O combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645) e o quadro do Marquês de Leganés – 2.ª parte: a narrativa de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz)

Do sucesso do Marquês de Leganés também faz eco o memorialista Mateus Rodrigues. A sua unidade, comandada por D. João de Azevedo e Ataíde, esteve envolvida nas operações de intercepção da força espanhola – aliás, sem sucesso.

O episódio das Vendas de Alcaraviça é referido pelo memorialista, neste caso não por tê-lo testemunhado, mas provavelmente por dele ter ouvido contar a terceiros. Segue-se uma transcrição vertida para a grafia actual:

Estando o inimigo nestas competências, […] lhe veio um aviso de uma espia dobre [ou seja, um espião que fazia jogo duplo, dando informações para ambos os lados], […] que as ordenanças de Évora estavam em Estremoz, e que vinham para Elvas tal dia. […] Pois o aviso era tão certo […], porque a mesma noite que o inimigo saiu, essa mesma veio a gente [da ordenança] a dormir às Vendas d’Alcaraviça, que são duas léguas de Estremoz. E ao outro dia se haviam de vir para Elvas, que são 4 léguas, de maneira que o inimigo entrou com a cavalaria por entre Elvas e Juromenha, e logo foi sentido na entrada. Mas não que se soubesse o poder que levava, senão pela manhã, que ele ia em grande marcha pela estrada abaixo de Estremoz. A gente de Évora já se queria vir, que estava já fora das estalagens para marchar. Vinha com eles por cabo [ou seja, comandante] um sargento-mor mesmo de Évora. E como o inimigo foi logo sentido por aqueles campos, iam muitos lavradores fugindo em éguas, dando avisos do inimigo. E tanto que o sargento mor da gente ouviu dizer que vinha o inimigo, meteu toda a gente, que eram 600 homens, todos em uma grande tapada, que estava ao pé das estalagens, com parede à roda, que dava pelos peitos a um homem, que se fora gente paga não houvera de investir com eles o poder do mundo. Mas aquela canalha, não servem mais que de beber, que são uns bêbedos, e o sargento-mor que vinha com eles outro tal, e pior ainda.

Assim como o inimigo chegou a um cabecinho que está à vista das mesmas estalagens e já muito perto, logo viu toda a gente metida na tapada. E assim como a viu formou-se mui bem e manda tocar as trombetas a degolar, e vai investindo com eles por duas ou três partes. E assim como averbou com eles, não puderam logo saltar os cavalos a parede, mas apearam-se uns poucos de castelhanos e fizeram logo uns por todos, que passaram os batalhões formados, e a tudo isto os bêbedos ia[m] fugindo cada um por onde podia, mas que lhe importava isso, que dos 600 homens que eram não escaparam 100, que deu o inimigo neles e foi degolando todos os que iam encontrando, até que se enfadou de matar e os mais trouxe prisioneiros, que matou mais de 200 homens e trouxe prisioneiros perto de 300. (MMR, pgs. 134-136)

Embora os pormenores não sejam muito nítidos nas fotos disponibilizadas pelo Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén (veja-se a 1.ª parte deste artigo), o quadro corrobora a descrição feita por Mateus Rodrigues. A infantaria portuguesa encontra-se formada em dois pequenos esquadrões (designação coeva para as formações tácticas de infantaria),  cujos blocos são exclusivamente constituídos por piqueiros. Os atiradores (quase certamente munidos de arcabuzes, como era frequente entre a ordenança) estão dispostos ao longo do muro que delimita a tapada, disparando sobre o inimigo. Uma parte da força portuguesa já está em fuga, após o dispositivo ter sido penetrado pela cavalaria espanhola. Como cada companhia tinha uma bandeira e no quadro se podem ver quatro (duas delas levadas pelos alferes em fuga, as outras nos respectivos esquadrões ainda formados), é possível que o terço da ordenança fosse composto por quatro companhias de 150 homens cada, o que mais uma vez confirma o efectivo de 600 homens referido nas fontes – e desmente o número exagerado (1.000) apresentado na legenda do quadro.

Imagem: pormenor da legenda do quadro mandado pintar pelo vitorioso Marquês de Leganés, onde o número dos portugueses derrotados é superior ao que as fontes escritas referem. Mas este exagero de propósito laudatório era comum no período.

 

 

 

A fortificação das praças do partido (distrito militar) de Riba Coa em 1657

Urgência na reparação ou na edificação de fortificações, falta de mão de obra e escassez de meios financeiros para concretizar os projectos. Três aspectos de uma constante da guerra em qualquer uma das fronteiras, que num caso específico – o do partido (ou distrito militar) de Riba Coa em 1657 – é abordado pelo respectivo governador das armas, D. Rodrigo de Castro, numa carta enviada ao Conselho de Guerra. Nessa missiva, avançava soluções para ultrapassar os obstáculos acima referidos.

Para conseguir mão de obra, propunha chamar a gente de guerra que ainda não tinha sido convocada para os terços de auxiliares e volantes (da ordenança, estes últimos, destinados a acorrerem, quando necessário, à defesa de qualquer local do partido militar). Já não iam à guerra nem a outro serviço militar há mais de 8 anos, e seriam 14.727 homens. Deveriam trabalhar em turnos de 8 dias, 400 homens em cada turno, o que faria 117.816 homens de trabalho, necessários para cavar 12.515 braças cúbicas de terra, abrindo fossos para a defesa das praças. Dando a esta gente pão de munição como se estivessem em campanha, orçaria em 1.531.816 réis. Daqui resultaria uma poupança para a fazenda real. É isso que salienta D. Rodrigo de Castro na sua carta: venho aforrar a real fazenda de Vossa Majestade de dezoito contos, quatrocentos e noventa e seis mil, cento e dezoito réis, porque esta obra, fazendo-a os mestres e pagando-se-lhes na forma da estrutura que tem feito, importa vinte contos e vinte e oito mil réis. Para sobresselente de pão de munição de dois meses, a nove mil rações da gente que há-de guarnecer as praças e do pé de exército para o socorro delas, são necessários trezentos e trinta e três moios e vinte alqueires de trigo.

O assentista não estava obrigado a dar este alimento pelo seu contrato, mas comprometeu-se a pô-lo em farinha nas praças, pelo que D. Rodrigo solicitava que o Rei lhe mandasse, por carta, agradecer. Também os moradores foram persuadidos a colocar nas praças 2.400 carros de lenha sem despesa para a fazenda real. Solicitava também D. Rodrigo que o rei mandasse colocar o que fosse necessário nas praças para alimento da gente delas, e que não vindo o inimigo a importunar se poderia vender, recuperando a fazenda real a despesa feita: 1.249 quintais de carne e outros tantos de peixe seco, 1.200 alqueires de legumes, 6.000 almudes de vinho, 200 de azeite, 550 de vinagre, que importariam 11.395.940 réis.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: Soldados assaltando uma fortificação, quadro de Peter Snayers, período da Guerra dos 30 Anos.

Uma acção de pequena guerra e descoberta de traição – província da Beira, Abril de 1653

São em número considerável as cartas que os governadores das armas enviavam ao Conselho de Guerra, de forma a manter informada Coroa acerca dos sucessos das armas nas fronteiras. Na sua maior parte bastante detalhados, estes relatórios das acções de pequena guerra eram escritos de maneira a atrair a atenção régia (e a consequente recompensa, sob a promessa de mercês futuras) para o próprios comandantes ou para os seus subordinados que mais se destacavam, ou então como forma de justificar algum insucesso mais notório. Numa dessas cartas, D. Rodrigo de Castro, então governador do partido de Riba Coa, província da Beira, dá conta da descoberta casual de uma traição – algo que também fazia parte do quotidiano nas fronteiras durante o longo conflito de meados de seiscentos.

A carta, anexa à consulta onde foi apreciada, é aqui transcrita na íntegra para português corrente:

Chegando dia de Páscoa, 13 do corrente, à cidade da Guarda, dando-me o comissário geral João de Melo Feio conta do estado da província e do inimigo, com as mais pessoas práticas resolvemos que antes de ter notícia de minha chegada seria favorável, armando emboscada à cavalaria de Ciudad Rodrigo, entrar nela. E com o desejo de dar bons sucessos às armas de Vossa Alteza [a carta é dirigida ao príncipe D. Teodósio], sem descansar da jornada, me parti logo e entrei em Castela à derradeira oitava, 16 do mesmo, com quatro tropas de cavalos e 150 infantes bocas de fogo [ou seja, todos armados de mosquete e arcabuz, sem piqueiros]. Emboscando-me junto ao rio Alzava, duas léguas de Ciudad Rodrigo, mandando por doze cavalos correr às portas daquela Cidade tomar língua, com ordem de não pegarem em gado, salvo até dez, ou doze reses, para melhor mostrarem era partida que ia fugida, e as quatro tropas da cidade saíssem a corrê-los como costumavam, e vindo à desfilada e cansadas à emboscada melhor pudesse rompê-las. Os doze cavalos executaram a ordem e saiu trás deles só a tropa da guarda, mas com tal vagar e cautela que vendo eu que estava em posto que a descobria, disse a todos que o inimigo infalivelmente havia por algum traidor sido avisado. Fez alto da outra banda do rio e por um só cavalo me mandou reconhecer, como quem sabia estava eu ali; o que, vendo-me descoberto, deixando a infantaria no bosque, investi com a cavalaria o inimigo e se me pôs em fugida a toda a brida, de modo que lhe tomámos somente um cavalo e matámos Andrés de las Casillas, guia que o inimigo muito estimava, e a mais tropa, vendo-se apertada, não se atrevendo chegar à cidade porque lhe íamos dando alcance, se meteu no fortim de Marialvilla. Pus-me a refrescar tempo considerável na campanha por ver se as demais tropas de Ciudad Rodrigo vinham avistar-me, tendo-me tão dentro de Castela. A que vendo o não faziam, me recolhi, trazendo também quatro prisioneiros, que asseguram se espera brevemente pelo mestre de campo Dom Francisco de Castro com 150 cavalos de remonta.

Ao seguinte dia, tomando uma partida da tropa do capitão Francisco Martins Guaião língua, com o cuidado de eu haver dito que não degolava o inimigo por ser avisado de algum traidor pelo modo com que havia armado e vira o inimigo. Perguntou o capitão à língua, que era de Villa Mel, se sabia havia alguém entre nós que fosse dar avisos a Castela, e lhe respondeu que sabia os ia dar uma sentinela paga da raia, do lugar de Quadrazais, e que pelo seu posto deixava entrar os castelhanos, e tocava arma já a tempo que haviam feito presa. O capitão Francisco Martins o mandou prender, e persuadindo-o a que se confessasse, e assim como nos vendia, nos vendesse o inimigo, faria comigo o perdoasse. E crendo-o assim a sentinela, lhe confessou que dava os avisos a Castela por dinheiro que lhe davam, que visto eu lhe perdoaria se me entregasse o inimigo, que me entregaria a tropa de Valverde. Mandou-me o capitão Francisco Martins Guaião o sentinela e o castelhano língua. E fazendo pergunta ao castelhano, me disse o mesmo que havia dito, e o sentinela de Quadrazais, que se eu lhe perdoasse, me entregaria a tropa de Valverde. E que era verdade que dava avisos a Castela, um de que a tropa de Quadrazais havia ido para Castela, e noutra ocasião toda a gente daquele lugar fora para fora que viessem a ele, mas que nunca o inimigo fizera então dano. Com o que, ou por ignorante, ou por querer Deus pagasse sua traição, entendeu livrava dela. Mandei-o ao auditor geral, que se achava achacado, para juridicamente lhe tomar a confissão, que da mesma sorte fez. Com o que o mandei meter com ferros na enxovia, e ordenei ao auditor geral que viesse a esta praça para onde fui buscar minha casa. E por não haver até o presente chegado o auditor geral, que devia continuar-lhe o achaque, não está sentenciado este traidor, que logo para exemplo determinava sentenciado mandar fazer nele justiça. Mas o auditor geral disse que a sentença de morte deve ser apelada para o Conselho de Guerra, conforme ao regimento, com que me conformarei, sem embargo que nestes casos convém prontamente demonstração, para atalhar com o temor outros, que por tais meios é grande felicidade livrar dos danos.

Desta jornada, quando não fora a reputação de ir buscar o inimigo sem dilação alguma à sua praça principal, pô-lo em fugida e no temor de não se atrever a sair dela o socorro a buscar-me, foi grande o lucro de descobrir este traidor. Conhecendo que sem havê-lo, pelo modo com que armei e pela ocasião em que era certo degolar a cavalaria inimiga, que faltando-lhe os avisos, com o favor de Deus haverá mais casos em que a rompa.

Aos cabos que nesta ocasião me acompanharam deve mandar Vossa Alteza lhes agradeça o bom coração com que se arrojaram ao empenho delas.

Guarde Deus a muito alta e poderosa pessoa de Vossa Alteza felicíssimos anos. Almeida, 21 de Abril de 1653.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, mç. 12, carta de D. Rodrigo de Castro, de 21 de Abril de 1653, anexa à consulta de 2 de Maio de 1653.

Imagem: Gerard Terborch, “Soldados na casa da guarda”.

Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira – Julho de 1646 (manuscrito inédito, 2ª parte)

Ao sábado houve nesta cidade muitas luminárias pelo bom sucesso. Ao domingo veio o inimigo com esse poder que tinha aos olivais desta cidade, mas como gosta pouco dos marmelos e azeitonas de Elvas, não os quis chegar a provar, e assim se foi sem gastarmos um grão de pólvora. Amanhecendo para a segunda-feira, estava eu à janela pelas três depois da meia-noite, e fazia muito formoso luar, veio alguma cavalaria pelo caminho que tinha ido a nossa gente.Três sentinelas que estão defronte desta cela lhe[s] perguntaram duas vezes quem eram, sem responderem, disseram-lhe que não esperassem a terceira, que havia de ser com pelouro, responderam que amigos. Perguntaram-lhe de que tropa, e se vinha ali o capitão, que falasse, como fez, e com estas circunstâncias passaram até à porta de Olivença. Adormeci, e dadas quatro horas acordei ao estrondo da artilharia e mosquetaria, assim de fora como dos muros, de maneira que cuidei que o inimigo atacara a praça, porque os pelouros de uma e outra parte cruzavam os ares. Os nossos que iam chegando festejando a cidade, e a cidade a eles, e como passavam Chinchas logo iam descarregando, e não se viam senão bocas de fogo e ruído de pelouros. Santa Luzia fez a última festa e não lhe faltavam luzes de artilharia e mosquetaria. A primeira coisa que enxerguei foi a carruagem, e tinha passado a mais da infantaria. Logo vinham as peças e depois a cavalaria. A gente que foi a esta facção foram quatro mil e quinhentos infantes e mil cavalos. Quando partiram de Arronches, que foi domingo pelas três da tarde, tiveram histórias Dom Rodrigo [de Castro, governador da cavalaria] e Dom João [de Mascarenhas, tenente-general da cavalaria] sobre a vanguarda, que dizia Dom Rodrigo que a ele pertencia, e Dom João que a sua tropa havia de vir de vanguarda, que pertencia a quem fez a facção. E estas mesmas histórias tiveram na cidade diante de Joane Mendes, e Dom João disse que assim o aprendera na escola de Flandres, e o outro na de Alentejo. O caso foi que D. João lançou no meio da sala o bastão, e disse que não havia de servir com Dom Rodrigo. Joane Mendes avisou a Sua Majestade do que se passava, e ontem, além do ordinário lhe vieram dois de cavalo, um trás doutro, e um deles era para que informasse o que havia no caso, para se compor. O inimigo, quando deixou Elvas, foi correr os campos de Vila Viçosa e Redondo, soou que a ninguém deram quartel, e que à vista de Telena mataram todos a sangue frio. Foi o caso que chegando ali com a presa e prisioneiros, viram vir algumas tropas da parte de Badajoz, e os castelhanos largaram a presa, e os nossos, cuidando o que eles cuidaram, se foram meter com as tropas que vinham, cuidando ser nossas, sendo elas de Castela. E dizendo os nossos “Viva El-Rei Dom João” foram mortos quatro ou cinco, e um castelhano cuidando ser português. Contudo, e pelas mais mentiras que acerca disto se disseram, se mandou Joane Mendes queixar por uma carta a Badajoz. Mandaram-lhe dezassete dos que tinham levado, que não eram soldados, e ele lhe[s] mandou também os que não eram soldados que tinham vindo de Santa Marta e da Codiceira. O capitão da Codiceira, com os mais soldados, está na cadeia, e não chegará a dezoito anos. Eu dormi domingo na cadeia com um português de Tomar, que à segunda[-feira] arrastaram, enforcaram e esquartejaram, porque foi a Badajoz assentar praça e esteve lá quatro meses, e vinha cá por sua espia. Um nosso português que está prisioneiro em Badajoz matou a um capitão nosso que estava do mesmo modo, estando dormindo; mandou o fronteiro de Badajoz, que é um N. de Enguiem, que se cá não determinassem alguma coisa acerca daquele caso, que também lá havia justiça.

