Procedimentos irregulares de oficiais estrangeiros: o caso dos capitães La Morlaye e Tamericurt (1645)

Na sequência de um artigo anteriormente publicado, que tratava das atitudes perante os estrangeiros, trago aqui uma consulta do Conselho de Guerra que se reporta a um dos vários casos que contribuíram para que as dúvidas acerca da utilidade dos oficiais estrangeiros se adensassem, na fase inicial da guerra, em particular entre os anos de 1643 e 1645.

O facto é que os militares estrangeiros viam os seus soldos serem pagos com uma irregularidade que podia ir de meses a anos. Ao contrário dos portugueses, que sempre tinham mais facilidade em encontrar meios alternativos junto das populações, aos estrangeiros restava o recurso a expedientes ilegais. Daí a intervenção dos embaixadores, no sentido de poupar os oficiais infractores aos castigos que deviam incidir sobre os actos ilegais que praticavam. Umas vezes com mais sucesso, noutras nem tanto.

Todavia, os casos que a presente consulta aborda dizem respeito a dois oficiais franceses que viriam a distinguir-se ao serviço da Coroa portuguesa: Achim Avaux de Tamericurt, que atingiria o posto de governador da cavalaria da Beira, com a patente de tenente-general, e que só abandonaria o exército para regressar a França em Outubro de 1661 (acompanhando na ocasião D. Catarina de Bragança na sua viagem para Inglaterra), e Henri de La Morlaye, primo e homónimo de um outro La Morlaye (cavaleiro da Ordem de Malta, daí a sua alcunha “o Maltês”) que havia morrido em combate em Outubro de 1642. Também este La Morlaye viria a tombar em combate, quando era comissário geral da cavalaria de Trás-os-Montes, em Maio de 1649.

A consulta refere que o Conde de Castelo Melhor enviara uma devassa (que surge em anexo à consulta, juntamente com a informação do auditor geral) que a instâncias de André Mendes Lobo, pagador geral do exército do Alentejo, fora feita aos capitães de cavalos franceses Henri de La Morlaye e Achim de Tamericurt. Do primeiro foram encontrados cinco cavalos com a marca da sua companhia em poder de alguns hortelãos e moleiros, e da companhia de Tamericurt dois cavalos. Acrescentava-se que estes capitães procuravam pessoas que lhes quisessem tomar outros.

Mais referia a devassa que nas mostras de três anos àquela parte tinha passado o capitão de Lamorlé [La Morlaye] muitas fantásticas e falsas, e que para uma que se havia de passar em Borba fizera que dois soldados seus se fingissem enfermos em cama, tomando os nomes de outros dois que eram já mortos ou ausentes, ordenando a um escrivão os fosse ver nas camas e lhe passasse certidão para com ela na mostra lhe pagarem suas praças. E aponta o Conde que as intercessões do embaixador de França são tão poderosas que estes capitães não são castigados como merecem.

O Conselho de Guerra dá parecer que não se admita ao Embaixador qualquer intercessão nestes casos, nem a outra pessoa, para que os oficiais sejam castigados, porque assim convém o serviço do Rei.

O próprio Rei dá parecer favorável em 11 de Julho, acrescentando: com se falar em nada ao Embaixador de França. Ou seja, mantendo em segredo os castigos a serem aplicados aos oficiais.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, mç. 5, consulta de 4 de Julho de 1645.

Imagem: Soldado de dragões armado de arcabuz. Gravura francesa de meados do século XVII.

As atitudes perante os estrangeiros – um exemplo de 1645

A presença de oficiais e soldados estrangeiros em Portugal no decurso da Guerra da Restauração já foi abordada aqui por diversas vezes, em vários artigos e sob diferentes perspectivas. O caso que agora se apresenta é ilustrativo do desencontro de opiniões sobre a necessidade ou não do recurso a estes militares profissionais, que tão depressa eram considerados imprescindíveis para reforçar a capacidade de combate do exército português (principalmente na fase inicial do conflito), como eram vistos como dispensáveis arruaceiros e potenciais desertores, que nenhum benefício traziam para o esforço militar do Reino.

