Um recontro de cavalaria nas proximidades de Elvas – Cruz de Rui Gomes, 23 de Maio de 1647 (3.ª e última parte)

Continuação da transcrição do Manuscrito de Matheus Roiz:

Tanto que o meu tenente se viu ao ribeiro sem o inimigo, logo ficou mais contente, e passou o ribeiro livre. Mas apenas o passou, já o inimigo estava outra vez com ele, apertando-o grandemente até [à] atalaia, mas ele sempre pelejando, como dele se esperava, [a]té que se arrimou [à] atalaia. Mas naqueles apertos ainda o inimigo lhe captivou dois soldados e o furriel, que eram três, afora eu, que também me captivaram […].

[Q]uando eu ouvi o tiro que meu companheiro deu, a emboscada do inimigo já ia além, donde o inimigo estava, um tiro de mosquete sobre a partida do inimigo. Mas apenas ouvi o tiro, logo disse entre mim que meu companheiro dera com o inimigo e quis fazer alguma traça para me vir livrando dos dois cavalos do inimigo. Mas não me deram esse lugar, que assim como ouviram o tiro, logo presumiram que a sua emboscada era já fora, e assim se vieram a mim à rédea solta, e como eu não tinha ainda visto os mais castelhanos, fiz fugida para [a]  atalaia, pois era a mais breve retirada que tinha, mas assim como assumi correndo a um outeiro, vi toda a campanha cheia de castelhanos, que ainda andavam às voltas com a minha companhia, e se ia para lá metia-me nas suas mãos. Não tive outro remédio senão ir-me pela campanha abaixo, lá pelas vinhas da Terrinha, que é tudo campo como a palma da mão. E a tudo isto sempre apertando-me os dois cavalos grandemente, mas como o meu cavalo tinha já corrido muito, e correu ainda muito mais pelo decurso da carreira, chegaram os dois cavalos a mim e me captivaram, deixando-me em camisa, que só o que era meu [e] me tiraram valia de 20.000 réis, que me levaram um colete que me davam 10.000 [réis] por ele, e o demais tudo bom (1).

Finalmente me levaram a Badajoz com os mais e daí a 4 dias nos mandaram [de volta], e quando viemos nos mandou o Conde Martim Afonso de Melo dar munições de vestido e botas e couros a todos, porque estava bem informado de como todos fizeram bem sua obrigação, que o Conde daria tudo aos soldados que bem a fizessem. E quando vínhamos de Badajoz fomos primeiro a casa do meu capitão, que havia vindo de Lisboa com a patente da minha companhia de novo (2), e como ainda o não tínhamos visto fomos […] vê-lo. E logo fomos a falar com o Conde governador, e nos disse que se não estivera bem informado do nosso tenente o como procedemos, que nos não havia de dar nada. Viemo-nos cada um para seus alojamentos a tratar do que nos convinha, e ainda que vínhamos de Castela, vínhamos alegres.

(MMR, pgs. 166-168)

(1) O colete de couro (ou “coura”) era usualmente a única protecção dos cavaleiros de ambos os exércitos, como foi referido no artigo anterior. A ser verdade o que Mateus Rodrigues refere, tratar-se-ia de um colete de qualidade superior ao “colete de munição” distribuído aos soldados, provavelmente um despojo de guerra capturado a um oficial inimigo.

(2) A memória de Mateus Rodrigues prega-lhe mais uma rasteira aqui. D. João de Azevedo e Ataíde ainda não tinha caído em desgraça nesta altura (o combate da Atalaia da Terrinha que ditaria o seu afastamento ocorreria daí a poucos dias, a 5 de Junho), portanto não recebera “de novo” a patente da companhia. O comissário geral – a quem Mateus Rodrigues se refere por “meu capitão” num sentido mais lato de comandante da companhia – regressava de Coimbra, onde estivera sob licença entre Abril e Maio.

Imagem: Vista sobre a planície em direcção ao Caia e ao Guadiana, a partir do local onde se erguia a Atalaia da Terrinha. Toda a zona abrangida foi palco de muitos recontros entre as forças portuguesas e espanholas durante a Guerra da Restauração.

Um recontro de cavalaria nas proximidades de Elvas – Cruz de Rui Gomes, 23 de Maio de 1647 (1.ª parte)

Regressamos ao manuscrito de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), para transcrever o testemunho do soldado de cavalos acerca de um recontro nas proximidades de Elvas, no qual a companhia onde servia foi derrotada.

O sucedido ocorreu na ausência do comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde, comandante da companhia, que estava em Coimbra a tratar de assuntos pessoais. Antecedeu num par de meses a desgraça daquele oficial superior, que acabaria por perder o posto num outro desaire, de maiores proporções, também nos arredores de Elvas. Mas acompanhemos a pena de Mateus Rodrigues, numa escrita actualizada:

Estando a minha companhia de quartel na cidade de Elvas, lhe tocou fazer a guarda na campanha em 23 de Maio, véspera do Espírito Santo do ano de 1647. E como todas as companhias que fazem guarda na campanha saem logo para fora pela manhã, e como vão sempre duas, cada uma à sua atalaia, para a da Terrinha e outra para a do Mexia, e lá assistem todo o dia até noite, descobrindo tudo muito bem antes que lá cheguem, e com sentinelas em as parte mais vigilantes, de modo que saímos com a companhia para fora e não levávamos capitão, porque já se havia ausentado Dom João dela para Coimbra, e só o tenente ia com ela, por nome Agostinho Ribeiro, um dos bizarros soldados que a guerra botou de si. E como estivemos já lá no Rossio, mandou todos os batedores, cada dois para sua parte a descobrir aonde era costume, entre os quais fui eu com outro mais, por nome Pascoal Lopes, para um sítio a que chamam o outeiro da Padeira, e aí havíamos de ficar de sentinela todo o dia. Mas eu fui fazê-la a Badajoz por quatro dias!

Assim como chegamos ao outeiro, depois de ter já tudo muito bem descoberto, mas não dali para diante, que ficava ainda um posto por descobrir, arriscado. Mas não se havia de descobrir senão depois da tropa [ou seja, a companhia] ter chegado à atalaia, e aí havia o tenente de mandar um soldado em um bom cavalo a descobrir a Cruz de Rui Gomes e os carrascais dela. De modo que já nós ambos estávamos em o outeiro, vendo a companhia que já vinha chegando para a atalaia. E neste mesmo tempo ia um soldado da cidade a cavalo pela estrada abaixo, com tenção de ir segar erva em os vales de Úbeda, que havia muita. E estavam ali umas grandes casas, que eram de uma quinta de um fidalgo, as quais casas se descobriam sempre quando ia o soldado da atalaia a descobrir os carrascais. E o tal soldado que vinha da cidade andou demasiado em não procurar primeiro se se havia já descoberto as casas, pois sabia muito bem que haviam de descobri-las [o termo “descobrir” é usado como sinónimo de procurar inimigos emboscados – ou seja, também em linguagem militar, “bater um local”]. Mas não quis ser tão atilado, senão assim como chegou logo as quis descobrir, para segar a erva a seu gosto. E no mesmo tempo em que o soldado ia chegando às casas, a essa hora havia a minha companhia chegado [à] atalaia, e eu e mais o soldado lá de onde estávamos bem víamos […] ir o soldado a descobrir as casas, antes logo reparámos, dizendo mal do soldado […] ir tão cedo à erva a posto arriscado como era aquele antes que se descobrisse.

Assim como o soldado se foi assomar às portas das casas, para ver dentro se havia castelhanos, quando lhe saem de dentro dez castelhanos em dez cavalos […]. Apenas eles saíram da casa sobre o soldado, logo eu donde estava e mais o companheiro os vimos e montámos a cavalo muito depressa, tocando arma [disparando um tiro de aviso] e escaramuçando no outeiro, para que a companhia visse que havia inimigo. Mas a atalaia onde a companhia estava também os viu logo e tocou arma. Assim como o soldado viu o inimigo das casas, pôs-se em fugida pela estrada adiante, correndo quanto podia o cavalo, que não fazia mal sua obrigação, mas não lhe valeram suas diligências, que o apanharam no decurso da carreira, que ainda correria 200 passos, e assim como o apanharam, viraram com ele para casa como uns raios, tomando a estrada de Badajoz adiante, que era por onde se havia de mandar descobrir da atalaia. E eu e mais o soldado que estava comigo logo fomos pelo outeiro abaixo à rédea solta para seguirmos a partida, que já vinha a minha companhia pela atalaia abaixo como um raio, que como não havia ninguém que lhe lembrasse que naquelas casas se havia metido o inimigo, era causa para nos mover para seguir a partida, vendo se lhe podíamos tomar o soldado, quanto menos fosse, que a tenção do meu tenente era segui-la até à ponte do Caia.

(MMR, pgs. 163-165) – CONTINUA NO PRÓXIMO ARTIGO

Imagem: Cena de combate de cavalaria, óleo de Philip Wouwerman, 1645-46, National Gallery of Art.

Uma incursão falhada: Brozas, Março de 1659

Já foram aqui trazidos alguns pormenores da carreira militar de João da Silva de Sousa, iniciada no Brasil em 1639 e prolongada em Portugal entre 1642 e 1668. Um homem corpulento, amante dos jogos de cartas e dados, vaidoso e fútil, mas também bravo soldado, dotado de grande coragem pessoal, que viria a ser, já depois de terminada a guerra, capitão-general de Angola e governador do Rio de Janeiro. Sobre este fidalgo fiz uma resenha biográfica, mostrando-o como exemplo da mentalidade característica do oficial pilhante e depredador da raia (tão vulgar em ambos os exércitos em confronto), n’O Combatente da Guerra da Restauração (pgs. 273-278).

Neste blog foram anteriormente focados, de forma mais detalhada, alguns episódios da carreira de João da Silva de Sousa – a sua desavença com o comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde na Atalaia da Terrinha (1647), a captura do tenente-general Gregorio de Ibarra nos campos de Badajoz (Maio de 1652) e uma outra incursão em Brozas, esta bem sucedida (Dezembro de 1652). Aliás, a zona de Brozas era a preferida para as incursões de João da Silva de Sousa – mas a de Março de 1659 não lhe correria de feição, resultando num desastre para as forças portuguesas.

À época, João da Silva de Sousa era comissário geral da cavalaria do Alentejo. O seu superior era o tenente-general Pierre de Lalande, fidalgo francês chegado ao Reino em 1658 e que se batera com galhardia nos cercos de Badajoz e de Elvas (sem que, contudo, tivesse ocasião para confirmar a grande experiência de comando que expressavam as cartas de recomendação que trouxera de França e que levaram a que, precipitadamente, a Coroa lhe atribuísse a referida patente, ultrapassando outros oficias de maior valor e antiguidade. Silva de Sousa convenceu o tenente-general a participar numa das suas já habituais entradas de razia no território do Reino vizinho. Por essa altura governava as armas da província do Alentejo D. Sancho Manuel de Vilhena. É por sua via que chega ao Conselho de Guerra a notícia da fracassada operação, numa carta que abaixo se transcreve:

A esta casa, estando com bem pouca saúde, veio o comissário geral João da Silva de Sousa, a pedir-me lhe desse licença para obrar uma facção, que era armar às tropas do partido de Valença [Valência de Alcântara]. E para que eu lhe concedesse a licença me alhanou todas as dificuldades que se me ofereceram propor-lhe, dizendo-me que lhe mandasse asegurar a ponte de Salor pelo tenente-general Lalande, que também me perseguia com grande instância pela mesma jornada. E que se o inimigo o persentisse por alguma inteligência, que em se incorporar com Lalande não havia nenhum perigo, por terem a retirada certa e segura. E prometendo-me assim o bom sucesso, ordenei ao tenente-general Lalande que ocupasse a ponte de Salor com as tropas de Portalegre e Castelo de Vide, e que daquele posto não saísse senão depois de estar incorporado com João da Silva que havia de ir a ele, e que juntos marchassem com o que houvesse sucedido na volta de Portugal. Marchou João da Silva com as tropas de Campo Maior e de Arronches a fazer a facção, e atravessando as estradas do inimigo conheceram da pista delas os guias e os homens mais práticos [ou seja, experientes] que marchava grosso de cavalaria a esperá-los. Assentada esta resolução do inimigo e conhecida, resolveu o comissário João da Silva ir-se incorporar com Lalande para se retirarem, deixando toda a mais pretensão. E chegando à ponte de Salor, posto nomeado para estar Monsieur de Lalande, não [o] achou nele. Mas antes alcançou, que faltando à ordem que eu lhe tinha dado, se havia metido terra adentro a fazer pilhagem. E suposto que alguns oficiais lhe disseram, ao comissário geral, que seguisse a sua marcha para Portugal, e que deixasse a Lalande por haver faltado à sua ordem, ele tomou por melhor acordo o i-lo a buscar e a socorrer. Incorporados toparam ao inimigo, que os esperava em posto superior. Os nossos elegeram outro em que não estavam mal dispostos, por terem um ribeiro em meio, e com pouco acordo e mau conselho elegeram irem investir ao inimigo, sendo tudo muito contra a ordem que levavam, E como houveram de passar o ribeiro, os colheu o inimigo desordenados, e os carregou e derrotou, ficando prisioneiros o tenente-general Lalande, o comissário geral João da Silva, e os capitães Bernardo de Faria, Francisco Cabral e Dom António de Ataíde. A cavalaria se pôs em retirada às primeiras pancadas, e assim tem entrado nas praças a maior parte dela. E espero em Deus se vá recolhendo quase toda, porque como o choque foi perto da noite, houve lugar para se salvarem todos. Este foi o ruim sucesso destes dois cabos, em que ambos faltaram a tudo o que deviam e a tudo o que lhes foi ordenado, e ao que convinha ao serviço de Vossa Majestade. Mas como nesta província faltam todos comumente às ordens, e não houve até hoje nenhum que se castigasse por este delito, não é de espantar que sendo criados com esta doutrina procurem segui-la e salvar-se nela. Mas são erros estes que Vossa Majestade deve ser servido mandar castigar mui asperamente, tirando os postos aos que não guardam as ordens para que lhe seja castigo, e a outros sirva de exemplo.

Bem quisera dar sempre novas de bons sucessos a Vossa Majestade, mas as armas costumam ser jornaleiras e cada dia mudam de fortuna. Sinto eu ser a minha tão má, que nos últimos dias em que assisto nesta província sucedesse este sucesso. Deus guarde a Católica e Real Pessoa de Vossa Majestade como havemos mister. Vila Viçosa, 13 de Março de 1659.

Este episódio infeliz para as armas portuguesas ocorreu pouco antes da saída de D. Sancho Manuel do governo do Alentejo. Do efectivo de 700 homens e cavalos que partiu para a operação de pilhagem, perderam-se 232 homens, entre mortos e capturados, e mais de 400 cavalos foram tomados pelo exército espanhol. D. Jerónimo de Ataíde, Conde de Atouguia, que substituiu D. Sancho Manuel, disso deu conta ao Conselho de Guerra, fazendo acusações muito graves contra João da Silva de Sousa. Na ocasião do recontro, a cavalaria portuguesa foi posta em fugida sem se fazer cara ao inimigo nem se disparar uma arma de fogo ou dar um golpe de espada.

João da Silva de Sousa conseguiu escapar com a reputação incólume do processo que lhe foi movido, muito por força das amizades com que contava na Corte e no Conselho de Guerra, que interferiram a seu favor e impediram a justiça de seguir o seu curso. Já Monsieur de Lalande seria dispensado do serviço, por decreto de 13 de Maio de 1659, quando ainda se encontrava prisioneiro em Espanha.

