Um combate em Vale de Cavaleiros (arredores de Elvas), em Setembro de 1648

Há algum tempo que não apresentava uma acção descrita pela pena do memorialista e soldado de cavalaria Mateus Rodrigues (Matheus Roiz). A que aqui fica desenrolou-se nos arredores de Elvas, em Setembro de 1648. A transcrição foi vertida para português corrente, como é habitual.

Todas as vezes que o inimigo vinha à campanha de Elvas fazer alguma emboscada, ordinariamente trazia a sua cavalaria toda, porque sabia muito bem que quando lhe saíam as doze tropas [companhias] que assistiam em Elvas, logo iam nas suas costas os três terços de infantaria que havia na cidade; e assim, entre algumas vezes que veio, nesta não se houve muito bem, trazendo 1.500 cavalos. De modo que veio-se emboscar em os barrancos da ribeira de Caia uma noite, e como o inimigo logo foi sentido das nossas vigias, vieram logo dar aviso à cidade, à meia-noite. E nas mesmas horas montaram logo as tropas da cidade e arrimaram os três terços também. De sorte que assim como amanheceu, já estava tudo fora da cidade, e fomos marchando com as tropas até o Vale de Cavalos, que era por donde o inimigo havia de vir sobre os nossos. E assim também foi a infantaria toda até o mesmo Vale, e se pôs em um cabeço, formada de dentro de um curral de paredes velhas e derrubadas, com 4 peças de artilharia consigo. Como esteve tudo bem aparelhado, mandaram logo a companhia da ronda que fosse para a sua guarda, fazendo o que era costume, levando seus batedores diante e ela detrás para os socorrer. E com ordem do general da cavalaria que ali estava, Dom João [de] Mascarenhas que, se saísse alguma partida pequena aos batedores, que a seguisse a companhia da ronda até ver em que parava. De modo que assim foi que indo os batedores descobrindo, dão logo com uma partida do inimigo. E vindo correndo sobre os nossos batedores, lhe saiu a companhia e os foi correndo até quase à ribeira de Caia, aonde estava sua embscada. E assim como o inimigo viu já a nossa companhia muito perto, lança-lhe cem cavalos à rédea solta, para ver se podia derrotar. E assim como os nossos viram os cem cavalos sair da ribeira, vêm fugindo para a nossa gente, que assim levava a ordem o cabo dela, e os cem cavalos do inimigo se vinham desunhando atrás da nossa companhia e não viam a outra gente nossa.

De modo que já o nosso general Dom João [de] Mascarenhas tinha apartado 150 cavalos para que, em sendo tempo, saíssem sobre os cem do inimigo. Vinham já os cem cavalos do inimigo mui averbados com a combanhia e perto das nossas tropas, saem logo os nossos 150 cavalos sobre os do inimigo como uns raios, já com a espada na mão. Assim como o inimigo os viu, se bem apressado vinha sobre a nossa companhia, muito mais volveu fugindo. Mas os nossos [é] que lhe davam pouco vagar, porquanto os iam apertando muito bem e desmontando neles, que antes que chegassem à sua emboscada já lhe tinham ficado pelas costas 20 ou 30 cavalos. Mas como a sua emboscada viu já muito empenhados aos cem cavalos, saiu de emboscada mais cedo do que havia de sair, para não lhe derrotarmos mais gente. E assim vem saindo com toda a brosigiada [termo empregue pelo autor, talvez querendo significar “brigalhada”], que eram dezasseis batalhões, que tinham bons 1.400 cavalos. Assim como os nossos viram sair o poder, vieram todos como raios, cada qual havia mais de correr, retirando-se à nossa gente, que já o nosso general a via vir muito bem. E como o inimigo não via a infantaria, cuidava que só as tropas da cidade ali estavam. E assim que o general lá as pôs em o alto para que se viesse a elas com mais vontade, e já a nossa infantaria estava muito alerta, veio o inimigo investindo connosco, entendendo que nos levava de coalho. E apenas eles vinham chegando a nós, volta o nosso general com as tropas, fazendo que fugia, e o inimigo se veio a nós de fio. Mas na volta que nós demos ficou a nossa infantaria à sua vontade para dar carga ao inimigo [isto é: disparar as armas de fogo] como deu, assim de mosquetaria como de artilharia muito bem, que assim como o inimigo a viu, virou muito depressa outra vez para trás ao largo, mas já com boa perda das cargas que lhe deram ali logo bons cem homens. E assim como o inimigo voltou atrás, logo o nosso famoso Dom João [de] Mascarenhas o foi picando valentemente na rectaguarda, e tão bizarramente que lhe feriram o cavalo com uma cutilada e o espadim com que pelejava lhe botaram um escudo fora dele. Fez-se o inimigo ao largo, aonde não lhe faria dano a nossa artilharia, e formou-se e deixou-se estar um pouco ali, havendo sempre grandes escaramuças de ambas as partes. E não ficámos nós também sem perda, que ainda levaria o inimigo 15 ou 20 cavalos e homens. De modo que, vendo o inimigo não fazia já nada, se foi retirando para Badajoz, e nós viemos para a cidade contentes de ver que o inimigo, com toda aquela cavalaria, não fizera nada.

Fonte: MMR, pgs. 1197-199.

Imagem: Vista da cidade de Elvas, ao fundo, a partir do local da Atalaia da Terrinha (hoje desaparecida) – um sítio que foi palco de muitos combates como o descrito aqui. Foto de JPF.

14 de Janeiro de 1659 – Batalha das Linhas de Elvas e morte de André de Albuquerque Ribafria

“[…] Amanheceu terça-feira, catorze de Janeiro do ano de mil seiscentos e cinquenta e nove, dia tão fausto à Nação Portuguesa, que até a si mesmo se fez feliz, por ser de séculos imemoráveis erradamente julgado por infausto; tomando a maior parte deste agoiro a família dos Meneses, de que era cabeça o Conde de Cantanhede, que conseguiu mais uma vitória na resolução de desvanecer esta superstição gentílica. […] [p. 215]

[…] E como em todo o decurso da sua vida não tolerou André de Albuquerque que os seus soldados voltassem as costas aos inimigos, arrojou o cavalo ao centro do esquadrão, exortou aos que se retiravam, e persuadindo-os a que voltassem as caras, os levou junto da estacada do forte, e tocando nas estacas com a bengala, os advertiu como haviam de arrancá-las; obedeceram os soldados, emendendando o erro antecedente. Acertou uma bala tirada do forte a André de Albuquerque, entrando por entre o extremo do braço direito e o princípio das armas [ou seja, da armadura, que consistia numa couraça completa para o tronco: corselete e braçais. A bala penetrou pela extremidade desprotegida, o que leva a crer que André de Albuquerque Ribafria usava apenas luvas de couro, na melhor das hipóteses, e não uma manopla de ferro a proteger todo o antebraço e mão] com efeito tão mortal que infelizmente caiu morto em terra […]. [p. 224]

[…] O Conde de Cantanhede, no dia seguinte ao que ganhou a batalha [quarta-feira, 15 de Janeiro], deu ordem à sepultura do corpo de André de Albuquerque com todas as fúnebres demonstrações militares, que merecia a memória de um varão de tão excelentes virtudes. Foi enterrado no Mosteiro de S. Francisco. [p. 232]

Fonte: D. Luís de Meneses, História de Portugal Restaurado, Parte II, Tomo III, Lisboa, 1751.

Imagem: Padrão comemorativo da Batalha das Linhas de Elvas. Foto de JPF.

Um recontro de cavalaria nas proximidades de Elvas – Cruz de Rui Gomes, 23 de Maio de 1647 (1.ª parte)

Regressamos ao manuscrito de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), para transcrever o testemunho do soldado de cavalos acerca de um recontro nas proximidades de Elvas, no qual a companhia onde servia foi derrotada.

O sucedido ocorreu na ausência do comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde, comandante da companhia, que estava em Coimbra a tratar de assuntos pessoais. Antecedeu num par de meses a desgraça daquele oficial superior, que acabaria por perder o posto num outro desaire, de maiores proporções, também nos arredores de Elvas. Mas acompanhemos a pena de Mateus Rodrigues, numa escrita actualizada:

Estando a minha companhia de quartel na cidade de Elvas, lhe tocou fazer a guarda na campanha em 23 de Maio, véspera do Espírito Santo do ano de 1647. E como todas as companhias que fazem guarda na campanha saem logo para fora pela manhã, e como vão sempre duas, cada uma à sua atalaia, para a da Terrinha e outra para a do Mexia, e lá assistem todo o dia até noite, descobrindo tudo muito bem antes que lá cheguem, e com sentinelas em as parte mais vigilantes, de modo que saímos com a companhia para fora e não levávamos capitão, porque já se havia ausentado Dom João dela para Coimbra, e só o tenente ia com ela, por nome Agostinho Ribeiro, um dos bizarros soldados que a guerra botou de si. E como estivemos já lá no Rossio, mandou todos os batedores, cada dois para sua parte a descobrir aonde era costume, entre os quais fui eu com outro mais, por nome Pascoal Lopes, para um sítio a que chamam o outeiro da Padeira, e aí havíamos de ficar de sentinela todo o dia. Mas eu fui fazê-la a Badajoz por quatro dias!

Assim como chegamos ao outeiro, depois de ter já tudo muito bem descoberto, mas não dali para diante, que ficava ainda um posto por descobrir, arriscado. Mas não se havia de descobrir senão depois da tropa [ou seja, a companhia] ter chegado à atalaia, e aí havia o tenente de mandar um soldado em um bom cavalo a descobrir a Cruz de Rui Gomes e os carrascais dela. De modo que já nós ambos estávamos em o outeiro, vendo a companhia que já vinha chegando para a atalaia. E neste mesmo tempo ia um soldado da cidade a cavalo pela estrada abaixo, com tenção de ir segar erva em os vales de Úbeda, que havia muita. E estavam ali umas grandes casas, que eram de uma quinta de um fidalgo, as quais casas se descobriam sempre quando ia o soldado da atalaia a descobrir os carrascais. E o tal soldado que vinha da cidade andou demasiado em não procurar primeiro se se havia já descoberto as casas, pois sabia muito bem que haviam de descobri-las [o termo “descobrir” é usado como sinónimo de procurar inimigos emboscados – ou seja, também em linguagem militar, “bater um local”]. Mas não quis ser tão atilado, senão assim como chegou logo as quis descobrir, para segar a erva a seu gosto. E no mesmo tempo em que o soldado ia chegando às casas, a essa hora havia a minha companhia chegado [à] atalaia, e eu e mais o soldado lá de onde estávamos bem víamos […] ir o soldado a descobrir as casas, antes logo reparámos, dizendo mal do soldado […] ir tão cedo à erva a posto arriscado como era aquele antes que se descobrisse.

Assim como o soldado se foi assomar às portas das casas, para ver dentro se havia castelhanos, quando lhe saem de dentro dez castelhanos em dez cavalos […]. Apenas eles saíram da casa sobre o soldado, logo eu donde estava e mais o companheiro os vimos e montámos a cavalo muito depressa, tocando arma [disparando um tiro de aviso] e escaramuçando no outeiro, para que a companhia visse que havia inimigo. Mas a atalaia onde a companhia estava também os viu logo e tocou arma. Assim como o soldado viu o inimigo das casas, pôs-se em fugida pela estrada adiante, correndo quanto podia o cavalo, que não fazia mal sua obrigação, mas não lhe valeram suas diligências, que o apanharam no decurso da carreira, que ainda correria 200 passos, e assim como o apanharam, viraram com ele para casa como uns raios, tomando a estrada de Badajoz adiante, que era por onde se havia de mandar descobrir da atalaia. E eu e mais o soldado que estava comigo logo fomos pelo outeiro abaixo à rédea solta para seguirmos a partida, que já vinha a minha companhia pela atalaia abaixo como um raio, que como não havia ninguém que lhe lembrasse que naquelas casas se havia metido o inimigo, era causa para nos mover para seguir a partida, vendo se lhe podíamos tomar o soldado, quanto menos fosse, que a tenção do meu tenente era segui-la até à ponte do Caia.

(MMR, pgs. 163-165) – CONTINUA NO PRÓXIMO ARTIGO

Imagem: Cena de combate de cavalaria, óleo de Philip Wouwerman, 1645-46, National Gallery of Art.

O combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645) e o quadro do Marquês de Leganés – 2.ª parte: a narrativa de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz)

Do sucesso do Marquês de Leganés também faz eco o memorialista Mateus Rodrigues. A sua unidade, comandada por D. João de Azevedo e Ataíde, esteve envolvida nas operações de intercepção da força espanhola – aliás, sem sucesso.

O episódio das Vendas de Alcaraviça é referido pelo memorialista, neste caso não por tê-lo testemunhado, mas provavelmente por dele ter ouvido contar a terceiros. Segue-se uma transcrição vertida para a grafia actual:

Estando o inimigo nestas competências, […] lhe veio um aviso de uma espia dobre [ou seja, um espião que fazia jogo duplo, dando informações para ambos os lados], […] que as ordenanças de Évora estavam em Estremoz, e que vinham para Elvas tal dia. […] Pois o aviso era tão certo […], porque a mesma noite que o inimigo saiu, essa mesma veio a gente [da ordenança] a dormir às Vendas d’Alcaraviça, que são duas léguas de Estremoz. E ao outro dia se haviam de vir para Elvas, que são 4 léguas, de maneira que o inimigo entrou com a cavalaria por entre Elvas e Juromenha, e logo foi sentido na entrada. Mas não que se soubesse o poder que levava, senão pela manhã, que ele ia em grande marcha pela estrada abaixo de Estremoz. A gente de Évora já se queria vir, que estava já fora das estalagens para marchar. Vinha com eles por cabo [ou seja, comandante] um sargento-mor mesmo de Évora. E como o inimigo foi logo sentido por aqueles campos, iam muitos lavradores fugindo em éguas, dando avisos do inimigo. E tanto que o sargento mor da gente ouviu dizer que vinha o inimigo, meteu toda a gente, que eram 600 homens, todos em uma grande tapada, que estava ao pé das estalagens, com parede à roda, que dava pelos peitos a um homem, que se fora gente paga não houvera de investir com eles o poder do mundo. Mas aquela canalha, não servem mais que de beber, que são uns bêbedos, e o sargento-mor que vinha com eles outro tal, e pior ainda.

Assim como o inimigo chegou a um cabecinho que está à vista das mesmas estalagens e já muito perto, logo viu toda a gente metida na tapada. E assim como a viu formou-se mui bem e manda tocar as trombetas a degolar, e vai investindo com eles por duas ou três partes. E assim como averbou com eles, não puderam logo saltar os cavalos a parede, mas apearam-se uns poucos de castelhanos e fizeram logo uns por todos, que passaram os batalhões formados, e a tudo isto os bêbedos ia[m] fugindo cada um por onde podia, mas que lhe importava isso, que dos 600 homens que eram não escaparam 100, que deu o inimigo neles e foi degolando todos os que iam encontrando, até que se enfadou de matar e os mais trouxe prisioneiros, que matou mais de 200 homens e trouxe prisioneiros perto de 300. (MMR, pgs. 134-136)

Embora os pormenores não sejam muito nítidos nas fotos disponibilizadas pelo Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén (veja-se a 1.ª parte deste artigo), o quadro corrobora a descrição feita por Mateus Rodrigues. A infantaria portuguesa encontra-se formada em dois pequenos esquadrões (designação coeva para as formações tácticas de infantaria),  cujos blocos são exclusivamente constituídos por piqueiros. Os atiradores (quase certamente munidos de arcabuzes, como era frequente entre a ordenança) estão dispostos ao longo do muro que delimita a tapada, disparando sobre o inimigo. Uma parte da força portuguesa já está em fuga, após o dispositivo ter sido penetrado pela cavalaria espanhola. Como cada companhia tinha uma bandeira e no quadro se podem ver quatro (duas delas levadas pelos alferes em fuga, as outras nos respectivos esquadrões ainda formados), é possível que o terço da ordenança fosse composto por quatro companhias de 150 homens cada, o que mais uma vez confirma o efectivo de 600 homens referido nas fontes – e desmente o número exagerado (1.000) apresentado na legenda do quadro.

Imagem: pormenor da legenda do quadro mandado pintar pelo vitorioso Marquês de Leganés, onde o número dos portugueses derrotados é superior ao que as fontes escritas referem. Mas este exagero de propósito laudatório era comum no período.

 

 

 

Fortificações de Elvas classificadas como Património Mundial

Uma boa notícia: a UNESCO classificou, este sábado, as fortificações de Elvas como Património Mundial. Mais pormenores relativos a esta distinção podem ser lidos aqui.

http://www.publico.pt/Cultura/fortificacoes-de-elvas-classificadas-como-patrimonio-mundial-1552775

Imagem: Pedro de Santa Colomba, “Cerco de Elvas em 1659”, água-forte de 1662. BNL, Iconografia, E1090V.

A troca de prisioneiros (1ª parte) – o costume e as excepções

Já aqui foi referido o modo como usualmente se procedia à troca de prisioneiros (veja-se o sucedido a Mateus Rodrigues em Julho de 1651), ainda que sem aprofundar muito o assunto. As normas assentavam no costume e eram bem conhecidas do universo castrense:

– Em primeiro lugar, a libertação de um prisioneiro de guerra podia fazer-se através do resgate, comprando a liberdade a troco de dinheiro: de acordo com o posto de cada militar, entregava-se um mês de soldo e um determinado montante por dia.

– O segundo método era a troca directa de acordo com os postos: soldado por soldado, capitão por capitão, etc. Ficavam geralmente isentos deste estilo os oficiais generais de cada exército.

– O terceiro, e o mais praticado na Guerra da Restauração, deixava ao livre arbítrio dos vencedores o que fazer nas trocas de prisioneiros. A prioridade era dada aos que eram capturados em acções de guerra, e aqui, aos que o tinham sido com maior demonstração de valor e bravura, bem como aos de maior categoria social e postos na hierarquia militar; sem admitir que enquanto estes se não trocassem, pudesse haver quaisquer outras permutas. Em caso algum se devia permitir que se trocassem militares por civis, ou mesmo por outros militares que tivessem sido capturados fora das ocasiões de guerra. No entanto, havendo reféns de parte a parte por mútuo acordo (prática que não era invulgar na época, nomeadamente enquanto decorriam as negociações sobre as condições de rendição de uma praça cercada), essa troca tinha precedência sobre todas as outras.

O único entrave a esta prática, pelo menos durante os anos iniciais da guerra, era uma certa relutância da parte espanhola em aceitar a igualdade – em termos de estatuto beligerante – com os portugueses, considerados meros rebeldes. De resto, algo que já havia sucedido em relação aos holandeses, também nas etapas iniciais da Guerra dos 80 Anos. Com o tempo e a continuidade do conflito, porém, essa relutância foi desaparecendo.

Havia, no entanto, uma zona de sombra que acabava por escapar a todas estas “leis consuetudinárias da guerra”, e onde o livre arbítrio dos captores mais se sentia. Era o caso dos “traidores”, ou seja, portugueses ou espanhóis que tinham passado para o lado inimigo, renunciando ao seu soberano “natural” e passando a servir o outro. Pior ainda se serviam de guias nas incursões ao território vizinho. A captura, nestes casos, trazia sempre consigo o risco de condenação à morte e execução para o militar em causa, mas de parte a parte era usual uma certa cautela, com receio de uma escalada de actos de retaliação.

Um destes casos é tratado numa curta série de consultas e envolve três indivíduos capturados pelo exército do Alentejo durante o governo das armas do 2º Conde de Castelo Melhor. A primeira dessas consultas, datada de 27 de Julho de 1645, aborda o destino a dar aos prisioneiros, cuja detenção em Elvas, pela proximidade da fronteira, não era aconselhável. A transcrição é a seguinte:

O Conde de Castelo Melhor, governador das armas da província do Alentejo, escreveu por este Conselho a Vossa Majestade a carta inclusa, na qual diz que por outra do auditor geral que com ela remete a Vossa Majestade e também vai junta, ficará Vossa Majestade entendendo quanto convém que os prisioneiros nela declarados não estejam na cadeia da cidade de Elvas, nem tão pouco se troquem para Castela, ainda que os castelhanos nos asseguram que não hão-de trocar nenhum soldado nosso, senão entrando estes piratas no troco. Contudo, em sabendo que estão mandados trazer por ordem de Vossa Majestade a esta Corte se desenganaram, como têm feito com Sebastião Correia da Silva, que está no Limoeiro, e se da parte de Castela não exceptuaram no troco que nos propõem os prisioneiros que estão em Granada, Sevilha e Utreta, fora justo que lhes déssemos aos três declarados na carta do Auditor, pelo benefício que recebíamos em virem para este Reino os fidalgos e soldados que foram presos na batalha de Montijo; porém como os reservam, deve Vossa Majestade ser servido que de nossa parte se faça também esta demonstração.

Na carta do auditor geral que também escreveu a Vossa Majestade, de que a do Conde faz menção, diz que na prisão daquela praça de Elvas estão reteúdos há muitos dias João de Chaves, natural de Badajoz, Barnabé Martins, português, natural da Guarda, morador e casado em Telena, donde se foi para Badajoz, e Simão Antunes, português, natural de Elvas, casado em Badajoz, todos soldados de cavalos conhecidos por grandes piratas, que como naturais e práticos nos lugares daquelas fronteiras, serviam de guias para as pilhagens. A estes pediram por muitas vezes de Badajoz a troco de outros soldados, mas nunca os governadores das armas o Conde de Alegrete, Joane Mendes de Vasconcelos, e ora o Conde de Castelo Melhor, deferiram a seus trocos pelas informações que deles dava. E ultimamente se resolveram da parte de Badajoz em não admitirem trocas, como neles não entrassem os sobreditos, e assim têm por ora cessado as trocas. E por não convir ao serviço de Vossa Majestade que estes homens tornem a Castela pelo muito dano que causariam, se resolveu o Conde governador das armas mandá-los a Vossa Majestade com esta notícia, para que deles se não trate, e se desenganem da parte de Badajoz que com eles se não há-de praticar a troca, com que ficará cessando o inconveniente para os mais que não forem desta qualidade, sabendo que por ordem de Vossa Majestade estão exceptuados, com de sua parte tem feito com outros portugueses.

Sobre o que propõem nas cartas referidas o Conde de Castelo Melhor, governador das armas, e o auditor geral da província do Alentejo, para se haverem de trazer da cadeia de Elvas uns três prisioneiros que ali estão prejudiciais, e guias contra nossas praças, para a desta cidade, e instarem os castelhanos por eles de maneira que se resolvem a não haver de admitir mais troca alguma enquanto se lhes não conceder a destes três por eles nomeados. Pareceu ao Conselho dizer a Vossa Majestade que os ditos três prisioneiros, e quaisquer outros que haja desta qualidade, se mandem vir logo para o Limoeiro [prisão em Lisboa, perto da Sé], e que Vossa Majestade se sirva de mandar que os governadores das armas tenham forma geral com que devem proceder nas trocas de uns com outros prisioneiros.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, consulta de 27 de Julho de 1645.

Imagem: “O ataque ao comboio”, óleo de Pieter Post.

Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira – Julho de 1646 (manuscrito inédito, 2ª parte)

Ao sábado houve nesta cidade muitas luminárias pelo bom sucesso. Ao domingo veio o inimigo com esse poder que tinha aos olivais desta cidade, mas como gosta pouco dos marmelos e azeitonas de Elvas, não os quis chegar a provar, e assim se foi sem gastarmos um grão de pólvora. Amanhecendo para a segunda-feira, estava eu à janela pelas três depois da meia-noite, e fazia muito formoso luar, veio alguma cavalaria pelo caminho que tinha ido a nossa gente.Três sentinelas que estão defronte desta cela lhe[s] perguntaram duas vezes quem eram, sem responderem, disseram-lhe que não esperassem a terceira, que havia de ser com pelouro, responderam que amigos. Perguntaram-lhe de que tropa, e se vinha ali o capitão, que falasse, como fez, e com estas circunstâncias passaram até à porta de Olivença. Adormeci, e dadas quatro horas acordei ao estrondo da artilharia e mosquetaria, assim de fora como dos muros, de maneira que cuidei que o inimigo atacara a praça, porque os pelouros de uma e outra parte cruzavam os ares. Os nossos que iam chegando festejando a cidade, e a cidade a eles, e como passavam Chinchas logo iam descarregando, e não se viam senão bocas de fogo e ruído de pelouros. Santa Luzia fez a última festa e não lhe faltavam luzes de artilharia e mosquetaria. A primeira coisa que enxerguei foi a carruagem, e tinha passado a mais da infantaria. Logo vinham as peças e depois a cavalaria. A gente que foi a esta facção foram quatro mil e quinhentos infantes e mil cavalos. Quando partiram de Arronches, que foi domingo pelas três da tarde, tiveram histórias Dom Rodrigo [de Castro, governador da cavalaria] e Dom João [de Mascarenhas, tenente-general da cavalaria] sobre a vanguarda, que dizia Dom Rodrigo que a ele pertencia, e Dom João que a sua tropa havia de vir de vanguarda, que pertencia a quem fez a facção. E estas mesmas histórias tiveram na cidade diante de Joane Mendes, e Dom João disse que assim o aprendera na escola de Flandres, e o outro na de Alentejo. O caso foi que D. João lançou no meio da sala o bastão, e disse que não havia de servir com Dom Rodrigo. Joane Mendes avisou a Sua Majestade do que se passava, e ontem, além do ordinário lhe vieram dois de cavalo, um trás doutro, e um deles era para que informasse o que havia no caso, para se compor. O inimigo, quando deixou Elvas, foi correr os campos de Vila Viçosa e Redondo, soou que a ninguém deram quartel, e que à vista de Telena mataram todos a sangue frio. Foi o caso que chegando ali com a presa e prisioneiros, viram vir algumas tropas da parte de Badajoz, e os castelhanos largaram a presa, e os nossos, cuidando o que eles cuidaram, se foram meter com as tropas que vinham, cuidando ser nossas, sendo elas de Castela. E dizendo os nossos “Viva El-Rei Dom João” foram mortos quatro ou cinco, e um castelhano cuidando ser português. Contudo, e pelas mais mentiras que acerca disto se disseram, se mandou Joane Mendes queixar por uma carta a Badajoz. Mandaram-lhe dezassete dos que tinham levado, que não eram soldados, e ele lhe[s] mandou também os que não eram soldados que tinham vindo de Santa Marta e da Codiceira. O capitão da Codiceira, com os mais soldados, está na cadeia, e não chegará a dezoito anos. Eu dormi domingo na cadeia com um português de Tomar, que à segunda[-feira] arrastaram, enforcaram e esquartejaram, porque foi a Badajoz assentar praça e esteve lá quatro meses, e vinha cá por sua espia. Um nosso português que está prisioneiro em Badajoz matou a um capitão nosso que estava do mesmo modo, estando dormindo; mandou o fronteiro de Badajoz, que é um N. de Enguiem, que se cá não determinassem alguma coisa acerca daquele caso, que também lá havia justiça.

Sábado fez oito dias que veio um homem de Juromenha com um cavalo buscar o reitor de São Paulo para lá pregar, quando foram acharam dois castelhanos de cavalo, que lhe apanharam o em que ia, e dois mil réis que levava, e se foi uma légua a pé.

Ontem de noite entraram nesta cidade treze canhões dos que estavam em Estremoz. Toda a gente paga do Reino vem a esta praça, e os corregedores vêm comboiando a de suas comarcas com as mulas que há. (…) Elvas, em 8 e 9 de Agosto de 1646.

O episódio do desentendimento entre D. Rodrigo de Castro e D. João de Mascarenhas encontra-se bem documentado e foi por mim estudado a propósito do quadro mental do combatente e a definição das hierarquias (O Combatente na Guerra da Restauração… pgs. 122-123). Quanto ao caso dos prisioneiros de guerra, das trocas e do destino a dar aos que eram acusados de traição, será o tema de próximos artigos.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relação da tomada de Santa Marta, e Codeceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo P.e Fr. do Teixozo Religioso capucho assistente na mesma cidade”, fls. 74-76.

Imagem: “Corpo de guarda”, óleo de Mathieu Le Nain.

Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira – Julho de 1646 (manuscrito inédito, 1ª parte)

Dando continuidade à transcrição de alguns manuscritos portugueses do códice mss. 8187 da Biblioteca Nacional de Madrid – e prosseguindo também o que Juan Antonio Caro del Corral deixou aqui escrito a respeito do ano de 1646, que foi repleto de acontecimentos bélicos, passo a apresentar a transcrição de uma relação sobre as operações militares na província do Alentejo em Julho de 1646.

Relação da tomada de Santa Marta e Codiceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo padre Fr[ancisco?] do Teixozo, religioso capucho assistente na mesma cidade

Foram oitocentos cavalos e quatrocentos infantes a Santa Marta, seis léguas de Badajoz e sete de Olivença, atacaram a praça sem perigo, mandaram a gente que se fosse e derrubaram-lhe algumas casas, fizeram presa em alguns burros e outras coisas semelhantes, alguns deram com batacas [patacas] e outros com quartos [moedas espanholas de real] que espalharam, e outros com melhores coisas que calaram, o certo é que a ida foi de perda para Sua Majestade, e de nenhum proveito, porque a calma era grande e alguns cavalos abafaram e outros aguaram, e os inimigos com sua cavalaria tomaram os nossos nas serras de Valverde, os quais, por pelejar, largavam esse pouco que traziam, dos quais alguns foram mortos, porque não podendo marchar com a calma se ficavam às sombras. Um furriel nosso que os castelhanos mal feriram [ou seja, que feriram com gravidade] e deixaram por morto e despido porque não se quis render, depois se veio em camisa a Olivença, e escapa.

Quarta feira 24 de Julho, dia de Santiago, pelas seis horas da tarde, saiu Dom João [de] Mascarenhas com seiscentos cavalos, e André de Albuquerque com quatrocentos infantes, um é tenente-general da cavalaria e o outro general da artilharia, saíram pela porta dos banhos com suas mulas de carruagem, vieram entre o castelo e a ribeira de Chinchas e a passaram por baixo de Nossa Senhora, e logo a tornaram a passar para a cidade. E chegou toda esta gente onde foi a porta de Évora, por cima da Lameda, e dando sua salva de bastardas tornou a desavisar o mesmo caminho, e passou Chinchas pelo caminho de Portalegre, e tornou logo a voltar, ocupando o mesmo posto da porta de Évora, onde fez noite, e desapareceu sem saberem para onde. Na mesma noite se ajuntou no lugar que largou Dom João toda a mais gente da cidade, e a de Olivença com muita carruagem e quatro peças de campanha, e eu confesso que o mais do tempo depois de matinas estive à janela e que não ouvi reboliço algum, só por algumas vezes rinchar [relinchar] um cavalo. Pela manhã começou esta gente a marchar caminho de Arronches, que era o que tinha levado já Dom João a cavalaria, logo duas peças de campanha, muita infantaria, seguiam-se outras duas peças e logo a carruagem, que seriam quinhentas ou seiscentas cavalgaduras com dez mil pães, afora o biscoito, e por retaguarda a tropa de Dom Rodrigo [de Castro – ou seja, a companhia da guarda do governador da cavalaria]. Aquele dia chegaram a Arronches, e Dom João pelas onze da noite à Codiceira, e a sentinela em um cascalho que há antes de chegar sentiu os nossos, e quando chegaram lhe[s] perguntou quem eram e que fizessem alto. E lhe responderam em castelhano que amigos, e que se queriam chegar ao castelo porque o inimigo andava em campanha, repreendendo-os porque dormiam tanto. Neste tempo estavam pondo petardo, por isso o entretinham com palavras, e vindo outro nosso, e não querendo fazer alto, senão chegar-se aos outros, lhe tirou um com um mosquete e o matou, posto que também lhe falou em castelhano. Deu-se logo fogo ao petardo que foi posto no postigo, e o postigo foi fazer em pedaços a segunda porta que era de grade, e os nossos entraram e quebraram com os ombros outra porta de estacada, e encontraram já o capitão em ceroulas e descalço, que estava com a cria à ilharga. Nisto chegou toda a gente de Dom João, e não houve mais que outro morto nosso, de uma pedra que lançaram do muro, de muitas, e muito grandes, que por cima tinha. E com isto ficaram os nossos senhores do castelo e vila. Começava Joane Mendes [de Vasconcelos] a marchar de Arronches para a Codiceira quando lhe chegou nova do feito, escreveu a Sua Majestade se se havia de presidiar o castelo, mandou que fosse tido assolado. Levou dali gastadores e foi com toda a gente e o minou, e dando-lhe fogo não ficou pedra sobre pedra. Era o castelo quadrado e tinha quatro torres nos cantos, que descortinavam ao longo dos muros, e se os treze castelhanos estiveram alerta, não sei se o tomaram os nossos, porque logo lhe veio socorro de Albuquerque, que está uma légua, e não havendo canhões era muito forte. E os nossos, se não usaram da traça e os castelhanos não foram tão sonolentos, não se havia de chegar a pôr o petardo. O mesmo se fez à vila, tirando a igreja e casa do cura, que posto tinha muita fazenda, se não buliu nelas, e o Bispo de Badajoz mandou dizer ao cura que, se aqueles senhores quisessem presidiar o castelo e não trouxessem capelão, os servisse, e se o trouxessem, se fosse. Ficaram muito contentes com o bom quartel que se deu á gente. No castelo havia muitos panos, e nos pisões e moinhos, que tudo ficou assolado, e muito trigo pelas eiras, e nas hortas muita fruta, de que os de Arronches se aproveitaram. Vieram os nossos para Arronches e um soldado entrou numa horta, colheu um pepino, e levando-o à boca lhe tirou o senhor dela com uma espingarda e o matou; outro, por entrar numa vinha, foi escopeteado. 

(continua)

Realce-se os curiosos factos narrados no final desta primeira parte – a defesa da propriedade privada por parte dos civis, qualquer que fosse a nacionalidade dos soldados que a violassem, chegando-se a extremos de violência e ao assassinato. Nos casos referidos, recorrendo a armas de caça (espingarda e escopeta). Este ódio entre civis e militares, tão característico da actividade bélica do século XVII (e de toda a Era Moderna, aliás), é ilustrado por muitos e variados exemplos nas fontes narrativas e documentais durante a Guerra da Restauração.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relação da tomada de Santa Marta, e Codeceira, e outros sucessos da fronteira de Elvas, escrita pelo P.e Fr. do Teixozo Religioso capucho assistente na mesma cidade”, fls. 74-76.

Imagem: “Soldados em repouso numa estalagem”, óleo de Jean Michelin (c. 1616-1670), Museu do Louvre.

A tentativa de tomada de Badajoz pelo 2º Conde de Castelo Melhor, segundo uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama (1645) – 2ª parte

Conclui-se aqui a transcrição da carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama:

Eu levava à minha conta pôr o petardo principal,e o efeito dele devia ser sinal para se investir pelas outras partes. E com estes fundamentos, que pareceram bastantes para se intentar a facção, deu o Conde de Castelo Melhor conta a Sua Majestade e lhe perguntou se queria que se obrasse. Sua Majestade respondeu que sim, escrevendo uma carta ao Conde e pondo quatro regras de sua mão. Dizia que tomando-se a cidade, ele partia logo de Lisboa com todo o socorro possível, e que da Beira, Trás-os-Montes, Entre-Douro-e-Minho e Algarve mandava vir gente paga, para que de tudo se formasse um exército capaz de defender Badajoz e fortificá-lo, e que por todo o Reino mandava fazer orações para o bom sucesso da jornada. Com a resolução de Sua Majestade se preveniu tudo para o último de Julho marcharmos, e ao amanhecer dar em Badajoz. Mandou-se ordem à gente de Olivença e à de Campo Maior, para que se ajuntasse em Telena, que [é] légua e meia desta praça e duas de Badajoz pelo caminho por onde íamos. Começámos a marchar desta praça para Telena e três peças de artilharia que levávamos, e outras carroças com ferramentas e as escadas, quebraram tantas vezes, que com as consertarem e passagem do rio, chegámos a Telena uma hora antemanhã [isto é, antes do amanhecer], e não poderíamos chegar a Badajoz senão com duas ou três de dia, e como a ordem de Sua Majestade era chegando de dia não acometêssemos a praça, nos retirámos cada um para a praça donde tinha saído. E Dom Rodrigo de Castro foi com a cavalaria a correr o campo de Xerez de los Caballeros, donde trouxe novecentas vacas.

