Domingos da Ponte, o Galego

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Este oficial de origem galega (cujo nome aparece grafado, muitas vezes, apenas como Domigos da Ponte Galego) serviu nos exércitos da monarquia dual e do Sacro Império Romano-Germânico antes de passar a Portugal em 1641, como súbdito de D. João IV. Na sua carta patente de general da artilharia ad honorem, passada em 21 de Maio de 1663, pode ler-se que era fidalgo da Casa de Bragança, que contava então 22 anos de serviço militar contínuo em prol da Coroa Portuguesa e que participara em acções na Alemanha (antes da Aclamação de D. João IV), no Alentejo e em Trás-os-Montes com o posto de ajudante de cavalaria, capitão e comissário geral. A carta patente fazia saber que Domingos da Ponte era então tenente-general da cavalaria, posto que ocupava desde 1656, e que deveria manter esse posto e a respectiva remuneração (a patente de general de artilharia ad honorem, como indica o termo latino, era uma mera distinção honorífica). Domingos da Ponte governou algumas vezes interinamente as armas de Trás-os-Montes e Entre-Douro-e-Minho, bem como o exército de socorro de Trás-os-Montes à província da Beira, tendo recebido feridas e sido feito prisioneiro em serviço de El-Rei. Quando terminou a Guerra da Restauração, Domingos da Ponte era ainda tenente-general da cavalaria em Trás-os-Montes e general da artilharia ad honorem.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Secretaria de Guerra, Lvº 27, fl. 72, carta patente de 21 de Maio de 1663.

Imagem: Cavalaria em acção. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa, “History Day”, Kelmarsh Hall, 2008.

O combate do forte de Aldea del Obispo, 2 de Janeiro de 1664

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Motivos de natureza profissional obstaram a que desse uma continuidade célere ao episódio aflorado no anterior artigo. Retomemos a trama agora, enquadrando o relatório na operação militar onde se registaram as baixas reportadas.

O Duque de Osuna, Gaspar Téllez-Girón y Sandoval, ordenara a construção de um forte perto de Aldea del Obispo – fortificação que actualmente é referida como Forte de la Concepción, mas que não é nomeada nas fontes consultadas. O local poderia servir de base de operações contra as povoações da raia beirã – Vale da Mula era a mais exposta pela sua proximidade, conforme se pode ver na imagem. Para obstar à conclusão do forte, saiu de Almeida o governador interino daquele partido, Afonso Furtado de Mendonça, à frente de uma força de 6.000 infantes e 1.000 cavalos (Pedro Jacques de Magalhães, o governador em título, encontrava-se doente). O Duque de Osuna estava aquartelado junto de Aldea del Obispo e tinha sob o seu comando um exército de 7.000 infantes e mais de 2.000 cavalos. A infantaria portuguesa, na sua maior parte, era composta por milícias de auxiliares e da ordenança de ambos os partidos da Beira, enquanto a cavalaria contava com efectivos da Beira e com forças de socorro do Alentejo e de Trás-os-Montes (o contingente que vem referido no relatório).

Segundo o Conde de Ericeira, Afonso Furtado (…) tomou quartel pouco distante do inimigo, que não lhe pleitearam ganhar o posto que pretendiam. Estébanez Calderón, autor do século XIX, refere que Osuna había fortificado sus reales [ou seja, o seu campo] en un lugar ventajoso, teniendo a sus espaldas el baluarte, y enfrente de él, a distancia de un tiro de artilleria, se miraba asentado el campo de los enemigos. Afonso Furtado de Mendonça fez escavar uma trincheira, mas os seus intentos de atacar e destruir o forte desvaneceram-se ao constatar que este tinha já quatro baluartes levantados, e que era complementado por fosso, estrada coberta e estacada. Com a fraca qualidade da infantaria que possuía, não tinha a mínima hipótese de sucesso. Decidiu, por isso, mudar de estratégia e passou a enviar tropas de cavalaria a talar os campos do inimigo. Mas nem este propósito foi bem sucedido, pelo que determinou marchar sobre Ciudad Rodrigo e queimar os seus arrabaldes, de forma a atrair o Duque de Osuna para longe do forte e pelejar com ele em campanha rasa.