Para maior indignação do Conde de Atouguia, que acusara o comissário geral de só querer saber do seu interesse particular, enriquecendo com as pilhagens em detrimento da fazenda real, do exército do Alentejo e dos seus subordinados, João da Silva de Sousa seria promovido ao posto de tenente-general da cavalaria em Agosto de 1659, ao mesmo tempo que o comissário geral italiano João (Giovanni) de Vanicelli. Contudo, Silva de Sousa passou a servir na província da Beira.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, mç. 19, consulta de 18 de Março de 1659 e carta anexa de D. Sancho Manuel; idem, ibidem, consulta de 22 de Março de 1659; Cartas dos Governadores das Armas do Alentejo…, vol. II, pgs. 277, 280, 288 e 295-296, cartas do Conde de Atouguia, de 1 e 23 de Abril, 28 de Maio e 2 de Julho de 1659.

Imagem: “Cavalaria em Batalha”, pintura de Adam Frans van der Meulen, 1657.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – parte 3

Partido o dito capitão pela outra parte da vila sem ser visto nem sentido do inimigo, foi o dito inimigo seguindo seu caminho para o dito porto, e encontrando a gente do Reguengo de sobressalto, todos se espalharam cada um por onde pôde, porém logo se foram ajuntando com seu capitão Domingos Pires Guato, e (…) se lhe ajuntou o capitão Domingos Valada com a sua companhia das Vidigueiras, e ambos juntos vieram pelos alcances do inimigo, até chegarem a avistá-lo junto aos Álvaros Gis, e por aquelas barrocas e partes mais altas e ásperas o vieram seguindo sempre, [a]tirando-se-lhe alguns tiros de mosquetes a seus corredores de retaguarda, com o que os inquietaram muito, e assim lhe vieram seguindo os passos até o Monte do Boi, dando-lhe muito boas cargas. Vendo-se o inimigo enfadado de os nossos o perseguirem tanto, ou por lhe fazer algum dano, se virou com a maior parte de sua gente em tropas fechadas para os romper, ou pôr em fugida, o que começaram a fazer alguns, que fora total perdição de todos se o capitão Valada não metera mão à espada, dando-lhe muitas espadeiradas e algumas feridas, ajudado do capitão Guato e do seu sargento, de sorte que os fizeram ter, e tiveram lugar de ganhar um palanquezinho que ali está, donde se tiveram e esperaram ao inimigo. Dando-lhe muito boas cargas o rebateram, depois de porfiarem um bom espaço por entrarem no palanque, que todo o tinham cercado, e como não lhe faziam bom agasalho, se foram alargando. Neste tempo, com o tiro de uma cravina caiu um cavalo de um que andava diante, devia de ser pessoa de porte, porque como se retirou deixando o cavalo, logo todos largaram a pretensão e se vieram em seguimento do gado que vinha pelo Monte do Caminho. Saindo às duas lameiras e serra do Vale de Xeres se vieram chegando ao rio, porém o gado todo o levaram para baixo, de modo que esteve junto do Álamo, que fica muito distante do porto por onde queriam passar. E chegando com o dito gado ao Monte dos Mouros, dizem que tiveram vista de dois ou três homens de cavalo nossos, e imaginando que havia gente nossa no porto de Portel, vieram com o gado rio acima. O capitão António Pereira, tanto que chegou ao porto de Vila Velha com a gente que levava, passou o rio da outra parte. Escolhendo um bom posto, se puseram encobertos para que se o inimigo [a]cometesse o dito posto, o rebater. E chegando alguns do inimigo ao dito porto, se disparou por descuido um mosquete nosso, com que foram sentidos os nossos, de sorte que o inimigo se começou a retirar. Contudo, aqui se lhe [a]tiraram alguns tiros de mosquete, com que se desviaram mais depressa e fizeram alto na Cabeça Solta. Ali deviam ter aviso, ou viram que o gado ia muito abaixo e marcharam todos para lá, e encontrando-o, que já vinha para cima, se vieram todos em demanda do mesmo porto, e tornaram a fazer alto na Cabeça Solta. Nesta volta que fez o inimigo, tiveram lugar as companhias do termo, que já se lhes haviam juntado a de S. Marcos e a de Montoito, de lhe darem algumas muito boas cargas entre o Vale de Xeres e o Monte da Barca. E investindo aqui os nossos, guiados do capitão Guato e Simão Lopes, com uma boa tropa que o inimigo ali tinha, lhe fizeram largar o posto e fugir para os mais. Já aqui o inimigo vinha perdido, porque a gente do capitão lhe ficava à retaguarda, e por diante achava o porto por onde queria passar impedido, e assim se resolveu a mandar duas valentes tropas, com mita gente, a passar pelo porto de Mourão, que chamam o porto de São Gens, guiados pelo mulato Mateus, natural desta vila, cativo [ou seja, escravo] que foi de Baltasar Limpo. Bem viu o capitão António Pereira vir aquela gente a passar, mandou logo pôr sentinelas, por que os não colhessem descuidados. Passado o inimigo da parte de além do rio, e feita uma das tropas em duas, os acometeu no porto com grande ímpeto e fúria, imaginando fazê-los largar o posto ou rompê-los, e com grande grita[ria] das outras tropas que ficaram desta parte com o gado, que diziam com muito altas vozes, para que as outras tropas que acometiam os ouvissem “cerra Espanha, cerra Espanha”, e isto muitas vezes, querendo também cometer o posto, para que uns de uma parte e outros de outra tomassem os nossos, que os tinham no meio, e os rompessem ou fizessem largar o posto, para eles passarem com o gado livremente. Mas foram as duas tropas tão bem recebidas e com tão boas cargas, que depois de os investirem duas vezes se retiraram com perda, e vindo a outra sua tropa muito à pressa, em socorro, se encontraram junto da igreja de Santiago que está naquele lugar, e não sei eu que novas as duas tropas lhe deram, que todas se retiraram ao largo, e depois voltaram sobre o porto de Mourão, aonde fizeram alto. A outra sua gente que estava desta parte, tanto que viu o sucesso dos seus e ouviram uns poucos tiros que alguns nossos [a]tiraram ao porto de São Gens, logo desentenderam de tudo e largaram todo o gado e fugiram infamemente pelo rio acima, indo sempre ao longo dele por partes por onde se não pode andar a pé, mas que não fará o temor e necessidade.

Neste tempo tinham chegado catorze ou quinze infantes nossos ao dito porto, e como os inimigos iam tão apressados, lhe deram suas cargas, que os meteram em tanta confusão que se apinharam dentro na água. Muitos passaram a nado pela garganta do pego, que se o rio levara alguma água ocasião houve de se perderem muitos. Aqui lhe tomaram muitas cavalgaduras carregadas de roupa e cinco cavalos seus e alguns escravos que levavam cativos, e os prisioneiros, e assim se foram fugindo. E ao passar por Mourão lhe saiu o tenente de Dom João de Ataíde [era o tenente Agostinho Ribeiro] com alguns vinte cavalos que ali ficaram, a escaramuçar com eles dando-lhes cargas e chamando-os para lhe chegar a artilharia, o que se logrou porque lhe [a]tiraram nove peças, que lhe deram no meio das tropas e lhe mataram dois cavalos, mas não se sabe quanta gente, porque não deixaram pessoa alguma. E lhes perderam no nosso termo alguma gente, eu tenho alcançado que são doze pessoas as que se acharam mortas e outras que lhe viram levar em cavalgaduras atravessadas. E de crer é que que, em tanto distrito que se lhe foi [a]tirando, lhe mataram muita gente, porque foram seguidos mais de légua e meia [aproximadamente 7,5 Km], e a tempos se lhes davam muito boas cargas, e é certo que levaram muita gente ferida, e lhe ficaram muitos cavalos mortos. De um prisioneiro que levaram até onde fizeram pouco soubemos, que toda a noite estiveram gemendo muitos que seriam os feridos, e diz este que se achou perto donde estavam falando uns castelhanos, e que dissera um: “mal viaje havemos echo”, e falando outro, parece que encontrando-o [ou seja, contrariando-o], tornara ele: “boto que nos cuesta mas de cien hombres entre muertos y heridos”, no que se não põe dúvida, pelo bom agasalho que se lhe havia feito em todo o dia. E é de notar que não houve da nossa parte nenhuma morte nem ferida, donde eu entendo e creio que foi um grande milagre que Deus Nosso Senhor fez, por intercepção do Glorioso Arcanjo São Miguel e das almas do Purgatório, cujas festas se faziam naquele e no dia seguinte. E para que ficasse todo o louvor à gente desta vila e termo do bom sucesso deste dia, há-de se advertir que mando[u] o capitão-mor desta vila dois ou três recados muito a tempo ao de Mourão; e o mesmo fez o capitão António Pereira depois de estar no rio, que lhe mandasse algum socorro, ou lhe mandasse guarnecer algum porto; não mandou soldado algum [o capitão-mor de Mourão], desculpando-se que tinha pouca gente para poder mandar. E ainda que se pudera dizer que o Limpo, com os companheiros, fizeram grande temeridade em escaramuçarem com o inimigo, não se lhe pode negar o louvor a todos; nem menos ao capitão António Pereira que, com tão pouca gente e mal disciplinada, se opôs a tanta cavalaria e tão luzida, que é de crer vinha muita gente de porte nela. Em resolução todos o fizeram muito bem e cada um melhor. Queira Deus levar muito avante este Reino, e que as armas do nosso Rei sejam sempre vitoriosas dos nossos inimigos.


E assim termina a relação. Uma longa narrativa que empola uma acção insignificante no contexto da guerra, mas de grande importância para uma região que não era então das mais agitadas pelas operações na fronteira e cuja pacatez fora quebrada de forma brusca e súbita. Essa escala de vivência da guerra confere outra dimensão ao drama humano, quase sempre esbatido no grande quadro das operações militares.

De realçar que Mateus Rodrigues não inclui esta incursão nas suas memórias, apesar do documento aqui transcrito se referir à  intervenção da companhia onde o soldado servia na altura, a do comissário geral D. João de Ataíde. Contudo, o memorialista refere, em algumas passagens da sua obra, a região onde se desenrolou este episódio e na qual a sua companhia esteve alojada pelo menos entre 1644-45 e 1648.

Um outro dado aparentemente menor, mas que é de salientar, é a referência, por parte dos soldados espanhóis, ao termo “Espanha” como grito de guerra e factor de identificação. Mais um exemplo a juntar a vários outros que tenho vindo a pesquisar e a encontrar, e que contraria opiniões académicas recentes e bem divulgadas (estou a lembrar-me de alguns trabalhos do Professor António Hespanha e do Dr. Fernando Dores Costa), nas quais se nega a ideia de “Espanha” como factor identitário por parte dos militares de Filipe IV, apontando para a historiografia tradicional portuguesa, nacionalista e romântica, a criação desse pretenso “mito”. Nada como investigar a fundo as fontes primárias para corrigir mitos mais recentes – mas é essa, mesmo, a função do historiador, cujas conclusões nunca são definitivas.

Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

Imagem: Novissima regnorum Portugalliae et Algarbiae descriptio (c. 1680). Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1681A.

Ainda a emboscada na Atalaia da Terrinha em Março de 1646

Na série relativa à campanha de Telena, foi aqui apresentado o incidente que, de certo modo, serviu de prólogo à campanha: uma emboscada sofrida pela cavalaria portuguesa às ordens do comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde. a qual foi descrita, em pormenor, por Mateus Rodrigues nas suas memórias, e também referida pelo Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado. Contudo, tal como em outras partes da narrativa do soldado de cavalos, escrita oito anos depois deste particular incidente, há pequenos detalhes que apresentam alguma inexactidão.

No caso vertente, foi referido por Mateus Rodrigues que um seu camarada de armas, da companhia onde servia (a do próprio comissário geral), um tal Gaspar Rodrigues, soldado veterano de Elvas, fora morto a sangue frio pelos seus captores. Tal pode ter acontecido, de facto, mas o certo é que não aparece nenhuma indicação na breve nota manuscrita por D. João de Azevedo e Ataíde, que se encontra anexa a uma carta de Joane Mendes de Vasconcelos a propósito do incidente, e esta inclusa numa consulta do Conselho de Guerra. Do mesmo modo, Mateus Rodrigues parece ter inflacionado o número de cavalos levados pelo inimigo (60); segundo a nota de D. João de Ataíde, terão sido 21, ou seja, cerca de um terço do sugerido pelo seu subordinado. No entanto, em tudo o mais há consonância entre as várias fontes documentais, de origens diversas, que ao incidente se reportam.

Transcritos para português moderno, aqui ficam o texto da consulta, a decisão régia e a nota do comissário geral a propósito do desaire de Março de 1646 na Atalaia da Terrinha.

Na carta inclusa dá conta a Vossa Majestade Joane Mendes de Vasconcelos, mestre de campo general do Exército e Província de Alentejo, de como na madrugada de 20 deste mês teve aviso que haviam entrado alguns cavalos do inimigo nos nossos campos. E mandando sair com a cavalaria que se achava naquela praça, ao comissário geral Dom João de Ataíde, que chegou até à Terrinha, e ali deixou misturar com as suas tropas as do inimigo, que estavam de emboscada nas barrancas de Caia para a parte de Telena, onde perdemos os cavalos e soldados da memória que juntamente vai com a carta, examinada com todo o cuidado e diligência, e diz que a perda não é grande, mas é coisa muito considerável a falta de ânimo e disciplina com que obra a nossa cavalaria em algumas ocasiões, e estas, e maiores desordens haverá enquanto Vossa Majestade for servido que ela esteja no estado em que se acha de presente.

Ao Conselho pareceu dar conta a Vossa Majestade do que avisa o mestre de campo general acerca deste sucesso, para que seja presente a Vossa Majestade. Lembrando de novo a Vossa Majestade quanto convém a seu Real serviço não dilatar mais nomear generais da Cavalaria e Artilharia para o Exército de Alentejo, pelos inconvenientes que do conteúdo resulta.

Lisboa, 28 de Março de 1646.

[Resolução régia]

Nomeio para governador da cavalaria do exército de Alentejo a Dom Rodrigo de Castro, e para tenente-general dela a Dom João Mascarenhas [ilegível, tinta apagada devido à humidade – mas pode ser: e assim se dê] logo a cada um deles [ilegível, tinta apagada devido à humidade] lhe despachos com toda a brevidade. Lisboa, a 13 de Abril de 1646.

E vencerá Dom Rodrigo o mesmo soldo de general.

[Nota anexa de D. João de Ataíde]

Cavalos e soldados que faltaram na ocasião da Terrinha.

Da companhia do comissário geral faltaram soldados quatro.

Cavalos, entre mortos e que levaram o inimigo, sete.

Da companhia do capitão Gil Vaz, soldados dez.

Mais dez cavalos destes soldados, que ficaram desmontados.

Do regimento de Jaco[b] Nolano [irlandês].

Um cavalo.

Companhia de António de Saldanha.

Os que faltam dará rol à parte deste.

Quatro soldados cativos e trombeta, mais três cavalos de soldados que vieram desmontados.

Destes homens há sete feridos e nenhum morto [refere-se ao total de perdas].

Dom João de Ataíde

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1646, maço 6, consulta de 28 de Março de 1646.

Imagem: Couraça e capacete de cavalaria, séc. XVII. Museu Militar de Estocolmo. Fotografia de JPF.