Este é pontualmente o sucesso da jornada de Badajoz. os motivos com que se intentou e os defeitos por que se não executou. Os castelhanos não tiveram notícia nenhuma de nossa jornada, nem souberam que havíamos marchado senão a dois de Agosto, que acaso vieram a Telena e viram a trilha da gente que ali havia estado.Todos os que têm vindo de Badajoz depois disto, assim castelhanos como portugueses, dizem que tomávamos a praça sem dúvida nenhuma, e isto mesmo disse Jorge de Melo e Dom Diogo de Meneses e o Conde de Santa Cruz. Queira Deus termos guardado esta empresa para melhor ocasião. Os castelhanos depois disto têm crescido a infantaria, e têm seis mil homens e dois mil e quinhentos cavalos, e a nossa cavalaria consta só de mil e cento, com que nos levam uma grande vantagem.

Haverá sete dias que o capitão de cavalos Francisco Barreto, filho natural de Francisco Barreto, único filho do morgado de Quarteira, que estava alojado com a sua companhia em Arronches, fez uma emboscada a uma companhia de infantaria que de Albuquerque vem todos os meses mudar o presídio da Codiceira, e deu nela de repente e matou trinta castelhanos e trouxe dezanove prisioneiros com as armas de todos, e as cavalgaduras em que traziam a bagagem. Eles se quiseram vingar e nos vieram aqui armar uma emboscada da outra parte de Guadiana, ainda na sua terra, e mandaram vinte cavalos que viessem tomar o gado. A nossa companhia de cavalos que estava de guarda no campo mandou alguns atrás deles, os quais, contra a ordem que levavam, passaram o rio. O inimigo, em nos vendo da outra parte, carregou sobre eles, e como levavam os cavalos cansados de correr tanto, não se puderam livrar todos, e ficaram prisioneiros doze e o tenente de  Dom Vasco Coutinho. Ficaram mortos dois. E quando fomos saindo desta cidade, se foi o inimigo retirando logo.

De Olivença saíram oito soldados de cavalo a tomar língua, e encontrando-se com trinta soldados que iam para Badajoz de uma leva, os prenderam e trouxeram todos a Olivença.

Isto é o que por cá há estes dias, e do mais que houver avisarei a Vossa Mercê. A Relação da Índia folgarei muito de ver, ainda que é grande o mal que ali nos têm feito os holandeses.

Ao senhor Chantre beijo as mãos e a Vossa Majestade Deus guarde como desejo. Elvas, 12 de Setembro de 1645. João de Saldanha

A propósito de Francisco Barreto de Meneses, que João de Saldanha refere na parte final da sua carta, assinale-se o estudo de José Gerardo Barbosa Pereira, A Restauração de Portugal e do Brasil. A Figura de Francisco Barreto (ou Francisco Barreto de Menezes), texto policopiado, dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2001. Francisco Barreto partiria para o Brasil em 1647 e aí viria a comandar o exército que derrotou os holandeses nas duas batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), o que lhe valeu o epíteto de “Restaurador de Pernambuco”. Em Portugal, a sua participação na Guerra da Restauração decorreu no Alentejo e na Beira, como capitão de infantaria do terço do mestre de campo David Caley, tendo demonstrado valor para ser promovido a capitão de cavalaria em 13 de Abril de 1644 e posteriormente a mestre de campo. Distinguiu-se especialmente no ataque à praça de Valença de Alcântara onde recebeu vários ferimentos em combate.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Interpreza intentada contra Badajoz a 31 de Julho”, fls. 36-37 v.

Imagem:”Cerco de uma cidade”, óleo de Peter Snayers.

A tentativa de tomada de Badajoz pelo 2º Conde de Castelo Melhor, segundo uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama (1645) – 1ª parte

A fracassada tentativa de João de Vasconcelos e Sousa, 2º Conde de Castelo Melhor e governador das armas do Alentejo, de tomar Badajoz em 1645, é um episódio bem conhecido da Guerra da Restauração. Além da narrativa do Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado, outros documentos impressos, nomeadamente as Cartas dos Governadores da Província do Alentejo… publicadas em 1940 por P. M. Laranjo Coelho, se referem a esse empreendimento bélico frustrado (ou sabotado pelos inimigos internos do Conde) ainda na fase de aproximação ao objectivo – mais por malícia, que por descuido, segundo escreveu o Conde de Ericeira. Também o soldado Mateus Rodrigues se refere, nas suas memórias, à incompleta campanha do desafortunado Conde, na qual participou.

Uma outra descrição da operação manteve-se até agora inédita. Trata-se de uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama, comandante de um terço de infantaria, escrita ao chantre da Sé de Évora, Manuel Severim de Faria – não é referido o nome do destinatário na carta, mas o contexto dos restantes manuscritos permite identificá-lo, com razoável certeza. Uma cópia (treslado, na designação comum do período) da carta encontra-se na Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, que em boa hora o prezado amigo Julián García Blanco me fez chegar às mãos. É essa carta que aqui se apresenta, modernizada na grafia, e que por ser algo extensa ocupará dois artigos.

Beijo a mão a Vossa Mercê pela mercê que me faz nesta sua carta, pois além do interesse que tenho de boas novas suas, me mostra o caminho de as procurar, o que farei sempre como tão interessado nelas, e com a certeza deste portador não se perderão as cartas, como devia suceder à que escrevi a Vossa Mercê sobre Badajoz, pois não chegou às suas mãos, e assim torno a referir a Vossa Mercê os motivos que houve para se intentar a jornada. Badajoz é uma praça de grande circuito, tinha quatrocentos soldados pagos e os moradores da cidade faziam as guardas das portas e as sentinelas da muralha, os quais ordinariamente as não fazem com o cuidado necessário. Havia mais quatrocentos cavalos. O Marquês de Leganés estava doente. As portas da cidade eram direitas, e só com uma porta singela e sem rastilho, todas eram nove, quatro grandes e cinco pequenas que caíam para a parte do rio. A muralha toda sem flancos e pela parte por onde havíamos de cometer muito baixo. Dentro nela grande quantidade de moradores portugueses, e muitas mulheres e gente inútil. Todas estas coisas, e o desunido e segurança com que estava o inimigo ajudavam a se poder conseguir a entrepresa. As notícias de tudo isto se souberam por diferentes pessoas, línguas que se tomaram, prisioneiros que vieram, um português que ali vivia há muitos anos, que se passou para nós e um capitão castelhano, que por uma morte que lá fez se veio também a esta praça. E para maior segurança de tudo, foi daqui um sargento nosso feito almocreve a reconhecer tudo muito bem, e também um criado meu entrou lá do mesmo modo, e reconheceu as portas e o corpo da guarda, e fez as plantas de tudo. Também um engenheiro francês que ficou prisioneiro na batalha de Montijo, esteve prisioneiro sete meses sem saberem que era engenheiro, nos deu notícia de tudo. Nós tínhamos seis mil homens nestas três praças de Elvas, Olivença e Campo Maior, e mil cavalos que se podiam ajuntar com grande segredo, como se fez. Havíamos de cometer por três partes, com o grosso da gente por duas partes com os petardos, e pela muralha baixa com as esquadras; e pelas outras cinco partes da muralha se haviam de tocar armas mui rijas, para que não soubessem os de dentro por que parte lhe haviam de entrar. E como eram tão poucos, não podiam guarnecer as muralhas, ainda estando todos prevenidos, e quanto mais tomando-os nós nas camas sem sermos sentidos.

(continua)

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Interpreza intentada contra Badajoz a 31 de Julho”, fls. 36-37 v.

Imagem: Porta de Palmas, em Badajoz. Foi provavelmente por esta porta que passaram os espiões disfarçados de almocreves, a fazer o reconhecimento para a intentada operação de tomada da cidade. Fotografia retirada do blog Puertas de Badajoz, de Julián García Blanco.

Infantaria do Exército da Província do Alentejo em Maio de 1663

Um dia depois de D. Juan de Áustria ter saído de Badajoz com o seu exército, abrindo a campanha do Alentejo de 1663, era remetida ao Conselho de Guerra em Lisboa a lista da infantaria de que dispunha o exército daquela província. Quase 13.000 homens repartidos por oito praças, efectivos cuja junção levaria vários dias a concretizar-se, impedindo assim que fosse barrada a marcha ao exército espanhol que rumava à conquista de Évora.

As praças e as unidades nelas estacionadas eram as seguintes:

Estremoz

Terço da Armada, do mestre de campo Simão de Vasconcelos e Sousa (irmão do 3º Conde de Castelo Melhor, o Escrivão da Puridade e valido do rei D. Afonso VI) – 825 homens, dos quais 87 de baixa por doença.

Terço do mestre de campo napolitano D. Pedro Opecinga476 homens, dos quais 52 de baixa por doença.

– Terço do mestre de campo Tristão da Cunha de Mendonça287 homens, dos quais 9 de baixa por doença.

– Terço do mestre de campo Roque da Costa Barreto418 homens, dos quais 40 de baixa por doença.

– Terço do mestre de campo Lourenço de Sousa508 homens.

– Terço pago de Trás-os-Montes310 homens.

– Terço pago do Algarve457 homens (faltavam ainda 3 companhias, que eram esperadas em Estremoz).

– Terço de Auxiliares de Santarém310 homens.

– Terço de Auxiliares de Vila Viçosa212 homens.

– Regimento de Ingleses do tenente-coronel Thomas Hunt694 homens, dos quais 45 de baixa por doença.

– Regimento de Ingleses do coronel James Apsley495 homens.

Companhias soltas de Italianos263 homens, dos quais 26 de baixa por doença.

Vila Viçosa

– Terço do mestre de campo D. Diogo de Faro279 homens.

– Terço do mestre de campo João Furtado de Mendonça543 homens.

Elvas

– Terço do mestre de campo Francisco da Silva de Moura734 homens.

– Terço do mestre de campo Fernando de Mascarenhas 550 homens.

Campo Maior

– Terço do mestre de campo Pedro César de Meneses462 homens.

– Terço do mestre de campo francês Jacques Alexandre de Tolon360 homens.

– Terço pago de Cascais532 homens.

– Terço de Auxiliares de Avis350 homens.

Portalegre

– Terço do mestre de campo Alexandre de Moura630 homens, dos quais 130 de baixa por doença.

– Terço de Auxiliares de Portalegre 400 homens.

(Na altura da elaboração da lista, tinha chegado a Portalegre o terço pago da Beira, cujo efectivo ainda não fora contabilizado.)

Mourão

– Terço do mestre de campo Martim Correia de Sá350 homens.

– Terço do mestre de campo Miguel Barbosa da Franca501 homens.

– Terço de Auxiliares de Évora541 homens.

Moura

– Terço de Auxiliares de Campo de Ourique600 homens.

– Terço de Auxiliares de Beja350 homens.

Castelo de Vide

– Terço de Auxiliares do Priorado do Crato320 homens.

A distribuição dos militares por praças era a seguinte:

Estremoz – 5.469 (dos quais 1.259 doentes).

Vila Viçosa – 822.

Elvas – 1.284.

Campo Maior – 1.704.

Portalegre – 1.030 (dos quais 130 doentes).

Mourão – 1.392.

Moura – 950.

Castelo de Vide – 320.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1663, maço 23, “Lista da infantaria que se acha nas praças desta prouincia de Alentejo em 7 de Maio 663”.

Imagem: Mapa da Província do Alentejo, c. de 1700. Biblioteca Nacional.

The Municipal Administration in Elvas During the Portuguese Restoration War (1640-1668) – artigo online, em inglês

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Apesar de este artigo estar disponível on-line apenas na língua de Shakespeare, o seu interesse levou-me a incluir aqui a ligação para o mesmo.

FONSECA, Teresa, “The Municipal Administration in Elvas During the Portuguese Restoration War (1640-1668)”, in e-Journal of Portuguese History, Vol. 6, nº 2, Porto, 2008.

O resumo do artigo em língua portuguesa encontra-se aqui.

Imagem: “A carta recusada”, quadro de Gerard Terborch, 1655. Note-se no pormenor do trombeta, à esquerda.

Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (5ª parte)

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Os preparativos

D. João da Costa estava impaciente para iniciar a operação que iria conduzir – assim pensava ele – à tomada da importante praça da Extremadura. João Leite de Oliveira refere que, como o Guadiana ia cheio e impossível de passar a vau, o mestre de campo general

(…) mandou com muita pressa obrar em Juromenha uns batelões para passar a gente com brevidade, dos quais o inimigo teve notícia, e começou a andar com cuidado, tomando línguas todos os dias [“tomar língua” significava capturar paisanos ou soldados do inimigo, a fim de obter informações]; e também entre nós se rompeu [ou seja, surgiram os rumores], pela novidade das barcas, que havíamos de fazer alguma jornada para aquela parte de Olivença (…). (Relação…, pg. 181)

Difícil manter o sigilo, de um e de outro lado da fronteira. D. João da Costa considerou então que aquele era o melhor momento para se ausentar para Lisboa, onde iria contrair matrimónio, aproveitando também para dar conta ao Rei do andamento do negócio de Badajoz. A viagem e o motivo dela (o casamento) teriam o efeito de despistar as intenções de que algo de grande se estava a preparar. Mantiveram-se, no entanto, os contactos entre o tenente-general e os sargentos, pois de Lisboa continuava D. João da Costa, por meio de correios, a ser informado e a dar ordens. Ficou combinado que o novo encontro entre o mestre de campo general, entretanto elevado a Conde de Soure, e os sargentos teria lugar na noite de 12 para 13 de Março, em Elvas.

Foi aí que ficou tudo decidido. Com o pretexto de que seria necessário infiltrar novamente João Leite de Oliveira no castelo, com a desculpa de que o tenente-general não tinha conseguido ver, da primeira vez, todas as particularidades do local, D. João da Costa acordou com os sargentos que o militar português repetiria aquele feito na noite de 21 de Março, uma quinta-feira. Por precaução, foi dito aos sargentos que o tenente-general iria acompanhado apenas por uma outra pessoa. Mesmo nesta fase adiantada, temia-se que os sargentos fizessem jogo duplo, e não se lhes revelou que a operação estava em marcha.

Movem-se as peças

Portanto, a intenção dos portugueses era outra. Relata João Leite de Oliveira que a 19 de Março

(…) estava o mestre de campo [general] com as portas de Elvas fechadas, gente amunicionada [ou seja, milicianos de auxiliares] e tudo pronto para quarta-feira, 20 do [mês de Março] (…) se meterem em Olivença com tudo, e eu saí no mesmo dia desta vila de Estremoz com 400 cavalgaduras para entrar no mesmo dia em Olivença, de onde havíamos de sair à quinta-feira, dia de São Bento, e eu marchava diante com 500 soldados escolhidos de todo o exército, com os capitães de maior opinião e dois sargentos-mores, engenheiros, um tenente-general da artilharia, condestáveis [posto equiparável a furriel, na artilharia] e artilheiros com cartuchos feitos, granadas, lanças de fogo, e todos os mais apetrechos.

E atrás de mim marcharia o senhor mestre de campo general com tudo o mais, e perto do moinho [o habitual ponto de encontro, a caminho de Badajoz] onde havia de esperar o sargento, me havia eu de adiantar com cinco ou seis homens, e achando-o (…) lhe havia de declarar tudo o que levava, fingindo que não queríamos mais dilatar o negócio, e assim que fossemos à meia-lua, como da outra vez, e fingíssemos o mesmo, ou outra coisa que lhe parecesse por amor [ou seja, por causa] das sentinelas, no que ele veria sem dúvida, e entrando eu com três ou quatro homens na meia-lua com adagas nas mãos, pressionaríamos as duas sentinelas, que no castelo não havia outras para aquela parte; o que feito, me não era dificultoso meter os 500 homens, e metidos eles me podia sustentar dentro vinte dias, por ser um castelo fechado por si com muito boas muralhas, e dentro muito biscoito e munições, e fora dele não tinha o inimigo nenhuma, e a muralha para a parte da cidade era capaz de se pôr nela bateria contra a cidade, por o castelo lhe ficar superior. (Relação…, pg. 182)

Era este o plano. Todavia, não se concretizou, pois no dia 19, já com tudo preparado para a marcha, vieram dois rapazes castelhanos, que se tomaram por línguas pela parte de Campo Maior, os quais disseram que naquela manhã se havia mandado chamar de Badajoz a cavalaria com pressa, e já quando saíram tinham entrado duas ou três companhias (Relação…, pg. 182). D. João da Costa decidiu suspender tudo, não sendo conveniente fazer a marcha, pois mesmo que o inimigo não soubesse do intento dos portugueses (como não sabia), bastaria estar alerta e ter batedores espalhados pelos campos, para que toda a esperança de sucesso da operação se perdesse. Soube-se posteriormente que todos aqueles cuidados da parte de Badajoz tinham ficado a dever-se à informação (provavelmente originada em línguas tomadas por cavaleiros espanhóis, ou por intermédio de espiões) que os portugueses estavam a concentrar tropas; mas quando os espanhóis tomaram mais línguas para a parte de Olivença, sossegaram com as notícias de que, afinal, não havia novidade e tudo estava calmo. Assim, despediram da cidade as companhias de cavalaria que apressadamente tinham mandado chamar.

João Leite de Oliveira voltou a contactar o sargento, para lhe dizer o motivo pelo qual tinha faltado ao encontro na noite combinada. E ficou ajustado que o novo encontro (e a nova ida ao castelo) teria lugar na noite de Domingo de Pascoela. O tenente-general deu mais alguns dobrões ao sargento e recomendou-lhe que não fosse mais gastador do que o costume, para não levantar suspeitas.

Entre os portugueses, era tempo de repetir os preparativos para a operação. Mas a deusa da Fortuna tinha outras intenções a respeito de Badajoz…

(continua)

Imagem: O rio Guadiana junto a Juromenha. Foi aqui que se fizeram os batelões para passar as tropas para o lado de Espanha, conforme se refere no texto. Foto de Jorge P. de Freitas.

Badajoz, 1652 – a intentona frustrada (1ª parte)

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É quase desconhecida a tentativa de tomada de Badajoz pela traição, nos inícios de 1652, por parte dos portugueses. Praça-forte fundamental do sistema defensivo da fronteira extremenha, tal como Elvas o era para o Alentejo, Badajoz correspondia à congénere portuguesa do Alentejo na importância e inexpugnabilidade. Tal como os cercos que Elvas sofreu, também os que os portugueses puseram ou tentaram pôr a Badajoz não resultaram. Um deles, previsto em 1645, não se concretizou por contratempos vários, quando o exército comandado pelo 2º Conde de Castelo Melhor já marchava para o objectivo. Em 1658, Joane Mendes de Vasconcelos (o mesmo que treze anos antes se pronunciara contra tão arriscada aventura) montou um desastroso cerco a Badajoz, em resposta à perda de Olivença no ano anterior. O que quase se perdeu, no rescaldo, foi o exército do Alentejo. E temeu-se pela sorte da guerra quando, nos finais desse ano de 58, D. Luís de Haro foi cercar, por sua vez, a cidade de Elvas. Mas também essa tentativa fracassou.

A solução da traição foi sempre procurada por ambos os lados em conflito, de forma a conseguir tomar uma praça importante, de surpresa e sem esgotamento de meios bélicos. Em Janeiro de 1652 proporcionou-se ao mestre de campo general do Alentejo (que desempenhava também, interinamente, o governo das armas) D. João da Costa, a possibilidade de alcançar esse feito no que respeitava a Badajoz. Para além da menção que ao episódio se faz na História de Portugal Restaurado, do 3º Conde de Ericeira, existe na secção de Reservados da Biblioteca Nacional de Lisboa um relatório detalhado do tenente-general da artilharia João Leite de Oliveira, publicado pelo coronel Horácio Madureira dos Santos (Cartas e outros documentos da época da Guerra da Aclamação, Lisboa, Estado-Maior do Exército, 1973, pgs. 179-184); o tenente-general tomou parte activa na operação e chegou a entrar, sob disfarce, em Badajoz. Ao relatório deste oficial junta-se um capítulo do manuscrito de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), em que o soldado de cavalaria narra o que ouviu contar da boca de João Dias de Matos , então furriel e intrépido espião que se infiltrou em Badajoz, preparando os pormenores da traição (poucos anos depois, sendo tenente da companhia de D. Luís de Meneses, este João Dias de Matos desertaria para o inimigo; e já como capitão de cavalos do exército de Filipe IV, preparou e levou a bom termo a tomada – também pela traição – da praça de Olivença). Todavia, Mateus Rodrigues erra na data do episódio, situando-o um ano mais cedo do que efectivamente se passou. Mas a sua narrativa contém pormenores mais rocambolescos do que o relatório oficial de Leite de Oliveira. Para completar este pequeno leque de fontes primárias, existe o relatório da confissão de um dos militares do exército espanhol envolvidos na traição (Arquivo Geral de Simancas, Sección Guerra Moderna, Legajo número 1822). Chegou-me ao conhecimento por via do estimado amigo Juan Antonio Caro del Corral, investigador e autor, que já teve a grata amabilidade de me permitir aqui publicar algumas das suas excelentes pesquisas, e a quem renovo os meus agradecimentos por tão preciosa ajuda.

Prelúdio à traição

O relatório de Leite de Oliveira principia pela tomada de prisioneiros do exército espanhol (ortografia e pontuação actualizadas para português corrente):

Em 26 de Janeiro [de 1652] se fizeram prisioneiros cinco pilhantes de pé, entre os quais vinha um sargento da companhia do mestre de campo o Conde de Torregon; estes estavam na estrada de Juromenha para fazerem nela alguma pilhagem, foram descobertos dos pastores que os fizeram prisioneiros e trouxeram a Elvas. Nas perguntas que lhe fiz das cousas de Castela, catequisei o sargento, dizendo-lhe que era um soldado pobre, que sua miséria o obrigava às pilhagens a pé, que nos quisesse dar alguns avisos e fazer algum serviço a El-Rei de Portugal, que com isso podia conseguir muito proveito, e livrar-se da miséria em que vivia.

Isto [se] passou entre nós, sem estar outra pessoa presente, ao que me respondeu depois destas promessas que ele não só nos queria dar avisos, senão que se atrevia a entregar o castelo de Badajoz, aonde ele era costumado entrar de guarda cada cinco noites, porém que sempre lhe era necessário comunicar este negócio com um seu camarada, também sargento, de uma companhia do mesmo terço, o qual era natural do país de Flandres, e este era galego de nação. (“Relação…”, in Madureira, pg. 179)

O sargento galego chamava-se Alonso de Castro e o flamengo, com quem queria combinar o assunto da traição, chamava-se Alejandro Perez e nascera em Cambrai, conforme consta da confissão deste, feita sob tortura (AGS, Guerra Moderna, Leg. nº 1822). Na versão do manuscrito de Mateus Rodrigues, eram estes sargentos grandes amigos e camaradas, cujas companhias estavam sempre efectivas de guarnição no castelo de Badajoz, sem se mudarem, e teriam combinado ambos virem às pilhagens a Portugal, já com o intuito de se deixarem prender e proporem a traição a D. João da Costa, livrando-se assim, com a recompensa que receberiam, das muitas necessidades que então padeciam. (MMR, pgs. 143-144)

(continua)

Imagem: Planta do perímetro defensivo de Badajoz (c. 1645), sendo bem visível a localização do castelo mencionado no texto; in La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (2ª parte)

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Prossigamos a narrativa do sucedido na Atalaia da Terrinha com a versão “oficial”, o relatório do governador das armas Martim Afonso de Melo (vertido para português corrente). Conforme foi referido, tratou-se da primeira acção de importância após a chegada a Elvas, em 22 de Maio, daquele cabo de guerra.