Em Agosto de 1645, o tenente francês Jean Boustier de Lanue, que havia chegado a Portugal em Setembro de 1641 como alferes de infantaria, enviou ao Conselho de Guerra uma petição para a formação de uma companhia de infantaria. Encontrava-se então sem contrato nem unidade onde servir desde o início do ano. A falta de montadas terá levado o oficial a propor-se servir numa unidade apeada, formada por si, ainda que a promoção não lhe trouxesse avanços no que ao soldo respeitava – um tenente de cavalos estrangeiro auferia 18.000 réis mensais, ao passo que um capitão de infantaria ganhava 16.000, o dobro de um oficial português com a mesma patente. No entanto, a  efectivação dos pagamentos era uma raridade, deixando os que não eram naturais do Reino numa situação difícil, sem outros meios de socorro imediato e levando-os a praticar alguns abusos e desmandos, o que, de certo modo, é usado por Joane Mendes de Vasconcelos como justificação do seu parecer.

João Boustier de Lanüe, francês, pela petição inclusa se oferece a levantar nesta cidade [Lisboa] uma companhia de cem infantes dos de sua nação para servir a Vossa Majestade com ela, fazendo-lhe Vossa Majestade mercê do posto de capitão dela para ir servir adonde se lhe ordene.

Consta dos papéis que este francês presentou, haver servido na província de Entre Douro e Minho de tenente de uma companhia de cavalos, de 17 de Setembro de 643 até 20 de Janeiro de 645, e achar-se no decurso deste tempo em todas as ocasiões e encontros que se teve com o inimigo, e nas facções de maior importância nos postos de maior risco, mostrando grande valor e zelo do serviço de Vossa Majestade.

Havendo-se visto esta oferta, considerando D. João da Costa e Jorge de Melo que será conveniência do serviço de Vossa Majestade admiti-la, assim por escusar que estes franceses vão descontentes a sua terra e lancem voz da pouca estimação que deles se fez neste Reino, intimidando outros para duvidarem vir a ele quando a necessidade obrigue a procurá-los, como porque sendo soldados práticos poderão servir melhor que os bisonhos que se levantarem de novo, e fazendo-o na infantaria não terão tanta ocasião de se ausentar, como a teriam se servissem a cavalo, por todas estas razões são de parecer que Vossa Majestade deve de admitir a oferta, ordenando que a cada um dos cem soldados se dê uma paga de quatro mil réis para se poderem vestir, e seus socorros ordinários na forma que são socorridos os soldados portugueses, e depois de formada esta companhia se poderá remeter ao Alentejo, com ordem ao Conde governador das armas que agregue a um dos terços daquele exército.

Joane Mendes de Vasconcelos é de parecer que não se deve de admitir esta oferta, entendendo que sendo esta gente a escória de todos os estrangeiros que passaram a este Reino, não servirá tão bem como o farão os soldados portugueses, ainda que sejam bisonhos, entendendo também que estes franceses, estando já costumados à vida de vagabundos, como se virem com as pagas e vestidos, por mais cuidado que se tenha com eles procurarão fugir, e que o receio do dano que eles podem causar indo-se descontentes deste Reino mal se poderá atalhar com os acomodar, sendo já idos tantos de mais autoridade e importância que eles, queixosos de não se lhes pagar o que se lhes devia, despedidos do serviço de Vossa Majestade, a cujas queixas é de crer se dará mais crédito nas suas terras, do que se dará a estes, sendo gente de tão pouca importância. Lisboa 22 de Agosto de 1645.

O Rei acrescenta à margem, como resposta ao parecer: Tenho deferido noutra consulta. Caldas, 13 de Setembro de 645.

Jean Boustier de Lanue seria mais tarde promovido a capitão de dragões, tendo morrido em combate em Dezembro de 1646.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, consulta de 22 de Agosto de 1645.

Imagem: “O cavaleiro”, óleo de Gerard Terborsch.

Sobre o capitão holandês Manuel Cornellis e a sua companhia de cavalos

A respeito do capitão Manuel Cornellis, oficial holandês que serviu vários anos a Coroa portuguesa, já foi publicada uma série de artigos. No último destes, foi feita uma abordagem sucinta ao processo judicial decorrido entre 1648 e 1649, que determinaria a perda de privilégios por parte do capitão de cavalos e o seu afastamento, ainda que provisório, do comando da companhia. A escassez de referências a Cornellis nos documentos de anos subsequentes tinham-me levado a crer que o capitão tivesse deixado o serviço por volta de 1654. Todavia, uma consulta do Conselho de Guerra de 1657 mostra que, nesta data mais avançada, o oficial holandês não só se mantinha em Portugal, como se encontrava de novo no comando da sua companhia.