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 3 e última: a passagem do Guadiana e as querelas dos comandantes

Sempre perseguida pelo exército espanhol, a força portuguesa foi-se aproximando do Guadiana. O inimigo trazia dois mil e quinhentos infantes, mas o que mais nos perseguia era a cavalaria com as peças, e logo trazia 600 [cavalos] couraças que rompiam o demónio, de sorte [que] até Guadiana é meio quarto de légua, e como a palma da mão (…). Já tinham passado três ou quatro terços para além e outros três estavam já formados ao pé do porto de Guadiana, mas da parte de Castela, e todos mui bem formados sobre os barrancos do porto, por onde nós havíamos de passar, com os cavalinhos de pau por muralha, mas vinham ainda pelejando com o inimigo três terços e três peças de artilharia e a nossa cavalaria, mas se me perguntarem quem (…) obrava tudo isto em tão grande aperto, que só quem o viu sabe como era, que nunca jamais se viu poder nosso tão em balanços como naquele dia, se não fora um só homem fatalmente se perdia tudo sem apelação nem agravo, e quem (…) fez todo este bem, assim ao Rei como a todos nós, era o famoso Joane Mendes de Vasconcelos, que era ali então mestre de campo general; que nunca jamais se adjectivou bem [isto é, que nunca se deu bem] com nenhum governador das armas, nem em sua companhia havia nunca de fazer o que entendia, só para não dar o louvor a eles, mas isso não lhe tirava o conhecimento do seu préstimo, que suas obras o abonavam e o diziam.

Mas em esta ocasião viu que se perdia Portugal, vendo até ali a pouca ordem que Matias [de Albuquerque] tinha dado, (…) e assim vendo já tudo por um fio, então mostrou suas partes [isto é, o seu valor], que se fora à vista de um Rei não tinha mercês com que lhe pagar, e foi tão desgraçado, que na gazeta que se fez da ocasião não se falava nele, nem pouco nem muito, mas tudo isto nascia de muitos inimigos que ele tinha em o Conselho de Guerra, e assim falava só (…) quem não fez coisa nenhuma, nem pôs espada nem pensamento em castelhano. Finalmente que direi o modo com que este homem nos livrou da fúria do inimigo: não fazia mais que formar um terço à vista do inimigo, com uma peça diante, e assim como o inimigo se arrimava com a sua cavalaria dava-lhe carga [ou seja, disparava] belissimamente, de modo que o inimigo se fazia ao largo com a cavalaria e logo dava este terço uma volta depressa, e retirando-se atrás em marcha; mas assim como o inimigo carregava outra vez, logo já achava outro terço formado com outra peça dando carga ao inimigo. E assim vieram estes três terços com grande trabalho até chegarem ao porto onde estavam os outros três já entrincheirados, com os cavalinhos [de pau], e a este tempo ia o inimigo todo junto a nós. E nós também, com uma notável confusão na passagem do Guadiana, [acerca de] quem devia passar diante, e de tal maneira foi, que a nossa cavalaria passava por cima da infantaria, atropelando tudo, e outros se metiam a um grande prego que junto do porto estava, e alguns se afogavam com tanta pressa.

Mas o inimigo, vendo-nos nesta confusão, se resolveu de todo a nos avançar com toda sua cavalaria, botando diante as 600 couraças, (…) mas como não podia fazer-nos dano aos que vinham passando com esta bulha, em razão que estavam aqueles três terços sobre o porto (…), assim como averbou com eles (…) achou os cavalinhos [de pau] diante, levando os cavalos muitas feridas dos bicos de ferro. Deu-lhes os terços grandíssimas cargas, em que lhe mataram muita gente, e logo uma pouca de cavalaria nossa que vinha passando Guadiana, puxou por ela D. João de Mascarenhas para ir pelejar com o inimigo, que ia já em retirada ao largo. E logo toda a mais cavalaria nossa que estava já passada, vieram a buscá-la muitos oficiais. (…)

Não se pôde ter o inimigo, vendo-nos outra vez passar o porto, que assim [que] a nossa cavalaria começou a passar, veio outra vez o inimigo com maior força, (…) mas como os terços que estavam daquela banda lhe davam grandíssimas cargas, não se metiam com essa facilidade (…).

Ali fez um castelhano uma notável sorte, mas custou-lhe a vida, que assim como viu o guião real que trazia a companhia do general da cavalaria [na verdade, a do governador da cavalaria, pois D. Rodrigo de Castro não tinha patente de general] (…), se veio a ele como um raio, cuidando que o havia de apanhar, metendo-se por dentro de toda a cavalaria nossa, vindo passando o Guadiana; mas ele ficou estirado em o meio do areal, nu [sem dúvida porque foi logo despojado do equipamento e roupas pelos soldados portugueses, uma prática habitual na guerra], e não há dúvida que devia ser cavalheiro, porque homem tão alvo e tão gentil-homem não vi em minha vida, e o cabelo como um fio d’ouro, e bem moço, que não tinha 30 anos. (MMR, pgs. 115-117)

Dada a inutilidade das investidas sobre a infantaria portuguesa, a cavalaria espanhola pôs-se a coberto em posições desenfiadas. A sua infantaria tinha tomado abrigo nuns valados, e daí em diante apenas se trocou tiro de artilharia de ambos os lados. Os três terços portugueses foram manobrando com habilidade e passaram o rio, um deles cobrindo a retirada dos demais, alternadamente, mas a artilharia espanhola castigou duramente a força portuguesa que retirava. (…) Não era necessário fazer pontaria, senão atirar a montão, à sua vontade, (…) e não fazia tiro que não matasse cinco, seis homens e cavalos ou bois ou mulas das peças. (…) Vinha ali um capitão de cavalos (…), de seu nome Manuel da Gama, um bizarro soldado e mui cavalheiro e grande músico e mui bem entendido, que tinha seus dedos de poeta, mui querido de todos os fidalgos; (…) vem uma peça do inimigo a dar-lhe só nele e tira-lhe a cabeça fora dos ombros, ficando o corpo a cavalo por espaço de bom Credo, sem cair no chão, sem a bala ofender mais a ninguém (…). Não havia quem não sentisse a morte deste capitão, e os seus soldados mais que todos. (MMR, pgs. 118-119). Depois de duramente fustigados, os homens comandados por Matias de Albuquerque percorreram a distância que os separava de Elvas, onde chegaram em segurança.

A operação do forte de Telena, que durante tanto tempo perdurou na memória dos militares que nela participaram e nos registos oficiais, foi um grande empreendimento militar que redundou em fracasso. Não só os espanhóis retomaram a posse do forte, como acabaram de repará-lo em pouco tempo, de que ainda hoje [Mateus Rodrigues escrevia em 1654] o tem em posse eterna (…), porque já não há outro Matias de Albuquerque para intentar semelhantes empresas, nem hoje há nas fronteiras poder com que se obre tal. (MMR, pg. 118)

A colorida descrição da campanha, lembrada por Mateus Rodrigues no sossego de Águeda, cerca de 8 anos depois, é corroborada pelo Conde de Ericeira e por outras narrativas e documentos oficiais contemporâneos da acção. O desenlace da campanha cavou ainda mais a inimizade entre Matias de Albuquerque e Joane Mendes de Vasconcelos. O Conde de Alegrete deixou o governo das armas do Alentejo, que ficou a cargo, precisamente, do seu arqui-rival. Um ano depois, o Conde morria em Lisboa.

Não deixa de ser interessante, todavia, a opinião favorável a Joane Mendes, bem explícita por parte de Mateus Rodrigues nas suas memórias. Assim como já tinha acontecido na ocasião da batalha de Montijo, sobressai uma certa falta de confiança na capacidade de comando de Matias de Albuquerque. É uma perspectiva distante dos panegíricos que mais tarde surgiram a respeito do Conde de Alegrete. A “gazeta” a que o soldado de cavalos se refere na sua narrativa, a propósito do não reconhecimento público do papel desempenhado por Joane Mendes de Vasconcelos, é a seguinte: Svcesso, qve o nosso exercito de Alenteio gouernado por Mathias de Albuquerque, Conde de Alegrete, teue na tomada do forte real de Telena em Castella em 16 de Setembro de 1646, & encontro do mesmo exercito com o do inimigo. Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1646.

Imagem: Maquete presente no Armémuseum de Estocolmo, retratando uma pequena parte de uma formação de piqueiros (de um regimento, no exército sueco, ou de um terço, no exército português). Note-se como o artista individualizou cada soldado, conferindo um pathos que espelha bem a apreensão antes da entrada em acção, bem como as consequências das doenças que afligiam muitos dos soldados em campanha – note-se a tez pálida e o aspecto doentio do piqueiro em segundo plano. Como curiosidade adicional, saliente-se que muitos piqueiros do exército do Alentejo teriam, em 1646, um equipamento (murrião e couraça) em tudo igual ao apresentado nas miniaturas, pois milhares de peças destas, bem como piques e outro material de guerra, tinham sido recentemente importados da Suécia. Foto de JPF.

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 2: o início da retirada

Prossegue Mateus Rodrigues a narrativa da campanha do forte de Telena:

Em todo este tempo de continuação e assistência esteve o inimigo com todo o poder que já tinha junto bem ao pé de nós, um meio quarto de légua [em rigor, cerca de 600 metros, mas talvez um pouco menos do que o soldado refere], dando-nos sempre muitos rebates e enfadamentos, que de noite estava sempre a cavalaria montada e a infantaria de armas nas mãos, e de dia com grandes escaramuças uns com os outros, os de cavalo. E tinha o inimigo já tenção de nos seguir na retirada, por isso estava ali fora, como assim o fez, porque trazia 3.000 cavalos, que nunca (…) ajuntou tanto; mas trazia à volta de 800 éguas da ordenança (…). De maneira que depois do forte tomado, ainda nós estivemos em o quartel dois ou três dias, num dos quais nos fez o inimigo uma peça galante, que foi o dar-nos um grande trabalho, por imaginarmos que vinha a pelejar connosco uma tarde, (…) fazendo uma grande faceira [sic – o soldado terá querido empregar um termo derivado do verbo facetear, ou seja, zombar; seria, portanto, zombaria], que era passar com a cavalaria por um outeiro à nossa vista, e logo dava volta aquela mesma cavalaria por detrás do mesmo outeiro, e tornava a passar outra vez à nossa vista, e assim com estes estratagemas esteve fazendo mostra à nossa vista, que parecia muito mais cavalaria do que ele tinha, mas não somos nós tão parvos que não disséssemos que era faceira [sic]. (MMR, pg. 110)

O mesmo truque fez o inimigo com a infantaria, mas sem sucesso. No entanto, o conselho de oficiais maiores do exército, mandado reunir pelo governador Matias de Albuquerque, já tinha decidido o regresso do exército a Portugal, uma vez que seria impossível prosseguir e empreender o forte de S. Cristóvão, tendo o inimigo juntado um exército superior ao nosso em Badajoz.

Para não atrapalhar nem atrasar a marcha do exército, Matias de Albuquerque mandou todo o trem de carros, carroças e mulas atravessar o Guadiana para a banda de Portugal durante a noite. Pela manhã, começou a infantaria a marchar, mas a cavalaria permaneceu formada junto ao forte de Telena, para cobrir a retirada. Foi quando as tropas montadas começaram, por sua vez, a preparar-se para se porem em marcha, que se deu o segundo desaguisado grave entre o governador da cavalaria D. Rodrigo de Castro e o seu subordinado, tenente-general D. João de Mascarenhas, conforme narra Mateus Rodrigues. Diz o soldado de cavalos que D. Rodrigo ia deitado numa liteira por se sentir mal disposto (o futuro Conde de Mesquitela padecia com frequência de “uns achaques”, como referem vários documentos da época – provavelmente gota), e que os espanhóis lançaram um ataque com cerca de 1.000 cavalos, com grandíssima resolução, trazendo diante uma companhia de 80 cavalos escolhidos com um tenente por cabo, que devia ser o diabo, (…) que se veio a nós como bárbaro, metendo-se às pancadas como um doido, mas ele ficou ali logo e muitos soldados (…). (MMR, pgs. 111-112) A restante cavalaria espanhola lançou-se então em carga sobre a congénere portuguesa. D. João de Mascarenhas, jovem e impetuoso, ordenou uma contra-carga de espada na mão – e a cavalaria portuguesa começou a movimentar-se para o choque, em vez de permanecer formada para proteger o grosso do exército. Na liteira, D. Rodrigo de Castro nem queria acreditar no que via. De um salto, montou a cavalo e, galopando, conseguiu ultrapassar os batalhões portugueses e ordenar que parassem, com termos inequívocos: “Alto! Alto! Que bebedeira é esta? Eu não valho aqui nada? Nem sou o general desta cavalaria, para avançarem sem minha ordem?” (MMR, pg. 112). Mateus Rodrigues considera nas suas memórias, escritas cerca de 8 anos depois deste evento, que a intervenção de D. Rodrigo foi providencial para evitar um possível desastre, pois a manobra do inimigo era precisamente para atrair os portugueses a uma armadilha: mais cavalaria e infantaria suas se aproximavam, em número superior ao dos portugueses. Mas o tenente-general não reagiu bem à interferência do seu superior: os dois trocaram insultos e, tal como acontecera meses antes, só não chegaram a vias de facto porque outros oficiais intervieram.

D. Rodrigo de Castro assumiu o comando da cavalaria e iniciou a retirada.  Já a nossa infantaria ia toda do forte para baixo (…), e logo o inimigo veio com toda a cavalaria, carregando-nos com grande força e trazendo duas peças entre a mesma cavalaria, com seis mulas cada peça, que corriam com elas como a mesma cavalaria, e assim como chegavam a tiro, davam carga com elas [ou seja, disparavam], que faziam muito dano, porque ia a nossa gente toda numa pinha e não podia deixar de matar muita gente, porque fazia tiro de perto.

(…) Quando nos vínhamos retirando, e já bem apertados, ainda não tinham lançado o fogo às minas que estavam feitas para arrasar o forte, e quando se acordaram a mandar pô-lo, já o inimigo vinha à desfilada, correndo homens de pé a meter-se no forte. Contudo, Matias de Albuquerque prometeu uma bandeira [ou seja, promoção ao posto de alferes] a quem lhe fosse botar o fogo. Logo houve um soldado que se aventurou a lhe ir botar o fogo, e verdade seja que ele lho botou; mas (…) lá ficou em poder do inimigo, cativo, e assim como deu fogo às minas, fizeram elas tão pouca obra, que apenas se ouviu o estrondo entre nós, que como era obra de terra, empapou-se a pólvora nela e não derrubou nem uma vara de muralha, e assim lhe ficou outra vez em pé como estava, (…) havendo-nos custado mais de 600 homens. (MMR, pg. 113)

Na próxima parte conclui-se esta descrição, com a narrativa do combate travado nas margens do Guadiana.

A conclusão da série de artigos sobre o Forte de Telena no blogue Sigue las Huellas de Badajoz pode ser lida aqui.

Imagem: “Combate de cavalaria”, de Peter Snayers (detalhe).

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 1: assalto e conquista

A mudança no comando da cavalaria do Alentejo, após o desaire da emboscada nas vinhas da Terrinha, não trouxe maior eficácia. Entre 1646 e 1647, a cavalaria portuguesa era frequentemente suplantada, em número e em qualidade, pela cavalaria espanhola, conforme é corroborado por variadíssimos documentos da Secretaria de Guerra e pela confissão dos “grandes medos” que os soldados sentiam, segundo as palavras de Mateus Rodrigues. A situação só melhoraria em 1647, com a chegada de Martim Afonso de Melo ao governo das armas do Alentejo e a introdução do “Contrato com os capitães de cavalos”.

