Documentos relativos à defesa de Évora pelo Conde de Sartirana em 1663

Porta de Machede

Na manhã do dia 21 de Junho, quando o Conde de Vila Flor preparava o cerco para a reconquista de Évora, foram interceptados dois correios, um que vinha de Badajoz para a praça com cartas do Duque de San Germán para o Conde de Sartirana, e outro com cartas do dito Conde para o Duque. Na carta de Sartirana (11 de Junho de 1663), este mostrava-se confiante na defesa da cidade; que os seus soldados estavam com bastante ânimo e que o sítio dos portugueses seria a sua ruína. Refere também que expulsou todos os que podiam pegar em armas, os frades moços e os clérigos revoltosos, tanto para se aproveitar dos seus abastecimentos, como para que não gastassem os que o exército tinha. Dá conta da morte, por ferida, de D. Gonzalo de Cordoba. As justiças do povo, e alguns deste, andan finissimos. Refere ainda que corria um boato, ainda que em segredo, que o exército de D. Juan tinha sido derrotado, porém não acredita, seria talvez alguma refrega na retaguarda. Termina afirmando que está pronto a dar a vida para conservar a honra própria e a reputação das armas de Sua Majestade.

A resposta de San Germán, de 13 de Junho, dá conta de um infeliz sucesso que tiveram as armas de Sua Majestade perto de Estremoz, aunque perdimos el recuentro por poca subsistencia de alguna infanteria visoña, el gruesso de infanteria, y toda la caualleria se há retirado a esta plaça de Arronches com muy poca perdida. Sossega Sartirana dizendo que, com o que têm em Badajoz e Olivença juntarão um exército muy grande para avançar sobre o inimigo, pois têm bastante experiência da pouca assistência da infantaria inimiga, em particular neste tempo da ceifa. Incita Sartirana a defender a todo custo a praça, assegurando que D. Juan irá socorrer Évora. Logo a seguir manda o Conde precaver-se para um cerco de muitos meses, ordenando que minore a ração das tropas para somente uma libra de pão e onze onças de carne, e que se pague apenas um real por dia (e só aos que trabalham). Ordena também que se recolha todo o cereal dos arredores e se obrigue os paisanos dos lugares das redondezas a mandar todos os víveres para a cidade, caso contrário a cavalaria deverá destruir e incendiar os lugares. Que os habitantes da cidade sejam expulsos, em particular os que possam tomar armas, e que levem sua roupa, ou se não a puderem transportar, que a deixem em conventos. Só devem permanecer pedreiros, carpinteiros, ferreiros e gente de mesteres que possam servir: boticários, médicos e cirurgiões. Em cada convento só deverão ficar 6 padres com 2 criados, para que cuidem de suas casas e fazendas, devendo entregar todos os víveres excepto os necessários para o seu sustento. Só as monjas deveriam receber o mesmo sustento que os soldados, ficando na cidade apenas aquelas que não tivessem assistência de fora. Apesar de todas estas recomendações, a carta vai deixando transparecer as dificuldades, exortanto a dado passo que, se tudo sair dos limites do possível, passando a extremos de impossibilidade, se sacrifiquem as vidas para fazer um serviço tão grande a Sua Majestade, e adquirir triunfo e glória perpétua.

Fonte: António Álvares da Cunha, Campanha de Portugal pella provincia de Alemtejo, na Primavera do anno de 1663, Lisboa, Officina de Henrique Valente de Oliveira, 1663, pgs. 62-67.

Imagem: Évora – Porta de Machede na actualidade. Fotografia de JPF.