Sábado fez oito dias que veio um homem de Juromenha com um cavalo buscar o reitor de São Paulo para lá pregar, quando foram acharam dois castelhanos de cavalo, que lhe apanharam o em que ia, e dois mil réis que levava, e se foi uma légua a pé.

Ontem de noite entraram nesta cidade treze canhões dos que estavam em Estremoz. Toda a gente paga do Reino vem a esta praça, e os corregedores vêm comboiando a de suas comarcas com as mulas que há. (…) Elvas, em 8 e 9 de Agosto de 1646.

O episódio do desentendimento entre D. Rodrigo de Castro e D. João de Mascarenhas encontra-se bem documentado e foi por mim estudado a propósito do quadro mental do combatente e a definição das hierarquias (O Combatente na Guerra da Restauração… pgs. 122-123). Quanto ao caso dos prisioneiros de guerra, das trocas e do destino a dar aos que eram acusados de traição, será o tema de próximos artigos.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relação da tomada de Santa Marta, e Codeceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo P.e Fr. do Teixozo Religioso capucho assistente na mesma cidade”, fls. 74-76.

Imagem: “Corpo de guarda”, óleo de Mathieu Le Nain.

Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira – Julho de 1646 (manuscrito inédito, 1ª parte)

Dando continuidade à transcrição de alguns manuscritos portugueses do códice mss. 8187 da Biblioteca Nacional de Madrid – e prosseguindo também o que Juan Antonio Caro del Corral deixou aqui escrito a respeito do ano de 1646, que foi repleto de acontecimentos bélicos, passo a apresentar a transcrição de uma relação sobre as operações militares na província do Alentejo em Julho de 1646.

Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo padre Fr[ancisco?] do Teixozo, religioso capucho assistente na mesma cidade

Foram oitocentos cavalos e quatrocentos infantes a Santa Marta, seis léguas de Badajoz e sete de Olivença, atacaram a praça sem perigo, mandaram a gente que se fosse e derrubaram-lhe algumas casas, fizeram presa em alguns burros e outras coisas semelhantes, alguns deram com batacas [patacas] e outros com quartos [moedas espanholas de real] que espalharam, e outros com melhores coisas que calaram, o certo é que a ida foi de perda para Sua Majestade, e de nenhum proveito, porque a calma era grande e alguns cavalos abafaram e outros aguaram, e os inimigos com sua cavalaria tomaram os nossos nas serras de Valverde, os quais, por pelejar, largavam esse pouco que traziam, dos quais alguns foram mortos, porque não podendo marchar com a calma se ficavam às sombras. Um furriel nosso que os castelhanos mal feriram [ou seja, que feriram com gravidade] e deixaram por morto e despido porque não se quis render, depois se veio em camisa a Olivença, e escapa.

Quarta feira 24 de Julho, dia de Santiago, pelas seis horas da tarde, saiu Dom João [de] Mascarenhas com seiscentos cavalos, e André de Albuquerque com quatrocentos infantes, um é tenente-general da cavalaria e o outro general da artilharia, saíram pela porta dos banhos com suas mulas de carruagem, vieram entre o castelo e a ribeira de Chinchas e a passaram por baixo de Nossa Senhora, e logo a tornaram a passar para a cidade. E chegou toda esta gente onde foi a porta de Évora, por cima da Lameda, e dando sua salva de bastardas tornou a desavisar o mesmo caminho, e passou Chinchas pelo caminho de Portalegre, e tornou logo a voltar, ocupando o mesmo posto da porta de Évora, onde fez noite, e desapareceu sem saberem para onde. Na mesma noite se ajuntou no lugar que largou Dom João toda a mais gente da cidade, e a de Olivença com muita carruagem e quatro peças de campanha, e eu confesso que o mais do tempo depois de matinas estive à janela e que não ouvi reboliço algum, só por algumas vezes rinchar [relinchar] um cavalo. Pela manhã começou esta gente a marchar caminho de Arronches, que era o que tinha levado já Dom João a cavalaria, logo duas peças de campanha, muita infantaria, seguiam-se outras duas peças e logo a carruagem, que seriam quinhentas ou seiscentas cavalgaduras com dez mil pães, afora o biscoito, e por retaguarda a tropa de Dom Rodrigo [de Castro – ou seja, a companhia da guarda do governador da cavalaria]. Aquele dia chegaram a Arronches, e Dom João pelas onze da noite à Codiceira, e a sentinela em um cascalho que há antes de chegar sentiu os nossos, e quando chegaram lhe[s] perguntou quem eram e que fizessem alto. E lhe responderam em castelhano que amigos, e que se queriam chegar ao castelo porque o inimigo andava em campanha, repreendendo-os porque dormiam tanto. Neste tempo estavam pondo petardo, por isso o entretinham com palavras, e vindo outro nosso, e não querendo fazer alto, senão chegar-se aos outros, lhe tirou um com um mosquete e o matou, posto que também lhe falou em castelhano. Deu-se logo fogo ao petardo que foi posto no postigo, e o postigo foi fazer em pedaços a segunda porta que era de grade, e os nossos entraram e quebraram com os ombros outra porta de estacada, e encontraram já o capitão em ceroulas e descalço, que estava com a cria à ilharga. Nisto chegou toda a gente de Dom João, e não houve mais que outro morto nosso, de uma pedra que lançaram do muro, de muitas, e muito grandes, que por cima tinha. E com isto ficaram os nossos senhores do castelo e vila. Começava Joane Mendes [de Vasconcelos] a marchar de Arronches para a Codiceira quando lhe chegou nova do feito, escreveu a Sua Majestade se se havia de presidiar o castelo, mandou que fosse tido assolado. Levou dali gastadores e foi com toda a gente e o minou, e dando-lhe fogo não ficou pedra sobre pedra. Era o castelo quadrado e tinha quatro torres nos cantos, que descortinavam ao longo dos muros, e se os treze castelhanos estiveram alerta, não sei se o tomaram os nossos, porque logo lhe veio socorro de Albuquerque, que está uma légua, e não havendo canhões era muito forte. E os nossos, se não usaram da traça e os castelhanos não foram tão sonolentos, não se havia de chegar a pôr o petardo. O mesmo se fez à vila, tirando a igreja e casa do cura, que posto tinha muita fazenda, se não buliu nelas, e o Bispo de Badajoz mandou dizer ao cura que, se aqueles senhores quisessem presidiar o castelo e não trouxessem capelão, os servisse, e se o trouxessem, se fosse. Ficaram muito contentes com o bom quartel que se deu á gente. No castelo havia muitos panos, e nos pisões e moinhos, que tudo ficou assolado, e muito trigo pelas eiras, e nas hortas muita fruta, de que os de Arronches se aproveitaram. Vieram os nossos para Arronches e um soldado entrou numa horta, colheu um pepino, e levando-o à boca lhe tirou o senhor dela com uma espingarda e o matou; outro, por entrar numa vinha, foi escopeteado. 

(continua)

Realce-se os curiosos factos narrados no final desta primeira parte – a defesa da propriedade privada por parte dos civis, qualquer que fosse a nacionalidade dos soldados que a violassem, chegando-se a extremos de violência e ao assassinato. Nos casos referidos, recorrendo a armas de caça (espingarda e escopeta). Este ódio entre civis e militares, tão característico da actividade bélica do século XVII (e de toda a Era Moderna, aliás), é ilustrado por muitos e variados exemplos nas fontes narrativas e documentais durante a Guerra da Restauração.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relação da tomada de Santa Marta, e Codeceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo P.e Fr. do Teixozo Religioso capucho assistente na mesma cidade”, fls. 74-76.

Imagem: “Soldados em repouso numa estalagem”, óleo de Jean Michelin (c. 1616-1670), Museu do Louvre.

A tentativa de tomada de Badajoz pelo 2º Conde de Castelo Melhor, segundo uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama (1645) – 2ª parte

Conclui-se aqui a transcrição da carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama:

Eu levava à minha conta pôr o petardo principal,e o efeito dele devia ser sinal para se investir pelas outras partes. E com estes fundamentos, que pareceram bastantes para se intentar a facção, deu o Conde de Castelo Melhor conta a Sua Majestade e lhe perguntou se queria que se obrasse. Sua Majestade respondeu que sim, escrevendo uma carta ao Conde e pondo quatro regras de sua mão. Dizia que tomando-se a cidade, ele partia logo de Lisboa com todo o socorro possível, e que da Beira, Trás-os-Montes, Entre-Douro-e-Minho e Algarve mandava vir gente paga, para que de tudo se formasse um exército capaz de defender Badajoz e fortificá-lo, e que por todo o Reino mandava fazer orações para o bom sucesso da jornada. Com a resolução de Sua Majestade se preveniu tudo para o último de Julho marcharmos, e ao amanhecer dar em Badajoz. Mandou-se ordem à gente de Olivença e à de Campo Maior, para que se ajuntasse em Telena, que [é] légua e meia desta praça e duas de Badajoz pelo caminho por onde íamos. Começámos a marchar desta praça para Telena e três peças de artilharia que levávamos, e outras carroças com ferramentas e as escadas, quebraram tantas vezes, que com as consertarem e passagem do rio, chegámos a Telena uma hora antemanhã [isto é, antes do amanhecer], e não poderíamos chegar a Badajoz senão com duas ou três de dia, e como a ordem de Sua Majestade era chegando de dia não acometêssemos a praça, nos retirámos cada um para a praça donde tinha saído. E Dom Rodrigo de Castro foi com a cavalaria a correr o campo de Xerez de los Caballeros, donde trouxe novecentas vacas.

Este é pontualmente o sucesso da jornada de Badajoz. os motivos com que se intentou e os defeitos por que se não executou. Os castelhanos não tiveram notícia nenhuma de nossa jornada, nem souberam que havíamos marchado senão a dois de Agosto, que acaso vieram a Telena e viram a trilha da gente que ali havia estado.Todos os que têm vindo de Badajoz depois disto, assim castelhanos como portugueses, dizem que tomávamos a praça sem dúvida nenhuma, e isto mesmo disse Jorge de Melo e Dom Diogo de Meneses e o Conde de Santa Cruz. Queira Deus termos guardado esta empresa para melhor ocasião. Os castelhanos depois disto têm crescido a infantaria, e têm seis mil homens e dois mil e quinhentos cavalos, e a nossa cavalaria consta só de mil e cento, com que nos levam uma grande vantagem.

Haverá sete dias que o capitão de cavalos Francisco Barreto, filho natural de Francisco Barreto, único filho do morgado de Quarteira, que estava alojado com a sua companhia em Arronches, fez uma emboscada a uma companhia de infantaria que de Albuquerque vem todos os meses mudar o presídio da Codiceira, e deu nela de repente e matou trinta castelhanos e trouxe dezanove prisioneiros com as armas de todos, e as cavalgaduras em que traziam a bagagem. Eles se quiseram vingar e nos vieram aqui armar uma emboscada da outra parte de Guadiana, ainda na sua terra, e mandaram vinte cavalos que viessem tomar o gado. A nossa companhia de cavalos que estava de guarda no campo mandou alguns atrás deles, os quais, contra a ordem que levavam, passaram o rio. O inimigo, em nos vendo da outra parte, carregou sobre eles, e como levavam os cavalos cansados de correr tanto, não se puderam livrar todos, e ficaram prisioneiros doze e o tenente de  Dom Vasco Coutinho. Ficaram mortos dois. E quando fomos saindo desta cidade, se foi o inimigo retirando logo.

De Olivença saíram oito soldados de cavalo a tomar língua, e encontrando-se com trinta soldados que iam para Badajoz de uma leva, os prenderam e trouxeram todos a Olivença.

Isto é o que por cá há estes dias, e do mais que houver avisarei a Vossa Mercê. A Relação da Índia folgarei muito de ver, ainda que é grande o mal que ali nos têm feito os holandeses.

Ao senhor Chantre beijo as mãos e a Vossa Majestade Deus guarde como desejo. Elvas, 12 de Setembro de 1645. João de Saldanha

A propósito de Francisco Barreto de Meneses, que João de Saldanha refere na parte final da sua carta, assinale-se o estudo de José Gerardo Barbosa Pereira, A Restauração de Portugal e do Brasil. A Figura de Francisco Barreto (ou Francisco Barreto de Menezes), texto policopiado, dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2001. Francisco Barreto partiria para o Brasil em 1647 e aí viria a comandar o exército que derrotou os holandeses nas duas batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), o que lhe valeu o epíteto de “Restaurador de Pernambuco”. Em Portugal, a sua participação na Guerra da Restauração decorreu no Alentejo e na Beira, como capitão de infantaria do terço do mestre de campo David Caley, tendo demonstrado valor para ser promovido a capitão de cavalaria em 13 de Abril de 1644 e posteriormente a mestre de campo. Distinguiu-se especialmente no ataque à praça de Valença de Alcântara onde recebeu vários ferimentos em combate.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Interpreza intentada contra Badajoz a 31 de Julho”, fls. 36-37 v.

Imagem:”Cerco de uma cidade”, óleo de Peter Snayers.

Organização do trabalho de fortificação das praças do partido de Riba Coa (província da Beira) nos inícios de 1657

Na sequência do que já aqui foi exposto sobre o partido de Riba Coa nos inícios de 1657 (material de guerra e situação das forças militares), vem a propósito referir as propostas do governador das armas, D. Rodrigo de Castro, para organizar o trabalho de fortificação das praças daquele partido.

