Cromwell em 1645), os motivos originais da escolha eram económicos e de facilidade logística – por exemplo, o corante que produzia a tonalidade escura de vermelho era relativamente comum e barato, sendo adequado ao tingimento de uma quantidade considerável de tecido.

Apesar de tudo o que acima ficou escrito, é possível encontrar na cavalaria alguns exemplos de unidades que se notabilizaram, em dada altura, pelo uso de equipamento distinto das demais. A sua excepcionalidade é revelada pelos documentos que os referem. Nenhuma delas era composta por portugueses. Assim, a companhia da guarda do Conde de Schomberg, durante a campanha do Alentejo em 1663, usava casacas azuis sobre as armas de corpo (ou seja, sobre a couraça de peito e espaldar). Note-se que não era invulgar o uso de casacas de tecido sobre as armas de corpo. Dois anos mais tarde, na batalha de Montes Claros, a mesma guarda usava capas vermelhas com cruzes brancas. Menos certo é que a cavalaria inglesa usasse casacas vermelhas, como a sua infantaria, mas a hipótese não é de pôr de parte. Outra unidade distinta era a cavalaria da guarda de D. Juan de Áustria, que na batalha do Ameixial, em 1663, usava casacas amarelas. E um documento inglês relativo à batalha de Montes Claros refere o regimento de cavalaria do alemão Conde de Rabat (que pertencia ao exército espanhol comandado pelo Marquês de Caracena) uniformemente equipado com casacas de cor castanho-claro, embora a passagem possa significar que todos usavam apenas casacas de couro. São, todavia, momentos excepcionais em que unidades de cavalaria são referenciadas pela sua aparência peculiar.

Bibliografia:

A Anti-Catastrophe, Historia d’ElRei D. Affonso 6º de Portugal, publicada por Camilo Aureliano da Silva e Sousa, Porto, Tipographia da Rua Formosa, 1845.

“A Relation of the last summers Campagne in the Kingdome of Portugall, 1665”, anonymous (by an officer of an English Regiment of Horse), 23 June 1665, The National Archives, SP89/7, fl. 49.

Imagem: Pormenor de um quadro de Jacques Callot (da colecção do Museu de Versailles), onde dragões do exército francês (reinado de Luís XIII) ostentam capas vermelhas com cruzes brancas. Uma inspiração para a cavalaria do Conde de Schomberg que se bateu em Montes Claros? Todavia, a moda e o trajo eram já diferentes por altura da batalha de 1665, nas proximidades de Vila Viçosa.

Palcos de operações (4) – Ameixial, 8 de Junho de 1663

Visão do campo de batalha do Ameixial a partir da posição do flanco direito da infantaria espanhola, sobre a planície onde se enfrentaram as cavalarias dos dois exércitos. Foto do autor.

Uma entrada nos campos de Brozas – Dezembro de 1652 (2ª parte)

Continuemos a narrativa de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), que deixámos com o resto da força incursora já em território espanhol, na zona de Albuquerque, nos cabeços denominados As Duas Hermanas.

Assim como chegámos começaram logo de ir acomodando tudo mui bem para que ficasse bem formado de noite; e logo mandaram muitas partidas ao largo, a vigiar a campanha, e a tudo isto fazendo o mais notável frio e água que nunca fez, e o pior de tudo que nunca o mestre de campo general quis deixar fazer fogo a ninguém, para que o inimigo não soubesse aonde ele estava, nem lhe visse o poder que levava. (…) [O inimigo] veio aquela mesma noite com 100 cavalos por uma estrada que vem de Badajoz para Albuquerque para ver o nosso poder e onde estávamos; mas nunca o pôde saber, porquanto por donde ele vinha estava um tenente nosso, muito grande soldado, por nome Francisco de Matos, o Coxo, com 40 cavalos todos escolhidos das tropas, e tendo as sentinelas postos mui ao largo na estrada e fora dela.