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – 5 de Junho

IMG_2879

Às 5 da madrugada do dia 5 de Junho, coberto pelo fogo da sua artilharia, começou o exército de D. Juan de Áustria a baixar das colinas contra o exército português, para intentar a passagem do ribeiro, o qual, ainda que não levasse água, tinha algumas dificultosas abertas. (Cunha, pg. 39)

De acordo com D. Jerónimo Mascarenhas, o português havia gastado toda a noite a fortificar as margens mais expostas ao acometimento, e ocupado pela manhã cedo as passagens mais oportunas para embaraçá-lo e reprimir a vivacidade dos que o fossem atacar. O Senhor Don Juan, que bem supunha esta diligência nos contrários, fez avançar de manhã cedo as tropas em parte de onde não estivessem descobertas (…). Dali passou a dar vista sobre a mão esquerda ao rio, donde mais provavelmente julgava poder obrar, não o permitindo pelos bordos altos ocupados em frente pela artilharia e tropas inimigas, que a todo transe trabalhavam na sua trincheira, dominando o terreno oposto, onde precisamente haviam de dobrar os espanhóis, se queriam intentar passagem por aquele costado. Porém durante este intervalo (ainda que menos de meia hora) que passou este Príncipe naquele reconhecimento, acompanhado do Duque de San Germán, quis supri-lo cegamente o ardor do corno direito [da cavalaria], que não conhecendo a importância da dilação, se moveram os primeiros batalhões, sem que se haja podido averiguar depois com qual ordem, até à margem da ribeira, expondo-se ao fogo das peças e mosquetaria inimiga. Acudiu logo Sua Alteza ao ruído, sem poder remediá-lo antes que os tiros portugueses estropiassem até sessenta homens, e entre eles ao mestre de campo Dom Gonzalo de Cordoba, irmão do Duque de Sessa, e a outros três oficiais de suposição, que depois morreram em Évora de seus ferimentos. (Mascarenhas, fl. 28v)

A artilharia portuguesa fora colocada por D. Luís de Meneses em tão proveitoso sítio que não havia peça que jogasse tiro em vão (Cunha, pg. 39). Mesmo assim, apesar de considerável dano, continuaram a avançar os espanhóis. Travando-se a escaramuça, encontraram tão rija resistência pelo corno esquerdo da 1ª linha portuguesa, à ordem do mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, que foram obrigados a desistir da empresa, recolhendo-se com perda até à margem do ribeiro.

Tentando outra passagem menos defendida, resolveu a cavalaria inimiga passar uma sanja não muito profunda, quando carregou contra ela o genera da cavalaria Dinis de Melo de Castro. Tocava aquela parte por aquele dia a Jorge Furtado de Mendonça, capitão de uma companhia de cavalos da província da Estremadura, que se bateu muito bem. (Cunha, pg. 40)

Avisado da determinação do inimigo, desfilou o Conde de Schomberg o exército pela outra margem do Degebe a impedir o posto que se imaginava ser investido. Já nele tinha plantado D. Luís de Meneses 5 meios-canhões. O inimigo sofreu ainda mais nesta segunda investida do que na primeira, e foi aqui que, segundo Álvares da Cunha, perdeu pessoas de conta como  o mestre de campo D. Gonçalo de Córdova, que o autor português identifica erradamente como filho do Duque de Sessa.

Frustrados por repetidas vezes estes intentos, o exército espanhol foi alojar na planície que domina o convento do Espinheiro. Dali foram enviados a guarnecer Évora 3.000 infantes e 800 cavaleiros. Ao amanhecer começou a abalar a sua retaguarda para a parte da Venda do Duque. A sua carriagem tinha marchado por toda aquela noite, com a vanguarda e a batalha, pelo mesmo caminho que havia trazido.

Imagem: Zona nas imediações do convento do Espinheiro, onde alojou o exército de D. Juan de Áustria na sua retirada de Badajoz. Foto de JPF.