Propunha o governador mobilizar a gente de guerra que ainda não tinha chamado aos terços de auxiliares e volantes (da ordenança, portanto, estes últimos) e que já não iam à guerra nem a outro serviço militar há mais de 8 anos, e que seriam 14.727 homens. Deviam trabalhar por turnos de 8 dias, de 400 homens cada turno, o que faria 117.816 homens de trabalho, necessários para cavar 12.515 braças cúbicas de terra, abrindo fossos para a defesa das praças. Dando a esta gente pão de munição como se estivesse em campanha, orçaria em 1.531.816 réis, o que, segundo D. Rodrigo de Castro, iria poupar à fazenda real dezoito contos, quatrocentos e noventa e seis mil, cento e dezoito réis, porque esta obra, fazendo-a os mestres e pagando-se-lhes na forma da estrutura que [se] tem feito, importa vinte contos e vinte e oito mil réis.

Para reserva de pão de munição destinado a dois meses, a nove mil rações para os que haviam de guarnecer as praças e para o pé de exército para o socorro delas, seriam necessários trezentos e trinta e três moios e vinte alqueires de trigo. O assentista não estava obrigado a dar este alimento pelo seu contrato, mas comprometeu-se a pô-lo em farinha nas praças, pelo que D. Rodrigo solicitou que o Rei lhe enviasse uma carta de agradecimento (na verdade, na menoridade de D. Afonso, seria D. Luísa de Gusmão, a Rainha regente, a fazê-lo).

Também os moradores foram persuadidos a colocar nas praças 2.400 carros de lenha sem despesa para a fazenda real. Solicitava igualmente D. Rodrigo que a Coroa mandasse colocar o que fosse necessário nas praças para alimento da gente delas. Não indo o inimigo atacar as praças, se poderia vender esse alimento, recuperando a fazenda real a despesa feita: 1.249 quintais de carne e outros tantos de peixe seco, 1.200 alqueires de legumes, 6.000 almudes de vinho, 200 de azeite, 550 de vinagre, que importariam 11.395.940 réis.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, carta de 14 de Março, anexa à consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: “Cerco de uma cidade flamenga por soldados espanhóis”, óleo de Joahnnes Lingelbach, década de 50 do século XVII.

A situação militar do partido militar de Riba Coa (província da Beira) nos inícios de 1657

Em complemento ao que foi apresentado acerca da situação nas praças do partido de Riba Coa, trago a lume um outro levantamento da situação, este referente aos efectivos e às dificuldades de pagamento, igualmente remetido ao Conselho de Guerra pelo governador D. Rodrigo de Castro e sensivelmente pela mesma altura do anterior.

Por ordem da Coroa, enviada ao governador em finais de Janeiro de 1657, devia o terço pago daquele partido ser reenchido de gente (era o termo utilizado na carta régia) até ao limite da sua dotação. E que o mesmo fizesse com os terços de auxiliares e as companhias de cavalaria da ordenança, tudo da maneira mais suave que se conseguisse – ou seja, sem levantar grandes protestos por parte da população.

Em resposta, recordou D. Rodrigo as dificuldades por que passava a província, à qual estava previsto remeter apenas seis mesadas para pagamento da gente de guerra e cobertura de outras despesas, de 5.600 cruzados cada uma (um cruzado equivalia a 400 réis), mas que na realidade se materializavam em três pagas somente, restando menos do necessário para os pagamentos de todo o ano da 1ª plana da corte, hospital, correios, artilharia, atalaias, sentinelas da raia e muitas outras despesas; e que com aquelas três pagas por ano não podia subsistir a gente de guerra sem os saques, vilas ganhas e presas feitas em Espanha. No entanto, estando toda aquela raia tão destruída de ambos lados da fronteira, não era possível aos soldados recorrerem à referida alternativa como até então faziam. Tudo isto lembrava D. Rodrigo de Castro para dizer que, se se acrescentasse gente ao terço pago, não receberia soldo mais do que duas vezes ao ano, e com os 2.140 réis que cada soldado levava nas duas pagas, seria impossível sustentarem-se, vestirem-se e calçarem-se um ano inteiro.

O terço encontrava-se com 709 infantes, e D. Rodrigo dizia que faria acrescentar os 800 que faltavam para a sua lotação sem despesa da real fazenda. Mas pedia para que se aumentasse o montante das mesadas, pois que o recrutamento se faria sem as pagas iniciais, mas se iria guarnecer a província, além das munições que se davam aos auxiliares que faziam turnos de um mês de guarnição às praças, que naquela província eram 9 na raia e 32 atalaias, as quais ficavam melhor defendidas com aquela infantaria paga. E acrescentava na carta enviada ao Conselho de Guerra que teria a infantaria sempre pronta para acudir ao Alentejo. Relembrava também que , na anterior ocasião em que governara aquele partido de Riba Coa, havia deixado os terços de auxiliares armados e com o número de gente que lhe fora ordenado pelo Rei, mas que após 3 anos de ausência da província se tinham desfeito de tal forma que, quando regressam do serviço de guarnição, nunca trazem o efectivo inicialmente destacado de soldados e nenhum deles vem armado.

Apontava uma solução para ter aquela gente pronta e capaz de servir: fazer como na cavalaria, em que se tinham dado patentes a 4 comissários gerais, um de cada comarca, e assim deveria ser com os mestres de campo de cada terço de auxiliares, que serviriam sem soldo, sendo somente pagos os sargentos-mores e ajudantes, para assim darem disciplina e instrução militar, o que não acrescentaria despesa de maior reparo. Porque sendo o mestre de campo de cada comarca, assim como a gente do respectivo terço, este marcharia mais facilmente com comodidade e confiança.

Não era somente a infantaria a preocupar o governador. Também a cavalaria da ordenança se encontrava afectada pela falta de cavalos, pois muitos tinham morrido ou ficado estropiados nos últimos 3 anos, e não havia cavalos suficientes na província para se comprarem. D. Rodrigo ordenou que os homens que fossem obrigados a ter cavalos os comprassem, adiantando dinheiro para os que não os tivessem, de modo a mandar vir alguns da comarca de Esgueira.

O Conselho de Guerra ficou satisfeito com as sugestões de D. Rodrigo de Castro e solicitou que a Regente lhe agradecesse o zelo e cuidado com que servia. Em 22 de Março, um decreto régio mandava que se cumprisse o parecer do Conselho.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, consulta de 19 de Março de 1657.

Imagem: “Soldados e senhoras elegantemente vestidas jogando no interior de um corpo de guarda”, pintura de Jacob Duck.

Material de guerra existente nas praças de Riba Coa em Março de 1657

Duas cartas de D. Rodrigo de Castro para o Conselho de Guerra, datadas de 4 e de 11 de Março de 1657, dão conta da situação das praças do partido de Riba Coa, que o futuro Conde de Mesquitela governava, e do material de guerra aí existente.

Havia à época 42 peças de artilharia naquele partido militar, com o seguinte detalhe:

Artilharia para sair em campanha:

– 5 meios-canhões de bronze que necessitavam de reparos, com suas guias e carros matos. Com a ferragem que havia nos velhos, podiam ferrar-se três reparos com dois pares de rodas, e podiam consertar-se, com pouco custo, as rodas para as guias e um carro. Faltavam demais sobressalentes e tabuões para as respectivas esplanadas (posições preparadas onde eram colocadas as peças) e calabreses grossos e miúdos para serem tiradas em campanha.

– 4 quartos de canhão de bronze, para os quais eram necessários 4 reparos com guias e outros tantos carros matos. Havia reparos nos velhos para três reparos com rodas, e havia dois pares delas sem ferragem. Faltavam-lhe sobresselentes, tabuões para as esplanadas e calabreses miúdos e grossos para estas peças serem tiradas em campanha.

– 4 falconetes de bronze. Havia ferragem para os reparos, rodas e guias, era necessário sobressalente, tabuões para as esplanadas e calabrês para saírem em campanha.

A artilharia que não estava prevista sair em campanha também era referida em detalhe:

– Para 2 colubrinas de bronze, faltava tudo o que não fosse ferragem para um reparo com as respectivas rodas.

– Para 1 colubrina de bronze faltavam rodas e ferragem.

– Para 1 meio-canhão de bronze, havia ferragem para o reparo e rodas.

– Para 6 sacres de bronze, havia somente ferragem para três reparos com as respectivas rodas.

– Para 2 meios-canhões de ferro havia ferragem para um reparo e rodas.

– Para 17 peças de ferro, havia ferragem para 5 reparos e rodas.

Necessitava-se, para as peças que haviam de estar na muralha, de madeira para guaritas, e de cocharas, lanadas e soquetes para todas.

Material de guerra existente nos armazéns

Nos armazéns da província havia 117 arcabuzes consertados, 770 piques, 230 forquilhas, 720 frascos, 630 bandolas de mosquete e arcabuz, e 30 de carabinas. Alguns dos frascos estavam desconsertados, e havia 144 arcabuzes e 333 mosquetes desconcertados (ou seja, avariados ou truncados). Para a infantaria havia 104 corpos de armas, mas nenhuns para a cavalaria, nem carabinas e pistolas, do que estava a cavalaria muito necessitada. Por isso, D. Rodrigo de Castro solicitava o envio de 200 carabinas, 150 pares de pistolas e 200 corpos de armas.

Outras necessidades: 1.513 quintais e 116 arráteis de pólvora, 25.200 balas, e para os 9.000 homens que haviam de guarnecer as praças, à razão de meio arrátel por dia, e a dois arráteis por todo o tempo dos dois meses que haviam de sair em campanha, eram precisos 1.210 quintais e 76 arráteis de pólvora; e de balas sorteadas de outros tantos, e o mesmo de morrão, para o que só havia nos armazéns 211 quintais de pólvora, 116 de balas sorteadas, 225 de morrão, 2.011 balas de artilharia. Destas, escrevia D. Rodrigo, havia no Fundão grande quantidade, embora ainda não soubesse ao certo o número de balas.

Na segunda carta, de 11 de Março, dá conta D. Rodrigo de Castro que se preparava para reunir os 3.000 infantes e 200 cavalos que a Coroa mandou estarem a postos para acudir ao Alentejo, dos quais infantes, no entanto, não poderiam ir só os pagos e auxiliares, porque todos juntos não perfaziam os 3.000 necessários. Seriam necessários 4.500 infantes para guarnecer as 9 praças principais, acasteladas, que havia na raia, com fortes e artilharia, e de um pé de exército de 3.000 ou 4.000 homens.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, cartas anexas à consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: “Combate de cavalaria” (pormenor), pintura de Pieter Meulener.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 7 e última – Bemposta e Freixo de Espada à Cinta)

A vila de Bemposta é muito pequena e aberta, dificulta o Douro a passagem que o inimigo tem se quiser saqueá-la, nem tem riqueza com que se apeteça, mas para maior segurança se há-de fazer pelos moradores uma atalaia que assegure o melhor aquele ruim passo.

A vila de Freixo de Espada à Cinta tem um castelo capaz de se defenderem nele todos os moradores dela. É também assegurada do rio Douro, a que cercam por ali penhas tão altas e continuadas, que é impossível trazer o inimigo artilharia, nem carruagens. Só em dois passos (algum ano seco em o estio) dá passo à infantaria à desfilada, e trabalhosamente da mesma sorte à cavalaria. Para impedir estes dois passos, se deve cobrir cada um deles com sua atalaia forte, que tocando a sentinela arma, há largo tempo para da gente da vila lhes entrar a guarnição com que o inimigo não passe, e quando a troco de sua perda o faça, valerá mais do que pode interessar em queimar algumas casas.

Douro abaixo, até onde esta província se encontra com a da Beira, há nele outros dois, tão dificultosos passos, que também se devem assegurar com outras duas atalaias, que hão-de ser guarnecidas pelos mesmos moradores dos lugares que lhe ficam vizinhos, termo da mesma vila. Com o referido está reconhecida e ponderada toda a raia de uma à outra extremidade desta província.

E assim termina o relatório enviado por D. Rodrigo de Castro, Conde de Mesquitela, ao Conselho de Guerra.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Soldado com mosquete, estudo de Adam-Frans van der Meulen.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 6 – Miranda do Douro)

A praça de Miranda está edificada, e o seu castelo em sítio tão forte, que com pouca obra será inexpugnável sua fortificação. Coroa o alto de uma eminência de uma penha superior às mais que se lhe chegam, nela não se lhe poderão abrir aproxes, nem profundar minas. Quase toda esta povoação cerca os rios Douro e Fresno, que impedem o inimigo poder levar por ali artilharia, em razão dos ruins passos e aspereza que tem para se baixar e subir deles. Está fechada esta cidade e o seu castelo com muralha que, se antiga, a melhor que naquele tempo devia fazer-se, com sua barbacã, e pela parte que olha ao Douro e alguma do Fresno, onde devia parecer que pelo intratável não necessitava dela, se lhe tem feito parede, com uma forte estacada. Ao lado, que estes rios não acabam de cerrar, uma pequena parte desta cidade e castelo tem duas eminências, que de uma à outra se caminha à muralha; a mais próxima dela é capaz de poucas peças para bateria; a outra mais distante e eminente, é a largo tiro de mosquete da muralha, não só capaz de muita artilharia, mas cobre um vale em que o inimigo pode aquartelar grosso de gente. necessita esta praça de que, ao uso moderno, se descortine a muralha feita por dois meios baluartes e três meias-luas, e que em lugar de fosso no de estrada encoberta se lhe faça um parapeito de pedra, com estacada em meio dele.

Deve fazer-se uma obra corna com sua meia-lua naquela eminência que descortina o vale, tira o quartel ao inimigo e lhe impede a única parte que tem para trazer artilharia, e dentro dos ramais desta obra fica cerrada a outra em eminência inferior a esta.

Só com estas pequenas obras ficará esta a mais defensável praça que a meu ver há neste Reino.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Planta de Miranda, década de 40 do século XVII. Publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 5 – Outeiro e Vimioso)

 

 

 

A vila de Outeiro (que está da raia meia légua) consiste a defensa daqueles moradores em o seu castelo, que está a menos de tiro de mosquete, situado em uma eminência tão consideravelmente levantada, que de nenhuma outra receberá ofensa. De uma parte do castelo sai muralha que torna a cerrar nele, cobrindo mais da metade da do castelo; vem em forma circular, não tem casas em meio, nem as há no castelo, senão as em que vive quem o governa, e algumas que servem de quartéis. Deve derrubar-se a muralha que não é do castelo, e ele ficar em meio de um quadrado paralelogramo, a que três lados defenderão meias-luas, e o outro a que vem subindo uns penhascos, uma tanalha. Esta é a fortificação que, segundo o sítio, pede o castelo, que convém assegurar-se pela importância dele.

A vila do Vimioso dista légua e meia da raia, tem um pequeno castelo, mas bastante a qualquer incidente recolherem-se os moradores dela, e defendendo-se dele ofenderem ao inimigo que entrar a saquear as casas, porque descortina as ruas. Não deve fazer-se fortificação que o feche, porque não está em parte conveniente para que o inimigo queira ocupá-la para ali se sustentar, mas porque é abundante de gados, convém na eminência do Facho, que fica a tiro de mosquete do castelo, fazer uma atalaia forte, cercada ao largo de estacada com parapeito, onde, recolhidos os gados dele, peleja a gente a favor da atalaia, porque [para que] o inimigo lhos não leve; obra que farão por sua conta os moradores, pela utilidade que se lhes segue.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Filme: “Como se disparava um mosquete de mecha”, pequeno documentário em inglês (English Heritage).