A consulta aborda uma petição de Manuel Cornellis. Nela, o capitão de cavalos refere ter necessidade de gente na sua companhia, e explica que, tendo tido informação de que um António Correia de Sequeira tinha sido condenado em três anos de degredo para um dos lugares de África, por ter sido encontrado de noite com uma pistola pelo meirinho da correição de Elvas, e sabendo que o dito soldado tinha já satisfeito as condenações pecuniárias, o persuadiu a assentar praça na sua companhia como soldado durante três anos, não recebendo soldo até que o Rei lhe fizesse mercê de tal. Expõe também que António Correia de Sequeira é soldado de muito préstimo, havendo já servido 10 anos na cavalaria com muita satisfação, e servido de guia em incursões a Castela.

A petição de comutação da pena encontrou o apoio do Conselho de Guerra, que mandou primeiro remeter a dita petição ao Dr. Jorge da Silva Mascarenhas, Juiz Assessor. Como a culpa não foi “escandalosa” (ou seja, de muita gravidade), o Conselho de Guerra deu o parecer favorável à petição, por ser mais preciso e de maior utilidade o serviço que podia fazer o soldado neste Reino, do que nos lugares de África.

O decreto régio de 20 de Março de 1657 manda aplicar o parecer do Conselho de Guerra.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, consulta de 16 de Março de 1657.

Imagem: Soldado de cavalaria armado de carabina, meados do século XVII.

Efectivos do exército da província do Alentejo em Setembro de 1661 (Parte 3 – a cavalaria estrangeira e os efectivos totais)

Conclui-se aqui a apresentação dos efectivos do exército da província do Alentejo com as listas da cavalaria estrangeira. Nesta época havia apenas dois regimentos de cavalaria francesa, um nominalmente sob o comando do Conde de Schomberg, que era ao tempo mestre de campo general do exército da província (daí que o título de coronel do regimento fosse honorífico; o comando no terreno era exercido pelo tenente-coronel Chavet); e o segundo era o muito reduzido regimento do coronel Monjorge, que sofrera com o assalto ocorrido durante a viagem para Portugal por parte da marinha de guerra espanhola. A captura de parte dos navios que transportavam o regimento significou o aprisionamento de muitos oficiais e soldados, incluindo o próprio Monjorge, de modo que o regimento era comandado pelo sargento-mor Sausé. Como era habitual na maioria dos documentos da época, os nomes próprios dos oficiais estrangeiros surgem em português.

[Abreviaturas: – Companhia; Cap – Capitão ; Of – Oficiais; Sold – Soldados]

Regimento das companhias francesas de que é coronel o Conde de Schomberg, mestre de campo general do Exército

Of

Sold

Todos

Cavalos

Cª do mestre de campo general

7

93

100

91

Cª do sargento-mor Bogni

1

43

44

47

Cª do tenente-coronel Jeremias Chavet

7

53

60

60

Cª do cap. João Salomon

4

54

58

51

Cª do cap. Bartolomeu de Brand

4

38

42

44

Cª do cap. João Morignac

2

47

49

21

TOTAL

25

328

353

314

Regimento do coronel Monsieur de Monjorge

Cª do sargento-mor M. de Sossé

4

30

34

14

Cª do cap.  Du Mortier

3

12

15

4

Cª do cap. Labotinière

1

24

25

0

TOTAL

8

66

74

18

TOTAIS

Of

Sold Todos Cavalos
Os terços da infantaria da guarnição deste Exército

867

5234

6101

60 companhias de cavalos portuguesas (incluso duas companhias soltas de cavalaria francesa)

283

2683

2966

2879

Regimento francês do Conde de Schomberg

25

328

353

314

Regimento francês de Monsieur Monjorge

8

66

74

18

TOTAL DA CAVALARIA

316

3077

3393

3211

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21, “Relação dos Officiais, e Soldados da Infantaria e Cauallaria deste Ex[érci]to que se acha effectiua, Conforme consta dos roes de Lista da ultima m[ost]ra, que se lhes passou na maneira seguinte”.