Um combate nos campos de Valência de Alcântara, 7 de Novembro de 1653 (parte 1)

Um dos episódios mais conhecidos da Guerra da Restauração foi o combate de Arronches, travado em 8 de Novembro de 1653 algures entre Arronches e Assumar (o local exacto não é conhecido com precisão, mas seria pouco distante de Arronches). A vitória obtida pela cavalaria portuguesa comandada por André de Albuquerque Ribafria abriu caminho a alguns meses de iniciativa e supremacia dos portugueses naquela fronteira de guerra, permitindo inclusivamente a tomada de Oliva. No entanto, um outro choque de cavalaria, ocorrido na véspera do combate de Arronches e praticamente desconhecido, terá tido importância para o desfecho daquela grande peleja. É esse episódio que aqui se recorda, com base nas memórias do soldado Mateus Rodrigues e na referência ao mesmo que o Conde de Ericeira lhe faz na História de Portugal Restaurado.

Em 1653, apesar de nominalmente ter continuado a ser governador das armas, o ódio de morte que existia entre D. João da Costa, Conde de Soure, e os Bobadilha (Diogo Gomes de Figueiredo, pai e filho, respectivamente mestre de campo e sargento-mor no mesmo terço de Elvas) levara a que o Conde se tivesse mantido em Lisboa enquanto o Príncipe do Brasil, D. Teodósio, permanecia no Alentejo. Os Bobadilha tinham sido mestres de armas do herdeiro da Coroa. O favorecimento do Príncipe aos seus antigos professores de esgrima, bem como a sua interferência no governo do Alentejo, não foram bem aceites por D. João da Costa. Mas pouco depois de D. Teodósio ter regressado a Lisboa (onde viria a falecer em Dezembro desse ano) e dos Bobadilha terem deixado o terço de infantaria, D. João voltou a ocupar o cargo de governador das armas.

Foi nesta condição que, em Novembro de 1653, aproveitando o facto dos campos não estarem ainda alagados pelas chuvas, o Conde de Soure ordenou duas incursões de cavalaria simultâneas contra a congénere espanhola. O general da cavalaria André de Albuquerque devia conduzir as companhias de Elvas, Campo Maior e Olivença a emboscar as companhias de cavalos de Badajoz, enquanto o capitão Fernão de Mesquita, com cinco companhias pagas e as companhias de pilhantes, devia fazer o mesmo às duas companhias que se aquartelavam em Valência de Alcântara e São Vicente.

O soldado Mateus Rodrigues servia ao tempo na companhia de Francisco Pacheco Mascarenhas. Tendo combatido em Arronches, onde foi ferido, não esteve presente na acção que narra, com algum detalhe, nas suas memórias – mas porventura terá apontado o que ouviu contar a outros camaradas de armas que estiveram nesse combate sob o comando de Fernão de Mesquita, acrescentando talvez um ou outro pormenor de sua lavra. E começa assim a sua narrativa (vertida para português moderno):

Em a cidade de Portalegre estava neste tempo uma companhia de cavalos de guarnição, e o capitão dela era de couraças, que tem mais proeminências que os ligeiros, e como havia mais umas cinco ou seis tropas que estavam por aqueles lugares circunvizinhos, estas estavam à sua ordem, deste de Portalegre, por nome Fernão de Mesquita, natural de Elvas, fidalgo e grande soldado e valente. De modo como Portalegre fica perto de Castela, (…) quis este Fernão de Mesquita juntar o seu regimento [note-se que Mateus Rodrigues utiliza o termo “regimento” num senso generalista, referindo-se a várias companhias sob o comando de um oficial, não no sentido orgânico do termo], que seriam 300 cavalos, a fazer uma entrada a Castela, às partes de Valência de Alcântara, que era aonde podia fazer alguma coisa, por ser lugar grande e de muitos gados (…), e como este capitão não podia fazer entrada nenhuma em Castela sem ordem do governador e do general da cavalaria, escreveu uma carta ao nosso mestre de campo general, Dom João da Costa, e ao general da cavalaria, em que lhe pedia licença para fazer a dita entrada, manifestando-lhe as causas que o moviam a fazê-la, que podia ser que desse algum repelão às tropas do inimigo, que tinha em Valência e em S. Vicente e em Albuquerque, porque todas estas tropas estão uma e duas léguas umas das outras, e em qualquer parte que os nossos lhe tocam arma, logo acodem uns aos outros como uns raios; e quando não fosse isto, traria o que lhes achasse pela campanha e se viria muito embora. [MMR, pg. 355]