 

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 4 – Bragança)

A praça de Bragança dista da raia duas léguas e meia, o que dela foi vila está situada em uma eminência circundada de muralha antiga, em meio tem um castelo também cerrado de per si de muralha da mesma sorte. Desta vila se continua a mais povoação da cidade, baixando pela eminência, e torna a subir até outra, que fica a tiro de mosquete. Continuam-se as casas por junto ao rio Fervença e se alongam só a distância de três ruas, por uma e outra parte as vem fechando parede de grossura de três palmos, pouco mais ou menos. A que olha ao rio tem alguns redentes e parte dela de pedra e cal; a que fica para a parte da campanha é de pedra e barro, tem a modo de baluartes e alguns travezes, tem estacada e pequeno fosso a maior parte desta obra.

Esta povoação é tão condenada a padrastos, que segundo as notícias variaram todos os engenheiros em a forma de fortificá-la, e nenhum fez planta conveniente. Deve cerrar-se de per si a fortificação da vila que está situada naquela eminência, e pode servir-lhe a muralha com que se acha, menos a que fica para as casas da cidade, que contra elas se há-de fortificar com defesa ao moderno de dois meios baluartes a modo de tenalha, e uma meia lua ao lado direito dela, e se há-de ocupar em uma obra corna a eminência que para a outra parte olha a muralha da vila a tiro de mosquete, porque [para que] dali a não batam nem se caminhe com aproxes.

Fortificada de per si desta sorte a vila, se deve fazer um forte na eminência que frente a ela fica, junto à qual acaba a povoação da cidade, que ficando em meio destas duas forças tiro de mosquete de uma a outra a não entrará o inimigo, ou ao menos se não pode deter nas casas, ofendido da artilharia e mosquetaria, e abrindo-se um fosso pela parte da campanha ao largo, mudando a ele a mesma estacada e parede de pedra que está feita junto às casas, e se o inimigo quiser vir a elas receberá na detença da entrada considerável perda da artilharia e mosquetaria, das duas forças e meios fossos há-de ir acabar este. Pelo outro lado das casas ficam defendidas do rio Fervença e aspereza da subida dele. É esta fortificação de maior segurança que qualquer outra que ali possa fazer-se: pede menos tempo, menos despesa e muito menos guarnição.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Planta de Bragança, década de 40 do século XVII. Publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 3 – Monforte e Vinhais)

Monforte é um castelo da raia uma légua, feito de ruim muralha ao antigo, de que sai outra onde era a vila, que hoje só tem dentro oito ou dez casas de colmo, e outras tantas pela parte de fora. Tem, pela do castelo, uma estacada, a que mandei fazer parapeito e banqueta; está a maior parte da muralha da vila defendida da aspereza de um penhasco que para ela sobe, e a do castelo que olha a campanha quase de nível com ela, mas tem comodidade o inimigo para pôr duas baterias, que de perto lhe podem fazer grande ofensa; mais ao largo tem outras eminências que descortinam por dentro de ambas as muralhas a tiro de mosquete. Para resistir esta vila e castelo a exército pede obra considerável, e como não tem moradores, nem é de utilidade ao inimigo, não fará para esta ofensa. Deve acomodar-se o castelo para resistir em qualquer incidente que o inimigo ali chegue sem o fim de sitiar, com obra de tão pouco porte que não merece fazer sobre ela discurso.

Vinhais é pequena vila que dista légua e meia da raia, tem uma ruim muralha que cerra poucas casas, sem outra defesa, nem a pede porque não é de utilidade ao inimigo, nem de porte para vir a ela, e ainda para com cavalaria fazer presa, é dificultosa a entrada, pelo ruim passo que tem para fazê-la.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Planta de Vinhais, década de 40 do século XVII. Publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 2 – Chaves)

A praça de Chaves é cercada de muralha antiga, tem dentro um pequeno castelo em que não há moradores, nem capacidade para mais casas que a com que se acha. Tem esta vila três arrabaldes, dois deles chegados à muralha, o outro da banda de além do rio. Está situada superior a Veiga por mais da metade da sua circunvalação. Para a parte de Castela, a cem passos, pouco mais ou menos, em uma eminência superior, está o forte de Nossa Senhora do Rosário, obra mais pequena do que devia fazer-se. Tem quatro baluartes com flancos tão pequenos que lhe dão pouca defesa. Tem-se-lhe começado a abrir fosso em a maior parte, mas nem por essa está acabado. Por fora dele circunda o forte uma estacada com parapeito feito de pedra e barro, com seus redentes e pontas a modo de meias luas, que a descortinam. Totalmente convém pôr este forte em perfeição fazendo-lhe meias luas e ocupando dois postos com obras cornas, porque [para que] o inimigo não bata, nem caminhe deles com aproxes, porque dali chegarão brevissimamente a picar a muralha, e convém necessariamente a defesa deste forte, em que consiste o inimigo não poder ser senhor da vila nem sustentar-se nela a que serve de cidadela, com o que se fica escusando a fortificação real que se procura à vila, para que era necessário dilatado tempo, excessiva despesa e muita guarnição. E só bastará fazer-lhe poço, algumas meias luas e estrada encoberta que se feche com a do forte, e derrubando-se a muralha que fica oposta a ele.

Com atalaias fortes se devem ocupar três penhascos que estão tiro de mosquete da praça, da outra banda do rio de Ribelas, com o que, assim a vila como o forte, ficarão com boa defesa e mais breve tempo, com menos despesa e moderada guarnição. Acabadas estas obras se deve fazer um forte na eminência que está para a parte da Trindade, a mais de tiro de mosquete desta fortificação, a fim de tirar ao inimigo o quartel que detrás dele necessariamente há-de tomar, querendo pôr sítio; e estando ocupado este posto, haverá mister mais de vinte mil homens o inimigo para deitar cordão à praça, e lhe será precisamente necessário ganhar o forte desta eminência, que será defendido com muita segurança da gente da guarnição da praça, pelo ficar socorrendo com as costas nela, debaixo de toda a artilharia e mosquetaria; perderá o inimigo sobre ele gente considerável, gastará muito tempo, que é o remédio dos sitiados para esperarem não serem ganhados e poderem ser socorridos.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças daRaya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Planta de Chaves, década de 40 do século XVII. Publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O estado das praças raianas na província de Trás-os-Montes em 1659 (parte 1 – Montalegre)

castelo de montalegre

Numa carta datada de 4 de Junho de 1659, D. Rodrigo de Castro, Conde de Mesquitela e governador das armas da província de Trás-os-Montes, expôs ao Conselho de Guerra a situação das praças raianas que acabara de visitar. Percorrera toda a zona fronteiriça, de uma extremidade à outra da província, e o que encontrara dera-lhe motivo para grande preocupação: todas se achavam abertas ou com muralha antiga e a necessitarem urgentemente de fortificação. O grande obstáculo era a falta de verbas para o efeito. Do montante que, nos primeiros anos da guerra, provinha do real d’água e estava consignado à fortificação daquela província, uma parte fora desviada para atender às necessidades também prementes da vizinha província de Entre-Douro-e-Minho. Entrava aqui também a fatia de 200.000 réis que se ia buscar ao rendimento das terças da Torre de Moncorvo e que o Conde de Mesquitela reclamava de novo para as obras das praças de Trás-os-Montes. Entretanto, propunha-se o governador das armas empregar gratuitamente toda a gente da ordenança da província nos trabalhos de abertura de fossos, levantamento de terra e na condução de pedra e madeira, como meio de contornar em parte a penúria de meios financeiros.

Quanto ao estado das praças, a situação é descrita com minúcia numa relação anexa à carta. É esse texto que aqui se reproduz, vertido para português corrente.

[Montalegre]

Montalegre dista da raia duas léguas, tem um castelo separado da vila, é cercado de muralha antiga a que se fez seu poço, e mais ao largo uma estacada a que mandei fazer parapeito e banqueta para delas se pelejar, como de estrada encoberta. Está situado este castelo sobre um outeiro, que domina a campanha na maior parte de sua circunvalação. A um lado tem um outeiro, que sendo-lhe área inferior, lhe é prejudicial por lhe estar perto. A outro lado, da parte da vila, lhe ficam dois vales com um levantado outeiro capaz de bateria, ao qual domina e flanqueia, e aos vales uma colina que dista do castelo largo tiro de mosquete, que convém ocupar-se com um forte, como com um fortim o dito outeiro que se avizinha ao castelo.

Devem derrubar-se algumas casas que da vila se arrimam à estacada e não deixam flanquear, em razão que por elas se pode chegar o inimigo sem dificuldade à muralha.

Mandei cortar vigas fortes para que sobre elas se façam sobrados no alto de duas torres, em que se ponha artilharia que descortine as eminências e vales do alcance dela. É de muita importância a conservação deste castelo, e com estas pequenas obras pode assegurar-se.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1659, maço 19, “Rellação das  Praças da Raya da Prouinçia de Tras os montes, do estado de suas fortificaçõis da que neçessitam, e os passos do Rio Douro”, anexa à consulta de 20 de Junho de 1659.

Imagem: Castelo de Montalegre. Foto de JPF.

Ainda a emboscada na Atalaia da Terrinha em Março de 1646

Na série relativa à campanha de Telena, foi aqui apresentado o incidente que, de certo modo, serviu de prólogo à campanha: uma emboscada sofrida pela cavalaria portuguesa às ordens do comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde. a qual foi descrita, em pormenor, por Mateus Rodrigues nas suas memórias, e também referida pelo Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado. Contudo, tal como em outras partes da narrativa do soldado de cavalos, escrita oito anos depois deste particular incidente, há pequenos detalhes que apresentam alguma inexactidão.

No caso vertente, foi referido por Mateus Rodrigues que um seu camarada de armas, da companhia onde servia (a do próprio comissário geral), um tal Gaspar Rodrigues, soldado veterano de Elvas, fora morto a sangue frio pelos seus captores. Tal pode ter acontecido, de facto, mas o certo é que não aparece nenhuma indicação na breve nota manuscrita por D. João de Azevedo e Ataíde, que se encontra anexa a uma carta de Joane Mendes de Vasconcelos a propósito do incidente, e esta inclusa numa consulta do Conselho de Guerra. Do mesmo modo, Mateus Rodrigues parece ter inflacionado o número de cavalos levados pelo inimigo (60); segundo a nota de D. João de Ataíde, terão sido 21, ou seja, cerca de um terço do sugerido pelo seu subordinado. No entanto, em tudo o mais há consonância entre as várias fontes documentais, de origens diversas, que ao incidente se reportam.

Transcritos para português moderno, aqui ficam o texto da consulta, a decisão régia e a nota do comissário geral a propósito do desaire de Março de 1646 na Atalaia da Terrinha.

Na carta inclusa dá conta a Vossa Majestade Joane Mendes de Vasconcelos, mestre de campo general do Exército e Província de Alentejo, de como na madrugada de 20 deste mês teve aviso que haviam entrado alguns cavalos do inimigo nos nossos campos. E mandando sair com a cavalaria que se achava naquela praça, ao comissário geral Dom João de Ataíde, que chegou até à Terrinha, e ali deixou misturar com as suas tropas as do inimigo, que estavam de emboscada nas barrancas de Caia para a parte de Telena, onde perdemos os cavalos e soldados da memória que juntamente vai com a carta, examinada com todo o cuidado e diligência, e diz que a perda não é grande, mas é coisa muito considerável a falta de ânimo e disciplina com que obra a nossa cavalaria em algumas ocasiões, e estas, e maiores desordens haverá enquanto Vossa Majestade for servido que ela esteja no estado em que se acha de presente.

Ao Conselho pareceu dar conta a Vossa Majestade do que avisa o mestre de campo general acerca deste sucesso, para que seja presente a Vossa Majestade. Lembrando de novo a Vossa Majestade quanto convém a seu Real serviço não dilatar mais nomear generais da Cavalaria e Artilharia para o Exército de Alentejo, pelos inconvenientes que do conteúdo resulta.

Lisboa, 28 de Março de 1646.

[Resolução régia]

Nomeio para governador da cavalaria do exército de Alentejo a Dom Rodrigo de Castro, e para tenente-general dela a Dom João Mascarenhas [ilegível, tinta apagada devido à humidade – mas pode ser: e assim se dê] logo a cada um deles [ilegível, tinta apagada devido à humidade] lhe despachos com toda a brevidade. Lisboa, a 13 de Abril de 1646.

E vencerá Dom Rodrigo o mesmo soldo de general.

[Nota anexa de D. João de Ataíde]

Cavalos e soldados que faltaram na ocasião da Terrinha.

Da companhia do comissário geral faltaram soldados quatro.

Cavalos, entre mortos e que levaram o inimigo, sete.

Da companhia do capitão Gil Vaz, soldados dez.

Mais dez cavalos destes soldados, que ficaram desmontados.

Do regimento de Jaco[b] Nolano [irlandês].

Um cavalo.

Companhia de António de Saldanha.

Os que faltam dará rol à parte deste.

Quatro soldados cativos e trombeta, mais três cavalos de soldados que vieram desmontados.

Destes homens há sete feridos e nenhum morto [refere-se ao total de perdas].

Dom João de Ataíde

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1646, maço 6, consulta de 28 de Março de 1646.

Imagem: Couraça e capacete de cavalaria, séc. XVII. Museu Militar de Estocolmo. Fotografia de JPF.

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 3 e última: a passagem do Guadiana e as querelas dos comandantes

Sempre perseguida pelo exército espanhol, a força portuguesa foi-se aproximando do Guadiana. O inimigo trazia dois mil e quinhentos infantes, mas o que mais nos perseguia era a cavalaria com as peças, e logo trazia 600 [cavalos] couraças que rompiam o demónio, de sorte [que] até Guadiana é meio quarto de légua, e como a palma da mão (…). Já tinham passado três ou quatro terços para além e outros três estavam já formados ao pé do porto de Guadiana, mas da parte de Castela, e todos mui bem formados sobre os barrancos do porto, por onde nós havíamos de passar, com os cavalinhos de pau por muralha, mas vinham ainda pelejando com o inimigo três terços e três peças de artilharia e a nossa cavalaria, mas se me perguntarem quem (…) obrava tudo isto em tão grande aperto, que só quem o viu sabe como era, que nunca jamais se viu poder nosso tão em balanços como naquele dia, se não fora um só homem fatalmente se perdia tudo sem apelação nem agravo, e quem (…) fez todo este bem, assim ao Rei como a todos nós, era o famoso Joane Mendes de Vasconcelos, que era ali então mestre de campo general; que nunca jamais se adjectivou bem [isto é, que nunca se deu bem] com nenhum governador das armas, nem em sua companhia havia nunca de fazer o que entendia, só para não dar o louvor a eles, mas isso não lhe tirava o conhecimento do seu préstimo, que suas obras o abonavam e o diziam.

Mas em esta ocasião viu que se perdia Portugal, vendo até ali a pouca ordem que Matias [de Albuquerque] tinha dado, (…) e assim vendo já tudo por um fio, então mostrou suas partes [isto é, o seu valor], que se fora à vista de um Rei não tinha mercês com que lhe pagar, e foi tão desgraçado, que na gazeta que se fez da ocasião não se falava nele, nem pouco nem muito, mas tudo isto nascia de muitos inimigos que ele tinha em o Conselho de Guerra, e assim falava só (…) quem não fez coisa nenhuma, nem pôs espada nem pensamento em castelhano. Finalmente que direi o modo com que este homem nos livrou da fúria do inimigo: não fazia mais que formar um terço à vista do inimigo, com uma peça diante, e assim como o inimigo se arrimava com a sua cavalaria dava-lhe carga [ou seja, disparava] belissimamente, de modo que o inimigo se fazia ao largo com a cavalaria e logo dava este terço uma volta depressa, e retirando-se atrás em marcha; mas assim como o inimigo carregava outra vez, logo já achava outro terço formado com outra peça dando carga ao inimigo. E assim vieram estes três terços com grande trabalho até chegarem ao porto onde estavam os outros três já entrincheirados, com os cavalinhos [de pau], e a este tempo ia o inimigo todo junto a nós. E nós também, com uma notável confusão na passagem do Guadiana, [acerca de] quem devia passar diante, e de tal maneira foi, que a nossa cavalaria passava por cima da infantaria, atropelando tudo, e outros se metiam a um grande prego que junto do porto estava, e alguns se afogavam com tanta pressa.