Para concretizar o objectivo, teria de pedir mais mantimentos a Almeida, a fim de sustentar o exército vários dias em terra inimiga. Enviou então um comboio (conjunto de carros, carroças e animais de carga) àquela praça, mas descurou a sua protecção. Avisado do facto, o Duque de Osuna resolveu interceptar e desbaratar o comboio. Compôs toda a sua cavalaria e fez marchar, na retaguarda desta força montada, um terço de infantaria – um reforço que havia enviado D. Juan de Áustria. D. Martinho da Ribeira, que comandava a segunda linha de cavalaria do lado direito do dispositivo português, puxou pela gente de cavalos, a fim de socorrer o comboio, e desfilada, a fez passar o ribeiro de Vale da Mula; e depois de subir por serras e tapadas que embaraçavam o terreno, achou aos inimigos formados, que o vieram buscar. O Duque de Osuna, con estas tropas, compartidas en tres escuadrones  (…) acometió al punto al enemigo. Como los nuestros eran superiores en número, a la primera y repentina carga desbarataron a los portugueses; pero éstos, viendo que no podían sostener con sus contrarios un combate igual, no trataron de rehacerse, sino, derramados como estaban, se defendían escaramuzando. Notando o perigo em que se encontrava a sua cavalaria, Afonso Furtado de Mendonça enviou um reforço de infantaria e mais cavalaria. Domingos da Ponte, o Galego, e Gomes Freire de Andrade, tenentes-generais, saíram a toda a pressa para se acharem na ocasião; e formando seis batalhões, dos que começavam a retirar-se, fizeram rosto aos castelhanos com ardor mais precipitado do que pedia a sua vantagem. Eram dezassete os batalhões, de que Domingos da Ponte fez duas linhas. Constava a vanguarda de nove, e de oito a reserva, e sem interpor a menor dilação, atacou furiosamente a vanguarda dos castelhanos com a nossa, que rompeu com grande facilidade. Julgaram-se os portugueses definitivamente vitoriosos, e seguros de su victoria, habían deshecho su formación, para entregarse al despojo y alcance de los fugitivos, sin tener en cuenta que quedaba en pie un escuadrón de castellanos, que era más fuerte todavía, por componerse de gente veterana. Esta reserva do inimigo, num vigoroso contra-ataque, desbaratou a vanguarda portuguesa. Pretendeu Domingos da Ponte reorganizá-la, passando pelos claros da segunda linha de cavalaria, só que… esta já não estava no seu posto, tendo fugido antes sequer de disparar um tiro ou trocar espadeiradas. Vendo esta situação, Afonso Furtado de Mendonça fez sair do quartel dois terços de infantaria e várias mangas soltas de arcabuzeiros e mosqueteiros, e foi atrás desta formação que a cavalaria finalmente se reorganizou e repeliu os perseguidores. O Duque de Osuna, por seu lado, ao verificar que Furtado de Mendonça desguarnecera o seu campo, tentou tomá-lo, mas ainda restavam para sua defesa três terços da Ordenança e duas companhias de cavalos, sob o comando do tenente-general da artilharia Diogo Gomes de Figueiredo, o qual resistiu bravamente. Quando o Duque de Osuna viu aproximar-se Afonso Furtado de Mendonça com as suas forças, optou por se recolher ao seu forte. Também Furtado de Mendonça não demoraria muito tempo a retirar, desistindo da sua pretensão. Em conselho com os seus oficiais, chegara à conclusão que seria impossível conquistar ou destruir o forte, optando então por se recolher de novo a Almeida.

Foi deste modo que se registaram as baixas entre as seis companhias enviadas de Trás-os-Montes e comandado pelo general de artilharia ad honorem (e tenente-general da cavalaria) Domingos da Ponte, o Galego. Uma operação típica da guerra de fronteira, bem violenta na refrega mas sem resultados estratégicos de importância. Ainda assim, em termos tácticos o Duque de Osuna pôde tirar partido da manutenção do forte, pois dele fez base de operações através da qual conseguiu destruir a ponte de Ribacoa, que facilitava a comunicação com Almeida.

Fontes:

ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line (facsimile da edição de 1759), Parte II, Livro IX, pgs. 247-250 (a verde nas citações).

CAMPOS, Jorge (estudio preliminar y edición), Biblioteca de Autores Españoles, Obras Completas de Don Serafín Estébanez Calderón, Madrid, Ediciones Atlas, 1955, pgs. 114-115 (a azul nas citações).

Imagem: A zona de combate na actualidade. Fotografia aérea extraída do programa Google Earth. É visível, ao centro, o forte de la Concepción, que esteve na origem do combate. Para nascente fica Aldea del Obispo, e para poente, Vale da Mula. A linha amarela marca a fronteira.

