Postos do exército português (21) – O gentil homem da artilharia e o condestável

O gentil homem da artilharia era o responsável por um determinado número de peças de artilharia do respectivo trem na marcha do exército, ou tinha a seu cargo uma bateria constituída por um número variável de peças, quando estas eram dispostas em campanha ou num cerco. Segundo se pode ler  no título 23 da proposta de Ordenanças Militares de 1643,

Os gentis homens da artilharia hão-de ser eleitos de capitão de gastadores ou sargentos reformados; e hão-de exercitar o meneio e carruagem de seis peças, e assistir no marchar, alojar e plantar as baterias, fazendo que se conduza e haja tudo o necessário para elas.

Note-se que a as seis peças por gentil homem acima referidas não eram necessariamente uma dotação fixa, sendo a composição da artilharia num exército variável de acordo com os fins pretendidos e as disponibilidades materiais. Isso mesmo é observado num comentário por Joane Mendes de Vasconcelos a propósito de um outro título das Ordenanças, o 47, que pretendia regulamentar a distribuição da artilharia em proporção ao efectivo total de infantaria e cavalaria. Conforme apontou o reputado general, a artilharia se regula com as facções [ou seja, com a natureza das operações], e não com o número, e assim não é matéria para Vossa Majestade decidir em Ordenanças Militares. A propósito dos gentis homens da artilharia e do título 23, Joane Mendes mostrou algumas reservas a propósito da intenção régia (ou de quem aconselhou em privado o Rei nesse ponto) de fazer ascender ao posto os capitães de gastadores e sargentos reformados:

Se (…) tiverem suficiência para ocupar este cargo (…), se poderá eleger deles, quando não de condestáveis práticos e autorizados, sendo este um dos postos que se deve prover mais pela prática que por outro algum merecimento.

O posto de condestável não tinha nada que ver com o prestigioso cargo militar do período medieval. Era o chefe de peça, sendo também um deles o ajudante do gentil homem da artilharia.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 65 e 83-84.

Imagem: Artilheiros em acção. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa. Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. Freitas.

Postos do exército português (20) – o preboste geral

A sentinela Carl Fabritius 1654

O termo preboste deriva do latim proepositus. A designação corresponde ao oficial responsável pelo policiamento, aplicação e execução da justiça militar. Conforme escrevia Bartolomé Scarion de Pavia na sua Doctrina Militar… (1598), es cargo muy odioso y poco ó nada honroso. Esta afirmação releva das obrigações pouco simpáticas do preboste geral, que tinha de mandar enforcar, por vezes, os soldados que infringiam a disciplina militar. Em certos casos, nem os oficiais escapavam ao cumprimento da ordem de detenção levada a cabo por este seu camarada. Ascendia-se a preboste geral a partir do posto de capitão de infantaria, de acordo com o projecto de Ordenanças Militares de 1643, embora Joane Mendes de Vasconcelos, nos seus comentários, advertisse que considerando o humor dos portugueses [ou seja, o carácter], me parece bastará serem eleitos de ajudantes de infantaria. Referia ainda o general português que o preboste geral tem uma companhia de cavalos com patente de arcabuzeiros, dois tenentes e um capelão, que o acompanham com o verdugo, porque tudo é necessário para a breve execução da justiça. A companhia do preboste geral (uma das que, depois da reforma da cavalaria portuguesa de 1664, se manteve independente, isto é, não enquadrada em troços semi-permanentes) devia compreender um mínimo de 40 soldados. As Ordenanças Militares de 1643, no título 36, explicitavam que o exercício do cargo implicava a verificação da execução das ordens e bandos (editais militares), policiamento dos caminhos e atribuição dos lugares dos vivandeiros no acampamento. Estas funções não são totalmente estranhas às que passaram a ser desempenhadas pelas unidades de polícia militar em épocas posteriores.

Bibliografia:

AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 78.

ALMIRANTE, José, “Preboste”, in Diccionario Militar, Madrid, Ministerio de Defensa, 1989, vol. II, pg. 871.

Imagem: “A sentinela”, quadro de Carl Fabritius (1654). Vencido pelo sono, o mosqueteiro estará metido em grandes sarilhos se calha o preboste geral passar por ali…

Postos do exército português (19) – o capitão de gastadores

Acampamento militar

O termo gastador deriva do latim vastator, a partir do verbo vastare, devastare, e nesta forma arcaica indicava aquele que talava, assolava, destruía ou devastava uma região. No século XVII referia-se aos homens que tinham como função desbravar caminhos, construir e reparar pontes, abrir valas e minas, cavar trincheiras e de um modo geral proceder a todo o trabalho braçal de preparação do terreno para a progressão, a defesa ou o assalto do exército a uma posição fortificada inimiga. Foram os antecessores dos sapadores.