Mas o inimigo, vendo-nos nesta confusão, se resolveu de todo a nos avançar com toda sua cavalaria, botando diante as 600 couraças, (…) mas como não podia fazer-nos dano aos que vinham passando com esta bulha, em razão que estavam aqueles três terços sobre o porto (…), assim como averbou com eles (…) achou os cavalinhos [de pau] diante, levando os cavalos muitas feridas dos bicos de ferro. Deu-lhes os terços grandíssimas cargas, em que lhe mataram muita gente, e logo uma pouca de cavalaria nossa que vinha passando Guadiana, puxou por ela D. João de Mascarenhas para ir pelejar com o inimigo, que ia já em retirada ao largo. E logo toda a mais cavalaria nossa que estava já passada, vieram a buscá-la muitos oficiais. (…)

Não se pôde ter o inimigo, vendo-nos outra vez passar o porto, que assim [que] a nossa cavalaria começou a passar, veio outra vez o inimigo com maior força, (…) mas como os terços que estavam daquela banda lhe davam grandíssimas cargas, não se metiam com essa facilidade (…).

Ali fez um castelhano uma notável sorte, mas custou-lhe a vida, que assim como viu o guião real que trazia a companhia do general da cavalaria [na verdade, a do governador da cavalaria, pois D. Rodrigo de Castro não tinha patente de general] (…), se veio a ele como um raio, cuidando que o havia de apanhar, metendo-se por dentro de toda a cavalaria nossa, vindo passando o Guadiana; mas ele ficou estirado em o meio do areal, nu [sem dúvida porque foi logo despojado do equipamento e roupas pelos soldados portugueses, uma prática habitual na guerra], e não há dúvida que devia ser cavalheiro, porque homem tão alvo e tão gentil-homem não vi em minha vida, e o cabelo como um fio d’ouro, e bem moço, que não tinha 30 anos. (MMR, pgs. 115-117)

Dada a inutilidade das investidas sobre a infantaria portuguesa, a cavalaria espanhola pôs-se a coberto em posições desenfiadas. A sua infantaria tinha tomado abrigo nuns valados, e daí em diante apenas se trocou tiro de artilharia de ambos os lados. Os três terços portugueses foram manobrando com habilidade e passaram o rio, um deles cobrindo a retirada dos demais, alternadamente, mas a artilharia espanhola castigou duramente a força portuguesa que retirava. (…) Não era necessário fazer pontaria, senão atirar a montão, à sua vontade, (…) e não fazia tiro que não matasse cinco, seis homens e cavalos ou bois ou mulas das peças. (…) Vinha ali um capitão de cavalos (…), de seu nome Manuel da Gama, um bizarro soldado e mui cavalheiro e grande músico e mui bem entendido, que tinha seus dedos de poeta, mui querido de todos os fidalgos; (…) vem uma peça do inimigo a dar-lhe só nele e tira-lhe a cabeça fora dos ombros, ficando o corpo a cavalo por espaço de bom Credo, sem cair no chão, sem a bala ofender mais a ninguém (…). Não havia quem não sentisse a morte deste capitão, e os seus soldados mais que todos. (MMR, pgs. 118-119). Depois de duramente fustigados, os homens comandados por Matias de Albuquerque percorreram a distância que os separava de Elvas, onde chegaram em segurança.

A operação do forte de Telena, que durante tanto tempo perdurou na memória dos militares que nela participaram e nos registos oficiais, foi um grande empreendimento militar que redundou em fracasso. Não só os espanhóis retomaram a posse do forte, como acabaram de repará-lo em pouco tempo, de que ainda hoje [Mateus Rodrigues escrevia em 1654] o tem em posse eterna (…), porque já não há outro Matias de Albuquerque para intentar semelhantes empresas, nem hoje há nas fronteiras poder com que se obre tal. (MMR, pg. 118)

A colorida descrição da campanha, lembrada por Mateus Rodrigues no sossego de Águeda, cerca de 8 anos depois, é corroborada pelo Conde de Ericeira e por outras narrativas e documentos oficiais contemporâneos da acção. O desenlace da campanha cavou ainda mais a inimizade entre Matias de Albuquerque e Joane Mendes de Vasconcelos. O Conde de Alegrete deixou o governo das armas do Alentejo, que ficou a cargo, precisamente, do seu arqui-rival. Um ano depois, o Conde morria em Lisboa.

Não deixa de ser interessante, todavia, a opinião favorável a Joane Mendes, bem explícita por parte de Mateus Rodrigues nas suas memórias. Assim como já tinha acontecido na ocasião da batalha de Montijo, sobressai uma certa falta de confiança na capacidade de comando de Matias de Albuquerque. É uma perspectiva distante dos panegíricos que mais tarde surgiram a respeito do Conde de Alegrete. A “gazeta” a que o soldado de cavalos se refere na sua narrativa, a propósito do não reconhecimento público do papel desempenhado por Joane Mendes de Vasconcelos, é a seguinte: Svcesso, qve o nosso exercito de Alenteio gouernado por Mathias de Albuquerque, Conde de Alegrete, teue na tomada do forte real de Telena em Castella em 16 de Setembro de 1646, & encontro do mesmo exercito com o do inimigo. Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1646.

Imagem: Maquete presente no Armémuseum de Estocolmo, retratando uma pequena parte de uma formação de piqueiros (de um regimento, no exército sueco, ou de um terço, no exército português). Note-se como o artista individualizou cada soldado, conferindo um pathos que espelha bem a apreensão antes da entrada em acção, bem como as consequências das doenças que afligiam muitos dos soldados em campanha – note-se a tez pálida e o aspecto doentio do piqueiro em segundo plano. Como curiosidade adicional, saliente-se que muitos piqueiros do exército do Alentejo teriam, em 1646, um equipamento (murrião e couraça) em tudo igual ao apresentado nas miniaturas, pois milhares de peças destas, bem como piques e outro material de guerra, tinham sido recentemente importados da Suécia. Foto de JPF.

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 2: o início da retirada

Prossegue Mateus Rodrigues a narrativa da campanha do forte de Telena:

Em todo este tempo de continuação e assistência esteve o inimigo com todo o poder que já tinha junto bem ao pé de nós, um meio quarto de légua [em rigor, cerca de 600 metros, mas talvez um pouco menos do que o soldado refere], dando-nos sempre muitos rebates e enfadamentos, que de noite estava sempre a cavalaria montada e a infantaria de armas nas mãos, e de dia com grandes escaramuças uns com os outros, os de cavalo. E tinha o inimigo já tenção de nos seguir na retirada, por isso estava ali fora, como assim o fez, porque trazia 3.000 cavalos, que nunca (…) ajuntou tanto; mas trazia à volta de 800 éguas da ordenança (…). De maneira que depois do forte tomado, ainda nós estivemos em o quartel dois ou três dias, num dos quais nos fez o inimigo uma peça galante, que foi o dar-nos um grande trabalho, por imaginarmos que vinha a pelejar connosco uma tarde, (…) fazendo uma grande faceira [sic – o soldado terá querido empregar um termo derivado do verbo facetear, ou seja, zombar; seria, portanto, zombaria], que era passar com a cavalaria por um outeiro à nossa vista, e logo dava volta aquela mesma cavalaria por detrás do mesmo outeiro, e tornava a passar outra vez à nossa vista, e assim com estes estratagemas esteve fazendo mostra à nossa vista, que parecia muito mais cavalaria do que ele tinha, mas não somos nós tão parvos que não disséssemos que era faceira [sic]. (MMR, pg. 110)

O mesmo truque fez o inimigo com a infantaria, mas sem sucesso. No entanto, o conselho de oficiais maiores do exército, mandado reunir pelo governador Matias de Albuquerque, já tinha decidido o regresso do exército a Portugal, uma vez que seria impossível prosseguir e empreender o forte de S. Cristóvão, tendo o inimigo juntado um exército superior ao nosso em Badajoz.

Para não atrapalhar nem atrasar a marcha do exército, Matias de Albuquerque mandou todo o trem de carros, carroças e mulas atravessar o Guadiana para a banda de Portugal durante a noite. Pela manhã, começou a infantaria a marchar, mas a cavalaria permaneceu formada junto ao forte de Telena, para cobrir a retirada. Foi quando as tropas montadas começaram, por sua vez, a preparar-se para se porem em marcha, que se deu o segundo desaguisado grave entre o governador da cavalaria D. Rodrigo de Castro e o seu subordinado, tenente-general D. João de Mascarenhas, conforme narra Mateus Rodrigues. Diz o soldado de cavalos que D. Rodrigo ia deitado numa liteira por se sentir mal disposto (o futuro Conde de Mesquitela padecia com frequência de “uns achaques”, como referem vários documentos da época – provavelmente gota), e que os espanhóis lançaram um ataque com cerca de 1.000 cavalos, com grandíssima resolução, trazendo diante uma companhia de 80 cavalos escolhidos com um tenente por cabo, que devia ser o diabo, (…) que se veio a nós como bárbaro, metendo-se às pancadas como um doido, mas ele ficou ali logo e muitos soldados (…). (MMR, pgs. 111-112) A restante cavalaria espanhola lançou-se então em carga sobre a congénere portuguesa. D. João de Mascarenhas, jovem e impetuoso, ordenou uma contra-carga de espada na mão – e a cavalaria portuguesa começou a movimentar-se para o choque, em vez de permanecer formada para proteger o grosso do exército. Na liteira, D. Rodrigo de Castro nem queria acreditar no que via. De um salto, montou a cavalo e, galopando, conseguiu ultrapassar os batalhões portugueses e ordenar que parassem, com termos inequívocos: “Alto! Alto! Que bebedeira é esta? Eu não valho aqui nada? Nem sou o general desta cavalaria, para avançarem sem minha ordem?” (MMR, pg. 112). Mateus Rodrigues considera nas suas memórias, escritas cerca de 8 anos depois deste evento, que a intervenção de D. Rodrigo foi providencial para evitar um possível desastre, pois a manobra do inimigo era precisamente para atrair os portugueses a uma armadilha: mais cavalaria e infantaria suas se aproximavam, em número superior ao dos portugueses. Mas o tenente-general não reagiu bem à interferência do seu superior: os dois trocaram insultos e, tal como acontecera meses antes, só não chegaram a vias de facto porque outros oficiais intervieram.

D. Rodrigo de Castro assumiu o comando da cavalaria e iniciou a retirada.  Já a nossa infantaria ia toda do forte para baixo (…), e logo o inimigo veio com toda a cavalaria, carregando-nos com grande força e trazendo duas peças entre a mesma cavalaria, com seis mulas cada peça, que corriam com elas como a mesma cavalaria, e assim como chegavam a tiro, davam carga com elas [ou seja, disparavam], que faziam muito dano, porque ia a nossa gente toda numa pinha e não podia deixar de matar muita gente, porque fazia tiro de perto.

(…) Quando nos vínhamos retirando, e já bem apertados, ainda não tinham lançado o fogo às minas que estavam feitas para arrasar o forte, e quando se acordaram a mandar pô-lo, já o inimigo vinha à desfilada, correndo homens de pé a meter-se no forte. Contudo, Matias de Albuquerque prometeu uma bandeira [ou seja, promoção ao posto de alferes] a quem lhe fosse botar o fogo. Logo houve um soldado que se aventurou a lhe ir botar o fogo, e verdade seja que ele lho botou; mas (…) lá ficou em poder do inimigo, cativo, e assim como deu fogo às minas, fizeram elas tão pouca obra, que apenas se ouviu o estrondo entre nós, que como era obra de terra, empapou-se a pólvora nela e não derrubou nem uma vara de muralha, e assim lhe ficou outra vez em pé como estava, (…) havendo-nos custado mais de 600 homens. (MMR, pg. 113)

Na próxima parte conclui-se esta descrição, com a narrativa do combate travado nas margens do Guadiana.

A conclusão da série de artigos sobre o Forte de Telena no blogue Sigue las Huellas de Badajoz pode ser lida aqui.

Imagem: “Combate de cavalaria”, de Peter Snayers (detalhe).

A campanha do forte de Telena (Setembro de 1646) – parte 1: assalto e conquista

A mudança no comando da cavalaria do Alentejo, após o desaire da emboscada nas vinhas da Terrinha, não trouxe maior eficácia. Entre 1646 e 1647, a cavalaria portuguesa era frequentemente suplantada, em número e em qualidade, pela cavalaria espanhola, conforme é corroborado por variadíssimos documentos da Secretaria de Guerra e pela confissão dos “grandes medos” que os soldados sentiam, segundo as palavras de Mateus Rodrigues. A situação só melhoraria em 1647, com a chegada de Martim Afonso de Melo ao governo das armas do Alentejo e a introdução do “Contrato com os capitães de cavalos”.

A preparação da campanha de 1646 não podia ter corrido pior a nível das chefias: Matias de Albuquerque, agora Conde de Alegrete, fora nomeado governador das armas, ficando Joane Mendes de Vasconcelos como mestre de campo general. Grandes rivais, a desconfiança e inimizade entre ambos comprometeu a cooperação necessária para o bom andamento das operações. Também a nomeação de André de Albuquerque Ribafria para general da artilharia, posto que estava vago desde 1644, não foi pacífica, com três mestres de campo mais antigos (Luís da Silva, João de Saldanha e D. Sancho Manuel) a contestarem a nomeação do jovem fidalgo. Como se tudo isto não fosse pouco, quando Joane Mendes – ainda antes da chegada de Matias de Albuquerque ao Alentejo como governador – decidiu empreender uma operação contra o castelo de Codiceira, levantou-se uma grave questão entre D. Rodrigo de Castro e D. João de Mascarenhas, com o segundo a questionar uma ordem do governador da cavalaria e a receber ordem de prisão. Quando se iniciaram as operações para o assalto ao forte de Telena, já D. João recuperara o posto de tenente-general. Mas as tensões entre os comandos continuavam bastante fortes.

O objectivo da campanha foi debatido entre os cabos de guerra da província do Alentejo (os acima referidos e ainda o engenheiro João Pascácio Cosmander e D. João da Costa, que passara a servir no Alentejo sem posto, devido a um duelo que travara com o Conde Camareiro-Mor dois anos antes, que lhe valera a perda do posto de general da artilharia). Sendo Badajoz a praça mais apetecida, considerava-se que era necessário tomar primeiro o forte de S. Cristóvão. Mas Joane Mendes, D. Rodrigo de Castro e André de Albuquerque defendiam que, ainda antes daquele forte, seria necessário tomar e destruir o de Telena. E foi esta opinião que prevaleceu, após consulta ao Rei. Conforme refere o Conde de Ericeira, tratou-se de uma  decisão de grande risco e pouca utilidade (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pgs. 168-169).