Rescaldo de uma operação militar – as baixas detalhadas de uma força de cavalaria no combate de 2 de Janeiro de 1664

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Não é muito frequente encontrar documentos que refiram as baixas detalhadas sofridas por uma força militar. Quando escrevo detalhadas, quero dizer: incluindo todos os pormenores, desde o nome de cada militar até ao número exacto de cavalos feridos e mortos. Habitualmente, as relações impressas limitavam-se a enumerar os mortos, feridos e capturados e a destacar os elementos mais importantes da hierarquia militar, membros da nobreza e outros oficiais que caíam em alguma daquelas circunstâncias. Era tudo o que o público curioso das novidades da guerra necessitava saber.

Por este motivo, o relatório que foi enviado ao Conselho de Guerra, em anexo a uma carta do Conde de São João da Pesqueira, governador das armas da província de Trás-os-Montes, é um documento pouco vulgar. Não que fosse necessariamente raro na época, pelo menos no seio de um exército provincial, a circulação de informação deste teor. Contudo, já não era tão frequente que transcendesse e esfera interna de uma província para subir até ao Conselho de Guerra – daí os poucos casos de sobrevivência de documentos com este grau de detalhe. No caso que irei apresentar, a lista de baixas terá servido de argumento para justificar o pedido urgente de reforços para a província de Trás-os-Montes, e por isso foi anexada à carta do governador das armas.

Na carta, o Conde de São João lamenta a falta de cavalaria na província de Trás-os-Montes, devido ao trabalho que tiveram na campanha do Minho e na ocasião do recontro da Beira; solicitava que fosse ordenado a Pedro César de Meneses, general da cavalaria de Entre-Douro-e-Minho, que levantasse gente para formar as tropas; solicitava o envio de dinheiro para que ele, Conde de São João, pudesse comprar 100 cavalos, ainda que em Aveiro ou Coimbra, sem embargo de estar proibido. E pedia, por fim, que o Rei o autorizasse a fazer recolher a a cavalaria de Trás-os-Montes aos seus quartéis (de Inverno).

Em anexo, envia a lista das baixas sofridas na ocasião do socorro à Beira, onde morreu o capitão de couraças João Correia Carneiro, que servia há 23 anos, no decurso dos quais foi ferido inúmeras vezes e mereceu contínuos louvores. Tinha recebido 60.000 réis de tença e o hábito de Cristo. Sobreviveram-lhe duas irmãs, sua mãe e seu pai, com poucos recursos financeiros, pelo que o Conde pedia que o Rei lhes fizesse ainda mais do que esta mercê, “porque com a honra que se faz aos mortos, se premeiam também os vivos” [excerto da carta do Conde de São João de 10 de Janeiro de 1664].

O Conselho de Guerra emitiu parecer favorável  a que se remetesse o máximo de dinheiro possível para que se refizesse a cavalaria, apontando apenas o reparo de se fazer a remonta em Aveiro e Coimbra, pois era de crer que esta mesma falta de cavalos se acharia para as tropas da província da Beira, e que a cavalaria se devia remediar com cavalos de ambas as províncias, Trás-os-Montes e Beira. Acrescentou o Conselho de Guerra que não se devia mandar recolher a cavalaria de Trás-os-Montes aos quartéis sem primeiro escutar os governadores das armas da Beira e de Entre-Douro-e-Minho.

O documento, vertido para português corrente, é apresentado aqui. No próximo artigo será contextualizado, isto é, será feita a descrição do combate onde foram sofridas as baixas que a relação pormenoriza.

Lista dos soldados que morreram em a ocasião de dois de Janeiro e dos feridos, cavalos mortos e cavalos feridos

4 soldados mortos da companhia do General da Artilharia [Domingos da Ponte, o Galego]: Luís Furtado, Francisco Correia, João Carvalho e João Esteves.

6 soldados feridos: os cabos de esquadra João Rodrigues, António Carneiro e Domingos Fernandes Serra, e os soldados Luís Machado, Manuel Ribeiro e António Vaz.

9 cavalos mortos e perdidos: os de João Rodrigues, João Carneiro, Luís Machado, Luís Furtado, Domingos Fernandes Arnelhe, Francisco Correia, João Esteves, António Vaz e Tomé Gonçalves.

2 cavalos feridos: os do tenente e de Domingos Fernandes Jorna.

8 soldados mortos da companhia de João Correia Carneiro: o capitão, Domingos Gonçalves Brilho, António Jorge, Domingos Fernandes, Fernão da Guerra, João Malheiro, Domingos João, Gabriel de Oliveira.