Segundo Mateus Rodrigues, esta solicitação do capitão aos seus superiores tinha sido feita muitos dias antes do recontro de Arronches. É provável que o memorialista esteja correcto quanto às verdadeiras motivações desta operação, mas o certo é que, tenha partido a iniciativa do próprio capitão ou do Conde de Soure, ela foi providencial para o sucesso de Arronches. É que no mesmo dia em que Fernão de Mesquita saiu com as suas companhias, tinha o Duque de San Germán ordenado ao comissário geral Bustamante que, com dezoito companhias dos partidos de Alcântara e Albuquerque, entrasse a pilhar os campos das comarcas de Portalegre, Crato e Avis, e que depois se juntasse ao resto da cavalaria, que o aguardaria entre Alegrete e Arronches. Para Mateus Rodrigues, foi a intervenção divina (da Virgem da Conceição primeiramente – reflectindo o culto mariano característico do período) que fez com que, após a autorização dada pelos seus superiores, Fernão de Mesquita tivesse deixado passar vários dias antes de empreender a entrada.

Do recontro propriamente dito tratará a segunda e última parte deste pequeno artigo.

Bibliografia:

Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952 (1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 2), pgs 354-356.

Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado (edição on-line facsimile da edição de 1759), Parte I, Livro XII, pgs. 411-412.

Imagem: “O Campo da Cavalaria”, pintura de Philips Wouwerman, The Frick Collection, Nova Iorque.

Cerco e tomada de Olivença (4ª parte – de 22 a 30 de Abril de 1657)

Olivença3

[22 de Abril – Está, por lapso, indicado no original com o nº 23; nota introduzida por Horácio Madureira dos Santos na sua transcrição] – Domingo se viram mui avante as linhas do inimigo que, como trabalhavam nelas de noite, apareciam pela manhã crescidas; pela tarde deu uma bala grossa na rua das Flores, e na chapeleta que fez matou um alferes auxiliar, foi este o primeiro homem que o inimigo nos matou.

Desde este dia se deu carga contínua de mosquetaria de dia e de noite pelas partes em que o inimigo trabalhava, para lhe impedirem o seu serviço.

23 – 2ª feira amanheceu uma nova plataforma no mosteiro de São Bartolomeu, mas por baixo, coisa de trezentos passos, e para ela passou o inimigo as peças que na outra tinha; ficava esta menos de tiro de mosquete da praça.

[24] – 3ª feira ao amanhecer entrou na praça Diogo Soares, soldado honrado, o qual estava fora dela ao tempo que chegou o inimigo. Neste dia amanheceu outra bateria, posta por baixo da Cruz de São Pedro; nesta havia três peças grossas, duas faziam tiro aos baluartes da Rainha e uma à Torre d’El-Rei, e esta lhe quebraram algumas pedras junto às obras mortas. Um auxiliar de Évora falou da praça, entendeu-se que se passara ao inimigo.

[25] – 4ª feira esforçou muito o inimigo as suas baterias, e as balas, que davam no muro, tornavam para trás, estas nos mataram cinco soldados, e as que saltavam para dentro da vila fazendo chapeletas mataram cinco bois; as primeiras três bombardas arruinaram três moradas de casas.

As sentinelas da ronda tocaram arma ao inimigo, e enquanto durou, largaram todos o trabalho, e todos andavam com tanta confusão que os não podiam os cabos reduzir à forma. Nesta noite escreveu o governador [da praça, Manuel de Saldanha] ao Conde [de São Lourenço] e a Câmara [de Olivença] lhe escreveu o seguinte:

Presente é a Vossa Senhoria quantos dias há que o inimigo nos tem sitiados, e com não serem muitos nos tem cortado os olivais, destruindo os pães [ou seja, as culturas], e comida da sua cavalaria e bagagens; com a artilharia e bombas nos vai arruinando as casas, com o que nos não deixa fora de toda a pobreza e miséria. Nós somos e fomos sempre bons e fiéis vassalos a Sua Majestade, e como tais merecemos ser socorridos, o que temos por muito certo, confiados na grande mercê que Vossa Majestadefez sempre aos moradores desta vila. este socorro ficamos esperando, e pedindo a Deus que nele dê a Vossa Senhoria os bons sucessos que desejamos.