Imagem: Cena de batalha, pintura de Sebastian Vrancx.

Efectivos do exército da província do Alentejo em Setembro de 1661 (Parte 1 – a Infantaria)

Em 9 de Setembro de 1661 foi passada uma mostra a todas as unidades pagas do exército da província do Alentejo (excluindo a artilharia, cuja especificidade não obrigava a participar nesta revista geral, como hoje se diria). São raros os documentos sobreviventes que nos permitem ter uma percepção detalhada das forças que compunham, a um dado momento, o exército de uma província.

Devido às características do WordPress, que torna difícil a apresentação de múltiplas tabelas pré-formatadas, o rol das forças será dividido em várias partes.

Algumas notas sobre os mestres de campo apresentados na lista: D. Luís de Meneses seria, como é sabido, o futuro 3º Conde de Ericeira; D. Pedro, o Pecinga (ou Opecinga como também surge em vários documentos) era um nobre napolitano que havia servido o rei Filipe IV de Espanha, mas que se encontrava homiziado em Portugal devido a um crime cometido no reino vizinho e servindo a monarquia portuguesa; e Francisco Pacheco Mascarenhas, que anteriormente fora capitão de cavalos, comandara a última companhia em que serviu o memorialista Mateus Rodrigues.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21, “Relação dos Officiais, e Soldados da Infantaria e Cauallaria deste Ex[érci]to que se acha effectiua, Conforme consta dos roes de Lista da ultima m[ost]ra, que se lhes passou na maneira seguinte”.

Imagem: Mais uma perspectiva da excelente maquete representando piqueiros e mosqueteiros suecos do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648), presente no Museu Militar de Estocolmo. Foto de JPF.

Terços de Infantaria

[Abreviaturas: MC – Mestre de Campo; Of – Oficiais; Sold – Soldados]

Terços

Of

Sold

Total

MC D. Luís de Meneses 90

880

970

MC D. Francisco Mascarenhas

103

737

840

MC D. Pedro, o Pecinga (ou Opecinga)

98

607

705

MC D. Jorge Henriques

82

366

448

MC João Leite de Oliveira

86

550

636

MC D. Pedro Mascarenhas

92

415

507

MC Agostinho de Andrade Freire

101

670

771

MC Pedro de Melo

71

361

432

MC Francisco Pacheco Mascarenhas

66

271

337

MC Fernão da Mesquita Pimentel

78

377

455

Totais

867

5234

6101

Infantaria do Exército da Província do Alentejo em Maio de 1663

Um dia depois de D. Juan de Áustria ter saído de Badajoz com o seu exército, abrindo a campanha do Alentejo de 1663, era remetida ao Conselho de Guerra em Lisboa a lista da infantaria de que dispunha o exército daquela província. Quase 13.000 homens repartidos por oito praças, efectivos cuja junção levaria vários dias a concretizar-se, impedindo assim que fosse barrada a marcha ao exército espanhol que rumava à conquista de Évora.

As praças e as unidades nelas estacionadas eram as seguintes:

Estremoz

Terço da Armada, do mestre de campo Simão de Vasconcelos e Sousa (irmão do 3º Conde de Castelo Melhor, o Escrivão da Puridade e valido do rei D. Afonso VI) – 825 homens, dos quais 87 de baixa por doença.

Terço do mestre de campo napolitano D. Pedro Opecinga476 homens, dos quais 52 de baixa por doença.

– Terço do mestre de campo Tristão da Cunha de Mendonça287 homens, dos quais 9 de baixa por doença.

– Terço do mestre de campo Roque da Costa Barreto418 homens, dos quais 40 de baixa por doença.

– Terço do mestre de campo Lourenço de Sousa508 homens.

– Terço pago de Trás-os-Montes310 homens.

– Terço pago do Algarve457 homens (faltavam ainda 3 companhias, que eram esperadas em Estremoz).

– Terço de Auxiliares de Santarém310 homens.

– Terço de Auxiliares de Vila Viçosa212 homens.

– Regimento de Ingleses do tenente-coronel Thomas Hunt694 homens, dos quais 45 de baixa por doença.