Hoje, que foram 5 do corrente, das sete para as oito do dia, veio o inimigo com duas tropas grandes dando em uma nossa que estava de guarda, a qual se veio retirando até perto dos muros desta cidade; e dando-se-me aviso mandei montar a cavalaria e lhe ordenei que fosse tomar o posto que a nossa tropa de guarda ocupava; e porque poderia suceder que carregasse muita cavalaria do inimigo sobre a nossa, mandei marchar a infantaria também para que estivesse dentro nos olivais dando favor à nossa cavalaria, e tendo nós tomado o posto se me avisou que a cavalaria do inimigo se havia descoberto e que estava repartida, uma da ribeira para cá, e outra da outra parte; ordenei ao general da artilharia André de Albuquerque (por ser o cabo maior que está nesta fronteira) que fossem investir o inimigo, estando ainda dividido desta nossa parte da ribeira, e não estando a não passassem nem empenhassem a nossa cavalaria, e que mandassem marchar a infantaria de modo que não fosse vista do inimigo, e que pudesse ajudar-nos se fosse necessário; foi o general da artilharia e diz que achando ainda três tropas do inimigo desta nossa parte mandara ao comissário geral Dom João de Ataíde que com quatro nossas as investisse, e ele com o restante fora baixando da Atalaia da Terrinha, que era o posto que ocupávamos, o que vendo o inimigo passou o ribeiro (…)

É tempo de voltar ao testemunho do soldado Mateus Rodrigues, que pinta o quadro do lado da cavalaria espanhola (provavelmente reconstituindo a memória do sucedido a partir das conversas que tivera com soldados de ambos os lados – episódios como este eram contados e recontados ao longo dos anos, e as conversas entre soldados dos dois exércitos eram frequentes, pois tanto uns como outros se encontravam de vez em quando ora na situação de cativos, ora na de guarda de prisioneiros)

(…) de modo que o inimigo se veio encostando ao ribeiro da Veuda (…) e assim como ele se veio chegando para onde as nossas tropas estavam, mandou então André de Albuquerque ir as outras tropas que estavam detrás da Atalaia a incorporar-se com as outras que lá estavam. e uma ordem (…) mandou a Dom João de Ataíde que pelejasse com o inimigo, já que tinham tão boa ocasião, pois o inimigo fora desgraçado em vir naquela ocasião de ter ali a cavalaria das outras praças (…) [e] porque estava já averbado connosco [isto é, em contacto, ou a distância de fogo ou em escaramuça à espada] e não se podia já retirar sem pelejar, porque [senão] tinha a perdição certa. Mas um comissário que ali vinha de novo [ou seja, pela primeira vez] por cabo deles não queria pelejar, porquanto antevia a muita desigualdade que tinha, e como era a primeira vez que saía à campanha, não queria que logo lhe sucedesse uma desgraça. Mas vinha ali com eles um capitão de cavalos a que chamavam Dom Alonso Cabrera, natural de Badajoz, que foi o mais valente soldado que em os nossos tempos conhecemos ao inimigo, e assim como viu o seu comissário frio de pelejar e com determinação de se tornar a retirar e não pelejar, disse-lhe que no se havia de retirar que cuando no quisesse pelear que le dejase la ocasion por sua cuenta, que el se lo queria tomar a su cargo e que no tuviesse cuidado [Mateus Rodrigues mistura português e castelhano “aportuguesado” nesta parte].

E assim, com a confiança assente na experiência e bravura de D. Alonso Cabreira, o comissário geral espanhol decidiu pelejar. Do outro lado, D. João de Ataíde também recebera ordens de atacar…

(continua)

Citações: Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. I,  pg. 144; Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 175-176.

Imagem: O teatro de operações na região de Elvas; a Atalaia da Terrinha aparece destacada a verde. Nota: o norte encontra-se para a esquerda da imagem, o topo aponta a leste. Mapa de Nicolau de Langres, década de 1650. Biblioteca Nacional, Reservados, F2359.

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (1ª parte)

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Os anos de 1646 e 1647 foram muito difíceis para a cavalaria portuguesa da província do Alentejo. Foi uma época de transição nos comandos, de mudança estratégica (as campanhas ofensivas do exército no Verão, que marcaram os anos de 1643 a 1646, foram suspensas a partir de 1647) e de reorganização administrativa (o Contrato com os capitães de cavalos entrou em vigor em Abril de 1647). No terreno, a supremacia da cavalaria espanhola sobre a portuguesa ficou exposta numa série de desaires para as armas lusas. Durante algum tempo, a cavalaria não teve general nem tenente-general a comandá-la no terreno. Esse papel coube a um comissário geral, o inepto D. João de Azevedo e Ataíde, a cuja companhia pertencia o soldado e memorialista Mateus Rodrigues. O combate da Atalaia da Terrinha, a cerca de uma légua (5 Km) de Elvas, marcou o fim da carreira militar do fidalgo. Os  ventos da Fortuna soprariam para longe na História, para o século seguinte, a fama imorredoira que o comissário sonhara para si, presenteando com ela um seu trineto, um tal Sebastião José de Carvalho e Melo…

Tudo começou com a chegada do novo governador das armas do Alentejo, o regressado Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço. Seria ele a recuperar a cavalaria do Alentejo, mas o começo não podia ter sido menos auspicioso. O governador das armas convocou todas as companhias de cavalos do exército para uma mostra na cidade de Elvas – existiam então 26 companhias, que alinhavam cerca de 1.000 efectivos. Estavam todas juntas na cidade quando tocou a rebate: havia cavalaria castelhana nos olivais das cercanias de Elvas! O general da artilharia André de Albuquerque Ribafria (que se distinguiria, anos depois, como brilhante general da cavalaria) mandou toda a cavalaria sair da cidade. Uma companhia foi adiante, para entrar em contacto com a força de reconhecimento inimiga, composta por 100 cavalos, e afastá-la das tropas que se formavam na encosta. Segundo recorda Mateus Rodrigues…

…assim como eles viram (…) a nossa cavalaria fora, foram (…) andando para a Atalaia da Terrinha; e a nossa cavalaria foi um vale abaixo, encoberta [para] que não a visse o inimigo, porque já se sabia muito bem que o inimigo tinha [montado] emboscada em Guadiana, que fica da nossa Atalaia um quarto de légua. (…) Desceram as tropas de Elvas abaixo à campanha, e as outras de Olivença e de Campo Maior deixaram-se ficar detrás da nossa Atalaia, que as não visse o inimigo. E já neste tempo o nosso general da artilharia André de Albuquerque estava na Atalaia com os três terços de Elvas, mas não via o inimigo nada. Assim como a sua [(dos espanhóis, entenda-se)] emboscada que estava em Guadiana viu (…) as tropas lá em baixo em o ribeiro da Veuda, saiu de Guadiana à rédea solta com 600 cavalos que lá tinha, não mais, e que em bem má hora vinha ele, se não houvera tanta desordem como houve ou, para melhor dizer, tanto medo e pouca vergonha entre todos [nós], que naqueles casos não se culpa mais senão tudo em geral, porque todos têm culpa. (Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 173-174)

(continua)

Imagem: “Combate de Cavalaria”, de Jan Martszen de Jonge, meados do séc. XVII.

Artilharia (6) – Artilharia da Praça de Elvas em 1663

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Descrição pormenorizada do número de peças existentes, em 31 de Dezembro de 1663, na praça de Elvas. Em primeiro lugar, é referido o local, em segundo, o número e tipo de peça, e em terceiro, o calibre em libras (lb). Remeto os leitores para os artigos já publicados sobre a artilharia, de modo a compreender as designações das peças e respectivos calibres.

Castelo: 1 meio canhão de 24 lb; Baluarte de S. João: 1 meio canhão de 24 lb, 1 meia colubrina de 16 lb, 1 meio sacre de 4 lb; Baluarte de S. Vicente: 1 meio canhão de 12 lb, 1 sacre de 7 lb; Baluarte de Stª Maria: 1 sacre de 7 lb; Quartina de S. Domingos: 1 quarto de canhão de 10 lb; Baluarte de S. Pedro: 1 meio canhão de 24 lb, 1 sacre de 7 lb, 1 pedreiro de 10 lb; Quartina da Porta de Olivença: 1 peça de Suécia de 6 lb; Baluarte da Cruz: 2 meios canhões de 24 lb; Muralha junto à cisterna: 1 falcão de 2 lb; Porta da Esquina: 4 meios canhões de 24 lb, 1 pedreiro de 8 lb; Muralha de trás do trem: 1 peça de Suécia de 9 lb; Baluarte do Príncipe: 1 falcão de 2 lb; Forte de Stª Luzia: 2 meios canhões de 24 lb, 2 terços de canhão de 16 lb; 3 peças de Suécia de 9 lb; 1 quarto de canhão de 10 lb, 1 sacre de 7 lb.

Peças montadas no trem: 1 terço de canhão de 16 lb, 3 meias colubrinas de 12 lb, 1 quarto de canhão de 10 lb, 3 peças de cavalaria de 4 lb, 1 falcão de 2 lb, 1 peça de ferro de 4 lb, 1 falcão da escola de 1 lb.

TOTAL: 42 peças.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1664, maço 24, relação anexa à consulta de 30 de Janeiro de 1664, reportada a 31 de Dezembro de 1663.

Imagem: Mapa do cerco de Elvas (Outubro 1658-Janeiro 1659), in La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

O capitão de cavalos André Mendes Lobo – breve retrato de um fiel servidor da Casa de Bragança

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André Mendes Lobo foi um capitão de cavalaria diferente dos demais. Sem nunca ter atingido maior projecção na hierarquia militar, foi durante alguns anos um dos mais importantes elementos na estrutura do exército da província do Alentejo, se não na tomada de decisões ao nível da condução das operações, pelo menos para o funcionamento daquele exército enquanto força militar. De origem plebeia, embora abastado (um vilão muito rico do Alentejo, como refere Felgueiras Gayo), arriscou a sua vida e empenhou a sua fortuna na defesa dos Bragança – talvez mais do que fizeram alguns nobres de sangue que colheram benefícios com a separação de Portugal da Monarquia Hispânica.

A preocupação de André Mendes Lobo era, também, defender o património próprio. As suas terras espalhavam-se pelas zonas que serviam de palcos de combate, de Elvas a Juromenha, passando por Borba, de onde era natural, e Vila Viçosa, onde residia.  A sua ligação à Casa de Bragança era muito forte. A ela devia a sua ascensão social, anterior ainda à Aclamação: por serviços prestados ao Duque D. João, fora elevado à fidalguia. Para mais, André Mendes Lobo integrara o grupo restrito dos que tinham um contacto bem próximo com o futuro monarca, pois fora Guarda-Roupa do Duque, ou seja, responsável pela câmara que antecedia o quarto de D. João, no Paço de Vila Viçosa. Tremenda carreira ascensional para um plebeu que, em 1625, quase fora assassinado por parentes da sua esposa, a fidalga D. Leonor da Silveira, indignados com o matrimónio do vilão com alguém que lhe era socialmente superior.

Também D. Leonor da Silveira privara com a família ducal, tendo sido ama de leite do Príncipe D. Teodósio. Mais do que isso, privara intimamente com o próprio D. João em manobras de Eros e Afrodite. Mancebia à qual Felgueiras Gayo atribui os favorecimentos feitos a André Mendes Lobo já depois do Duque cingir a coroa de Rei.

Após a Aclamação, André Mendes Lobo quedou-se pelo Alentejo. As suas acções como capitão de cavalos surgem em algumas relações e documentos oficiais, em nada sendo deslustrosas, mas também sem lhe valerem avanço na carreira das armas – não seria essa, de resto, a sua ambição. Embora continuasse a servir, era também pagador geral do exército do Alentejo, tendo chegado a desembolsar a soma de 18.000 cruzados (7.200.000 réis) para financiar os custos de uma campanha militar no Alentejo. Fazia questão de mostrar a sua riqueza e empenho no serviço através da dimensão da sua companhia de cavalos: na década de 50 e inícios da de 60, tanto a sua unidade como a do seu genro Dinis de Melo de Castro (futuro Conde de Galveias) ultrapassavam a centena de cavalos, quando a média das demais não ia além das 46 montadas; em 1661 chegaram a corresponder, no seu conjunto, a mais de 12% dos efectivos de cavalaria do exército do Alentejo.