Esta carta cifrou [ou seja, pôs em cifra, em código] Gilot, e creio que fielmente, se bem me disse o que escreveu a cifra que lhe acrescentou ou cortou, mas ele passou, e a levou o Franco. Neste dia se tomou língua, e uma das balas que faziam tiro à torre fez em pedaços um sino que estava nela e servia de tocar a rebate.

26 – Quinta-feira pela manhã teve a nossa cavalaria uma escaramuça com a companhia da guarda do inimigo junto das hortas, no Ferragial do Azoche; durou um bom espaço e foi bem travada. Os nossos se recolheram sem dano, o inimigo algum recebeu, e eu soube do tenente Pantoja [oficial espanhol], [n]o dia em que saímos rendidos, que lhe morreram quatro e foram feridos quinze, e muitos cavalos. Neste dia fez o governador repartição dos homens nobres para estarem nos baluartes, três em cada um, mandando na artilharia e vendo como se pelejava por aquelas partes, para que, parecendo-lhes necessário, o advertissem [no sentido de “avisassem”] aos capitães, e a ele.

Por noite um soldado de D. Tomás Geraldino se passou para o inimigo, um mosquete que rebentou matou um soldado e levou a outro uma mão. Uma bala grossa quebrou pela jóia um sacre que estava na torre, com a qual e outra peça de três libras se fez grande dano ao inimigo.

[27] – Sexta feira se começou de ver uma linha que de novo fazia o inimigo; começava no quartel do olival de João Cabelo e ia caminhando ao redor da praça, a tiro de arcabuz da estrada encoberta para a parte da Corna. O governador mandou com grande cuidado segar os pães [ceifar o trigo e outros cereais] que estavam ao redor da vila, por estarem tão crescidos que se não viam as obras do inimigo senão quando eram já mais altas que eles; isto cometeu ao sargento-mor da terra Gil Vaz cabeça, o qual o fez com os moradores dela.

Neste dia acabou o inimigo de fazer a outra linha de comunicação de uma bateria para a outra, e ambas guarnecia do quartel de Vale Mimoso. Daquela linha saíam soldados a tomar alfaces nas hortas do Ral, que ficavam entre nós e eles, e lhe mataram os nossos alguns com tiros, da estrada encoberta. Acabou-se uma meia lua que o governador mandou fazer entre os baluartes da Corna e do Calvário, e se guarneceu e começou de se trabalhar em outra, que mandou fazer defronte da porta do Calvário.

O inimigo, desenganado com o pouco efeito que a sua artilharia fazia no baluarte da Rainha, deu mais elevação às peças e meteu os tiros por dentro da vila, com o que fez grande dano nas casas daqueles bairros; deixou de atirar à torre e algumas vezes atirou à estacada da estrada encoberta, com o que nos matou e feriu alguns soldados.

28 – Sábado pela manhã apareceu um quartel escrito em meia folha de papel perto da nossa estrada encoberta, em um pau que parecia cabo de enxada; trouxeram-no ao governador e ele o recolheu.

Também apareceu mui avante a linha que fazia pela parte do campo de [espaço em branco no texto original; nota de HMS]. A artilharia do inimigo arruinou muitas casas na rua grande de S. Bartolomeu, e entre estas as em que eu vivia. Trabucou e lançou esta noite vinte e uma bombas, que arruinaram algumas casas.