A preparação da campanha de 1646 não podia ter corrido pior a nível das chefias: Matias de Albuquerque, agora Conde de Alegrete, fora nomeado governador das armas, ficando Joane Mendes de Vasconcelos como mestre de campo general. Grandes rivais, a desconfiança e inimizade entre ambos comprometeu a cooperação necessária para o bom andamento das operações. Também a nomeação de André de Albuquerque Ribafria para general da artilharia, posto que estava vago desde 1644, não foi pacífica, com três mestres de campo mais antigos (Luís da Silva, João de Saldanha e D. Sancho Manuel) a contestarem a nomeação do jovem fidalgo. Como se tudo isto não fosse pouco, quando Joane Mendes – ainda antes da chegada de Matias de Albuquerque ao Alentejo como governador – decidiu empreender uma operação contra o castelo de Codiceira, levantou-se uma grave questão entre D. Rodrigo de Castro e D. João de Mascarenhas, com o segundo a questionar uma ordem do governador da cavalaria e a receber ordem de prisão. Quando se iniciaram as operações para o assalto ao forte de Telena, já D. João recuperara o posto de tenente-general. Mas as tensões entre os comandos continuavam bastante fortes.

O objectivo da campanha foi debatido entre os cabos de guerra da província do Alentejo (os acima referidos e ainda o engenheiro João Pascácio Cosmander e D. João da Costa, que passara a servir no Alentejo sem posto, devido a um duelo que travara com o Conde Camareiro-Mor dois anos antes, que lhe valera a perda do posto de general da artilharia). Sendo Badajoz a praça mais apetecida, considerava-se que era necessário tomar primeiro o forte de S. Cristóvão. Mas Joane Mendes, D. Rodrigo de Castro e André de Albuquerque defendiam que, ainda antes daquele forte, seria necessário tomar e destruir o de Telena. E foi esta opinião que prevaleceu, após consulta ao Rei. Conforme refere o Conde de Ericeira, tratou-se de uma  decisão de grande risco e pouca utilidade (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pgs. 168-169).

Em 15 de Setembro, o exército do Alentejo, reforçado com gente de novas levas e unidades de outras províncias, e com o enorme e necessário trem logístico de carroças e carros, atravessou o Guadiana. O Conde de Ericeira apresenta um efectivo de 8.800 homens, sendo 7.200 infantes repartidos por 10 terços, e 1.600 cavalos. Já Mateus Rodrigues refere 6.000 infantes e 2.000 cavalos, tudo gente paga e boa (MMR, pg. 106). É no contexto desta operação que o soldado de cavalos faz referência à estreia dos “cavalinhos de pau”, já tratados em detalhe em dois artigos, aqui e aqui. Sigamos a sua colorida narrativa dos eventos, bem mais pormenorizada do que a apresentada na História de Portugal Restaurado.

Assim como nós saímos à campanha, logo fomos vistos do forte, que toda aquela campanha, assim a sua como a nossa, em mais de 4 léguas de circuito leva com a vista, e como o inimigo logo soube que nós botávamos exército, começou também a juntar a gente que tinha e as ordenanças todas, assim a cavalaria como infantaria, que a gente que ele trouxe não podia ser toda paga, pois sabemos mui bem o que tem (…). Aquele dia em que saímos da cidade não chegámos lá, e (…) não é mais que légua e meia, mas na passagem da ribeira nos detivemos muito, por amor [isto é, por causa] das muitas carruagens e artilharia que levávamos, 8 peças de 48 libras cada uma e 6 peças de 24 libras, e como nós não fomos logo no direito do forte, senão ao largo por amor da sua artilharia, que orlava meia légua, marchámos mui ao largo, e todo o dia gastámos com uma légua, mas dormimos já todos da banda de além do Guadiana, em umas vilas donde chamam os Carrascais de Fiolhais, e assim nós estivemos ali aquela noite.

Ao outro dia nos pusemos em via, levando a nossa cavalaria toda na vanguarda de tudo, e bem formada, (…) que tínhamos então um grande soldado por tenente-general da cavalaria, que era D. João de Mascarenhas, (…) mas íamos mais de uma légua ao largo, porque nos íamos aquartelar por cima do mesmo forte, em umas covas e vales, aonde a sua artilharia nem chegava, nem nos podiam ver do forte. E assim como chegámos, logo a infantaria começou a trabalhar, a fazer trincheira, e logo todos nós a tratar cada rancho de fazer suas barracas para nos acomodarmos, que todo um dia e uma noite não fizemos mais que consertarmo-nos pelo que nos podia suceder. E (…) estando já todo o exército acomodado, trataram de ir ao forte, que nos ficava daí meio quarto de légua. Levaram lá a artilharia, mas não obrava nada, porque como o forte era de faxina e terra, não faziam as peças nada nele. Trataram então de lhe fazer avançadas com a infantaria arrimando-se [ou seja, chegando-se] à estacada, que a tinham mui grossa e forte. Contudo, apesar de mortos, lhe romperam a estacada e ficavam junto da mesma muralha do forte, que dali lhe lançavam dentro muitos penedos e alcameias de fogo e granadas, que com isto lhe faziam grande dano lá dentro. Mas muito mais dano nos fazia o inimigo, que nos matava muita gente, porque diferente é pelejar um homem de sua casa, coberto para quem peleja da rua, e além de que as suas duas peças que lá tinham nos faziam grande dano. Porém, rebentou-lhe uma delas, que fez o artilheiro em pedaços. E como não havia mais, que ficavam muito mal sem artilheiro para a praça, assim logo por diante começaram a descoroçoar, porque, como os nossos estavam sempre arrimados à (…) muralha do forte, não podia o inimigo fazer-lhe dano com a mosquetaria. Os nossos lhe estavam matando muita gente com o que lá lhe botavam dentro, e assim, vendo-se já em aperto, vendo que lhe não vinha socorro, mandaram um aviso a Matias de Albuquerque, que se lhe não viesse socorro dentro de dois dias, que eles se queriam entregar. Concederam no aviso, e susteve[-se] a peleja por espaço dos ditos dois dias, e no cabo, vendo o inimigo que lhe não vinha socorro, se entregou no fim de três dias de continuação, que nos custaram os tais dias mais de 80 homens mortos e feridos [devido a um erro de transcrição, a versão dactilografada refere 800 baixas: o número que Mateus Rodrigues apresenta no manuscrito é 80]. Rendido o castelo, se saiu a gente que nele estava, que eram 300 homens e boa gente, mas já vinham menos uns 60 homens que lá lhe mataram os nossos. (MMR, pgs. 108-109)

Foi então decidido arrasar o forte. Matias de Albuquerque propôs que nele entrassem 2.000 homens com pás e picaretas, que derrubariam o forte em dois dias. Mas o engenheiro Cosmander quis poupar os soldados a mais uma canseira, e contrapôs que se fizessem minas e se fizesse assim explodir o forte. Seguiu-se este conselho, mas sendo a obra de terra, não resultou em nada – nem estrondo fez grande, (…) nem quanto seja uma vara de muralha derrubou. (MMR, pg. 110)

(continua)

Imagem: Fotografia aérea do local onde se ergueu o forte de Telena. Foto retirada do blogue Sigue las Huellas de Badajoz, que apresenta um magnífico conjunto de artigos sobre o forte de Telena. O primeiro desses artigos pode ser lido aqui: Sigue las Huellas de Badajoz. Mais sobre Telena aqui.

A campanha do forte de Telena em 1646 – prólogo: a emboscada na Atalaia da Terrinha (Março de 1646)

A campanha de 1646, executada a partir da província do Alentejo, foi a última a ser levada a cabo em vida de D. João IV. Seria preciso esperar mais de 10 anos, e muito por força da iniciativa espanhola, para que a fronteira de guerra alentejana fosse, de novo, palco de grandes acções militares.

Dessa campanha de 1646 ficou célebre o assalto ao forte de Telena. Um episódio bélico frequentemente recordado no historial de cada indivíduo que nela participou, em especial entre os oficiais. Sempre que alguém era proposto para a ocupação de um posto ou cargo, invariavelmente apresentava na resenha da sua carreira o assalto ao forte de Telena. Do mesmo modo, em cartas patentes mais alongadas, o oficial promovido via ser mencionado esse acontecimento que, à época, foi considerado muito relevante. É do assalto ao forte de Telena que esta pequena série de artigos se ocupará. Mas, em jeito de prólogo, principiaremos por tomar conhecimento de um episódio corriqueiro da guerra de fronteira, igual a tantos outros e tantas vezes repetidos. Este, todavia, teria implicação na alteração do comando da cavalaria para campanha que se avizinhava.

A ideia de atacar o forte que os espanhóis tinham construído em Telena, localidade que os portugueses haviam atacado e queimado em 1643, surgira em finais de 1645. Francisco de Melo escrevera em Novembro desse ano ao Rei uma carta onde referia o episódio de Alcaraviça (já aqui tratado numa série de artigos, os principais dos quais da autoria do Sr. Santos Manoel), e nela dizia que depois deste encontro, veio o Castelhano ao seu lugar chamado Telena, légua e meia desta praça [de Elvas], que estava arrasado por nós, e nele fez um forte onde tem perto de 100 infantes e artilharia, e uma tropa de cavalos; depois deste feito, se retirou à nossa vista e nos derrubou uma atalaia nossa, depois dos defendentes, que eram só 12, pelejarem o que puderam e matarem alguns do inimigo, com esta facção se retirou, e nós agora queremos ir, e cuido que permitirá Deus nos paguemos em dobro. (Cartas dos Governadores da Província do Alentejo…, vol. II, pg. 103, carta de 22 de Novembro de 1645). Entre os objectivos da campanha de 1646 estaria, pois, o recém-construído forte de Telena.

Passou o Inverno, cujo rigor impedira a realização de muitas incursões predatórias. Em Março de 1646, quando se já se amanhavam as terras e os rios estavam capazes de ser vadeados, veio o inimigo armar emboscada à cavalaria que fazia a ronda habitual a partir da praça de Elvas. Conforme refere D. Luís de Meneses, à cavalaria que se alojava em Badajoz se uniram algumas companhias dos quartéis vizinhos, e juntos mil cavalos se emboscaram no rio Caia, na parte em que entra no Guadiana. Foi sentido o rumor das tropas das vigias que de noite ficavam sobre os portos dos rios; vieram com diligência dar parte a Joane Mendes [de Vasconcelos, governador das armas]. Logo que amanheceu, mandou sair o comissário geral da cavalaria D. João de Ataíde, com 400 cavalos que assistiam em Elvas. (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pg. 162).

A partir daqui, espreitemos as memórias de Mateus Rodrigues, o soldado da companhia de D. João de Ataíde que participou nessa operação.

(…) Naquele tempo estavam poucas tropas [portuguesas em Elvas], que estavam muitos em Vila Viçosa e em Estremoz dando verde aos cavalos, e não havia cabo nenhum da cavalaria na cidade mais que o comissário, que era Dom João de Ataíde, que na paz não há ninguém que tenha melhor voto para a disposição da guerra, mas lá na campanha, à vista do inimigo, era outra coisa. (…) Assim como o inimigo teve junta a sua cavalaria, se veio de Badajoz uma noite até à ponte do Caia onde estavam as duas sentinelas nossas. (…) [O inimigo formou] uma partida de 20 cavalos com um cabo e [o seu comandante] mandou que entrasse pela ponte e que se fosse emboscar dentro dos olivais de Elvas. (…) Assim que os nossos vigias da ponte sentiram passar os vinte cavalos, que logo os contaram, (…) metidos [os vigias] num bosque notável debaixo da ponte, (…) logo veio um deles dar aviso à cidade. (MMR, pgs. 125-126)

O objectivo da cavalaria espanhola era atrair a cavalaria da ronda portuguesa a uma emboscada. Dez outros cavaleiros deviam passar a ponte, prevendo (e bem) que outro vigia que por ali estivesse iria  rapidamente até Elvas dar o alarme. E foi isso precisamente que aconteceu. Já sem sentinelas portuguesas para dar conta da movimentação das tropas inimigas, passou o inimigo a ponte sem haver quem o sentisse, e marchou às vinhas da Terrinha, que ficam junto do Guadiana duas léguas de Badajoz, e como se viu nos barrancos, deixou-se estar ali com suas sentinelas à vista de toda a campanha, que se punham em cima de uns álamos mui altos que estão junto do Guadiana (…). (MMR, pg. 127)

Logo que Joane Mendes recebeu os avisos sobre a presença inimiga, mandou que D. João de Ataíde saísse com as tropas de cavalo, de forma a proteger à distância a companhia da ronda. Deviam ir até à Atalaia da Terrinha, naquela altura já destruída pelo inimigo, e se não houvesse nada de anormal, que regressassem a Elvas.

E assim como amanheceu saímos todos (…), e a companhia da ronda diante, fazendo o que era costume. E já estávamos todas as tropas em atalaia, que não eram mais de oito e mui pequenas, que não tinham mais de 200 cavalos, quando vem um batedor nosso, correndo, dizendo que uma partida do inimigo de 30 cavalos avançava aos batedores (…), mas que já já vinha pelo campo acima em retirada. (MMR, pg. 127) D. João de Ataíde mandou então o tenente Lopo de Sequeira, militar natural de Elvas com reputação de muito valente, que tomasse 40 cavaleiros escolhidos entre todas as companhias, e que com eles tentasse cortar a retirada à força inimiga; mas que a não seguisse por muito tempo, se visse que a não conseguia alcançar.

Assim fez Lopo de Sequeira, e em pouco tempo estabeleceu contacto visual com o inimigo. Impetuoso, o tenente lançou os seus homens na perseguição, mas a pequena força intrusa foi tomando o caminho das vinhas da Terrinha, onde o grosso da cavalaria espanhola estava emboscado. Segundo Mateus Rodrigues, os soldados começaram a recear que se tratasse de uma armadilha, mas não ousaram dizer nada ao tenente. Só o furriel-mor da cavalaria, Afonso Rodrigues Tourinho, outro grande soldado, conterrâneo e amigo do tenente, levantou a voz para advertir o oficial: “Homem, que fazes, estás doido? Não vês que o inimigo nos foge para onde não tem porto nem saída? Não está bem claro que aquela partida nos leva de fio à sua emboscada? Não sigamos tal partida, que nos perdemos!” (MMR, pg. 128) Mas era Lopo de Sequeira homem de pouco miolo, segundo a expressão de Mateus Rodrigues, e vendo o inimigo quase alcançado, não quis passar por fraco dando ordem de volver. E respondeu ao furriel-mor que não lhe desse conselhos e que seguisse a partida do inimigo.

O inevitável acabou por acontecer. Já perto das vinhas, os 30 cavaleiros inimigos suspendem a fuga e voltam-se para enfrentar os seus perseguidores. Esta manobra acicatou ainda mais Lopo de Sequeira, que se lançou desenfreadamente para a armadilha. Com efeito, ao mesmo tempo que a pequena força fazia volte-face, a restante cavalaria espanhola saía do seu esconderijo e atacava  os 40 portugueses. Para Mateus Rodrigues – um dos escolhidos para integrar o destacamento de Lopo de Sequeira – e seus camaradas, foi tempo de debandar:

(…) Não fizemos mais que volver cada qual podia correr mais pelo campo acima, para a atalaia onde estava Dom João de Ataíde com as tropas, mas como os nossos cavalos iam muito cansados e a campanha atolava muito, (…) assim como voltámos logo o inimigo nos foi apanhando pouco a pouco, que quando chegámos à atalaia onde estava a nossa gente  não vínhamos mais de treze homens dos 40; só algum que tinha cavalo forte e aturador, esse escapou. (MMR, pg. 129)

Mateus Rodrigues acusa o comissário geral de tudo ter visto a partir da posição segura onde estava, e nada ter feito para ajudar quando a emboscada do inimigo se revelou. Com ironia, escreveu que D. João de Ataíde fez então o que podia fazer, que foi deixar-se estar ao pé da atalaia para nos dar calor [isto é, para dar apoio]. E assim se esteve até que o inimigo averbou com ele. E assim como lhe deu uma carga, virou à rédea solta para Elvas, pois não tinha outro remédio. E dali à cidade é uma légua, que toda ela nos foi o inimigo seguindo bem até dentro dos olivais, tomando ainda alguns soldados. E à entrada dos olivais houve muita bulha, em razão que caiu o cavalo a Dom João numa azinhaga. E porque o inimigo o não cativa[sse], se fizeram ali cava uns poucos nossos, onde se assinalaram grandemente o mesmo Lopo de Sequeira, que havia escapado lá de baixo e já havia feito na retirada milagres. E ali os fez muito maiores o meu alferes, que então era um Tomé Gomes de Carvalho, que por estar em casa do mesmo Dom João e o ver no perigo, fez o que se esperava dele e trouxe uma cutilada pelas costas. E assim mais fez grandes coisas o meu furriel (…) Agostinho Ribeiro, que foi o assombro dos soldados, que não há dúvida que, se não foram estes homens e outros mais, que Dom João se [haveria de] ver em grande risco.