Ia o ano de 1661 avançado quando André Mendes Lobo deixou o serviço na cavalaria. Tão grande era a sua companhia, que foi ordenado fosse repartida e dela se formassem duas. André Mendes Lobo faleceu no final de 1661. Uma carta do Conde de Atouguia, de 3 de Janeiro de 1662, ao Conselho de Guerra (ANTT, CG, 1662, maço 22, consulta de 14 de Janeiro) refere a petição feita por D. Leonor da Silveira, mulher que foi do pagador geral deste exército, e capitão de cavalos André Mendes Lobo, em que a viúva declara desejar continuar a servir a Coroa com o zelo que o fazia seu marido defunto, pedindo que, após a divisão da companhia que fora do seu marido, se desse uma companhia a D. António de Almeida e que outra, com mais cavalos que ela determinava comprar, ficasse assistindo no forte com capitão por ela nomeado, ou que então os cavalos se dessem ao genro, Dinis de Melo de Castro. O Conde de Atouguia refere que mandou o vedor geral do exército do Alentejo fazer proporcionalmente a partilha: achando-se 86 cavalos, deu para duas companhias de 43, e os 110 soldados também se repartiram com igualdade. As companhias foram entregues aos capitães D. António de Almeida (carta patente de 8 de Novembro de 1661) e Philipe Suel (francês, carta patente de 21 de Outubro de 1661). Sobre o pedido de D. Leonor para poder prover o capitão que melhor achar para a companhia que ela queria refazer, o Conde foi de opinião que assim lhe fosse concedido, em graça pelos muitos serviços que o seu marido prestara. Realçou as vantagens tácticas  da companhia assistir no forte – mesmo que ela não o pedisse, seria necessidade fazê-lo, pois ficava acudindo a Elvas, Juromenha, Vila Viçosa e lugares que se seguem Guadiana abaixo, cobrindo muitas herdades, assim das que ficaram de André Mendes como de muitos outros donos, impedindo as partidas que de Arronches (então na posse dos espanhóis) pretendessem passar a Olivença; e assim ficavam os soldados com melhor comodidade de quartel e os cavalos com mais erva. O Conde mostrou-se contra a proposta para que os cavalos se incluíssem na companhia de Dinis de Melo de Castro, pois na mostra de 29 de Dezembro de 1661 havia 117 cavalos naquela companhia.

A que forte se referia D. Leonor da Silveira, não esclarece o documento. No entanto, pode ser o que refere esta passagem da História de Portugal Restaurado: quando, em 1662, D. João José de Áustria invadiu Portugal de novo pela fronteira do Alentejo e marchou sobre Juromenha, (…) na marcha rendeu o exército uma casa-forte do capitão de cavalos André Mendes Lobo, situada entre Vila Viçosa e Juromenha, e guarnecida com uma companhia de infantaria. Mandou D. João de Áustria arrasá-la (…) (ERICEIRA, Conde de, História de Portugal Restaurado, edição on-line, Parte II, Livro VI, pg. 473). Por essa altura já a companhia a que D. Leonor da Silveira pretendera destinar o comandante estava incapaz de operar, pois segundo uma carta do Marquês de Marialva (13 de Junho de 1662, anexa à consulta de 19 de Junho), houvera ordens régias para que nela não fosse provido qualquer capitão e as deserções e incúria tinham-na deixado de todo perdida.

Bibliografia: além dos meus livros O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde são tratados vários aspectos da carreira militar de André Mendes Lobo e Dinis de Melo de Castro, veja-se também:

COSTA, Leonor Freire; CUNHA, Mafalda Soares da, D. João IV, s.l., Temas e Debates, 2008, pgs. 84-85.

CUNHA, Mafalda Soares da, A Casa de Bragança 1560-1640. Práticas senhoriais e redes clientelares, Lisboa, Editorial Estampa, pgs. 569 e 588.

FELGUEIRAS GAYO, Manuel José da Costa, Nobiliário de Famílias de Portugal, Braga, Carvalhos de Basto, 1989, vol. IV, t. XI, pgs. 247-248, e vol. VI, t. XVII, pg. 428.

Imagem: “Um combate de cavalaria”, Adam Frans van der Meulen (2ª metade do séc. XVII), Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.

O episódio da «Passagem de Alcaraviça» – 2ª parte; artigo do Sr. Santos Manoel

Conclui-se hoje o interessante artigo artigo do Sr. Santos Manoel, cuja publicação foi iniciada no último post. Renovo aqui o meus agradecimentos pela permissão concedida pelo Autor para a publicação desta peça de investigação.

Os documentos

Como já foi dito atrás, as notícias de Cádis somadas à movimentação e entradas de Legañes, das quais a de Alcaraviça foi de particular gravidade, fizeram Rei e Conselho pensarem no pior, e o pior era a invasão estar iminente. D João decreta que a Rainha ficaria em Lisboa e passaria a despachar na sua ausência, enquanto ele passaria a Aldeia Galega do Ribatejo (o antigo nome do Montijo), uma posição bem estudada, suficientemente próxima de Lisboa mas dando-lhe campo aberto para começar de imediato a movimentar-se no interior do país caso a invasão começasse.

O trajecto de D João IV durante as operações nesse último trimestre de 1645, tendo por base os locais de emissão das suas cartas e Decretos, foi aproximadamente o seguinte:

– em 20 de Outubro ainda estava em Lisboa;

– a 27 atravessa o Tejo e parte para Aldeia Galega onde permanece pelo menos até 10 de Novembro;

– a 19 já escreve de Montemor-o-novo onde permanece pelo menos até 7 de Dezembro;

– em 11 já está em Setúbal inspeccionando arranjos de defesa;

– em 30 estava de regresso a Lisboa.

Quando passa o Tejo a 27 de Outubro, o episódio de Alcaraviça ainda não se teria dado, nem saberia nada das operações de Legañes em Olivença e da tomada da ponte uma vez que estavam a dar-se precisamente nesse dia. Nessa mesma data, quando escreve a Martim Afonso de Melo fá-lo como um alerta porque, segundo as informações de que podia dispor até esse dia, o inimigo depois de ter chegado a Badajoz inesperadamente parou, não avançou mais. Esse facto continha para D João, e na sua própria expressão, ‘algum mistério’, parecia ser um indício sério de que Legañes apenas fazia um compasso de espera para se retemperar enquanto a armada não se deslocasse. Estaria em marcha a mais ou menos esperada invasão do reino, qualquer coisa parecida com o que se deu em 1580: por terra, pelo Alentejo até Lisboa; por mar, a armada que estava em Puerto Santa Maria e Cádis – cujas manobras e exercícios já lhe tinham sido notificadas, como prova uma carta sua à vereação da Câmara de Lisboa de três dias depois, 30 de Outubro – avançando até à barra do Tejo. Aldeia Galega era um bom local para se aquartelar em caso de uma súbita ocupação naval de Lisboa, contra o quê pouco se podia fazer. A resistência, a confirmar-se o ataque, dar-se-ia no Alentejo.

Avaliando o Rei este estado de coisas, a 4 de Novembro, ainda em Aldeia Galega, escreve a Castelo Melhor aparentemente apenas por ter sido informado de um caso de má liderança de um capitão de uma praça de primeira linha. Pede-lhe que apure responsabilidades e aja em conformidade em relação ao que se passou perto de Vila Viçosa no dia 31 de Outubro, no que parece ter sido um recontro onde a absoluta falta de comando fez com que o capitão mandasse infantaria sem ao menos um cabo, pelo meio das vinhas, contra cavaleiros espanhóis que exploravam os arrabaldes em ‘Fradaga’, ‘Pexinhos’ e a N. Sª da Luz. Essa operação pífia causou a morte de 15 soldados, a captura de mais alguns e a perda de gado. Mas pior que isso, revelou que havia movimentações bem no interior do nosso território, que havia falhas graves de comandantes de praças onde essas falhas não podia ocorrer, e que o facto provocou um sentimento de insegurança em Estremoz, praça que sabia que estava no caminho do invasor para a capital. D João queria simultaneamente sondar o que realmente se estaria a passar na fronteira, que Castelo Melhor fizesse alguma coisa em relação aos comandos e que isso tivesse um efeito benéfico no moral de Estremoz. Nessa carta D João dá o primeiro sinal de foi informado de Alcaraviça: fala de outra desordem de que também foi informado.

A outra desordem é seguramente o desastre da passagem de Alcaraviça, muito pior e mais grave, mas difícil para nós de saber se foi anterior ou posterior ao de Vila Viçosa. Por isso situarmo-lo vagamente na semana entre 27 de Outubro, dia do ataque à ponte e forte de Olivença, e cerca de dois a três dias antes de D João ter escrito a carta de dia 4 de Novembro, tempo mínimo para que a notícia chegasse a Aldeia Galega.

No mesmo dia 4, quando pelos vistos já sabendo da dimensão do que se passou nas Vendas de Alcaraviça, faz Conselho de Estado onde decide e envia ordem a 8 para Pedro Vieira da Silva mandar duas pessoas de qualidade às localidades de onde eram os soldados. A missão era apoiar com ânimo e consolo, mas também com dinheiro as famílias dos que faleceram e foram capturados, bem como com cirurgiões os feridos que necessitassem de cuidados. Ficamos assim a saber que a tropa da Ordenança da Comarca de Évora destroçada pelos espanhóis, contava com um bom número de filhos de Évora, mas também de outra localidade importante a seguir a Estremoz no caminho para Lisboa: da Vila de Arraiolos. Ficamos a saber também que se houve feridos a precisar ser tratados, houve quem escapasse ao massacre. Um deles não foi infelizmente Francisco Gomes de Araújo. Filho de João Gomes de Araújo e de Catarina Jorge de Sousa (ela de Alcácer do Sal), Francisco era um alferes de Évora que morreu no comando de uma companhia ‘na rota de Alcaraviça’, abraçado à bandeira nacional. O alferes e o episódio da sua morte são citados nos ‘Sanches de Vila Viçosa’, que se deu sem margem para dúvidas no episódio de que trata nesta memória.

No dia 10 de Novembro, dois dias após a carta que ordena a transmissão dos sentimentos reais e as ajudas materiais às vítimas e famílias, D João escreve aos juízes, procuradores e vereadores da Câmara de Arraiolos. Alude a uma carta que estes lhe tinham escrito no dia 4 falando do sofrimento que por ali corria pelo que já sabiam ter acontecido à sua gente em Alcaraviça. Esta carta traz um elemento de confirmação dos relatos históricos: o corpo de infantaria era de facto um reforço enviado de Estremoz para Elvas. Assim, acentua-se a impressão de que o corpo de infantaria seguia pela estrada em rota batida e pode ter sido simplesmente emboscado pelo corpo a cavalo espanhol, não tendo tido tempo de se defender ou fortificar-se numa tapada como rezam os cronistas.

Quase um mês depois, a 7 de Dezembro, já em Montemor-o-novo, feitas as diligências junto das famílias e recebendo D João o retorno de informações que entretanto foram colhidas, escreve a Castelo Melhor enviando-lhe petições de familiares dos cativos na refrega e pede-lhe que tente obter as suas libertações pelos meios mais convenientes. As peticionárias que solicitavam prisioneiros espanhóis para troca e eram: D Juliana de Salgado, mulher do Capitão Manuel da Cunha, Antónia de Azevedo, mulher do Alferes Sebastião Rodrigues Francisco e Paula Rodrigues, de Domingos Fernandes, trabalhador. A referência ao estatuto social do preso seria relevante para a escolha dos prisioneiros a trocar.

A 11, D João já está em Setúbal e a 30 de Dezembro de 1645 em Lisboa. Não se encontram mais referências ao caso até 11 de Janeiro de 46. Ignora-se que fim teve a diligência para a troca de presos, mas nessa última data são remetidos ao Dr. João Pinheiro uma carta de Castelo Melhor e outra do Auditor Geral do Exército a acompanhar o dossier da investigação que se fez ao procedimento do Sargento-mor João da Fonseca Barreto ‘quando a gente de Évora e Arraiolos foi morta e aprisionada em Alcaraviça’. O Rei pede que lhe seja enviado o processo para que se formule (ou não, presumo) uma acusação e que se leve a Conselho para se sentenciar.

Ignora-se o teor da relação apresentada, o que se sentenciou sobre o caso e o que se passou a seguir relacionado com ele. Ignora-se mesmo de João da Fonseca Barreto pereceu com os seus ou se sobreviveu. A documentação tem os seus limites. O investigador amador também.