– Regimento de Ingleses do coronel James Apsley495 homens.

Companhias soltas de Italianos263 homens, dos quais 26 de baixa por doença.

Vila Viçosa

– Terço do mestre de campo D. Diogo de Faro279 homens.

– Terço do mestre de campo João Furtado de Mendonça543 homens.

Elvas

– Terço do mestre de campo Francisco da Silva de Moura734 homens.

– Terço do mestre de campo Fernando de Mascarenhas 550 homens.

Campo Maior

– Terço do mestre de campo Pedro César de Meneses462 homens.

– Terço do mestre de campo francês Jacques Alexandre de Tolon360 homens.

– Terço pago de Cascais532 homens.

– Terço de Auxiliares de Avis350 homens.

Portalegre

– Terço do mestre de campo Alexandre de Moura630 homens, dos quais 130 de baixa por doença.

– Terço de Auxiliares de Portalegre 400 homens.

(Na altura da elaboração da lista, tinha chegado a Portalegre o terço pago da Beira, cujo efectivo ainda não fora contabilizado.)

Mourão

– Terço do mestre de campo Martim Correia de Sá350 homens.

– Terço do mestre de campo Miguel Barbosa da Franca501 homens.

– Terço de Auxiliares de Évora541 homens.

Moura

– Terço de Auxiliares de Campo de Ourique600 homens.

– Terço de Auxiliares de Beja350 homens.

Castelo de Vide

– Terço de Auxiliares do Priorado do Crato320 homens.

A distribuição dos militares por praças era a seguinte:

Estremoz – 5.469 (dos quais 1.259 doentes).

Vila Viçosa – 822.

Elvas – 1.284.

Campo Maior – 1.704.

Portalegre – 1.030 (dos quais 130 doentes).

Mourão – 1.392.

Moura – 950.

Castelo de Vide – 320.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1663, maço 23, “Lista da infantaria que se acha nas praças desta prouincia de Alentejo em 7 de Maio 663”.

Imagem: Mapa da Província do Alentejo, c. de 1700. Biblioteca Nacional.

O novo contrato com os mercenários holandeses, Julho de 1644 (2ª parte)

Muitos afazeres profissionais têm impedido a actualização mais regular do blogue. Pelo menos até meados deste mês, a actualização continuará a ser feita numa base semanal, para posteriormente regressar a um ritmo mais habitual. Prossigamos, pois, com a transcrição do contrato:

8. Que as companhias deste Regimento constarão de sessenta até oitenta praças o mais, entendendo-se isto neste princípio. Refazendo-se depois de oitenta a cem praças dentro de dois meses.

9. Que os soldos que vencerem os soldados deste Regimento lhe serão pagos em mão de seus capitães, os quais por eles o repartirão, fazendo com que tenham sempre seus cavalos e armas consertadas.

10. Que os soldados que de presente se conduzirem e levantarem aqui nestas fronteiras para este Regimento haverão catorze patacas [4.480 réis], que faz um mês de soldo na forma da capitulação holandesa, e os que vierem de Lisboa e outras partes haverão seis mil réis.

11. Que ao tenente-coronel, oficiais e soldados deste terço lhe correrão seus soldos do primeiro de Agosto deste presente ano por este contrato se começar com eles no próprio dia.

12. Que aos soldados que se apresentarem no dito terço, do dia que aclararem praça em Lisboa ou aqui, lhes correrá seu soldo, sendo-lhes pago na conformidade que os demais, com declaração que os que assentarem praça em Lisboa serão obrigados a virem a servir na fronteira dentro de quinze dias, e não o fazendo assim não vencerão soldo.

13. E que nem um oficial do Regimento holandês possa levar consigo a Lisboa ou outra parte soldado dele sem expressa licença do Governador das Armas, nem pessoa alguma, de qualquer qualidade que seja, possa tirar ou levantar deste Regimento holandês que ora serve soldado algum, porquanto os que ficarem devem servir, e são obrigados, neste Regimento estrangeiro. Mas antes que o dito tenente-coronel poderá fazer leva dos soldados estrangeiros desobrigados, quantos lhe forem possível, em qualquer parte que seja, sem pessoa alguma de qualquer qualidade que seja lho contradizer.