Em 15 de Setembro, o exército do Alentejo, reforçado com gente de novas levas e unidades de outras províncias, e com o enorme e necessário trem logístico de carroças e carros, atravessou o Guadiana. O Conde de Ericeira apresenta um efectivo de 8.800 homens, sendo 7.200 infantes repartidos por 10 terços, e 1.600 cavalos. Já Mateus Rodrigues refere 6.000 infantes e 2.000 cavalos, tudo gente paga e boa (MMR, pg. 106). É no contexto desta operação que o soldado de cavalos faz referência à estreia dos “cavalinhos de pau”, já tratados em detalhe em dois artigos, aqui e aqui. Sigamos a sua colorida narrativa dos eventos, bem mais pormenorizada do que a apresentada na História de Portugal Restaurado.

Assim como nós saímos à campanha, logo fomos vistos do forte, que toda aquela campanha, assim a sua como a nossa, em mais de 4 léguas de circuito leva com a vista, e como o inimigo logo soube que nós botávamos exército, começou também a juntar a gente que tinha e as ordenanças todas, assim a cavalaria como infantaria, que a gente que ele trouxe não podia ser toda paga, pois sabemos mui bem o que tem (…). Aquele dia em que saímos da cidade não chegámos lá, e (…) não é mais que légua e meia, mas na passagem da ribeira nos detivemos muito, por amor [isto é, por causa] das muitas carruagens e artilharia que levávamos, 8 peças de 48 libras cada uma e 6 peças de 24 libras, e como nós não fomos logo no direito do forte, senão ao largo por amor da sua artilharia, que orlava meia légua, marchámos mui ao largo, e todo o dia gastámos com uma légua, mas dormimos já todos da banda de além do Guadiana, em umas vilas donde chamam os Carrascais de Fiolhais, e assim nós estivemos ali aquela noite.

Ao outro dia nos pusemos em via, levando a nossa cavalaria toda na vanguarda de tudo, e bem formada, (…) que tínhamos então um grande soldado por tenente-general da cavalaria, que era D. João de Mascarenhas, (…) mas íamos mais de uma légua ao largo, porque nos íamos aquartelar por cima do mesmo forte, em umas covas e vales, aonde a sua artilharia nem chegava, nem nos podiam ver do forte. E assim como chegámos, logo a infantaria começou a trabalhar, a fazer trincheira, e logo todos nós a tratar cada rancho de fazer suas barracas para nos acomodarmos, que todo um dia e uma noite não fizemos mais que consertarmo-nos pelo que nos podia suceder. E (…) estando já todo o exército acomodado, trataram de ir ao forte, que nos ficava daí meio quarto de légua. Levaram lá a artilharia, mas não obrava nada, porque como o forte era de faxina e terra, não faziam as peças nada nele. Trataram então de lhe fazer avançadas com a infantaria arrimando-se [ou seja, chegando-se] à estacada, que a tinham mui grossa e forte. Contudo, apesar de mortos, lhe romperam a estacada e ficavam junto da mesma muralha do forte, que dali lhe lançavam dentro muitos penedos e alcameias de fogo e granadas, que com isto lhe faziam grande dano lá dentro. Mas muito mais dano nos fazia o inimigo, que nos matava muita gente, porque diferente é pelejar um homem de sua casa, coberto para quem peleja da rua, e além de que as suas duas peças que lá tinham nos faziam grande dano. Porém, rebentou-lhe uma delas, que fez o artilheiro em pedaços. E como não havia mais, que ficavam muito mal sem artilheiro para a praça, assim logo por diante começaram a descoroçoar, porque, como os nossos estavam sempre arrimados à (…) muralha do forte, não podia o inimigo fazer-lhe dano com a mosquetaria. Os nossos lhe estavam matando muita gente com o que lá lhe botavam dentro, e assim, vendo-se já em aperto, vendo que lhe não vinha socorro, mandaram um aviso a Matias de Albuquerque, que se lhe não viesse socorro dentro de dois dias, que eles se queriam entregar. Concederam no aviso, e susteve[-se] a peleja por espaço dos ditos dois dias, e no cabo, vendo o inimigo que lhe não vinha socorro, se entregou no fim de três dias de continuação, que nos custaram os tais dias mais de 80 homens mortos e feridos [devido a um erro de transcrição, a versão dactilografada refere 800 baixas: o número que Mateus Rodrigues apresenta no manuscrito é 80]. Rendido o castelo, se saiu a gente que nele estava, que eram 300 homens e boa gente, mas já vinham menos uns 60 homens que lá lhe mataram os nossos. (MMR, pgs. 108-109)

Foi então decidido arrasar o forte. Matias de Albuquerque propôs que nele entrassem 2.000 homens com pás e picaretas, que derrubariam o forte em dois dias. Mas o engenheiro Cosmander quis poupar os soldados a mais uma canseira, e contrapôs que se fizessem minas e se fizesse assim explodir o forte. Seguiu-se este conselho, mas sendo a obra de terra, não resultou em nada – nem estrondo fez grande, (…) nem quanto seja uma vara de muralha derrubou. (MMR, pg. 110)

(continua)

Imagem: Fotografia aérea do local onde se ergueu o forte de Telena. Foto retirada do blogue Sigue las Huellas de Badajoz, que apresenta um magnífico conjunto de artigos sobre o forte de Telena. O primeiro desses artigos pode ser lido aqui: Sigue las Huellas de Badajoz. Mais sobre Telena aqui.

A campanha do forte de Telena em 1646 – prólogo: a emboscada na Atalaia da Terrinha (Março de 1646)

A campanha de 1646, executada a partir da província do Alentejo, foi a última a ser levada a cabo em vida de D. João IV. Seria preciso esperar mais de 10 anos, e muito por força da iniciativa espanhola, para que a fronteira de guerra alentejana fosse, de novo, palco de grandes acções militares.

Dessa campanha de 1646 ficou célebre o assalto ao forte de Telena. Um episódio bélico frequentemente recordado no historial de cada indivíduo que nela participou, em especial entre os oficiais. Sempre que alguém era proposto para a ocupação de um posto ou cargo, invariavelmente apresentava na resenha da sua carreira o assalto ao forte de Telena. Do mesmo modo, em cartas patentes mais alongadas, o oficial promovido via ser mencionado esse acontecimento que, à época, foi considerado muito relevante. É do assalto ao forte de Telena que esta pequena série de artigos se ocupará. Mas, em jeito de prólogo, principiaremos por tomar conhecimento de um episódio corriqueiro da guerra de fronteira, igual a tantos outros e tantas vezes repetidos. Este, todavia, teria implicação na alteração do comando da cavalaria para campanha que se avizinhava.

A ideia de atacar o forte que os espanhóis tinham construído em Telena, localidade que os portugueses haviam atacado e queimado em 1643, surgira em finais de 1645. Francisco de Melo escrevera em Novembro desse ano ao Rei uma carta onde referia o episódio de Alcaraviça (já aqui tratado numa série de artigos, os principais dos quais da autoria do Sr. Santos Manoel), e nela dizia que depois deste encontro, veio o Castelhano ao seu lugar chamado Telena, légua e meia desta praça [de Elvas], que estava arrasado por nós, e nele fez um forte onde tem perto de 100 infantes e artilharia, e uma tropa de cavalos; depois deste feito, se retirou à nossa vista e nos derrubou uma atalaia nossa, depois dos defendentes, que eram só 12, pelejarem o que puderam e matarem alguns do inimigo, com esta facção se retirou, e nós agora queremos ir, e cuido que permitirá Deus nos paguemos em dobro. (Cartas dos Governadores da Província do Alentejo…, vol. II, pg. 103, carta de 22 de Novembro de 1645). Entre os objectivos da campanha de 1646 estaria, pois, o recém-construído forte de Telena.

Passou o Inverno, cujo rigor impedira a realização de muitas incursões predatórias. Em Março de 1646, quando se já se amanhavam as terras e os rios estavam capazes de ser vadeados, veio o inimigo armar emboscada à cavalaria que fazia a ronda habitual a partir da praça de Elvas. Conforme refere D. Luís de Meneses, à cavalaria que se alojava em Badajoz se uniram algumas companhias dos quartéis vizinhos, e juntos mil cavalos se emboscaram no rio Caia, na parte em que entra no Guadiana. Foi sentido o rumor das tropas das vigias que de noite ficavam sobre os portos dos rios; vieram com diligência dar parte a Joane Mendes [de Vasconcelos, governador das armas]. Logo que amanheceu, mandou sair o comissário geral da cavalaria D. João de Ataíde, com 400 cavalos que assistiam em Elvas. (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pg. 162).

A partir daqui, espreitemos as memórias de Mateus Rodrigues, o soldado da companhia de D. João de Ataíde que participou nessa operação.

(…) Naquele tempo estavam poucas tropas [portuguesas em Elvas], que estavam muitos em Vila Viçosa e em Estremoz dando verde aos cavalos, e não havia cabo nenhum da cavalaria na cidade mais que o comissário, que era Dom João de Ataíde, que na paz não há ninguém que tenha melhor voto para a disposição da guerra, mas lá na campanha, à vista do inimigo, era outra coisa. (…) Assim como o inimigo teve junta a sua cavalaria, se veio de Badajoz uma noite até à ponte do Caia onde estavam as duas sentinelas nossas. (…) [O inimigo formou] uma partida de 20 cavalos com um cabo e [o seu comandante] mandou que entrasse pela ponte e que se fosse emboscar dentro dos olivais de Elvas. (…) Assim que os nossos vigias da ponte sentiram passar os vinte cavalos, que logo os contaram, (…) metidos [os vigias] num bosque notável debaixo da ponte, (…) logo veio um deles dar aviso à cidade. (MMR, pgs. 125-126)

O objectivo da cavalaria espanhola era atrair a cavalaria da ronda portuguesa a uma emboscada. Dez outros cavaleiros deviam passar a ponte, prevendo (e bem) que outro vigia que por ali estivesse iria  rapidamente até Elvas dar o alarme. E foi isso precisamente que aconteceu. Já sem sentinelas portuguesas para dar conta da movimentação das tropas inimigas, passou o inimigo a ponte sem haver quem o sentisse, e marchou às vinhas da Terrinha, que ficam junto do Guadiana duas léguas de Badajoz, e como se viu nos barrancos, deixou-se estar ali com suas sentinelas à vista de toda a campanha, que se punham em cima de uns álamos mui altos que estão junto do Guadiana (…). (MMR, pg. 127)

Logo que Joane Mendes recebeu os avisos sobre a presença inimiga, mandou que D. João de Ataíde saísse com as tropas de cavalo, de forma a proteger à distância a companhia da ronda. Deviam ir até à Atalaia da Terrinha, naquela altura já destruída pelo inimigo, e se não houvesse nada de anormal, que regressassem a Elvas.

E assim como amanheceu saímos todos (…), e a companhia da ronda diante, fazendo o que era costume. E já estávamos todas as tropas em atalaia, que não eram mais de oito e mui pequenas, que não tinham mais de 200 cavalos, quando vem um batedor nosso, correndo, dizendo que uma partida do inimigo de 30 cavalos avançava aos batedores (…), mas que já já vinha pelo campo acima em retirada. (MMR, pg. 127) D. João de Ataíde mandou então o tenente Lopo de Sequeira, militar natural de Elvas com reputação de muito valente, que tomasse 40 cavaleiros escolhidos entre todas as companhias, e que com eles tentasse cortar a retirada à força inimiga; mas que a não seguisse por muito tempo, se visse que a não conseguia alcançar.

Assim fez Lopo de Sequeira, e em pouco tempo estabeleceu contacto visual com o inimigo. Impetuoso, o tenente lançou os seus homens na perseguição, mas a pequena força intrusa foi tomando o caminho das vinhas da Terrinha, onde o grosso da cavalaria espanhola estava emboscado. Segundo Mateus Rodrigues, os soldados começaram a recear que se tratasse de uma armadilha, mas não ousaram dizer nada ao tenente. Só o furriel-mor da cavalaria, Afonso Rodrigues Tourinho, outro grande soldado, conterrâneo e amigo do tenente, levantou a voz para advertir o oficial: “Homem, que fazes, estás doido? Não vês que o inimigo nos foge para onde não tem porto nem saída? Não está bem claro que aquela partida nos leva de fio à sua emboscada? Não sigamos tal partida, que nos perdemos!” (MMR, pg. 128) Mas era Lopo de Sequeira homem de pouco miolo, segundo a expressão de Mateus Rodrigues, e vendo o inimigo quase alcançado, não quis passar por fraco dando ordem de volver. E respondeu ao furriel-mor que não lhe desse conselhos e que seguisse a partida do inimigo.

O inevitável acabou por acontecer. Já perto das vinhas, os 30 cavaleiros inimigos suspendem a fuga e voltam-se para enfrentar os seus perseguidores. Esta manobra acicatou ainda mais Lopo de Sequeira, que se lançou desenfreadamente para a armadilha. Com efeito, ao mesmo tempo que a pequena força fazia volte-face, a restante cavalaria espanhola saía do seu esconderijo e atacava  os 40 portugueses. Para Mateus Rodrigues – um dos escolhidos para integrar o destacamento de Lopo de Sequeira – e seus camaradas, foi tempo de debandar:

(…) Não fizemos mais que volver cada qual podia correr mais pelo campo acima, para a atalaia onde estava Dom João de Ataíde com as tropas, mas como os nossos cavalos iam muito cansados e a campanha atolava muito, (…) assim como voltámos logo o inimigo nos foi apanhando pouco a pouco, que quando chegámos à atalaia onde estava a nossa gente  não vínhamos mais de treze homens dos 40; só algum que tinha cavalo forte e aturador, esse escapou. (MMR, pg. 129)

Mateus Rodrigues acusa o comissário geral de tudo ter visto a partir da posição segura onde estava, e nada ter feito para ajudar quando a emboscada do inimigo se revelou. Com ironia, escreveu que D. João de Ataíde fez então o que podia fazer, que foi deixar-se estar ao pé da atalaia para nos dar calor [isto é, para dar apoio]. E assim se esteve até que o inimigo averbou com ele. E assim como lhe deu uma carga, virou à rédea solta para Elvas, pois não tinha outro remédio. E dali à cidade é uma légua, que toda ela nos foi o inimigo seguindo bem até dentro dos olivais, tomando ainda alguns soldados. E à entrada dos olivais houve muita bulha, em razão que caiu o cavalo a Dom João numa azinhaga. E porque o inimigo o não cativa[sse], se fizeram ali cava uns poucos nossos, onde se assinalaram grandemente o mesmo Lopo de Sequeira, que havia escapado lá de baixo e já havia feito na retirada milagres. E ali os fez muito maiores o meu alferes, que então era um Tomé Gomes de Carvalho, que por estar em casa do mesmo Dom João e o ver no perigo, fez o que se esperava dele e trouxe uma cutilada pelas costas. E assim mais fez grandes coisas o meu furriel (…) Agostinho Ribeiro, que foi o assombro dos soldados, que não há dúvida que, se não foram estes homens e outros mais, que Dom João se [haveria de] ver em grande risco.