(…) Assim como ele estava já em seguro, se foram retirando todos os mais para a cidade, porquanto o inimigo vinha já com o grosso, chegando-se muito, e desta vez entraram pelos olivais dentro sobre nós, bem até o meio deles, que lá lhe matámos ainda um cavalo, contudo o inimigo se volveu levando-nos 60 cavalos, e mui bons, e bons soldados. Mataram ali então a um bizarro soldado da minha companhia, por nome Gaspar Rodrigues, natural de Elvas. E mais, mataram-no depois de rendido, a sangue -frio. De sorte que toda esta perda e aperto em que nos vimos foi causa o dito Lopo de Sequeira, por não admitir os conselhos de quem tanta experiência e mais que ele tinha. E não deixou de levar mui boas repreensões, assim de D. João de Ataíde como do governador. (MMR, pgs. 129-130)

O próprio D. João de Azevedo e Ataíde não escapou a uma apreciação negativa por parte de Joane Mendes de Vasconcelos, o que corrobora a crítica à indecisão e à incapacidade como comandante que o soldado Mateus Rodrigues lhe faz nas memórias. D. Luís de Meneses narra assim o sucedido: Empenhou-se com tão pouca cautela, (…) que deu tempo ao inimigo a sair da emboscada e a se avançar, de sorte que, quando D. João se quis retirar, foi preciso ser com tanta pressa, que se lhe deu nome menos decoroso. (…) Sentiu Joane Mendes tanto a pouca prudência de D. João de Ataíde, e o receio dos soldados, e pedindo remédio a El-Rei para atalhar este dano, resolveu El-Rei que se passasse patente de governador da cavalaria a D. Rodrigo de Castro, com o mesmo soldo de oitenta mil réis cada mês que levava o Monteiro-mor general dela [Francisco de Melo], que se havia desobrigado daquele posto a respeito da sua muita idade; e foi juntamente provido no posto de tenente-general da cavalaria D. João de Mascarenhas, hoje Conde de Sabugal, que tinha chegado de Castela por França, e servido em Flandres de capitão de cavalos [tinha participado na batalha de Rocroi, em 1643]. (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pgs. 162-163).

Mudava-se, assim, o comando da cavalaria do Alentejo, empalidecendo a reputação militar de D. João de Ataíde, que receberia a definitiva machadada no ano seguinte, precisamente no mesmo cenário da Atalaia da Terrinha. Mas nesse ano de 1646 ainda haveria muita peleja. Sobre a campanha e o assalto ao forte de Telena nos ocuparemos nas partes seguintes.

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener.

Um desaire a caminho de Juromenha – Março de 1646

Regresso ao blogue com um episódio do quotidiano bélico seiscentista, respigado das memórias de Mateus Rodrigues, mas sobre o qual não localizei ainda outras fontes que possam corroborar, contradizer ou complementar o que o soldado de cavalos deixou escrito. Tratou-se de uma escaramuça que não correu bem para a companhia onde servia Mateus Rodrigues. A data do acontecimento é incerta – sabe-se que que ocorreu no mês de Março, mas o último algarismo do ano é ilegível; optei por 1646, tendo em conta o encadeamento na narrativa. No entanto, há diversas imprecisões nas memórias de Mateus Rodrigues, no que diz respeito a datas. Sigamos, com a devida reserva, o que nos conta o memorialista, aproveitando para realçar que o principal interesse deste episódio reside nos pormenores da pequena guerra, quase sempre ausentes das grandes sínteses.

Mateus Rodrigues começa por referir que a sua companhia, então comandada pelo comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde, estava aquartelada em Olivença. O comissário geral tinha à sua responsabilidade as oito companhias de cavalaria daquela praça onde, por ser a planície circundante muito perigosa, não entrava nada que pertencesse a El-Rei que não fosse escoltado pela cavalaria desde o rio Guadiana, a cerca de duas léguas da vila. Foi assim que aconteceu com um comboio de 200 cavalgaduras, carregadas de munições, farinha e outros abastecimentos.

E logo quis a fortuna que o inimigo tivesse notícia deles, e foi a minha companhia tão mal afortunada que lhe tocou [n]aquele dia ir ao comboio [ou seja, fazer a escolta dos animais de carga] (…) logo pela manhã (…). E assim como esteve a companhia junta à porta do capitão [o termo capitão é aqui usado no sentido generalista de comandante da companhia], chamou (…) um cabo de esquadra, por nome Francisco Cabral Barreto, e lhe disse que tomasse dez cavalos da companhia e fosse diante [com] duas ou três horas [de avanço] da companhia a descobrir a campanha. E lhe advertia que vinha um comboio mui grosso; que descobrisse muito bem a campanha (…).

Logo que o cabo de esquadra recebeu a ordem, partiu com os dez cavalos para fazer o reconhecimento, cumprindo escrupulosamente o que era hábito fazer, que era uma boa légua fora da estrada para todas as partes. No último posto, situado num outeiro de onde se descortinava toda a campina, ficou postada uma sentinela, e daí até ao local onde a companhia devia aguardar pelo comboio de abastecimentos – uma ermida a meia légua do Guadiana – foram sendo colocadas sentinelas, em locais altos e todas à vista umas das outras.

O tenente que comandava a companhia nesta operação (não cumpria ao comissário geral fazer serviço de comboios ou rondas, ainda que disso a sua companhia não estivesse dispensada), chegando ao local combinado com o restante dos seus homens, mandou que estes desmontassem e dessem de comer aos cavalos. Não faltava erva e assim o fizemos todos até que o comboio veio chegando, que como ainda não havia porto em Guadiana passava tudo nas barcas, que são duas. A longa coluna de animais foi atravessando o rio nas barcas, bem devagar. Assim que chegavam à outra margem, punham-se em marcha para Olivença, pois não havia tempo para esperarem até que todos tivessem passado o rio.

A cavalaria inimiga tinha muitas vezes atacado e tomado comboios de abastecimento na estrada de Olivença, e desta vez montou uma emboscada perfeita. Como aquela campanha é meia rasa e tem muitos vales e covas onde o inimigo se pode esconder à sua vontade, como não chegam onde ele estiver, logo fica bem. A cavalaria de Badajoz, num total de 14 companhias com 700 homens, foi emboscar-se um quarto de légua mais adiante de onde tinha ficado a sentinela mais avançada do dispositivo de segurança português, montado previamente pelo cabo Francisco Cabral Barreto. Desse local não podiam ver a coluna de abastecimento aproximar-se, mas como soldados experientes que eram, calcularam bem a hora do dia em que o comboio atravessaria o Guadiana.

Assim como lhe pareceu horas, tomaram uma partida de 20 cavalos e mandaram-na avançar com [ou seja, contra] a nossa sentinela, que estava junto deles um tiro de mosquete (…). Assim como a nossa sentinela viu vir os 20 cavalos correndo, vem fugindo para onde estava a companhia, tocando arma. As demais sentinelas também abandonaram os seus postos, correndo a avisar o tenente da aproximação da força inimiga. Quando a companhia portuguesa se preparou para enfrentar os 20 cavalos inimigos, a restante cavalaria espanhola revelou a sua presença e atacou, dividida em duas partes. Uma lançou-se sobre as cavalgaduras da vanguarda que já estavam na estrada para Olivença. A outra correu sobre a parte do comboio que estava ainda junto do Guadiana.

Entre os portugueses gerou-se a confusão. O tenente tinha consigo 40 homens; os 15 que faltavam estavam espalhados pelos postos que lhes tinham sido atribuídos. Confiantes quanto a derrotarem a vintena de cavalo que inicialmente se aproximara, deram consigo cercados pelo muito mais numeroso dispositivo inimigo. Não tivemos outro remédio senão tratar cada um de seu livramento. A fugida para Olivença não podia ser, porque além de ser légua e meia, estava era muito mais perto, que não era (…) meia légua. Mas também o inimigo nos tinha tomado a dianteira o inimigo lá adiante. Foi para Juromenha que resolveram os portugueses fugir. Mas o inimigo, assim como nos viu, se veio a nós como um raio, contudo fomos-lhe fazendo nossas diligências, cada um o que podia. E quem tinha melhor cavalo, melhor livrava.

Assim como de Juromenha viram o inimigo, logo tiraram duas peças para aviso de Olivença, que saíssem as tropas; e também mandou o capitão-mor de Juromenha duas mangas de mosqueteiros muito depressa em as barcas, para defenderem o comboio que estava a maior parte dele já passado. Mas estava ainda por carregar tudo em os barrancos, e assim como os almocreves viram que vinha o inimigo, descarregaram mui depressa algumas bestas que tinham já carregadas e deixaram-se estar mui caídinhos e agachados ao pé dos barrancos.

Assim como nós chegámos a Guadiana, já não íamos muito mais 15 ou 16 soldados com o nosso alferes, que era Agostinho Ribeiro (…), e não tínhamos nenhum remédio senão passar o pego a nado ou entregar[mo]-nos aos castelhanos. E disse o nosso alferes aos que ali iam que todos o acompanhassem a passar a nado o pego (…), que nenhum se rendesse ao inimigo, que os cavalos nos haviam de botar fora mui bem. De sorte que assim o fizemos, mas com grande risco nosso, em razão que iam os cavalos mui cansados de correr meia légua à rédea solta, e metê-los a um pego connosco em cima deles (…) não havia de salvar nenhum homem (…). Apenas nós nos botámos ao pego a nado, já o inimigo chegava aos barrancos do Guadiana (…) e logo começaram aos tiros a nós, dos quais ainda nos mataram um soldado no meio do pego, que lhe deram com uma bala pelas costas (…) Mas os demais saímos fora, ainda que com trabalho, que também outro soldado nosso esteve quase afogado, andando debaixo do cavalo um pouco de tempo, até que saiu arriba e pegou-se ao rabo do cavalo e saiu fora, mas muito cheio de água, que o tomámos com as pernas para cima e a cabeça para baixo e botou muita água da barriga.

De modo que o nosso tenente foi Guadiana abaixo com tenção de passar pelo porto que já levava pouca água. (…) Fiava-se em o bom cavalo que levava, mas sempre o seguiram três castelhanos até entrarem com ele pela água dentro às pancadas, que ainda lhe deram uma cutilada na cabeça, mas livrou[-se], que assim como os castelhanos viram que os seus cavalos se iam metendo muito na água deixaram-no ir, que o seu cavalo era muito valente e tomou sempre pé (…).

Entretanto, a cavalaria inimiga regressava a Espanha com a presa que tomara, sensivelmente metade das cavalgaduras do comboio. As outras 100 não foram detectadas, porque fazem ali os barrancos uma grande altura com o rio, e estando alguém a cavalo ao pé deles não pode ver quem está em baixo, e como o inimigo fez ali pouca detença, não lhe ficou lugar de saber. Nove soldados portugueses foram também levados prisioneiros e dois morreram na escaramuça.

As restantes companhias de Olivença, ouvido o alarme dado pelas peças de Juromenha, saíram da praça sob o comando de D. João de Ataíde, mas já o inimigo ia muito afastado. O comissário geral ficou muito zangado com o cabo de esquadra a quem ordenara o reconhecimento e a quem atribuía as culpas pelo insucesso, mas não pôde descarregar a sua ira no sujeito, pois este fora um dos prisioneiros que a cavalaria inimiga levara para Badajoz. Como as trocas de prisioneiros estavam então suspensas, Francisco Cabral Barreto ficou 18 meses cativo. Mateus Rodrigues refere que o cabo não teve culpa alguma no desaire, pois não foi por erro seu que a força portuguesa sofreu a emboscada. (…) Ele é e foi sempre tão bizarro soldado, que assim como D. João se ausentou das fronteiras [em 1647], logo subiu em breves tempos [a] ajudante da cavalaria, que é o posto em que ficava quando me ausentei das fronteiras [em Fevereiro de 1654].

Fonte: MMR, pgs. 139-145.

Imagem: “Choque de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener.

Contrato com os capitães de cavalos, 1647 – parte II

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A resposta de D. João IV à proposta dos capitães de cavalos do Alentejo surgiu sob a forma de uma carta enviada ao governador das armas daquela província, Martim Afonso de Melo:

Martim Afonso de Melo, amigo, Eu El-Rei vos envio muito saudar. Avisando-se ao Mestre de Campo General Joane Mendes de Vasconcelos da resolução que eu fui servido tomar em razão do concerto que se há-de fazer com os capitães de cavalos, em ordem a se melhorar a cavalaria, respondeu, que o negócio se andava ajustando, e de próximo se enviou um papel feito em nome dos capitães de cavalos, e assinado por D. João de Ataíde, comissário geral da cavalaria desse exército, cuja cópia se vos enviará com esta carta, e havendo nós considerado tudo o que ele contém, fui servido resolver em quanto à 1ª condição, que as companhias se formem de cem cavalos; à 2ª, que quando os capitães se não ajustarem com os vendedores dos cavalos nos preços, se avaliem recebendo para esta avaliação ordem do Governador das Armas. À 3ª, que quando a necessidade obrigue a mandar vir cavalos de fora para por minha parte dar cumprimento a este concerto, se fará, mas não convém cortar-se o preço, e que os capitães os devem tomar pelo que custarem. À 4ª, hei por bem conceder-lhes o que nela pedem, excepto nos fugidos. E à 5ª, que o Governador das Armas dará todas as ordens necessárias para reconduzir os soldados que se ausentarem na forma desta condição, mas que nem por isso se alterará a obrigação de os capitães terem sempre as suas companhias completas. À 6ª, que em quanto ao que pedem que dentro dos quartéis da cavalaria se façam estrebarias, e manjedouras, e se concertarão por conta dos patrões, ou de minha fazenda, que nisto dará o Governador das Armas as ordens que for possível. À 7ª, hei por bem de lhes conceder o que nela pedem. E no que toca à 8ª, que os quintos se hão de aplicar como se tem mandado, de que me pareceu avisar-vos para que tendo entendido esta minha resolução, procureis pelos meios que julgardes por mais suaves facilitá-lo aos ditos capitães de cavalos, para que se ajustem com ela e entenda seu devido cumprimento, e convindo eles nisto, fareis que esta carta de Registo com o título que farão de aceitação nos Livros a que tocar, para a todo o tempo haver justiça do que acerca do referido se assentar. Escrita em Lisboa a 27 de Abril de 1647. Assinaturas: Rey; D. Álvaro de Abranches da Câmara. Para o Governador das Armas do exército de Alentejo. Por resolução de S. Majestade, em consulta do 1º de Abril de 1647.