Pôs o governador fachos em a torre e sucedeu que estando ele com muita gente na abóbada da porta do Calvário, dos quais todos dormiam, senão João Mendes Mexia, Fernão Gomes de Cabreira e Gilot, que passeavam, se disparou uma arma, e o pelouro dela deu em Salvador Machado, sargento-mor dos auxiliares de Beja, e lhe quebrou uma perna, de que morreu em três dias. Como era noite em que se trabucava, com  o ruído do tiro saíram todos fugindo desacordados, cuidando que era bomba que ali caíra, com o que se não pôde fazer averiguação certa do caso, mas sempre se teve que foi desastre.

Duravam as baterias, e de uma e outra plataforma atiravam furiosamente. Em tanto que houve dia em que se contaram setecentos tiros, segundo me afirmaram soldados curiosos e de verdade. Domingo [dia 29] pela manhã se passou para a praça um soldado do exército, era português, deu algumas notícias do poder do inimigo, mas pouco certas. de tarde saíram a tomar língua dois soldados nossos que foram Gonçalo Vaz e outro, o inimigo os carregou com muitos, contra os quais sustentaram uma escaramuça por muito tempo, e se retiraram sem dano.

À noite começámos de ver fogos por junto de Juromenha, tivémos grande festa, entendendo que era o nosso exército. Como assim foi sem embargo de que Castilho [Stéphane Auguste de Castille] sustentava, e com apostas, que nem era o exército, nem havíamos de ser socorridos, o que dava grande escândalo a todos. O governador mandou continuar os fachos na torre.

[30] 2ª feira pela manhã se via que da linha da comunicação entre as baterias do inimigo saía formado um aproche, com que caminhava direito à estrada encoberta, pela parte do baluarte da Rainha. Este formavam de noite, e faziam o que lhe bastava para se cobrirem de alto e grosso, e de dia o engrossavam e trabalhavam cobertos.

Pela manhã veio um escravo branco e ferrado, que era tambor-mor, e cuidava que o nosso forte era quartel seu, e se veio meter nele. Este foi trazido ao governador e disse que no dia atrás tinha chegado ao exército D. Francisco de Guzmán, novo mestre de campo que vinha de Sevilha com nove companhias de infantaria, e que logo lhe mataram um moço que era o melhor sapateiro que havia na cidade.

Do quartel de S. Francisco Velho se passou para cá outro castelhano bem fardado, mas ao meu ver e ao de todos, falto de juízo. Outro se tomou para língua, de todos soubemos que entre os Duques de S. Germán e o de Osuna houvera diferenças e que chegaram [a] vir à espada, e foi porque o de Osuna disse que era ruim guerra atirar às casas da vila, que queria ganhar, e que rompesse a muralha e entrasse a praça, que a isso vinha; sobre estas tiveram outras razões, e a final a de Osuna foi que em Espanha, depois de El-Rei, só ele era e ninguém lhe precedia. Na noite deste dia trabucou o inimigo e lançou sete bombas, com o que arruinou quatro moradas de casas.

(continua)

Este texto corresponde à transcrição (com ortografia actualizada) de um manuscrito anónimo existente na Biblioteca Nacional, secção de Reservados, agora somente disponível em microfilme (FR 970), cujo título é Relação de tudo o que [se] passou em Oliuença e no Campo do Cerco e tomada da praça pellos Castelhanos. Abril anno de 1657.

Imagem: Olivença – vista parcial a partir da Torre d’El-Rei, mencionada no texto. Foto de Jorge P. Freitas.