As referências a taladores ou gastadores integrando ou acompanhando os exércitos remontam ao século XV. Na época da Guerra da Restauração constituíam um elemento necessário a qualquer força militar, embora a crónica falta de efectivos  fizesse com que os soldados – pagos ou milicianos – não se pudessem, muitas vezes, eximir aos trabalhos que em princípio estariam destinados aos gastadores. O recrutamento destes elementos não-combatentes do exército (a sua única arma era a pá, o machado ou a picareta) fazia-se entre a população masculina mais habituada aos duros labores do campo – e de entre esta, recaía sobre os de mais baixo estatuto socioeconómico. Conforme refere uma consulta do Conselho de Guerra, a respeito do levantamento de um contingente de gastadores destinados ao Alentejo,  estes homens são todos jornaleiros, pessoas que comumente são pobres (ANTT, Consultas, 1644, maço 4-A, nº 191, consulta de 25 de Maio de 1644). Ou seja, eram pessoas que trabalhavam à jorna (ao dia), fazendo uma itinerância sazonal pelo país consoante a época fosse da ceifa, das vindimas, da apanha da azeitona, etc., num quadro rural que em muitos casos se estendeu até bem dentro do século XX, a troco de um pagamento miserável, muitas vezes apenas um mínimo sustento diário de vinho e pão. Homens habituados a um trabalho árduo e desgastante.

No exército português havia o posto de capitão de gastadores. Segundo a proposta de Ordenanças Militares de 1643, um capitão de gastadores devia comandar uma companhia de 50 gastadores, e assistir na fortificação, fazendo obras nela, conforme a ordem dos engenheiros, e acodem a fazer caminhos, pontes e o mais que a este respeito se lhes encomenda, e tem cuidado da guarda e distribuição das ferramentas. Joane Mendes de Vasconcelos, nos seus comentários às Ordenanças, acrescenta que [e]ste cargo se deve prover em pessoas que tenham notícia do modo de trabalhar em trincheiras, e que conheçam os gastadores, e que tenham autoridade com eles, e experiência dessa gente, para poderem formar as suas companhias e conservá-las na ocasião.

Bibliografia:

AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 65-66.

ALMIRANTE, José, “Gastador”, in Diccionario Militar, Madrid, Ministerio de Defensa, 1989, vol. I, pgs. 506-507.

Imagem: Acampamento militar junto ao rio Guadiana, perto de Moura, 1657. Planta de Nicolau de Langres, in Desenhos e Plantas de todas as praças do Reyno de Portugal pelo Tenente General Nicolao de Langres Francez, que servio na guerra da Acclamação (BNL, secção de Reservados, F2359). A construção de acampamentos temporários deste género ficava a cargo, sempre que possível, dos gastadores.

Postos do exército português (12) – o sargento-mor

O sargento-mor era o segundo-comandante de um terço de infantaria. A designação do posto mudaria para major já no século XVIII, bem como as responsabilidades de comando. Na verdade, apesar de em alguns exércitos europeus – como o inglês, por exemplo – existir o posto de major, as atribuições daquele oficial eram então diferentes daquelas que viria a ter mais tarde, quando se tornaria comandante de um batalhão (e este passaria a ser uma sub-unidade do regimento). A respeito da evolução de sargento-mor para major, veja-se este artigo de Lagos Militar.

No período da Guerra da Restauração, o sargento-mor tinha funções muito técnicas, as quais já foram abordadas neste artigo. Vejamos o que dizia o projecto de Ordenanças Militares de 1643 a respeito deste posto:

Os cargos de sargentos-mores se hão-de prover em capitães de muita teórica, prática e valor, e quando se façam de terços já formados, se há-de procurar elegê-los dos mesmos capitães que neles houver; há-de ter dois ajudantes cada um, e ajudam aos mestres de campo imediatos a eles, no governo dos terços e a quem toca formá-los, receber as ordens e dá-las, e fazer que se observem todas as mais que devem guardar os oficiais e soldados de cada terço (…). (AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 62-63).

A necessidade de haver sargentos-mores experientes nos terços (experiência que podia faltar aos mestres de campo, ou por serem de recente promoção a partir de capitães de cavalos, ou por serem providos no posto devido à sua nobreza, mas sem conhecimento profundo da guerra viva) fazia com que a maioria destes oficiais fosse de origem plebeia. Eram chamados soldados de fortuna, isto é, profissionais das armas, e como tal podiam ser estrangeiros, ainda que súbditos do rei de Portugal. Alguns destacaram-se pela sua qualidade e competência, como os espanhóis Antonio Gallo (reformado em 1643, já idoso e com pouca saúde) e Antonio Sanchez del Pozo (que morreu em combate). Muitas vezes, os terços eram comandados pelos sargentos-mores, devido à ausência dos respectivos mestres de campo. Isto era mais frequene entre as forças milicianas de auxiliares e da ordenança.

É precisamente da obra Regimiento Militar de Antonio Gallo que se retira esta passagem:

El Sargento mayor traerà un baston de quatro palmos y medio, que es el terreno, que el soldado en escuadron ocupa de costado a costado, y le puede servir quando quisiere medir un terreno justo, y no es necessario que el baston tienga hierro, que no agravia al soldado, castigandole con el, que es su insignia. (pg. 28 v)

Já perto do final da Guerra da Restauração, um relatório inglês elogiava a competência e combatividade dos sargentos-mores portugueses. O elogio é de salientar, numa época em que a apreciação (ou depreciação) dos estrangeiros era condicionada por muitos preconceitos e algum desprezo.