D. João IV, talvez a conselho de D. Álvaro Abranches da Câmara, insiste nas companhias a 100 cavalos – um número pouco adequado à realidade das unidades do terreno, mas que fazia eco de alguns ensinamentos colhidos em tratados militares do período. No entanto, o verdadeiro ponto de discordância, sobre o qual a autoridade régia se pronuncia com veemência, não abdicando das suas prerrogativas, era o direito do quinto das presas efectuadas (a quinta parte de tudo o que era pilhado ou capturado na guerra pertencia à Coroa). Aí, D. João IV não estava minimamente disposto a ceder aos capitães. No que tocava ao resto, mais do que uma ordem régia peremptória, era uma contra-proposta. A troca de missivas iria continuar.

Fonte: Cód. 10619, secção de reservados da BNL, fls. 136-137, “Cópia da carta de Sua Majestade de 27 de Abril de 1647”. Transcrita para português actual.

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, Philips Wouwerman, c. 1643.

Contrato com os capitães de cavalos, 1647 – parte I

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O contrato com os capitães de cavalos foi um expediente a que a Coroa portuguesa recorreu em 1647 com o objectivo de reorganizar a cavalaria e recuperar a sua capacidade combativa. Vinculava os capitães à manutenção das unidades por eles comandadas, nomeadamente ao número de montadas que o efectivo exigia. A Coroa, por seu lado, obrigava-se a comparticipar com um montante pago anualmente em fracções, destinado à conservação dos efectivos e do equipamento. Foi uma medida muito elogiada pelo Conde de Ericeira na sua História de Portugal Restaurado (1945, vol. I, pg. 232), mas na realidade, ambas as partes raramente conseguiram cumprir o que  havia sido contratado. Inicialmente implementado para o exército do Alentejo, o contrato foi estendido mais tarde à cavalaria paga das restantes províncias.

O contrato com os capitães de cavalos reflectia a prática política da negociação, característica do reinado de D. João IV. O poder régio reconhecia os privilégios de um grupo específico, sem no entanto deixar de tentar impor a sua vontade. Dessa procura de equilíbrio de forças resultou, em última instância, a prolongada autonomia dos capitães de cavalos e a resistência à introdução do sistema de organização da cavalaria em regimentos, que era norma, à época, em outros exércitos europeus.

No Alentejo, o mediador entre os capitães e a Coroa foi o comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde. O texto que aqui se transcreve, vertido para português corrente, encontra-se manuscrito na secção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa (cód. 10619, fls. 135-136). Chamo a atenção do leitor para a fórmula “os capitães de cavalos desejam de [sic] se acomodar ao que Sua Majestade lhes ordena” – não é a obediência pronta e sem reservas ao soberano, é antes um manifesto de intenções, cuja condição de aquiescência será a aceitação, pelo Rei, das contrapartidas propostas.

Proposta que fizeram os capitães de cavalos a Sua Majestade sobre o contrato dos cavalos

Os capitães de cavalos desejam de se acomodar ao que Sua Majestade lhes ordena, aceitam as condições que por sua parte se lhes põem no papel, junto com as declarações seguintes

Que as companhias se farão todas de 80 cavalos cada uma, bons e armados com armas convenientes para o serviço, porque sendo menos não podem servir como convém, pelas quebras que tem a cavalaria, e a respeito dos ditos 80 cavalos lhes mandará S. Majestade dar 200.000 réis todos os anos em duas ou três pagas, como parecer que mais convém.

Que querendo os ditos capitães comprar alguns cavalos, não se ajustando no preço com os vendedores, os façam avaliar na forma costumada, em presença dos corregedores ou juízes de fora, ou quaisquer outras justiças, e assim os pagarão pelos ditos preços.

Que faltando cavalos neste Reino, S. Majestade será obrigado a mandá-los vir de fora, contanto que o principal e gastos, até se entregarem, não passe de 25.000 réis cada cavalo selado e enfreado.

Que as armas e os cavalos dos soldados que morrerem na guerra pelejando, ou forem mandados pelos generais em serviço de S. Majestade, o dito Senhor será obrigado ao mandar remontar, repor à sua custa, e o mesmo se entenderá nos fugidos para Castela com armas e cavalos.

Que fugindo alguns soldados para dentro do Reino, ou para outras fronteiras, os capitães avisarão os governadores das armas, dando-lhes os nomes, confrontações, e lugares donde são os ditos soldados naturais, para que passem as ordens aos ministros de justiça com que os ditos soldados sejam obrigados a tornar, fazendo os capitães da sua parte todas as diligências necessárias para isto ter efeito.

Que S. Majestade ordenará que dentro dos quartéis da cavalaria se façam estrebarias e manjedouras que forem necessárias, e que estas se consertem, sendo necessário, por conta dos patrões ou de S. Majestade.

Que faltando soldados aos capitães, S. Majestade mandará fazer levas ou dar-los [sic] da infantaria, como mais houver por seu serviço.

Que S. Majestade não levará quinto das presas que fizer a cavalaria, nem poderá fazer delas mercê a outras algumas pessoas, e todos acrescerão aos capitães assim como lhe tocarem pelas suas companhias, para compra dos cavalos na forma em que os levam os que os fazem em cavalos seus próprios que não são de Sua Majestade.

Dom João de Azevedo e Ataíde

Imagens: Em cima, carabina de cavalaria inglesa do período da Guerra da Restauração. Em baixo, carabina portuguesa, do espólio do Museu Militar de Lisboa, fotografada pelo Comandante Augusto Salgado. O comentário do Sr. Manuel Ribeiro Rodrigues (comentário 1), a propósito da carabina portuguesa, levantou algumas dúvidas pertinentes quanto à datação da peça. O fecho é, sem dúvida, posterior à Guerra da Restauração (é do século XVIII – compare-se com o fecho menos robusto da carabina inglesa), mas o corpo da arma é muito semelhante ao das carabinas holandesas fabricadas durante a segunda metade do século XVII.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (4ª parte)

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O desaire da Atalaia da Terrinha não foi diferente de muitos outros que ocorreram durante o conflito, fossem os vencidos do exército português ou do espanhol. Contudo, este sucedeu num período particularmente difícil para a cavalaria do exército do Alentejo. Martim Afonso de Melo, recém-nomeado governador das armas, tratou de afastar D. João de Azevedo e Ataíde do comando da cavalaria. O fidalgo foi preso e depois enviado a Lisboa para tratar de assuntos pessoais (uma forma airosa de não embaraçar ainda mais o comissário geral, que em 1641 levantara à sua custa a companhia de cavalos que comandava e fora dos primeiros combatentes na fronteira do Alentejo). Não escapou a um processo e consequente condenação, por causa do comportamento da cavalaria no combate da Atalaia da Terrinha. Como bom conhecedor das leis, D. João de Ataíde soube defender-se brilhantemente, interpondo recursos que resultaram na anulação da desonrosa sentença de perda do posto. Mateus Rodrigues refere que o seu comandante se retirou para os domínios que possuía em Coimbra, deixando definitivamente a fronteira do Alentejo e a carreira das armas. Mas uma carta de Martim Afonso de Melo ainda menciona uma operação levada a cabo por D. João de Ataíde em Junho de 1648, uma incursão ao outro lado da fronteira em represália pelo fracassado assalto espanhol a Olivença, durante o qual morreu o engenheiro João Pascácio Cosmander. Ter-se-á tratado de um breve regresso ao Alentejo para provar que vencera a argumentação legal e mantinha o posto, dele saindo só por sua vontade e com a honra intacta. Antes e depois desta ocasião, a companhia onde servia Mateus Rodrigues foi comandada interinamente pelo tenente Agostinho Ribeiro, sendo posteriormente entregue ao capitão Francisco Pacheco Mascarenhas.

Outros oficiais foram castigados em consequência do desastre militar na Atalaia da Terrinha. O capitão João da Silva de Sousa, que além de correr atrás do ajudante de D. João de Ataíde de espada na mão, insultou o comissário geral e o desafiou para um duelo (um crime muito grave), foi preso e condenado a degredo na província de Entre-Douro-e-Minho. Mas também este oficial soube mover influências, pelo que continuou a servir no Alentejo com a sua companhia. Outro capitão que foi preso, Luís Gomes de Figueiredo, acabaria de igual modo perdoado, tendo mesmo sido promovido a comissário geral. Poucos meses depois, em Setembro de 1647, seria mortalmente ferido num combate.

Em Outubro de 1647, a Atalaia da Terrinha foi palco da desforra portuguesa, com o general da cavalaria D. João de Mascarenhas (futuro Conde de Sabugal) a derrotar uma incursão do congénere espanhol recém-chegado à fronteira. Apenas mais um episódio, entre os muitos combates que se travaram nas proximidades da Atalaia durante a Guerra da Restauração.

Fonte: Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. I,  pgs. 149, 171, 195 e 288.

Imagem: Cavalaria inglesa do período da Guerra Civil entre Realistas e Parlamentários. A aparência e o equipamento eram muito semelhantes ao da cavalaria portuguesa e espanhola da época. Reconstituição histórica, Kelmarsh Hall Festival of History, 2007. Foto de Jorge P. de Freitas.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (3ª parte)

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Recebera D. João de Ataíde ordem de atacar a cavalaria inimiga, mas a progressão foi feita com tanto vagar que a força espanhola passou primeiro o ribeiro e ficou do lado oposto, à espera da reacção portuguesa. Conforme relatou o governador das armas Martim Afonso de Melo…

(…) como não o investimos antes de o passar, com quatro tropas [companhias] que o comissário tinha apartadas, depois foi com grande risco avançar com o inimigo passada a ribeira, o que fez o capitão António Jacques de Paiva e Lopo de Sequeira, tenente da companhia de António Saldanha [da Gama], que ficou na praça [de Elvas] mal disposto, e como estavam da outra banda carregaram todas as tropas do inimigo, que seriam oitocentos cavalos, sobre estas duas nossas, que não puderam aguentar o choque e voltando feriram alguns soldados e o mesmo capitão António Jacques de Paiva e o capitão de dragões [René] Grudé [francês] e o capitão Van Ingen [holandês], a quem levaram prisioneiro por se ir nas companhias que passaram a ribeira; o general da artilharia me fez queixa que os oficiais da cavalaria não fizeram o que ele lhe ordenara (…), e hei-de castigar com todo o rigor ao que achar culpado em não querer investir quando o mandaram, porque o certo é que anda mal acostumada esta nossa cavalaria, mas contudo o inimigo se retirou e largou o posto e nós ficámos nele até às cinco da tarde (…).

O que aconteceu entre a ordem de atacar e a sua tardia e incompleta execução (estando a cavalaria espanhola já formada no lado oposto do ribeiro) é narrado pelo soldado Mateus Rodrigues, que participou na acção:

Dom João (…) chamou um ajudante da cavalaria para levar as ordens do que haviam de fazer, e como este tal ajudante lhe não eram os capitães fidalgos muito afeiçoados, por haver sido criado do mesmo Dom João de Ataíde, (…) quando (…) levou as ordens aos capitães houve uma descomposição com ele, e um capitão de cavalos, por nome João da Silva [de Sousa] lhe disse mui más palavras, e correu após dele com a espada na mão para lhe dar, e o dito ajudante se veio mui queixoso (…) ter com Dom João do que lhe haviam feito. De modo que o mesmo Dom João levou as ordens  pessoalmente a todos os capitães e mandou a um capitão, por nome António Jacques de Paiva, com três companhias, que era a sua e a do tenente Lopo de Sequeira e a (…) companhia de Dom João, que era a minha, e o cabo [ou seja, comandante] que ia na minha [era] o alferes Agostinho Ribeiro, e (…) disse Dom João ao capitão António Jacques que fosse sua mercê com aquelas três companhias a pelejar com o inimigo, mas que não passasse o ribeiro além (…), que assim como chegasse [a] averbar com o inimigo ao pé do ribeiro, lhe desse uma carga de cravinas e pistolas, mas que logo voltasse na mesma hora para trás, dando as costas ao inimigo, e que era força que, vendo-o o inimigo fugir, o havia de carregar logo, e tanto que o inimigo passasse o ribeiro após eles, era força que se havia de descompor (…).

D. João de Ataíde foi então dar as ordens aos capitães, para que atacassem todos ao mesmo tempo logo que o inimigo passasse o ribeiro em perseguição das companhias (quatro, segundo Martim Afonso de Melo; três, na versão de Mateus Rodrigues). Mas, segundo escreve o soldado, o mesmo foi dar-lhe[s] esta ordem que dizer-lhes que fugissem.  António Jacques de Paiva, por seu lado, excedeu as ordens que recebera, pois passou o ribeiro com as companhias, e na desorganizada retirada veio [o inimigo] logo sobre os nossos como um raio, fazendo tudo numa poeira. Mas o que os nossos batalhões haviam de fazer em investir o inimigo, fizeram em fugir todos à rédea solta para [a] Atalaia, e são [sic] o mais infame que jamais se há visto. Tanto que o inimigo (…) viu nossa pouca vergonha, aproveita-se logo da ocasião, seguindo-nos como uns cães, e o pior de tudo que quem ficava nas piores eram as três companhias que havíamos ido a picá-lo, pois lhe ficávamos mais à mão. E assim a perda que houve foi delas, que lhe tomou o inimigo mais de 60 cavalos (…), matando-lhe 20 ou 30 homens.

O general da artilharia André de Albuquerque, que estava na Atalaia com a infantaria, mal viu a fuga precipitada da cavalaria portuguesa, mandou avançar os terços.

(…) o inimigo, assim como viu nossa infantaria, logo se retirou mui depressa, visto haver feito já o que podia fazer, e se retirou a Badajoz, donde teve aquele capitão [D. Alonso Cabrera], que foi causa daquilo, grandes louvores do seu governador; e na verdade os merecia tanto como os nossos mereciam o castigo.

Do lado português, o governador das armas Martim Afonso de Melo ficou furioso com o sucedido. Das consequências finais tratará o derradeiro capítulo desta série.

(continua)

Citações: Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. I,  pgs. 144-145; Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 176-178.

Imagem: Adam Frans van der Meulen, “Combate de cavalaria”, Kunsthistorisches Museum, Viena.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (2ª parte)

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Prossigamos a narrativa do sucedido na Atalaia da Terrinha com a versão “oficial”, o relatório do governador das armas Martim Afonso de Melo (vertido para português corrente). Conforme foi referido, tratou-se da primeira acção de importância após a chegada a Elvas, em 22 de Maio, daquele cabo de guerra.