Conclusão

Este episódio de guerra, triste sem dúvida pelas vítimas a lamentar como em todos os episódios de qualquer guerra, se à partida mais utilidade não teria senão permitir que D João regozijasse per opositum com a notícia do feito dos 16 da Atalaia da Terrinha, serviu pelo menos para que o Rei mandasse Joane Mendes de Vasconcelos como Mestre de Campo General para Estremoz, onde segundo os documentos do Conselho chegou de facto a 14 de Novembro. As suas atribuições já previamente definidas tiveram uma adição explícita: receber, treinar e exercitar as levas novas de tropas e conduzi-las a Elvas em segurança. Não se podia repetir o que, certa ou erradamente, ficou na memória da época como um exemplo evitável e absolutamente dispensável de imprudência suicida, explicada pelos dois cronistas por outro problema crónico a somar à escassez de abastecimentos: a inexperiência ou falta de preparação dos comandos.

Imagem: Infantaria do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648). Gravura de Jacques Callot.

Hábitos das Ordens Militares em campanha (mais um caso)

Na sequência do que ficou escrito sobre os hábitos das Ordens Militares, apresento mais uma passagem do Manuscrito de Matheus Roiz (Mateus Rodrigues), acrescentando outro exemplo aos que foram então referidos. O relato reporta-se ao rescaldo de uma escaramuça perto de Arronches, que o autor situa em Dezembro de 1643. Como é usual neste blog, actualizou-se a ortografia original.

[Voltámos] para a vila com grandíssimo gosto e alegria, e vendo logo ali na campanha quem nos faltava, não mais que um soldado, que esse logo houve quem o viu matar, porque foi tão bárbaro que ao tempo que chegámos ao inimigo, logo se meteu só neles como um doido, sem consideração nenhuma, mas era homem de grandes forças e bom soldado, só este perdemos, mas feridos vieram 14 ou 15 homens e nenhum morreu. Tomámos logo ali conta dos cavalos que traziam os soldados, acharam-se 37 e todos mui bons, e vinham 18 homens vivos, que os mais ficavam mortos. Nestes vivos entrava o capitão, que era traidor, que o acompanhou um soldado nosso, natural de Elvas, por nome Gaspar Roiz [Rodrigues], e depois de lhe ter já dado uma grã cutilada na mão esquerda [em combate], quis matá-lo, não sabendo que era o capitão. Ele então se descobriu ao soldado, que o não matasse, que era capitão, e tirando-lhe um capotilho vermelho e um bom colete, logo lhe viu o hábito que trazia debaixo, que era o de São Tiago [Santiago], que lhe havia dado El-Rei Filipe [IV]. (Manuscrito de Matheus Roiz, pg. 57)

Neste caso, o hábito seria apenas a insígnia pendente de um colar ou fita.

Imagem: Azulejo seiscentista monocromático representando um cavaleiro armado de pistola. Fotografia enviada por João Torres Centeno.

O vedor geral do exército

Por sugestão de João Torres Centeno, autor do blog Lagos Militar, decidi antecipar a preparação de uma pequena nota sobre o vedor geral do exército. Este cargo superintendia a administração das finanças em cada exército, conforme se pode ler nos capítulos 1 e 2 do respectivo Regimento:

Cap. 1 – Eu El-Rei faço saber aos que este virem, que considerando eu o quanto convém a meu serviço, e a justificação da despesa do dinheiro que se gasta na guerra, haver no exército um vedor geral, com cuja intervenção se façam os pagamentos dos soldados, e todos os mais gastos necessários, tomando deles razão em seus livros e listas, houve por bem de resolver que quem o fosse daqui por diante guardasse o regimento seguinte.

Cap. 2 – Haverá no dito ofício de vedor geral quatro oficiais de pena [amanuenses] e quatro comissários de mostras, que servirão de as tomar aos soldados e de fazer os papéis e livros que forem necessários, e as mostras se irão tomar pelos ditos oficiais e comissários às praças da fronteira, ainda que estejam distantes, porque sem eles se não fará pagamento algum.

Havia um vedor geral por cada exército provincial, tendo o respectivo regimento (no sentido de regulamento) entrado em vigor em 28 de Fevereiro de 1642. Em Novembro desse ano sofreu uma revisão, a fim de ser melhorado e procurar obstar ao verdadeiro caos que reinava então nas finanças de guerra, principalmente no que respeitava ao pagamento dos militares em serviço nas fronteiras. O Regimento do vedor geral constava de 84 capítulos, tratando da organização das listas (de militares), dos livros (de registo), das mostras, da cavalaria e da fazenda (finanças). Como era frequente na época, em cada capítulo havia incursões noutras áreas, não existindo uma sistematização muito rigorosa.

O vedor geral era um cargo não-militar que foi desempenhado por elementos da burguesia. O vedor e outros oficiais (não-militares) do aparelho administrativo, como o contador geral, o pagador geral, os comissários de mostras e os oficiais de pena, atribuíam-se o privilégio de receberem sempre em primeiro lugar o dinheiro das mesadas para o exército, que eram pagas com largos intervalos no tempo e raramente em quantidade suficiente. Em resultado, muitos militares combatentes acabavam por nada receber durante meses – por vezes mais de dois anos, como sucedeu nos últimos anos da guerra. Era o chamado “privilégio da primeira plana”, um costume que foi muito criticado pelos militares ao longo da guerra, desde governadores das armas até ao simples soldado, mas ao qual nem sequer uma tímida intervenção régia em 1653 conseguiu pôr fim.

Fonte: Regimento do Vedor geral do exercito da Prouincia do Alentejo, Arquivo Histórico Militar, 1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 1, cópia manuscrita, do séc. XIX, do original seiscentista.

Bibliografia: “Veedor”, in ALMIRANTE, José, Diccionario Militar, Madrid, Ministerio de Defensa, 1989, vol. II, pg. 1058.

Veja-se também O Combatente durante a Guerra da Restauração, pgs. 191-216.

Imagem: Imediações de Elvas, vendo-se o monte da Graça. Em Elvas residiu, durante boa parte da guerra, o vedor geral do exército do Alentejo. Não muito longe desta cidade existe uma localidade chamada Vedor. Foto do autor.

Relação do saque e queima da vila de Membrio em 28 de Abril de 1644 (1ª parte)

A relação que hoje aqui trago não consta do rol de narrativas propagandísticas impressas, nomeadamente do levantamento coordenado por Martinho da Fonseca em 1927 (Elementos bibliográficos para a história das guerras chamadas da Restauração 1640-1668, separata de Arquivo de História e Bibliografia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1927). Dela existe uma cópia manuscrita no Arquivo Histórico Militar, feita provavelmente nos finais do século XIX. Não sendo muito diferente de outras narrativas apologéticas, esta tem um interesse acrescido pela informação detalhada acerca dos procedimentos tácticos numa incursão mista de cavalaria e infantaria (na versão de dragões improvisados).

A acção ocorreu depois da primeira incursão do governador das armas do Alentejo, Matias de Albuquerque (futuro Conde de Alegrete), à vila de Montijo, cerca de um mês antes da segunda incursão que culminaria na célebre batalha campal. Eis a relação dessa entrada, nas passagens mais significativas e numa escrita actualizada.

Depois de vir o senhor Matias de Albuquerque da jornada de Montijo em 20 de Abril passado, começou a dispor outra, para a qual elegeu por cabo a Diogo Gomes de Figueiredo, tenente de mestre de campo general deste exército [do Alentejo], que com 800 mosqueteiros montados de dois em dois, em quatrocentas bestas de albarda, e duzentos cavalos a empreendeu com particular disposição pela maneira seguinte.

Dos terços que aqui se acham nesta praça de Elvas escolheu oito companhias de infantaria, a 90 mosqueteiros e a dez piques cada uma, e foram os capitães Domingos Carneiro, Inácio Pereira de Aragão e Fulgêncio de Matos, do terço do mestre de campo João de Saldanha, e do terço de Luís da Silva os capitães João de [A]Morim, André de Araújo, Francisco Fernandes o Canastreiro [o mesmo que iria participar na defesa da ponte de Olivença, dois anos mais tarde] e Fernão de Mesquita, e do terço do Conde do Prado o capitão Cristóvão Pantoja; levou consigo para a distribuição das ordens o capitão Bernardim de Sequeira, ajudante de tenente [de mestre de campo general] e os ajudantes Francisco Manuel e António da Costa, aquele do terço de João de Saldanha, e este do terço de Luís da Silva, e todos estes oficiais levaram soldados de muito valor (…). A cargo de um gentil-homem de artilharia [posto de oficial artilheiro] iam doze artilheiros com cem granadas, cem fechos, seis escadas, quatro cargas de pólvora, quatro de corda e quatro de balas sortidas; acompanhou ao tenente [de mestre de campo] general o cirurgião-mor do terço da Armada, e o capelão-mor do terço de João de Saldanha, o padre Frei Simão de Lima, que para isso se lhe ofereceu, como também o fez o capitão reformado Amador Rodolfo.

Partiu desta cidade segunda-feira pela manhã, que se contavam 25 do passado [Abril] (…), e pelo caminho de Barbacena e de Assumar se foi dormir a Portalegre, que são oito léguas [c. de 40 km] desta cidade, e ao outro dia a Castelo de Vide, donde pelo ruim caminho chegou às três horas da tarde, ali deu umas ordens que levava do governador das armas ao mestre de campo Dom Nuno Mascarenhas [morreria na batalha de Montijo, um mês depois], que assiste naquela cidade com o seu terço, e outro ao capitão de cavalos João de Saldanha da Gama, que por mais antigo governava as companhias de cavalo que ali se achavam, como eram a de António de Saldanha, a de Fernando Pereira de Castro, e as Holandesas de Vagenheim, e outra de dragões da mesma nação, com mais uma companhia de cavalos da ordenança de Portalegre.

Achou aqui o tenente [de mestre de campo] general Diogo Gomes de Figueiredo segunda ordem do Senhor Matias [de Albuquerque] para que com o mestre de campo Dom Nuno e os capitães de cavalos, assentassem a parte aonde ele havia de ir fazer a facção, porquanto aquela para que o tenente [de mestre de campo] general trazia as primeiras ordens se havia alterado com segunda informação de Dom Nuno, (…) porque a primeira ordem era uma praça distante de Castelo de Vide 12 léguas [c. de 60 km], e os soldados não levavam mantimentos para gastar tantos dias, e assim se resolveu que a empresa fosse à vila de Membrio, 7 léguas [c. de 35 km] distante daquela praça.

Era esta vila de mais de 100 vizinhos [c. de 450 habitantes] e com fama de rica pelo trato que tinha das lãs, situada em um lhano, e quase toda de casas terreiras, estava cercada de trincheiras de terra e barro, e as mais das bocas das ruas com suas costaduras da mesma; tem no meio uma igreja com sua torre quadrada, alta e coroada de ameias, donde se descortinavam as mais das ruas, ou por suas bocas, ou por cima dos telhados das casas, por serem baixas, defronte da porta da igreja todo o terreno, adro à maneira de meia lua, com uma parede de altura de dois homens, e vinte pés afastada do adro outra parede a modo de barbacã, que testavam nas esquinas das ruas que iam para a igreja, pelo lado esquerdo dela havia um cercado, onde estava algum gado, e pela direita outro cercado a modo de cemitério, que tornejava a sacristia, tudo com suas torneiras, donde se disparava.

Está montado o cenário. Será continuada a narrativa na próxima entrada.

Nota: os tenentes de mestre de campo general eram considerados oficiais colaterais, que hoje diríamos de Estado-Maior, destinados a distribuir as ordens emanadas do mestre de campo general pelas unidades. Não deveriam comandar contingentes de tropas, excepto em circunstâncias muito extraordinárias. O prestígio de Diogo Gomes de Figueiredo e Bobadilha (pai – o seu filho homónimo também se celebrizou durante a guerra) foi motivo para uma dessas excepções.

Imagens: em cima, Membrio (grafado como Membrilho, forma que aparece por vezes na narrativa transcrita) no mapa de João Teixeira Albernaz, c. de 1650. Biblioteca Nacional, Iconografia, CC254A; em baixo, Membrio na actualidade. Reprodução de imagem obtida a partir do programa Google Earth.

Palcos de operações (2) – Badajoz, Elvas, Juromenha, Vila Viçosa

Carta da fronteira entre o Alentejo e a Extremadura espanhola, da autoria de João Teixeira Albernaz (pormenor, c. 1650). Uma das regiões mais flageladas pela guerra entre 1641 e 1667.

Biblioteca Nacional, Iconografia, CC254A.