(…) Assim como ele estava já em seguro, se foram retirando todos os mais para a cidade, porquanto o inimigo vinha já com o grosso, chegando-se muito, e desta vez entraram pelos olivais dentro sobre nós, bem até o meio deles, que lá lhe matámos ainda um cavalo, contudo o inimigo se volveu levando-nos 60 cavalos, e mui bons, e bons soldados. Mataram ali então a um bizarro soldado da minha companhia, por nome Gaspar Rodrigues, natural de Elvas. E mais, mataram-no depois de rendido, a sangue -frio. De sorte que toda esta perda e aperto em que nos vimos foi causa o dito Lopo de Sequeira, por não admitir os conselhos de quem tanta experiência e mais que ele tinha. E não deixou de levar mui boas repreensões, assim de D. João de Ataíde como do governador. (MMR, pgs. 129-130)

O próprio D. João de Azevedo e Ataíde não escapou a uma apreciação negativa por parte de Joane Mendes de Vasconcelos, o que corrobora a crítica à indecisão e à incapacidade como comandante que o soldado Mateus Rodrigues lhe faz nas memórias. D. Luís de Meneses narra assim o sucedido: Empenhou-se com tão pouca cautela, (…) que deu tempo ao inimigo a sair da emboscada e a se avançar, de sorte que, quando D. João se quis retirar, foi preciso ser com tanta pressa, que se lhe deu nome menos decoroso. (…) Sentiu Joane Mendes tanto a pouca prudência de D. João de Ataíde, e o receio dos soldados, e pedindo remédio a El-Rei para atalhar este dano, resolveu El-Rei que se passasse patente de governador da cavalaria a D. Rodrigo de Castro, com o mesmo soldo de oitenta mil réis cada mês que levava o Monteiro-mor general dela [Francisco de Melo], que se havia desobrigado daquele posto a respeito da sua muita idade; e foi juntamente provido no posto de tenente-general da cavalaria D. João de Mascarenhas, hoje Conde de Sabugal, que tinha chegado de Castela por França, e servido em Flandres de capitão de cavalos [tinha participado na batalha de Rocroi, em 1643]. (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro IX, pgs. 162-163).

Mudava-se, assim, o comando da cavalaria do Alentejo, empalidecendo a reputação militar de D. João de Ataíde, que receberia a definitiva machadada no ano seguinte, precisamente no mesmo cenário da Atalaia da Terrinha. Mas nesse ano de 1646 ainda haveria muita peleja. Sobre a campanha e o assalto ao forte de Telena nos ocuparemos nas partes seguintes.

Imagem: “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener.

Manuel Freire de Andrade – um pequeno apontamento sobre a sua carreira

Manuel Freire de Andrade foi um oficial que se distinguiu durante a Guerra da Restauração na cavalaria, tendo chegado ao posto de general da cavalaria da Beira, no desempenho do qual viria a ser mortalmente ferido na batalha de Ameixial, em 1663.

A sua ascensão aos postos mais elevados do exército iniciou-se em 1653, quando foi proposto por D. Rodrigo de Castro, então governador do partido de Riba Coa, para comissário geral da cavalaria, posto que se encontrava vago por promoção de João de Melo Feio a mestre de campo.

É dessa proposta, enviada ao Conselho de Guerra, que consta uma abreviada resenha da carreira militar de Manuel Freire de Andrade, na qual se refere que o então capitão de cavalos sempre servira na cavalaria (no Alentejo e na Beira), entrando nas campanhas de 1643, 1645 e 1646, com sua pessoa e 2 criados à sua custa; e que havia 4 anos e meio que servia na da Beira, sendo um deles de soldado com 2 cavalos, e 3 anos e meio como capitão de uma companhia, tendo servido com distinção no assalto e queima da vila de Sabugo, Villa Vieja e Bugajo, na ocasião em que o Marquês de Távora veio à praça de Almeida com 3.000 infantes e 800 cavalos, no assalto ao forte e vila de Ródão, na escalada dos arrabaldes da cidade de Coria, queima da vila de Martingo e em outras ocasiões, tendo também servido na Armada que foi desimpedir a barra de Lisboa dos navios do Parlamento inglês (1650).

A sua nomeação, no entanto, demorou alguns meses a ser efectivada. Só em 14 de Fevereiro de 1654 o Rei confirma, por decreto o novo posto de Manuel Freire de Andrade, e em 23 do mesmo mês é escrita uma carta régia a D. Rodrigo de Castro, dando conta da referida nomeação.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1653, mç. 13, consulta de 17 de Julho de 1653; e Secretaria de Guerra, Livro 17º, fls. 125-125 v.

Imagem: vista de Almeida, praça forte onde residia o governador do partido de Riba Coa (ou de Almeida), D. Rodrigo de Castro. Foto de JPF.

Cavalaria do exército do Alentejo em Junho de 1644

Joseph Parrocel

Cerca de um mês após o fraco desempenho da cavalaria do exército da província do Alentejo na batalha de Montijo, era este o efectivo das companhias portuguesas, segundo a mostra de 29 de Junho de 1644:

Companhia do general da cavalaria (Francisco de Melo, monteiro-mor do Reino): soldados montados – 82; apeados – 13; carabinas – 82; pistolas – 110; peitos – 65; espaldares – 63; murriões – 35.

Cª do tenente-general (D. Rodrigo de Castro, ausente por doença): soldados montados – 64; apeados – 0; carabinas – 46; pistolas – 57; peitos – 40; espaldares – 40; murriões – 38.

Cª do comissário-geral (Gaspar Pinto Pestana, exonerado e preso por ordem régia após a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 56; apeados – 14; carabinas – 38; pistolas – 54; peitos – 43; espaldares – 43; murriões – 40.

Cª do capitão D. António Álvares da Cunha: soldados montados – 76; apeados – 0; carabinas – 67; pistolas – 94; peitos – 96; espaldares – 96.

Cª do capitão Fernão Pereira de Castro (prisioneiro em Espanha desde a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 64; apeados – 2; carabinas – 51; pistolas – 61; peitos – 51; espaldares – 51.

Cª do capitão D. Francisco de Azevedo: soldados montados – 71; apeados – 5; carabinas – 44; pistolas – 95; peitos – 41; espaldares – 41.

Cª do capitão Francisco Barreto de Meneses: soldados montados – 59; apeados – 5; carabinas – 50; pistolas – 35; peitos – 24; espaldares – 24.

Cª do capitão D. Diogo de Meneses (prisioneiro em Espanha desde a batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 55; apeados – 6; carabinas – 48; pistolas – 87; peitos – 53; espaldares – 53.

Cª do capitão António de Saldanha: soldados montados – 44; apeados – 1; carabinas – 28; pistolas – 30; peitos – 17; espaldares – 17.

Cª do capitão D. João de Azevedo e Ataíde: soldados montados – 91; apeados – 1; carabinas – 63; pistolas – 78; peitos – 44; espaldares – 47; murriões – 47.

Cª do capitão D. Henrique Henriques: soldados montados – 49; apeados – 7; carabinas – 42; pistolas – 61; peitos – 35; espaldares – 35; murriões – 30.

Cª do capitão João de Saldanha da Gama (morto em combate na batalha de Montijo; cª a cargo do tenente): soldados montados – 88; apeados – 0; carabinas – 66; pistolas – 80; peitos – 51; espaldares – 51; murriões – 51.

[dragões] do capitão António Teixeira Castanho: soldados montados – 56; apeados – 2; arcabuzes – 56.

Efectivos totais: 911 (855 soldados montados, 56 apeados); não entram nesta conta os oficiais das companhias, capelães, furriéis, trombetas e ferreiros. Conforme se verifica, apenas metade das companhias dispunha de murriões ou capacetes. É notória a falta de armas de fogo (recorde-se que a dotação nominal por soldado seria de um par de pistolas e uma carabina). Todas as companhias de cavalaria eram, de facto, de cavalos arcabuzeiros, mesmo que honorificamente as dos oficiais superiores fossem classificadas como couraças – os verdadeiros cavalos couraças só seriam introduzidos em Setembro dese ano, com equipamento defensivo mais completo para os seus militares.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, mç. 4-A, nº 264, doc. anexo à consulta de 12 de Julho de 1644, “Rezumo das Companhias de Cauallo que neste Ex.to Seruem a SMgde Apresentado na mostra que se comesou em 29 de Junho 1644″.

Imagem: “Combate de Cavalaria”, Joseph Parrocel, Museum der bildenden Künste, Leipzig.

Cavalaria da ordenança da província da Beira (1650)

pieter-post-soldiers-plundering-dutch-haarlem-1630s

Em artigos anteriores sobre as categorias militares do exército português e os tipos de cavalaria, foi já referido o modo de constituição das unidades da ordenança. As companhias desta categoria de milícia compreendiam homens de várias localidades de uma comarca. Nas zonas mais atingidas pela guerra, junto à fronteira, cedo se constituíram companhias da ordenança, para complementar a defesa levada a cabo pelas tropas pagas. Em outras regiões, menos sujeitas às incursões de depredação, tardaram a ser formadas estas companhias.

Na Beira, por exemplo, os habitantes das localidades mais afastadas da raia foram durante algum tempo poupados ao serviço na cavalaria da ordenança. A partir da década de 50, em particular durante o governo de D. Rodrigo de Castro, futuro Conde de Mesquitela, a preocupação com a força montada foi crescendo, de modo que novas unidades foram surgindo. Assim, em 7 de Janeiro de 1650, havia em formação quatro novas companhias da ordenança, a saber:

– Companhia do capitão Gaspar de Seixas de Almeida. Tinha perto de 40 efectivos, com gente de Trancoso e seus termos.

– Companhia do capitão António Veloso do Amaral. Devia ter 50 cavalos, mas só alguns estavam então operacionais. Os soldados vinham das localidades de S. João da Pesqueira, Távora, Sendim, Trevões, Nagozelo, Vilarouco, Riodades, Paredes, Ranhados, Ervedosa, Valença, Penela, Lousa, Valongo, Castanheiro, Soutelo, Souto e Cedovim.

– Companhia do capitão Diogo Pereira de Figueiredo. Devia ter  50 cavalos, mas só tinha alguns operacionais. Formada nas vilas de Fonte Arcada, Pena Verde, Fornos, Penedono, Casais do Monte, Carapito, Algodres, Matança, Aguiar da Beira e Sernancelhe.

– Companhia do capitão Manuel de Andrade Freire. Tal como as outras, dos 50 cavalos, só alguns estavam em condições de operar. Incluía gente das vilas de Pinhel, Marialva, Moreira, Aneloso, Casteição, Numão, Longroiva, Muxagata, Vila Nova, Horta,  Touça, Castelo Mendo, Lamegal e Meda.

Um dos problemas que afectavam a capacidade operacional das unidades era a falta de selas. Em Fevereiro de 1650, D. Rodrigo de Castro queixava-se de não lhe terem sido ainda entregues as selas pedidas e prometidas havia já meio ano. Por outro lado, advertia que o serviço continuado com selas velhas acabava por destruir os cavalos. Apesar de todas as dificuldades, nesse mesmo ano D. Rodrigo de Castro levou a cabo algumas operações onde a cavalaria da ordenança participou em número superior ao da cavalaria paga, e com sucesso.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1650, maço 10, nº 16, 36 e 46; e Secretaria de Guerra, Livro 14º, fls. 78-78 v.

Imagem: Soldados pilhando, quadro de Pieter Post, década de 30 do século XVII.

O episódio da «Passagem de Alcaraviça», 1645 – 1ª parte; artigo do Sr. Santos Manoel

Do estimado amigo e investigador Sr. Santos Manoel recebi um muito interessante artigo, que aqui será publicado na íntegra, em duas partes. Agradeço a gentileza do Autor e a sua permissão para aqui partilhar o resultado da sua investigação com os caríssimos leitores.

O episódio da «Passagem de Alcaraviça»

Entre as batalhas de Montijo – em cuja discussão sobre se vitória ou derrota dos portugueses peço licença para não entrar, embora hoje pareça consensual que se tratou de uma das ‘derrotas mais vitoriosamente celebradas’ dos nossos exércitos – e de Montes Claros, o conflito entre portugueses e espanhóis por os primeiros terem reafirmado a sua independência, permaneceu em estado pouco mais que de tensão fronteiriça, interrompida por algumas entradas de parte a parte nos territórios alheios para causar algum dano pontual, colher alguma glória para soldados mais sedentos desse tipo de despojo ou mesmo para o roubo de algum mantimento, em falta crónica de ambos os lados. Esta memória procura resgatar um desses episódios de encontros entre forças opostas nas regiões fronteiriças, porventura um dos que os portugueses não saíram de cabeça erguida, mas que acabou por resultar numa iniciativa de reforço do treino militar, princípio básico da boa preparação dos exércitos.

O episódio foi citado como o ‘sucesso’ (no sentido de ‘acontecimento’, claro está), a ‘ocasião’, o ‘desastre’ da ‘passagem’ ou da ‘rota’ de Alcaraviça, e deu-se em data incerta entre 27 de Outubro e 2 de Novembro de 1645.

As crónicas

Na ‘História Geral de Portugal e Suas Conquistas’ de Damião A L Faria de Castro publicado um século e meio depois, o capítulo que narra este episódio começa com o título pouco prometedor de ‘Continuam os sucessos do Reino no ano de 1645′, como se de uma continuação enfadonha se tratasse, e imediatamente avança para um exórdio francamente desanimador, que não está muito longe do parágrafo com que comecei este texto, pelo menos para o ano em questão. Diz Faria e Castro que ‘Pouco dignos de narração dilatada são, na Província do Alentejo, os sucessos do ano que entro a escrever’. Vejamos.

D João não sabia o que fazer para atrair para o comando das forças do Alentejo uma mente capaz, à qual seria também bem-vindo juntar-se alguma sorte nas armas. O Cde. de Alegrete, relator coberto de glória da meia vitória portuguesa em Montijo, no meio de um ataque de orgulho ferido, tinha-se demitido quando no fim de 44 D João mandou Joane Mendes de Vasconcelos para o comando das forças em campo para libertar Elvas do sítio que lhe punha o Marquês de Torrecusa. Agora que (por razões que ficam para outra memória …) Joane Mendes se revelava uma escolha de difícil manutenção, D João voltava-se para o Cde. de Castelo Melhor. De notar que do lado espanhol as coisas não estavam diferentes. Incomodada pela pouca acção de Torrecusa, a liderança de Castela substituiu-o pelo Marquês de Legañes, com maiores forças e bem mais experimentadas nos campos do que é hoje o norte de Itália.

Dois novos comandos em ambos os lados da fronteira, só por si, fariam adivinhar novos combates quanto mais não fosse para experimentar mutuamente as têmperas e tácticas. Mas o que se segue nas discussões do Conselho de Estado e Guerra demonstra que D João poderia estar menos interessado em apoiar arroubos de bravura que em esperar para ver. Castelo Melhor tentara atacar Badajoz, mas teve tantos percalços no transporte da artilharia que se atrasou, expôs os movimentos e perdeu o elemento surpresa, abortando-se a operação. Castelo Melhor insistia numa acção ofensiva, e com Cosmander congeminou e apresentou no Conselho de Guerra a tomada do Forte de S. Cristóvão para melhor preparar um ataque a Badajoz. No entanto na corte as expectativas, provavelmente baseadas em informação que Castelo Melhor não tinha, viravam-se mais para a preparação de defesas. A presença de um exército experimentado na fronteira, simultaneamente com uma armada em Cádis assim o impunham.

O Conselho recusou o ataque ao forte de S. Cristóvão, próximo de Badajoz. E o Rei sai de Lisboa.

O receio do desencadear para breve do grande ataque conjunto por terra e mar era tal que D João chegou mesmo a nomear a 2 de Novembro de 45 a D Jorge Mascarenhas, Marquês de Montalvão, do Conselho de Estado e Guerra, seu Vedor da Fazenda e presidente do Conselho Ultramarino, como Mestre de Campo General «junto à pessoa d’el Rei», uma espécie de intendência da sua segurança privada, chefia da sua guarda pessoal.