Hoje, que foram 5 do corrente, das sete para as oito do dia, veio o inimigo com duas tropas grandes dando em uma nossa que estava de guarda, a qual se veio retirando até perto dos muros desta cidade; e dando-se-me aviso mandei montar a cavalaria e lhe ordenei que fosse tomar o posto que a nossa tropa de guarda ocupava; e porque poderia suceder que carregasse muita cavalaria do inimigo sobre a nossa, mandei marchar a infantaria também para que estivesse dentro nos olivais dando favor à nossa cavalaria, e tendo nós tomado o posto se me avisou que a cavalaria do inimigo se havia descoberto e que estava repartida, uma da ribeira para cá, e outra da outra parte; ordenei ao general da artilharia André de Albuquerque (por ser o cabo maior que está nesta fronteira) que fossem investir o inimigo, estando ainda dividido desta nossa parte da ribeira, e não estando a não passassem nem empenhassem a nossa cavalaria, e que mandassem marchar a infantaria de modo que não fosse vista do inimigo, e que pudesse ajudar-nos se fosse necessário; foi o general da artilharia e diz que achando ainda três tropas do inimigo desta nossa parte mandara ao comissário geral Dom João de Ataíde que com quatro nossas as investisse, e ele com o restante fora baixando da Atalaia da Terrinha, que era o posto que ocupávamos, o que vendo o inimigo passou o ribeiro (…)

É tempo de voltar ao testemunho do soldado Mateus Rodrigues, que pinta o quadro do lado da cavalaria espanhola (provavelmente reconstituindo a memória do sucedido a partir das conversas que tivera com soldados de ambos os lados – episódios como este eram contados e recontados ao longo dos anos, e as conversas entre soldados dos dois exércitos eram frequentes, pois tanto uns como outros se encontravam de vez em quando ora na situação de cativos, ora na de guarda de prisioneiros)

(…) de modo que o inimigo se veio encostando ao ribeiro da Veuda (…) e assim como ele se veio chegando para onde as nossas tropas estavam, mandou então André de Albuquerque ir as outras tropas que estavam detrás da Atalaia a incorporar-se com as outras que lá estavam. e uma ordem (…) mandou a Dom João de Ataíde que pelejasse com o inimigo, já que tinham tão boa ocasião, pois o inimigo fora desgraçado em vir naquela ocasião de ter ali a cavalaria das outras praças (…) [e] porque estava já averbado connosco [isto é, em contacto, ou a distância de fogo ou em escaramuça à espada] e não se podia já retirar sem pelejar, porque [senão] tinha a perdição certa. Mas um comissário que ali vinha de novo [ou seja, pela primeira vez] por cabo deles não queria pelejar, porquanto antevia a muita desigualdade que tinha, e como era a primeira vez que saía à campanha, não queria que logo lhe sucedesse uma desgraça. Mas vinha ali com eles um capitão de cavalos a que chamavam Dom Alonso Cabrera, natural de Badajoz, que foi o mais valente soldado que em os nossos tempos conhecemos ao inimigo, e assim como viu o seu comissário frio de pelejar e com determinação de se tornar a retirar e não pelejar, disse-lhe que no se havia de retirar que cuando no quisesse pelear que le dejase la ocasion por sua cuenta, que el se lo queria tomar a su cargo e que no tuviesse cuidado [Mateus Rodrigues mistura português e castelhano “aportuguesado” nesta parte].

E assim, com a confiança assente na experiência e bravura de D. Alonso Cabreira, o comissário geral espanhol decidiu pelejar. Do outro lado, D. João de Ataíde também recebera ordens de atacar…

(continua)

Citações: Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. I,  pg. 144; Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 175-176.

Imagem: O teatro de operações na região de Elvas; a Atalaia da Terrinha aparece destacada a verde. Nota: o norte encontra-se para a esquerda da imagem, o topo aponta a leste. Mapa de Nicolau de Langres, década de 1650. Biblioteca Nacional, Reservados, F2359.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (1ª parte)

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Os anos de 1646 e 1647 foram muito difíceis para a cavalaria portuguesa da província do Alentejo. Foi uma época de transição nos comandos, de mudança estratégica (as campanhas ofensivas do exército no Verão, que marcaram os anos de 1643 a 1646, foram suspensas a partir de 1647) e de reorganização administrativa (o Contrato com os capitães de cavalos entrou em vigor em Abril de 1647). No terreno, a supremacia da cavalaria espanhola sobre a portuguesa ficou exposta numa série de desaires para as armas lusas. Durante algum tempo, a cavalaria não teve general nem tenente-general a comandá-la no terreno. Esse papel coube a um comissário geral, o inepto D. João de Azevedo e Ataíde, a cuja companhia pertencia o soldado e memorialista Mateus Rodrigues. O combate da Atalaia da Terrinha, a cerca de uma légua (5 Km) de Elvas, marcou o fim da carreira militar do fidalgo. Os  ventos da Fortuna soprariam para longe na História, para o século seguinte, a fama imorredoira que o comissário sonhara para si, presenteando com ela um seu trineto, um tal Sebastião José de Carvalho e Melo…

Tudo começou com a chegada do novo governador das armas do Alentejo, o regressado Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço. Seria ele a recuperar a cavalaria do Alentejo, mas o começo não podia ter sido menos auspicioso. O governador das armas convocou todas as companhias de cavalos do exército para uma mostra na cidade de Elvas – existiam então 26 companhias, que alinhavam cerca de 1.000 efectivos. Estavam todas juntas na cidade quando tocou a rebate: havia cavalaria castelhana nos olivais das cercanias de Elvas! O general da artilharia André de Albuquerque Ribafria (que se distinguiria, anos depois, como brilhante general da cavalaria) mandou toda a cavalaria sair da cidade. Uma companhia foi adiante, para entrar em contacto com a força de reconhecimento inimiga, composta por 100 cavalos, e afastá-la das tropas que se formavam na encosta. Segundo recorda Mateus Rodrigues…

…assim como eles viram (…) a nossa cavalaria fora, foram (…) andando para a Atalaia da Terrinha; e a nossa cavalaria foi um vale abaixo, encoberta [para] que não a visse o inimigo, porque já se sabia muito bem que o inimigo tinha [montado] emboscada em Guadiana, que fica da nossa Atalaia um quarto de légua. (…) Desceram as tropas de Elvas abaixo à campanha, e as outras de Olivença e de Campo Maior deixaram-se ficar detrás da nossa Atalaia, que as não visse o inimigo. E já neste tempo o nosso general da artilharia André de Albuquerque estava na Atalaia com os três terços de Elvas, mas não via o inimigo nada. Assim como a sua [(dos espanhóis, entenda-se)] emboscada que estava em Guadiana viu (…) as tropas lá em baixo em o ribeiro da Veuda, saiu de Guadiana à rédea solta com 600 cavalos que lá tinha, não mais, e que em bem má hora vinha ele, se não houvera tanta desordem como houve ou, para melhor dizer, tanto medo e pouca vergonha entre todos [nós], que naqueles casos não se culpa mais senão tudo em geral, porque todos têm culpa. (Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 173-174)

(continua)

Imagem: “Combate de Cavalaria”, de Jan Martszen de Jonge, meados do séc. XVII.

O combate de Castelo de Vide – 8 de Outubro de 1650 (3ª parte)

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Conclui-se hoje a narrativa do combate, segundo a descrição que é feita pelo soldado de cavalaria Mateus Rodrigues, que nele participou.

“Duraria a força da pendência uma hora, (…) mas como o inimigo viu que andava (…) já desbaratado, e além disso as companhias que lhe ficavam pela retaguarda, assim como nos viram, imaginaram que era toda a nossa cavalaria e logo se puseram em fugida, que deram ocasião a que os demais o fizessem também (…), de que nós tivemos grandíssimo gosto, que logo lhes fomos zurzindo em cima, daí uma grande légua até noite escura. E quando o inimigo se pôs em fugida, foi passando pelas barbas do nosso terço, mas já não havia lugar de lhe dar carga [quer dizer, disparar as armas de fogo], porquanto nós íamos já muito baralhados com eles, mas o mestre de campo [Gonçalo Vaz Coutinho], com a muita alegria de ver que nos fugia o inimigo, não se pôde ter que não mandasse dar carga aos soldados, que mais valera que nunca a dera, pois mataram de um mosquetaço o tenente do capitão Lopo de Sequeira, que era um bizarro moço, e alguns soldados mais.”

Note-se que o termo “bizarro”, aqui, significa “valente”. Os cavaleiros portugueses só abandonaram a perseguição após meia légua (c. 2,5 Km) percorrida, já anoitecia, na ermida de S. Amador. Os espanhóis tinham aí deixado perto de 800 infantes, mas este facto só veio a ser conhecido no dia seguinte.

Outro aspecto digno de nota é a inexperiência revelada pelo mestre de campo Gonçalo Vaz Coutinho numa situação de combate, ao dar ordem para os mosqueteiros e arcabuzeiros do terço dispararem sobre a cavalaria que passava ao seu alcance, sem ter em consideração que havia soldados portugueses colados ao inimigo.

“Agora direi o que sucedeu aos cem cavalos que o inimigo botou por cima, a tomar as entradas da vila. Assim como eles sentiam lá com as suas tropas a bulha, foi tratando do seu livramento, mas ainda levou seu esfola gato, que o corremos mui bem e ainda lhe ficaram mais de 20 cavalos dos que levava. E o capitão escapou pelo pó do gato, que esteve bem arriscado a matarem-no ou cativarem-no. Assim como foi noite começámos a juntar-nos e começaram a marchar para a vila de Castelo de Vide, que estava dali meia légua. E como fazia então mui bom luar, víamos mui bem o que havíamos de fazer, contudo, ainda não sabíamos quem nos faltava. Fomos para a vila levando connosco uma procissão de nus dos castelhanos (…).”

Era prática comum, tanto na Guerra da Restauração como em outros conflitos da era pré-industrial, despir os mortos e prisioneiros de guerra, a fim de aproveitar as roupas e todo o equipamento militar que fosse possível. Daí a referência aos prisioneiros nus.

Entre os mortos portugueses contava-se o tenente Agostinho Ribeiro, que comandava naquela ocasião a companhia do general da cavalaria André de Albuquerque Ribafria. Foi a sua morte muito sentida entre todos, principalmente pelo memorialista Mateus Rodrigues e pelos seus camaradas veteranos, pois Agostinho Ribeiro era um velho companheiro de armas, tendo começado a guerra como furriel da companhia de D. João de Ataíde, onde servia Mateus Rodrigues, quando esta foi formada em 1641 (depois de D. João de Azevedo e Ataíde ter deixado o exército em 1647, a companhia passou a ser comandada pelo capitão Francisco Pacheco Mascarenhas). Também o general da cavalaria ficou muito desgostoso com a morte do seu tenente, acontecimento que ensombrava a vitória alcançada e a captura de 250 cavalos.

“O capitão Dinis de Melo [de Castro] trouxe uma pelourada em uma perna, mas não foi coisa que fizesse mal (…). Morreriam 40 homens nossos e feridos mais de 80, mas o inimigo perdeu 5 capitães, 4 mortos e um cativo, destes 250 cavalos que nós lhe tomámos viriam 200 homens prisioneiros, e os mais morreram, de sorte que a minha companhia só trouxe 28 cavalos da ocasião (…). Mas não há dúvida que foi um sucesso notável, com o tão pouco poder que nós tínhamos, que o inimigo trazia treze tropas mui grandes, que constavam de 700 cavalos, e as nossas tropas eram 7, (…) que não éramos mais que 380.”

Fonte: Manuscrito de Matheus Roiz, versão transcrita do AHM, pgs. 230-232.

Veja-se também a descrição do combate em ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line, pgs. 333-334.

Imagem: Jan Martszen de Jonge, Combate de cavalaria (meados do séc. XVII).

Postos do exército português (7) – o tenente

O termo tenente (de tenere, possuir) é a designação abreviada de lugar-tenente, ou seja, o que usufrui de algo – neste caso, um cargo – em lugar do titular. No Portugal militar do século XVII só se encontrava o tenente na cavalaria, pois ao contrário do que sucedia em outros exércitos europeus do período, não existia este posto na infantaria – as funções de segundo-comandante de uma companhia cabia, neste caso, ao alferes.

De acordo com o já aqui referido esboço de tratado de D. João de Azevedo e Ataíde, surge entre páginas 31 e 33 sobre o tenente o seguinte:

A segunda pessoa que há em uma companhia de cavalos depois do capitão é o seu lugar tenente. Deve ser pessoa de valor, em que concorram muitas partes juntas com boa prática e experiência no serviço da cavalaria, por ser ele o que só em ausência do capitão governa tudo (…).

Havendo de pelejar a companhia em ausência do capitão, ou marchar por lugares suspeitos, vai o tenente diante no lugar do capitão, deixando em seu lugar um ou dois cabos mais antigos ou outro algum oficial reformado que seja pessoa de respeito, mas fora destes casos não passa diante, porque então o guiar a companhia toca ao alferes, que vai diante.

O tenente era, portanto, o comandante da companhia na ausência do capitão, mas a sua colocação à cabeça da formação era preterida em favor do alferes quando a companhia marchava sem perigo de encontro com o inimigo, ou quando desfilava em sossego. Assim o exigia o cerimonial militar.

Passando à tradução de Galeazzo Gualdo Priorato, feita pelo Conde de Sabugal, D. João de Mascarenhas, é referido a folhas 75-76 v sobre o tenente:

Há-de fazer-se obedecer rigorosamente dos soldados, (…) e que tenham cuidado com as armas e com os cavalos, porque de ordinário, pela negligência dos soldados e por pouco cuidado dos oficiais, se reduz tudo ao péssimo estilo.

Quando se ofereça ocasião de pelejar deve parar o tenente no seu posto detrás da companhia, com a espada na mão, e fazer que os soldados estejam bem recolhidos e que façam a sua obrigação, e se algum se quiser retirar da sua fileira pode matá-lo para dar exemplo aos outros.

Quando a companhia alojar em alguma povoação deve o tenente receber os boletos e dá-los ao furriel, para que ele os distribua com os soldados. (…) Em ocasião de montar a cavalo é obrigação do tenente ser ele o primeiro, e deve com diligência discorrer [acorrer] a uma e outra parte, para fazer que os soldados montem depressa, castigando aos negligentes.

Não deve nunca o tenente ter contenda com o seu capitão, nem cuidar que sabe mais que ele, porque disto nascem as desconfianças que são as ruínas das companhias (…).

Esta última observação será melhor entendida se nos recordarmos que muitas companhias de cavalaria, não só em Portugal como noutras partes da Europa, eram formadas às custas dos capitães seus comandantes; estes nem sempre tinham a experiência militar necessária, e não era invulgar que os tenentes fossem militares de carreira que colmatavam as lacunas dos seus superiores.

Tal como acontecia na infantaria com o alferes, que comandava efectivamente a primeira companhia de um terço (aquela que, em teoria, era capitaneada pelo mestre de campo), na cavalaria o tenente comandava habitualmente a companhia de um oficial maior (oficial superior, na designação actual): comissário geral, tenente-general, general ou governador, ou inclusive a companhia da guarda do governador das armas da província.

Imagem: “Cena de combate de cavalaria”, Joahnnes Lingelbach, 1651-1652, The J. Paul Getty Trust.

O trombeta

Trombeta não era propriamente um posto, mas um cargo. Existia somente nas unidades de cavalaria, cumprindo a sinalização sonora das ordens que na infantaria cabia aos tambores (ou atambores, como na época também se dizia). O instrumento de sopro designava o cargo. Mas as funções do trombeta não se limitavam aos toques de bota-sela, cerra a eles! (a “carga!” de tempos posteriores, pois no tempo da Guerra da Restauração o termo carga significava disparar uma arma de fogo), retirada e outros. Era um elemento importante como parlamentário na altura dos contactos com o inimigo, mensageiro entre unidades, até espião, quando as circunstâncias o proporcionavam. Sobre o trombeta escreveu D. João de Azevedo e Ataíde na página 28 do seu rascunho:

O ofício de trombeta não é de si mecânico como os tambores da infantaria, antes podem subir e vir a montar por suas partes [isto é, ascender na hierarquia militar pelo valor demonstrado]. Convém que sejam práticos e entendidos, para que quando suceder haverem de levar algum recado ou embaixada ao campo inimigo, o saibam dar e notarem o que lá virem para o referir pontualmente, com tal sagacidade que o inimigo não possa tirar deles coisa alguma, com que venha em conhecimento de algum segredo escondido, além do que um bom trombeta ornamenta uma companhia.

Convém que saiba ler e escrever para tomar as listas das guardas por escrito, e ir avisá-las quando for mandado (…). Costuma ter uma companhia dois trombetas. Um aloja em casa do alferes, aonde está o estandarte, e o outro com o capitão da companhia. Ambos devem de ordinário trazer consigo os trombetas para que, oferecendo-se por necessário haverem de tocar, não façam dilação nenhuma.

A referência ao ofício mecânico dos tambores de infantaria alude ao trabalho braçal, o qual desvalorizava o indivíduo na hierarquia social. Na representação mental dos valores sociais da época, o trombeta tinha assim um ofício mais honrado. O trajo do trombeta era (quando possível) mais vistoso e elaborado do que os demais militares, daí a alusão à “ornamentação” que proporcionava à companhia. Embora isso não seja realçado pelas fontes iconográficas disponíveis para o exército português do período, era comum entre exércitos estrangeiros.