Imagem: Infantaria em progressão. O controlo da formação no terreno era uma das tarefas do sargento-mor. Reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kelmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Postos do exército português (8) – o capitão de infantaria

O capitão de infantaria comandava uma companhia. A insígnia do seu posto era uma gineta, espontão rematado com borlas na parte superior da haste. Em combate, o capitão podia encarregar o seu pajem do transporte da gineta e armar-se com um pique, um mosquete ou (o que era mais vulgar) combater com espada e rodela. O posto de capitão de infantaria era considerado inferior ao de capitão de cavalos, todavia era um posto de grande consideração na hierarquia militar seiscentista. Sobre a maneira de prover os capitães das companhias, tanto das tropas pagas como das milicianas, esclarece o título 9 do projecto de Ordenanças Militares de 1643:

Para capitães das companhias de infantaria se elegerão alferes reformados e ajudantes, em que uns e outros hajam servido oito anos na guerra com praça assentada debaixo de bandeira, que tenham as partes necessárias para exercitarem com prática e experiência o muito que a cada um deles se oferece e encarrega cada hora que exercitar, e os que forem de mais serviços e aprovados merecimentos nas ocasiões para maiores riscos e empenhos, precederão para serem escolhidos (…).

Porém, como em muitas outras passagens das Ordenanças Militares de 1643, Joane Mendes de Vasconcelos discordou de pormenores do projecto. No caso dos capitães de infantaria, a proposta ia contra a prática assente e instituída de facto, pelo que o experiente cabo de guerra contrapôs:

Nos terços fazem vantagem aos alferes reformados e vivos [isto é, no activo] os que são actualmente da companhia do mestre de campo, porque como governam (de ordinário) a melhor companhia deles, têm maior capacidade a este respeito que os outros, escusa consultarem-se a segunda companhia, que vaga em seu tempo, como também nos esquadrões a segunda manga de bocas de fogo do corno direito se lhes entrega firme. [Note-se, na parte final deste comentário, a referência à disposição e comando táctico.]

Também se devem admitir os alferes vivos para capitães de infantaria, toca também ao alferes entrar em capitão quando em ocasião de peleja morre o capitão da companhia, achando-se o tal alferes na mesma ocasião e proceder nela conforme as suas obrigações, e em sua pessoa concorrem as partes e requisitos convenientes.

As observações de Joane Mendes de Vasconcelos foram todas dirigidas à promoção dos alferes ao posto de capitão nas companhias de infantaria, pois que as funções inerentes ao posto eram bastante claras e sabidas, nem sendo sequer focadas no projecto – excepto no que respeitava aos ditames de ordem comportamental e moral que o capitão devia seguir. Mas aí, a resposta de Mendes de Vasconcelos foi clara:

A repreensão dos vícios que contém este capítulo toca a todos os postos, e assim me parece que se devia encomendar em título particular a conta que hão-de ter os conselheiros e os generais e não proporem a Vossa Majestade para os cargos militares pessoas conhecidas perniciosas, com escândalo.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 55-56.

Imagem: Nesta foto de uma reconstituição histórica levada a cabo pela English Civil War Society, representando uma força de infantaria do New Model Army de Oliver Cromwell, é visível em primeiro plano, à direita, com gola de aço (protecção para o peito), um capitão carregando a gineta (sem borlas). Repare-se na diferença entre a gineta e as alabardas dos sargentos que marcham na primeira fileira da formação, mais atrás.

Postos do exército português (5) – o sargento

O posto de sargento só existia nos terços de infantaria do exército pago e nos terços milicianos de auxiliares e da ordenança (que em Lisboa tinham a designação tradicional de regimentos).

Sobre o sargento especificava o projecto de Ordenanças Militares de 1643 no título 24, aqui transcrito em português actual:

Os sargentos hão-de nomear os seus capitães [entenda-se: os capitães hão-de nomear os seus sargentos] de cabos de esquadra ou soldados, de partes, e valor, e que hajam servido na guerra quatro anos, e aprovados na mesma forma que os alferes; (…) e os ditos sargentos ajudam aos mesmos capitães, em todo o governo e meneio das companhias, e neles vem a consistir a maior parte da observância das ordens militares.

Ao que Joane Mendes de Vasconcelos respondeu nos seus comentários:

Os sargentos devem ser eleitos com os mesmos anos de serviços e considerações que se disse dos alferes sobre o seu título [quatro anos de guerra viva – ou seja, servindo em zonas de combate – ou seis debaixo de bandeira, mesmo sem participar em acções militares].

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 65.

Imagem: Armas de infantaria usadas pelos sargentos: na vertical, uma alabarda, arma pessoal e insígnia do posto. Vê-se também um capacete ou murrião (ambos os termos eram comuns na época e designavam qualquer tipo de protecção metálica para a cabeça), um peito de armas (peitoral, como se diria mais tarde) e um estoque. Foto do autor, Museu da Escola Prática de Infantaria, Mafra.