Dado o alarme, foi alertado D. João da Costa, que enviou reforços ao tenente Francisco de Matos. No entanto, a força de cavalaria espanhola não atacou, nem houve mais incómodos durante aquela noite. Mas o governador de Badajoz fôra posto a par da incursão, desconhecendo todavia a real dimensão da força portuguesa. Mandou buscar reforços de cavalaria a todas as guarnições da região, pensando que seria o bastante para enfrentar o inimigo, sem saber que havia terços de infantaria entre os invasores.

Assim como amanheceu, logo Dom João da Costa se começou [a] aparelhar para marchar, para ir esperar as tropas que tinham ido a Brozas, porque já lhe parecia que faziam mais dilação [ou seja, demora] do que eles tinham lançado conta, e assim que pondo-se em marcha para as ir esperar quando logo vem um aviso de que vinham já as tropas. Folgou muito Dom João da Costa, porque lhe davam elas grande cuidado, e assim que as viu as mandou logo incorporar connosco, porque não traziam pilhagem de consideração, porquanto foram sentidos na entrada e não acharam que trazer mais que 200 bois e 1.000 carneiros.

Incorporadas as forças regressadas da expedição a Brozas e iniciada a marcha, chegou a notícia de que o inimigo ia aparecendo á vista com muita cavalaria, mas sem infantaria. Logo D. João da Costa tratou de formar em batalha o seu pequeno exército – nesta época ainda não se praticava a marcha de costado, ou seja, as forças marchando em formação de batalha, a qual, embora fosse conhecida em teoria pelos portugueses, só após 1661 foi utilizada, graças ao Conde de Schomberg. Ofereceu-se o capitão francês Stéphane Boule de Rosières para dispor as forças em formação de batalha, o que foi aceite por D. João da Costa, conhecedor da grande experiência na matéria por parte daquele oficial (promovido a comissário geral, Rosières morreria no ano seguinte ao desta incursão, em consequência de ferimentos recebidos no combate de Arronches). Não demorou muito para que ficasse o exército pronto para a peleja.

(…) Quando neste meio tempo vem o inimigo apresentar-se por cima de uns outeiros com tanta cavalaria que a todos nós pôs certeza de haver choque (…); e assim que logo começaram muitos a buscar confessor para se confessarem, e o nosso general da cavalaria André de Albuquerque se vestiu de suas couraças, com suas plumagens brancas na viseira do murrião mui bizarro, fazendo grandes práticas [ou seja, discursos] aos capitães e soldados, que todos cuidavam que não passasse o dia sem choque.

O combate acabaria por não se dar. A força de cavalaria espanhola contava 1.800 efectivos, mas o seu comandante, verificando que o total da sua força era muito inferior aos 1.400 cavalos e 3.000 infantes dos portugueses, optou por retirar-se. Apenas aconteceu uma escaramuça entre companhias que faziam o reconhecimento de ambos os lados, na qual entre 20 a 30 cavaleiros espanhóis foram capturados. Curiosa é a observação de Mateus Rodrigues a respeito do general da cavalaria inimiga, que não nomeia, mas que

(…) os soldados castelhanos bem o diziam, enquanto ele serviu, que su general de la cavalaria era bueno para fraile, mas para soldado no, pues no queria pelejar nunca jamás [em castelhano no original].

Quanto ao saldo da incursão, depois de três dias de muita chuva e muito frio, só 200 bois foram pilhados, e esses acabaram por ser repartidos entre os generais, mestres de campo e capitães de cavalos. Mateus Rodrigues não esconde o seu desapontamento a este respeito. Ficaram a perder os soldados… e as populações às quais o gado fora roubado.

Bibliografia: Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952, pgs. 314-318.

Imagem: “O alto dos cavaleiros numa floresta”, Peter Snayers, década de 1650, Museu Hermitage, S. Petersburgo. Note-se a cena de pilhagem, à direita – uma constante da passagem de militares por qualquer zona povoada, mesmo que minimamente o fosse.