Escaramuças raianas – Extremadura (partido de Alcántara), 6 de Março de 1652

Com a colaboração do senhor Juan Antonio Caro del Corral, serão apresentadas aqui algumas narrativas de operações militares desenroladas de um e outro lado da raia, na zona entre a Extremadura espanhola (partido de Alcántara) e a província da Beira. Sobre as características destas operações e a maneira como eram apresentadas nas Relações publicadas por ambos os contendores já fiz referência noutro artigo. O que hoje vos deixo tem a particularidade de ser respigado de uma Relação (ou melhor, Relación) dada à estampa do lado espanhol, pois refere uma vitória das armas de Filipe IV. O Conde da Ericeira também escreve, de passagem, sobre este insucesso português na sua História de Portugal Restaurado.
D. Francisco Totavila, Duque de San Germán, mestre de campo general e governador das armas da Extremadura, fora avisado das frequentes entradas feitas a partir da província da Beira, partido de Penamacor (a Beira fora dividida em 1647 em dois partidos, ou distritos militares: a norte o de Riba Coa, também designado como de Almeida, a sul o de Penamacor, também referido como de Castelo Branco). Estava-se em 1652 e era a Beira governada pelo mestre de campo general D. Sancho Manuel de Vilhena, que mais tarde viria a ser Conde de Vila Flor.

O Duque de San Germán encarregou D. Tomás Alardi, Conde de Troncan, general da artilharia do reino de Sevilha e governador das armas dos partidos de Alcántara, Coria e Sierra de Gata, de fazer uma entrada em Portugal, de modo a enfrentar e derrotar a cavalaria portuguesa. Este era um objectivo comum na pequena guerra de fronteira, quando a intensidade das pilhagens se tornava demasiado incómoda para a vida das populações. Diminuir a capacidade do inimigo através de uma operação que lhe causasse baixas militares significativas podia ser a solução – sempre temporária – para travar a frequência das incursões.

Tendo em vista esse fim, o Conde de Troncan mandou incorporar as tropas de Arroyo, Malpartida, S. Vicente e Valencia de Alcántara às de Moraleja. Entretanto, as forças portuguesas fizeram nova entrada até às proximidades de Moraleja com 200 cavalos, mas retiraram quando souberam que o comissário geral Juan Jacome Mazacan se aproximava com sete companhias de cavalaria. Foi então o comissário geral encarregado de levar a cabo uma entrada em Portugal, o que fez no dia 5 de Março de 1652, embora sem sucesso de maior, pois os portugueses tinham recolhido todo o gado e nada pôde ser furtado.

Por sua vez, o Conde de Troncan encetou a marcha rumo a Portugal. Ao amanhecer do dia 6 de Março topou com uma força portuguesa nos campos de Ceclavin. Eram 250 cavalos e 500 infantes que defendiam um vau do rio Alagón, no sítio chamado El Pontón. Faziam a cobertura de uma força de cavalaria que fora rapinar gado e que o recolhia em grande número. Procurou avisar o comissário geral Mazacan, que já se encontrava nas cercanias de Monfortiño e La Zarza. Lançado em perseguição dos portugueses, alcançou-os a meia légua de Alcántara, e os investiu

pelejando com tanto esforço que rompeu toda a cavalaria e infantaria inimiga, sendo o recontro tão sangrento que ficaram mortos na campina mais de 150, e entre eles um capitão de cavalos, dois tenentes, seis capitães de infantaria, o sargento-mor do terço [o que não se confirma por outras fontes, pois era António Soares da Costa, o Machuca, que ficou posteriormente a comandar o que restou do terço pago], cinco alferes e outros oficiais [incluindo um capelão] e 366 prisioneiros, tão mal feridos que morreu a maior parte. (…) Da cavalaria apenas escaparam 50 e os demais que faltam se vão recolhendo, de modo que passam de 200 os cavalos capturados e muitas armas, munições e apetrechos de guerra.

Do lado espanhol ficaram feridos dois capitães de cavalos – D. Gonzalo de Escobar e D. Andrés de Rada. Este morreu devido à ferida ter sido causada por um golpe de pique na barriga. Também morreram o alferes e 4 soldados da companhia de D. Andrés.

Os prisioneiros portugueses de maior nomeada foram o mestre de campo João Fialho, o governador da cavalaria do partido de Penamacor Gaspar de Távora, um sobrinho do príncipe de Marrocos, aventureiro, e quatro cavaleiros do hábito de Cristo. Ao todo, foram capturados 38 oficiais, 5 aventureiros, 4 tambores e 332 soldados, tendo sido recolhido todo o gado que a força portuguesa havia previamente pilhado.