Alguns trombetas do exército português eram de raça negra. Como nota final, registe-se que da trombeta (instrumento de sopro) pendia uma bandeirola com o escudo real português.

Imagens: Em cima, pormenor de um painel do biombo do Visconde de Fonte Arcada (arte sino-portuguesa), representando trombetas do exército português. Museu Nacional de Arte Antiga. Ao meio, pormenor da água-forte de Dirk Stoop sobre a Batalha das Linhas de Elvas, 1659 – note-se o trombeta à margem do combate; Biblioteca Nacional, Iconografia, E1090V. Em baixo, trombeta aguardando que um oficial componha a mensagem que irá entregar. Quadro de Gerard Terborch (década de 60 do séc. XVII), Gemäldegalerie, Dresden.

Postos do exército português (6) – o alferes

No que respeita ao alferes, não é possível estabelecer qualquer comparação com as atribuições actuais do oficial com aquela patente. No século XVII, a função primária do alferes era a de transportar a bandeira ou estandarte da companhia, ou o guião do general – função idêntica, no essencial, à de épocas mais recuadas, até à da génese árabe do termo, introduzido na Península Ibérica com a invasão muçulmana de 711. Contudo, ao invés do alferes comandante de um pelotão nos nossos dias, o do século XVII podia comandar uma companhia. Interinamente em caso de ausência do capitão, ou mesmo por inerência de cargo quando, num terço de infantaria, era porta-bandeira da companhia do mestre de campo.

Para ser provido no posto de alferes de infantaria, segundo a apreciação de Joane Mendes de Vasconcelos ao projecto de Ordenanças Militares de 1643, título 22º,

a um homem de qualidade [quer dizer, da nobreza] podem bastar dois anos, aos demais quatro de guerra viva, ou seis debaixo de bandeira, e não devem bastar os anos de serviços, senão que também se hão-de considerar o valor e partes e procedimento do nomeado, para se haver de prover, por que se for homem vil e afrontado, ou tiver algum grande e conhecido defeito, não deve ser admitido; (…) e merecendo o sargento da companhia passar a este posto, deve ser preferido a todos.

No caso da cavalaria aconselhava D. João de Azevedo e Ataíde, a pgs. 29-31 do seu tratado, que

querendo o capitão fazer escolha de algum alferes para a sua companhia, fará entre os soldados da mesma companhia, escolhendo entre os mais nobres [termo aqui empregue com o sentido actual de honrado] o mais brioso e ambicioso da honra, e que melhor tiver provado diante dele como aquele a quem os outros devem imitar e seguir como a sua guia. Marchando, vai sempre diante da companhia, pouco atrás do capitão, mas levando estandarte se porá no meio da primeira fileira.

O alferes de infantaria tinha um pagem – o abandeirado – cujo estatuto não era o de um militar, embora constasse na orgânica dos terços. Cabia-lhe transportar a bandeira sempre que o alferes tivesse de desempenhar outras tarefas. Tratava-se do prolongamento, no universo castrense, das funções que eram esperadas da criadagem. É um conceito estranho ao mundo actual, onde o exemplo mais próximo, mas mesmo assim anacrónico e pouco correcto, porque desempenhado por um militar de facto, é o do impedido.

Havia alferes nas companhias pagas e nas milicianas de infantaria. Na cavalaria, só as companhias de cavalos couraças (do exército pago, portanto) deveriam ter alferes, mas era muitíssimo frequente encontrá-los também nas de cavalos arcabuzeiros do exército pago que não respeitavam a proibição de terem estandartes.

Imagem: Companhia portuguesa de cavalos couraças (couraceiros). O alferes transporta o estandarte. Painel representativo da Batalha do Ameixial (1663), “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira. Foto do Comandante Augusto Salgado.

Postos do exército português (4) – o furriel

Este posto só existia na cavalaria. Sobre as qualidades que devia ter o furriel e as suas funções, escreveu D. João de Azevedo e Ataíde:

O furriel de uma companhia se deve escolher entre os soldados mais práticos e entendidos que saiba[m] ler e escrever. O seu particular ofício é alojar e repartir os alojamentos quando marcha a companhia. Recebe do almoxarife a cevada e tudo o mais que aos soldados se dá de munição, para o repartir e dar conta quando se faz o pagamento.

Partindo-se diante para efeito de alojar a companhia, só por si ou em companhia do furriel-mor, pedirá ao tenente dois soldados para o ajudarem e tornarem, em recado seu, avisar a companhia de como estão os alojamentos feitos. (…)

Na companhia tem pouca jurisdição, para castigar nenhuma, contudo, sendo pessoa de respeito e soldado prático, em ausência do alferes poderá, se parecer bem ao capitão, governar a companhia, e doutro modo não, por não ser posto militar.

Regras militares…, pgs. 26-27.

Para os leitores do século XXI poderá parecer estranha esta referência ao furriel como um “posto não militar”. Na verdade, na estrutura militar seiscentista ainda não estavam completamente separadas as esferas do civil e do militar. Deste modo, o furriel estava para a sua companhia como o oficial que desempenhava o cargo de quartel-mestre geral estava para o exército provincial, ao nível das funções de organização do alojamento. Se, com o exército em campanha, o quartel-mestre geral era sempre um militar com patente de oficial superior, já numa localidade onde as tropas alojavam em permanência, constituindo a guarnição da vila ou cidade, o cargo podia ser atribuído a um civil, normalmente um elemento da burguesia local. Mas se o quadro mental da época aproximava, pela semelhança das funções administrativas desempenhadas pelos indivíduos (ainda que em escalas diferentes), o furriel do quartel-mestre geral civil, isso não deve induzir-nos em erro quanto às tarefas puramente militares que cabiam ao furriel, que era um combatente como qualquer outro.

A importância do furriel numa companhia de cavalaria, em termos administrativos, era idêntica à dos sargentos numa companhia de infantaria. Daí que o capitão pudesse confiar no furriel e até dar-lhe o comando da companhia, na ausência do tenente e do alferes. Mas seria esta possibilidade – apresentada em outros tratados militares do período, não só no esboço efectuado por D. João de Ataíde – bem vista pela oficialidade superior?

Dinis de Melo de Castro, um oficial que fez toda a Guerra da Restauração e que atingiu o posto de general da cavalaria do Alentejo e governador das armas da mesma província, para além de ter recebido o título de Conde de Galveias, tinha uma opinião crítica a este respeito. Para ele, era coisa indigna os furriéis comandarem companhias (na ausência do próprio capitão, entenda-se, o que era muito comum), pois os capitães acrescentam [ou seja, promovem] estes furriéis se lhes dão boas contas, e como estes procuram o acrescentamento por aquele caminho, não tratam de merecerem pelo ofício de soldado, e só procuram dar boa conta da palha e cevada, e quando passam a tenentes são os que menos experiência têm.

Estas palavras de Dinis de Melo surgem numa consulta ao Conselho de Guerra em 12 de Agosto de 1665. Mesmo próximo do final do conflito, parecia prevalecer a ideia do furriel como amanuense. Mas devemos ter em conta o preconceito do fidalgo em relação a deixar à frente das companhias alguém oriundo da plebe, numa função mais conotada com a administração do que com o ofício das armas. Contudo, essa opinião, um tanto extremada, desaparecerá no século seguinte. A separação definitiva entre o campo militar e o campo civil dissiparia as dúvidas quanto ao espaço do furriel – ou melhor, quanto ao conceito que se fazia do seu papel.

Imagem: Combates durante a Batalha das Linhas de Elvas (1659). Ilustração de Pedro de Santa Colomba. Biblioteca Nacional, Iconografia, E1090V.

Postos do exército português (3) – o cabo de esquadra

O cabo de esquadra comandava… uma esquadra! O equivalente, hoje em dia, a uma secção, passe o risco de anacronismo. Na infantaria e na cavalaria, correspondia a um efectivo de 20 a 25 homens – mas na cavalaria, onde as companhias registavam, com alguma frequência, quebras de efectivos, a esquadra podia não ir além de 10 homens.

Sobre as atribuições seiscentistas de um cabo de esquadra, o tratadista italiano Galeazzo Gualdo Priorato, traduzido e comentado por D. João de Mascarenhas (Conde de Sabugal) em plena Guerra da Restauração, riscou à pena conselhos que foram seguidos pelos portugueses. Vejamos:

O cabo de esquadra

Manda este cabo a sua esquadra, a qual deve doutrinar de tudo aquilo que deve saber um soldado. Tem obrigação de antever e reparar as desordens e pendências entre eles, e imediatamente que descobrir algum indício, (…) o deve advertir ao capitão, porque a ele não lhe toca o castigá-los (…). Terá um rol dos soldados da sua esquadra e quando algum falte, dará parte ao sargento (…).

Deve conhecer quais são os mais experimentados e os mais revoltosos, para pôr estes de sentinela, e para mandá-los às facções de maior importância (…).

Achando-se o cabo de guarda com a sua esquadra, estará vigilante e cuidadoso, para que não [o] surpreenda o inimigo ainda que esteja longe, e porá as sentinelas aonde lhas mandarem pôr os seus maiores, e as mudará ele mesmo, tendo juntamente cuidado com as rondas. Instruirá as sentinelas [sobre] como devem regular-se vendo o inimigo, e como devem tocar arma e advertir sem rumor, e como se não devem retirar as sentinelas dos seus postos, senão mudadas do cabo, ou bem forçadas do inimigo, no qual caso seretirarão aos corpos de guarda.

Será razão que o cabo saiba ler e escrever, para que tenha rol da sua esquadra e seja assim o serviço melhor repartido.

D. João de Mascarenhas era um veterano da batalha de Rocroi (1643), onde se bateu (ainda muito jovem) no exército de Filipe IV. Voltou pouco depois a Portugal e aderiu à causa de D. João IV, distinguindo-se como tenente-general e general da cavalaria no exército do Alentejo. Membro do Conselho de Guerra, D. João de Mascarenhas foi, acima de tudo, um dos mais brilhantes oficiais da Guerra da Restauração. A tradução da obra de Gualdo Priorato, à qual acrescentou interessantíssimos comentários, só foi impressa em 1707, em plena Guerra da Sucessão de Espanha, mas o manuscrito foi composto na década de 60 do século XVII: Maneio da Cavallaria escrito pelo Conde Galeaço Gualdo Priorato com annotaçoens de Dom João Mascarenhas Conde do Sabugal do Conselho de Guerra d’ElRei Dom Affonço 6º. O excerto acima transcrito corresponde às páginas 78 v-79 v do manuscrito.

Também D. João de Azevedo e Ataíde se refere aos cabos de esquadra, a páginas 24 a 26 do seu rascunho de tratado:

O seu ofício próprio é terem alistados os soldados das suas próprias esquadras, os quais não só hão-de conhecer todos de nome, senão também o natural [ou seja, o local de nascimento] e qualidades deles, se são frouxos ou têm indústria [isto é, se são desembaraçados] e valor para assim os acomodar e distribuir os postos conforme aos talentos que conhecerem neles (…).

Havendo de marchar a companhia [de cavalaria] em ordem, se porão nos cabos [ou seja, nos extremos] da primeira e da última fileira, donde se não podem sair, senão fora para remediar e acudir a algum erro ou desordem dos soldados, tornando-se logo ao mesmo posto.

Imagem: Duas fileiras de mosqueteiros abrindo fogo (“dando carga“, como se diria em português do século XVII). Reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kellmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Postos do exército português (2) – o soldado de cavalaria

Sobre o soldado de cavalaria, trago aqui as considerações de D. João de Azevedo e Ataíde. Este oficial relativamente obscuro, apesar de referido em várias Relações propagandísticas dos feitos de armas do início da guerra, foi comissário geral da cavalaria do exército do Alentejo entre 1644 e 1647. Deixou a carreira das armas sem glória, mas com algum proveito material, na última destas datas. Deixou também um esboço manuscrito de tratado militar sobre a cavalaria, cuja transcrição estou a ultimar e que será integrada numa resenha biográfica do ex-oficial a publicar em breve. Como curiosidades adicionais, refira-se que D. João de Ataíde foi responsável pelo recrutamento do soldado e memorialista Mateus Rodrigues, o qual serviu sob seu comando nos primeiros seis anos da guerra e do fidalgo nos legou um testemunho bem mais rico que o da literatura panegírica impressa; e que D. João foi trisavô, pela parte materna, de Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e Marquês de Pombal.

O trecho aqui transcrito para português corrente corresponde às pgs. 17 a 23 de Regras militares da cauallaria ligeira compostas per Dom João de Azeuedo e Attayde, Comissario Geral da caualaria, do exercito, e Prouincia do Alentejo [manuscrito composto após 1644, provavelmente 1644-47].

O soldado de cavalaria

O soldado que se resolver assentar praça de cavalos deve dar por entendido que há-de servir e trabalhar sem passar a vida ociosamente, como muitos cuidam, porque os trabalhos, e principalmente os da cavalaria, são contínuos, de dia ao sol, de noite ao sereno, aos rigores dos tempos, sem ter vontade própria, sofrendo as sem razões de seus superiores, as más pagas dos Príncipes, obrigados a pelejar com risco da vida todas as vezes que o seu capitão quiser, e ainda alguma vez o inimigo, contemporizando com as rigorosas leis da honra e do mundo, certo o perigo, o prémio duvidoso, ou porque o pobre soldado não chega a alcançar o favor dos que governam, ou porque sendo as coisas limitadas, não pode haver prémio para todos (…).

Convém que o soldado de cavalo seja curioso do seu cavalo, trazendo-o sempre bem pensado [isto é, alimentado – o penso era a ração de cevada para a montada], não se desprezando de o limpar por suas próprias mãos (…). Na mesma forma se deve prezar muito do conserto e limpeza de suas armas, porque além de parecerem bem na paz, no tempo da peleja as armas reluzentes metem medo e temor ao inimigo (…).

Deve saber qualquer soldado governar e moderar o seu cavalo, sem o trazer desabrigado e descomposto, correr e escaramuçar assim por terra firme como pela áspera, subir e descer desenvoltamente por um e outro lado, armado e desarmado, que suposto que esteja em uso o subir e descer pela parte esquerda do cavalo, porque por ali fica mais à mão a espada e faz menos estorvo (…), contudo será importante acostumar-se a cavalgar pelas partes ambas (…).

Saberá desenvoltamente jogar todas as armas de cavalo, na tropa [designação para companhia, ou a subdivisão táctica desta, ou a formação táctica designada por batalhão] e fora dela, donde andará com bom conserto, dobrando quanto necessário for, e sucedendo por algum caso duvidar-se, se saberá tornar a reunir e juntar na tropa em seu lugar, sem se perturbar nem confundir (…).

Acudirá dos primeiros em ouvindo que se toca as trombetas, ocupando o lugar que lhe tocar, havendo de marchar seguirá ao que direitamente for diante dele, conservando-se na sua fileira, e na ordem que o seu capitão lhe dá. E quando a não chegue a alcançar de boca, fará e guardará o que vir fazer aos outros que vão diante dele. Dando a carga [quer dizer, disparando a arma de fogo] tornará a carregar depressa, contanto que com muita pressa não acerte a não carregar como convém. Por nenhum modo dará a sua carga senão muito a tempo, e quando puder, de modo que possa fazer golpe, porque o mais é perder pólvora [e] ficar desarmado ao melhor tempo.

Imagem: Combate de cavalaria – Arronches, 8 de Novembro de 1653. Painel de azulejos seiscentistas, “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira. Foto do Comandante Augusto Salgado.