O uso de uniformes entre a infantaria

A dotação de vestidos de munição aos infantes dos terços portugueses não significava a existência de qualquer uniformização quanto à cor do vestuário ou ao padrão. É provável que, por uma questão de aprovisionamento do vestuário, as casacas, camisas e calças tivessem pontualmente uma cor comum, consoante o lote fornecido pelo vendedor. Contudo, isso seria fruto do acaso e não da determinação de qualquer ordem específica. Julgando pelas representações iconográficas coevas, já aqui apresentadas em anteriores artigos, os castanhos e os cinzentos predominavam entre os soldados. Mas no essencial, o trajo básico do militar de infantaria pouco diferia do trajo civil. A evolução da moda da época, com as variantes locais e as influências externas, encarregava-se de marcar as diferenças ao longo dos anos.

A este respeito, há equívocos que ainda hoje subsistem. Por exemplo, é muito vulgar encontrarmos desenhos e pinturas supostamente representando militares “do período da Guerra da Restauração”, que no entanto são quase decalcadas das ilustrações do célebre manual The exercise of arms de Jacob de Gheyn, impresso em 1607. A moda civil e militar das décadas de 40, 50 e 60 do século XVII já muito pouco tinha em comum com a representada naquelas gravuras, conforme revelará uma observação cuidada de algumas fontes iconográficas genuínas.

A influência estrangeira terá estado na origem da uniformização registada em algumas unidades portuguesas de infantaria na década de 60. As forças inglesas e francesas que combateram em Portugal nesse período já tinham uniformes – casacas vermelhas com vivos de diferentes cores para cada um dos regimentos ingleses, e casacas em cinzento claro debruadas com as respectivas cores regimentais no caso das francesas. Exceptuando os ingleses, cujo uniforme teve génese em 1645, com o New Model Army de Oliver Cromwell, os restantes exemplos parecem ter tido origem na vontade dos respectivos comandantes, embora em França a tendência corresse já para o uso de uniformes nos regimentos. Há também referências a unidades do exército de Filipe IV de Espanha que se apresentavam com uniformes na mesma época. Quanto ao exército português, as descrições mais completas surgem no Mercurio Portuguez, publicação mensal lavrada pela pena de António de Sousa de Macedo, que no número de Abril de 1664 reportava:

Aos 14 (…) à tarde fez uma bizarra mostra e exercício militar no Terreiro do Paço (estando Sua Majestade o Senhor Infante [D. Pedro] vendo de uma janela) o terço da Armada Real, de que é mestre de campo Simão de Vasconcelos e Sousa; saiu todo com casacas verdes, forradas e guarnecidas de amarelo; a do mestre de campo e oficiais e alguns soldados eram mais custosas, conforme ao cabedal [capacidade financeira] de cada um, mas as cores as mesmas; assim o eram também as bandeiras e a pintura das caixas [de guerra, tambores], e certo que faziam a vista mais alegre que se pode imaginar. (…)

Aos 17, também à tarde, à vista de Suas Majestades e Alteza, fez outra semelhante mostra e exercício no mesmo Terreiro o terço novo da guarnição desta Cidade de Lisboa, de que é mestre de campo Roque da Costa, todo com casacas azuis forradas e guarnecidas de vermelho, mais ou menos custosas, conforme a possibilidade de quem as vestia.

(Como é hábito, transcrevi as passagens em português corrente).

Note-se que as casacas seriam quase certamente compridas, ao estilo francês, imitando as usadas pelo Conde de Schomberg e pelas tropas francesas. Aliás, a influência estendeu-se ao exército espanhol, onde este tipo de casacas passou a ser conhecido por “xombergas”.

Bibliografia: Mercurio Portuguez, com as novas da guerra entre Portugal, e Castella.

Imagem: O uso de uniformes regimentais era comum no exército sueco de Gustavo Adolfo, bem como em ambos os campos da Guerra Civil Inglesa (1641-51). Foto do autor, reconstituição histórica, Kellmarsh Hall, 2007.