Mas voltemos ao Alentejo, onde neste ambiente de perigo iminente está prestes a dar-se o caso de Alcaraviça.

É um grupo das forças de Legañes que entra pelo território português até próximo do que na altura se chamavam as Vendas de Alcaraviça, não a actual povoação de Alcaraviça, mais a Sul, mas o que é hoje a localidade da Orada, a Norte de Borba (curioso entretanto que nas duas descrições conhecidas e nos documentos da época não se faça nunca referência à ermida da Srª da Orada ou à povoação actualmente com esse nome). As Vendas de Alcaraviça ficavam à beira da estrada ancestral entre Elvas e Estremoz, a que vem por Vila Boim e passa pela Orada e S Lourenço de Mamporcão. A importância dessa via à época confirma-se por ser também a que Filipe III de Espanha fez quando veio visitar Portugal, perdendo na passagem da fronteira um ‘I’ que o seu filho voltou a encontrar. Em 23 de Março de 1619 o rei Filipe envia cartas ao presidente da câmara de Lisboa e ao Marquês de Alenquer descrevendo o seu trajecto a partir de Elvas, onde iria comer, onde iria dormir, quantas léguas a percorrer em cada troço, tudo como o seu pai tinha feito quando veio a Portugal em 1581: «… A comer – de Vila Boim às Vendas de Alcaraviça – duas léguas e meia; A dormir – destas Vendas a Estremoz – duas léguas e meia; …». As Vendas seriam de facto isso, locais de paragem para viajantes com venda de comida a meia jornada entre dois locais maiores capazes para dar dormida. Pelos vistos o lote de personagens ilustres que se refastelou com os cozinhados da Alcaraviça chegou a incluir pelo menos dois reis castelhanos. Pena é que também tenha assistido ao sacrifício de uns tantos bravos defensores do Reino.

A ‘História’ de Faria de Castro (Tomo 18, Livro 47, Cap. V, Ano de 1645) narra o episódio de forma breve como a maior das pequenas acções que Legañes executou durante o seu comando, narração quase que frustrada por um exército de 15000 homens não ter feito muito mais que tomar o forte da Ponte de Olivença e deitar abaixo alguns arcos da dita para cortar as comunicações da praça. Diz esse historiador que um Major (sic) João da Fonseca Barreto, tratado pejorativamente como ‘inconsiderado’, com 400 infantes encontrou-se com um corpo de tropas espanholas próximo à Venda de Alcaraviça. Ao invés de se fortificar e esperar socorro da cavalaria de D Rodrigo de Castro que supostamente o seguia, atacou, e foi destroçado.

Faria de Castro diz que o Rei sentiu essa ‘pequena desgraça’, mas foi compensado com um acto de bravura de 15 soldados e um alferes na Atalaia da Terrinha, que se defenderam contra 2000 infantes e 1000 cavaleiros de Castela, tendo-se perdido alguns e salvado outros após rendição.

No ‘Portugal Restaurado’, de 1751, a narrativa de Ericeira é ligeiramente mais desenvolvida. Os 15000 homens de Legañes eram em pormenor 12000 a pé e 3000 a cavalo, apoiados por dez peças de artilharia.

Fica aqui atestado que o episódio da Terrinha descrito em Faria de Castro, a ter os números por certos, contou então com nada menos que um sexto dos infantes! e a terça parte da cavalaria inimiga!, parcela essa a necessária para derrotar os tais 16 portugueses … As descrições dos cronistas fazem-nos concluir que Legañes, tendo dificuldades em combater pessoas, em alternativa virou-se para as estruturas, no caso os arcos da ponte de Olivença. Enfim, dados os devidos descontos, continuemos com Ericeira cuja descrição segue.

Foi a 25 de Outubro que o marquês espanhol saiu com os seus 15000 de Badajoz e chegou à vista da ponte da Ajuda, onde após dois dias de bombardeio, tomou o forte de Stº António e o pequeno castelo da ponte, e minou-lhe os arcos. Castelo Melhor resolveu mandar socorros a Olivença uma vez que pensava que Legañes a queria sitiar. No entanto desde que este se instalara na zona da ponte que toda a região ficava sob perigo de emboscadas. O terreno ondulado permitia que corpos de tropas de dimensão considerável se movimentassem e posicionassem nos fundos dos vales sem serem detectados, o que tornava muito arriscada a jornada de cerca de seis léguas entre Estremoz e Elvas pela tal estrada de visitas reais. A táctica recomendada para lidar com estas condições de terreno seria mandar batedores pelos cabeços a verificar a presença de tropas inimigas, avaliá-las e por conseguinte garantir a segurança do trajecto, fosse ou não dar-se-lhes combate.

Um corpo de 400 infantes (soldados a pé) da Comarca de Évora chefiados pelo Sargento-mor (sic) João da Fonseca Barreto sai de Estremoz e avista próximo à Venda da Alcaraviça 600 castelhanos a cavalo que tinham saído da ponte na noite anterior com a intenção precisa de praticar acções de emboscada na dita estrada, que sabiam crucial para comunicações entre as duas maiores praças da fronteira e para o abastecimento de Elvas.

Fonseca Barreto ou seria um soldado pouco experimentado e pusilânime, como insinua Ericeira, ou apenas alguém que num dia de pouca inspiração e mau conselho toma uma decisão errada. Ao invés de ocupar uma tapada de parapeito alto, uma das muitas que há na zona, e guarnecê-la, parece ter dado ordem de ataque ou de receber a carga em campo aberto. Fica para o segredo da história se foi como insinua Ericeira ou se Barreto terá sido por sua vez surpreendido e atacado tão rapidamente que nem teve tempo de se refugiar. O resultado foi uma carnificina em que pereceram quase todos os soldados de infantaria da Comarca que o acompanhavam. Ericeira também refere que ‘se’ ao menos Fonseca Barreto se fortificasse, e ‘se’ tivesse conseguido mandar mensageiros a D Rodrigo que vinha de Elvas para Vila Viçosa com 700 cavalos, ao que eu junto ‘se’ Barreto estivesse informado dessa deslocação, ‘se’ o mensageiro conseguisse vencer as duas léguas até encontrar D Rodrigo num ponto qualquer entre Elvas e Vila Viçosa que teria obviamente de adivinhar qual seria, ‘se’ D Rodrigo saísse imediatamente e conseguisse chegar a tempo, entre outros ‘ses’ (junte também o seu: agora, como na época em que Ericeira escreveu, pouca diferença faz).

Terá tudo isso ficado por aí? ‘Enterrar os mortos e cuidar dos vivos’, como sempre que se pôde se fez, bem antes de Pombal o ter glosado? Deixando os relatos históricos e passando aos documentos, alguns Decretos do Conselho da Guerra indicam que não. D João não deixou passar o evento em branco, e os textos adiante permitem esclarecer alguns pontos, revelar alguns detalhes relevantes e medir a justa importância do episódio considerado o mais relevante no quadro geral das operações do Outono desse ano.

(continua)

Imagens: Em cima, Orada (a antiga Venda de Alcaraviça) na actualidade. Fotografia extraída do programa Google Earth. Em baixo, reconstituição de um combate envolvendo tropas de infantaria, Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. de Freitas.

Uma incursão em território inimigo – 1661, Outubro, 26

As incursões ou entradas em território inimigo, quer fossem executadas pelo exército português, quer pelo espanhol, foram uma característica marcante da Guerra da Restauração. Os anos iniciais do conflito alimentaram muitas publicações de teor propagandístico que difundiam os feitos de armas dos portugueses, ampliando muitas vezes os resultados práticos das acções. São uma preciosidade para a análise do quadro mental do período e não menos valiosos como documentos no que concerne à História Militar.

As Relações e outros escritos panegíricos são dados à estampa com menos frequência a partir da segunda metade da década de 40. Só na etapa final da guerra, com a publicação periódica (mensal) do Mercúrio Português, da responsabilidade de António de Sousa de Macedo, voltam a espalhar-se com alguma regularidade os ecos dos feitos portugueses. Todavia, os relatórios enviados pelos comandantes operacionais para o Conselho de Guerra dão conta de acções que, em muitos casos, permaneceram desconhecidas do grande público. O fito principal centrava-se habitualmente na pilhagem de gado e haveres das populações raianas, mas também podiam ser concebidas para desgastar o dispositivo inimigo na fronteira e adestrar as próprias forças militares na arte da guerra. Deixo aqui a descrição de uma dessas operações.

Em 26 de Outubro de 1661 o governador das armas da província de Trás-os-Montes, D. Rodrigo de Castro, Conde de Mesquitela, e João de Melo Feio, governador das armas do partido (distrito militar, em termos modernos) de Penamacor, província da Beira, encontraram-se no Sabugal. No princípio do mês tinham recebido uma carta da Rainha regente, ordenando que unissem parte das suas forças e fizessem uma entrada no reino inimigo. Deviam dirigir-se às vilas de Campo e Pozuelo, onde estavam alojadas companhias de cavalaria da Catalunha, e atacá-las a fim de destruir ou capturar aquelas unidades militares. Se isso não fosse conseguido, pelo menos deveriam saquear as localidades, distribuindo o produto da pilhagem pelos soldados, e ao menos tentar levar o inimigo a pelejar.

Os dois cabos de guerra partiram com a força militar combinada nesse mesmo dia 26 de Outubro, desejosos de fazer coisa de utilidade e reputação para as armas reais. Marcharam com tempo seco e sereno, atravessando o rio Côa na passagem de Dois Rios. O efectivo total era de 2.500 infantes e 760 cavaleiros, distribuído pelas seguintes unidades:

– Dois terços pagos (dos mestres de campo Diogo Gomes de Figueiredo (filho) e Bartolomeu de Azevedo Coutinho).

– Três terços de auxiliares (da comarca da Guarda, sob o comando do mestre de campo Cristóvão de Sá de Mendonça; da comarca de Viseu, do mestre de campo João Castanheira de Moura; e da comarca de Castelo Branco, a cargo do sargento-mor Manuel Fernandes Laranjo).

Terço de volantes da Guarda, comandado pelo mestre de campo Francisco Banha de Sequeira.

Dezasseis companhias de cavalaria, sob o comando do governador da cavalaria, o francês Achim de Tamericurt (um veterano da Guerra da Restauração, já com 20 anos de serviço em Portugal), com o tenente-general João da Silva de Sousa como segundo-comandante (as companhias de ambos eram comandadas pelos respectivos tenentes, Pedro Palho e Manuel Francisco). As restantes companhias eram as dos comissários gerais D. Martinho de Ribeira e D. António Maldonado, e as dos capitães Vasco Gomes de Melo, Baltasar de Melo de Sá, António Mendes de Abreu, Paulo de Noronha, António Estácio da Costa, Manuel de Sousa de Refóios, Manuel Nabais, Paulo Homem Teles, André Tavares de Mendonça, Manuel Martins, António Veloso e Luís da Cunha.

Já em território hostil, as condições climatéricas alteraram-se. As chuvas e o facto da força ter sido detectada pelo inimigo impediram que se obrasse algo mais do que o saque de algumas aldeias. Os guias recomendavam a retirada, para evitar o risco de não se poder atravessar de novo o Côa. O Conde de Mesquitela escreveu a este respeito que

“Aquela noite de 28 alojámos junto a Villas Buenas que, pela havermos entrado e queimado há muitos anos, e nos pedirem misericórdia regalando-nos com os mimos da terra, nos não quisémos ocupar em empreendê-la.”

A 29 começaram a avistar o inimigo que marchava na retaguarda do exército, e constava de cavalaria da Catalunha e da Borgonha (28 companhias organizadas em 14 batalhões – formações tácticas), e um terço de alemães governado por um sargento-mor, com 600 soldados. Entraram os portugueses na vila de Rezalles

“(…) donde também nos renderam a vassalagem, dando-nos dos seus refrescos, e suposto que houve soldados cobiçosos que desejaram que a mandássemos assaltar, como o inimigo vinha na nossa retaguarda nos pareceu que não convinha desfazer a forma em que marchávamos.”

A meia légua de Rezalles dispôs-se o inimigo a combater. Os batedores começaram a disparar e travou-se uma escaramuça, conseguindo os portugueses rechaçar sempre os oponentes. Prosseguiu então a marcha até se encontrar uma zona de campo aberto, onde tornou o inimigo a dar outra investida e com esta se resolveu dar batalha.

O terço de alemães ocupou um posto fortíssimo no sopé de uma elevação rochosa, de onde causava grande dano nas forças portuguesas, flanqueando a infantaria e a cavalaria. Com a cavalaria inimiga bem formada, começaram as escaramuças. Os comandantes portugueses decidiram que seria conveniente desalojar primeiro a infantaria inimiga da posição que ocupava e reforçar a cavalaria com mangas de mosqueteiros, um dispositivo táctico muito comum. O terço do mestre de campo Bartolomeu de Azevedo foi mandado investir por uma parte do monte rochoso, e pelo outro lado evoluiu o terço governado pelo sargento-mor Laranjo e um outro terço. Os alemães já entretanto tinham sido reforçados por muitos civis dos lugares da Serra da Gata que se lhes foram juntando.

No dizer do Conde de Mesquitela, os terços portugueses obraram maravilhas, “porque recebendo as cargas de mosquetaria dos inimigos sem lhe tirarem tiro [ou seja, sem ripostarem] os investiram, subindo pelo rochedo com tão extraordinário valor que a picaços [à força de pique] e a cutiladas mataram os mais deles, fazendo-lhe largar o posto, e as armas, com as vidas.”

Também os destacamentos de mosqueteiros que se constituíram a partir do terço do mestre de campo Diogo Gomes de Figueiredo para reforçar a cavalaria “obraram maravilhas”. Eram comandados pelos capitães João de Sampaio, António Rodrigues Pereira, Paulo Correa, e pelo alferes do mestre de campo, Manuel Homem Corte Real.

O governador da cavalaria Achim de Tamericurt combatia na vanguarda com os comissários gerais, ficando a reserva da cavalaria a cargo do tenente-general João da Silva de Sousa.

Finalmente os alemães começaram a ceder no combate corpo-a-corpo com a infantaria portuguesa. A restante força inimiga, vendo a formação da sua infantaria perder coesão e começar a desfazer-se, virou costas. Foi então que se lançou em sua perseguição a cavalaria portuguesa, reserva incluída, até perto de Rezalles.

Foram tomados 200 cavalos ao inimigo, tendo sido aprisionados 9 capitães (dos quais morreram três, de ferimentos, em pouco tempo), 2 ajudantes e 1 tenente comandante da companhia da guarda do Duque de Osuna, bem como grande número de soldados, com a captura de mais de 300 armas. Dos portugueses só houve 3 mortos e 10 ou 12 feridos, entre os quais o ajudante de cavalaria Pedro Fernandes Magro.

Todos os militares obraram com valor, pedindo o Conde de Mesquitela que a Rainha mandasse agradecer aos oficiais por carta de sua real mão, em especial ao governador da cavalaria Achim de Tamericurt.

Fonte: carta do Conde de Mesquitela, escrita em Penamacor em 31 de Outubro de 1661 e anexa à consulta do Conselho de Guerra de 7 de Novembro do mesmo ano. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21-A, caixa 79.

Imagem: Infantaria em marcha. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa, Kellmarsh Hall, 2007. Foto do autor.