12 soldados feridos: Pedro Gonçalves Brandim, António Rodrigues da Rosa, Francisco Caramona, Marcos Rodrigues, João Carrilho, Domingos Pires Machado, Domingos de Melo, Inácio Caramona, Luís de Castro, João Baía, Augusto Mendes, Matias Rodrigues.

8 cavalos mortos: os de João Carrilho, João Malheiro, Domingos Fernandes, Matias Rodrigues, Pedro Gonçalves Brandim, Gabriel de Oliveira, Domingos João, Francisco Caramona.

6 cavalos feridos: os de António Moniz, Manuel Vaz, António Jorge, o do alferes, Baltasar Lopes, e o cavalo das marchas do capitão.

3 soldados mortos da companhia de João Cardoso Pissarro: Domingos Fernandes, o cabo de esquadra Sebastião Pereira, Amaro de Melo.

4 soldados feridos: o capitão vendado [é assim designado porque ficou cego em resultado dos ferimentos], Francisco Sarmento, Domingos Vaz, Domingos de Barros.

7 cavalos mortos: o do capitão vendado, o do cabo Sebastião Pereira, o de Amaro de Melo, Domingos Fernandes, Francisco Sarmento, Domingos Vaz, Gaspar Gonçalves.

3 cavalos feridos: os de Manuel de Almeida, Pedro Moreno e Francisco da Pasta.

6 soldados mortos da companhia de João Pinto Cardoso: Gonçalo Afonso, João Gonçalves, o ferrador, Domingos Fernandes, Francisco de Castro, João Alvarez.

10 soldados feridos: o cabo de esquadra António de Mesquita, Pascoal de Queiroga, Marcos Luís, Inácio de Gouveia, António de Mesquita Fonte Longa, Serafino de Castro, Luís de Sá, Belchior Gonçalves, o trombeta, e António Guedes (prisioneiro).

14 cavalos mortos: de António Guedes, Gonçalo Afonso, Domingos Fernandes, João Alvarez, Francisco de Castro, Gregório de Morais, João Moniz Roalde, Gaspar de Quiroga, Marcos Luís, João Gonçalves, Inácio de Gouveia, Gonçalo de Magalhães, Fernão Pereira, Serafino de Castro.

Esta companhia não tem cavalos feridos.

9 soldados mortos da companhia do capitão Baltasar Freire: Domingos Lopes, Baltasar Machado, o cabo de esquadra Manuel Carvalho, Pedro Francisco, Gonçalo Pereira, Filipe João, António Gonçalves Chaves, António Gonçalves Infante, Rui de Niza.

6 soldados feridos: António Moniz França, Gonçalo Lobo, Domingos Correia, Jerónimo da Mesquita, Bartolomeu Moreira, Santiago Ferreira.

11 cavalos mortos: de Domingos Lopes, Baltasar Machado, Manuel Carvalho, Pedro Lourenço, Filipe João, António Gonçalves Chaves, António Gonçalves Infante, António Moniz França, Domingos Correia, Bartolomeu Moreira, Gonçalo Pereira.

4 cavalos feridos: o de Rui de Niza, Francisco Rodrigues Tronco, Silvestre Teixeira, Santiago Ferreira.

4 soldados mortos da companhia de Fernão Pinto da Mesquita: o furriel Domingos Cabral, Luís do Rego, João da Costa, Duarte Ferreira.

7 soldados feridos: o alferes Arnelgito, António Navais, João Gomes, o tenente Manuel Pereira, António Pegãos, Pedro Gonçalves, João Godinho.

12 cavalos mortos: os do tenente, do alferes, do furriel, de João Cabral, Luís do Rego, Duarte Pereira, Francisco Alvarez, João da Costa, Filipe Gonçalves, Diogo Pimentel, Pedro Moniz, Manuel Navais.

3 cavalos feridos: o de António Borges, Diogo Gomes e Mateus Rodrigues.

Cavalos mortos: 61

Cavalos feridos: 18

Soldados mortos: 34

Soldados feridos: 45

Fonte: Lista dos Soldadoz q morrerão em a occazião de dous de janeiro e dos feridoz cauallos mortoz e Cauallos feridoz [lista enviada por Domingos da Ponte Galego, tenente-general da cavalaria e general da artilharia ad honorem], anexa à carta do Conde de São de João de 10 de Janeiro de 1664, por sua vez anexa à consulta de 20 de Janeiro; ANTT, CG, Consultas, maço 24, caixa 88.

Imagem: “Combate de cavalaria”, Sebastian Vrancx.