Bibliografia: Relación del feliz succeso que han tenido las armas de S. Majestad, gobernadas del Conde de Troncan, en la Extremadura por la parte de Alcántara, contra las armas del tyrano, que gobierna dº Sancho Manuel, maestre de campo general del exercito rebelde. Sucedió miércoles 6 de marzo de este año de 1652. Transcrição enviada pelo senhor Juan Antonio Caro del Curral, a quem agradeço a gentileza.

Imagem: Cavalaria escaramuçando com infantaria. Reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa. Foto do autor. Kellmarsh Hall, 2007.

Stéphane Auguste de Castille e a perda de Olivença em 1657 (parte 1)

Em 30 de Maio de 1657, após um mês de cerco pelo exército espanhol, capitulava a vila de Olivença. O mestre de campo Manuel de Saldanha entregava a praça que até então governara ao Duque de San Germán, comandante das forças sitiantes. Contando inicialmente com uma guarnição de 4.000 infantes e uma companhia de 100 cavalos, Olivença viu perecer mais de 1.700 defensores durante as operações de sítio. Enquanto isso, o exército de socorro, confiado pela rainha viúva D. Luísa ao Conde de São Lourenço, desgastava-se inutilmente numa ousada tentativa de tomar Badajoz, em vez de se lançar sobre o exército de San Germán.

A queda de Olivença, coincidindo com o reacender da guerra nas fronteiras do Reino, trouxe consigo um imenso pesar e uma vaga de suspeitas de traição. Nem sequer foi poupado o Conde de São Lourenço, apesar do prestígio alcançado no governo das armas do Alentejo durante a década de 40. Caiu em desgraça, como alguns outros que foram acusados de envolvimento na entrega da praça alentejana ao inimigo.

Uma das acusações mais surpreendentes que os inquéritos em torno da queda de Olivença produziram foi dirigida contra um capitão de cavalos, o francês Stéphane Auguste de Castille, cujo nome aparece também aportuguesado em várias fontes como Estêvão Augusto de Castilho. Não causa estranheza que um estrangeiro fosse tido como suspeito, uma vez que, na época, existia uma enorme desconfiança em relação aos súbditos de reis estrangeiros, mesmo os que se batiam no exército português. Contudo, sobre Castille e um outro seu compatriota, François Du Four, recaíram as culpas da perda da praça, apesar de nenhum deles ter estado envolvido nas negociações da entrega da vila. Condenados, Du Four seguiu para as ferrarias de Tomar, enquanto Stéphane Auguste de Castille foi sentenciado no crime de lesa-majestade e degredado por toda a vida para a Índia por infame, ele e os seus descendentes. O caso deixa entrever uma complexa intriga de bastidores e o envolvimento de pessoas ligadas à burguesia e justiças locais, eventualmente receosas de perderem os bens se a capitulação proposta pelo Duque de San Germán não fosse aceite, e certamente receosas de perderem a vida se acusadas de traição após a rendição. Os estrangeiros poderiam ter servido, assim, de bodes expiatórios muito convenientes.

Entre 1660 e 1661, Stéphane Auguste de Castille escreveu várias petições ao Conselho de Guerra, reafirmando a sua inocência e clamando pela anulação da sentença. Para não tornar esta entrada demasiado extensa, amanhã será aqui publicada a argumentação do cavaleiro francês, bem como a sua versão da estranha intriga em torno da queda de Olivença.

Bibliografia on-line (História de Portugal Restaurado)

Gravura: Planta de Olivença, c. de 1700; Biblioteca Nacional, Iconografia, CC29P. A legenda em francês refere que a tomada da vila pelo exército espanhol ocorreu em 1658, quando na verdade foi no ano anterior. Olivença seria devolvida à Coroa portuguesa em 1668, após a assinatura da paz.