14. Que Sua Majestade, ou o Governador das Armas em seu nome, será obrigado a sustentar e pagar este Regimento alguns anos na forma prescrita, e em caso que algum oficial ou algum soldado deste Regimento, por causas justas, requeiram ir em qualquer tempo, se lhes concederá licença para o poderem fazer, pagando-lhes tudo o que lhe dever.

15. Que Sua Majestade, ou o Governador das Armas em seu nome, será obrigado a que no Regimento haja os oficiais seguintes e soldados pagos pelos soldos abaixo declarados cada mês.

Oficiais da Primeira Plana

Ao tenente-coronel haverá por soldo cada mês cento e cinquenta patacas e outras noventa patacas, as quais Sua Majestade fez mercê ao dito tenente-coronel Alexandre van Harten, de maneira que ao todo vem a ser setenta e seis mil e oitocentos réis.

Ao ajudante, cada mês, dez mil réis.

Ao auditor do terço, cada mês, oito mil réis.

Ao preboste do terço, cada mês, oito mil réis.

Ao cirurgião-mor, nove mil e seiscentos réis.

Oficiais de cada uma companhia

Aos quatro capitães que trabalhando em esta leva haverão por soldo cada mês trinta e dois mil réis, e fora destas doze mil  oitocentos réis, os quais Sua Majestade foi servido fazer mercê em particular a cada um deles, pela razão acima, que vem a ser quarenta e quatro mil e oitocentos réis.

Ao tenente de cada companhia, dezoito mil réis.

Ao alferes, por cada mês, catorze mil réis.

Aos furriéis de cada companhia, por cada mês, sete mil e quinhentos réis.

Aos cabos de esquadra, que serão três de cada companhia, haverão cada um por mês sete mil e quinhentos réis.

Aos trombetas, haverão dois em cada companhia, haverá cada um por mês sete mil e quinhentos réis.

A cada um soldado, segundo o soldo português, cada mês seis mil réis.

A alguns oficiais reformados que queiram ficar no real serviço até que alcancem postos aqueles que Sua Majestade ou Vossa Excelência for servido de lhe fazer mercê. [Não está indicada a quantia]

Pelo dito modo se cerrou esta capitulação ou convenção acima e atrás escrita, de uma parte o Senhor Conde Governador das Armas em nome de Sua Majestade. Pela outra parte o tenente-coronel Alexandre van Harten, em nome de todos os oficiais e soldados, obrigados cada um a cumprir e guardar tudo o escrito nesta capitulação. E se fizeram dois deste. Um ficou ao Senhor Conde Governador das Armas, outro ao tenente-coronel Alexandre van Harten. Feita em Elvas a dezoito de Julho da era de mil seiscentos e quarenta e quatro anos.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4-B, documento anexo à consulta de 2 de Agosto.

Imagem: “Celebração da Paz de Münster”, de Bartolomeus van der Helst (Rijksmuseum, Amesterdão). O contexto político-diplomático em torno da Paz de Münster em 1648 influenciou o destino do regimento holandês de cavalaria ao serviço de Portugal, ainda antes de ser oficialmente celebrado o fim da Guerra dos 30 Anos. Não haveria um terceiro contrato com os holandeses enquanto unidade. Os militares que continuaram ao serviço em Portugal após 1647 fizeram-no a título individual, integrados em unidades portuguesas. Alexandre van Harten passou a ser comissário geral na província do Alentejo.

O novo contrato com os mercenários holandeses, Julho de 1644 (1ª parte)

O tema que ora inicio está relacionado com assuntos já tratados aqui, aqui e aqui, respeitantes à presença do contingente holandês em Portugal, durante os primeiros anos da Guerra da Restauração.

O contrato estabelecido com os mercenários holandeses em Agosto de 1641 expirou passados três anos. Em Julho de 1644, apesar das reticências de D. João IV (ou de quem aconselhava particularmente o Rei) quanto a manter os holandeses ao seu serviço, tanto o Conde de Alegrete Matias de Albuquerque, governador das armas do Alentejo, como D. João da Costa, mestre de campo general, trataram de pressionar a Coroa no sentido de fazer um novo contrato com aqueles estrangeiros. Contrariando o mito – que se perpetuaria até aos nossos dias – da responsabilidade da cavalaria holandesa na derrocada inicial da batalha de Montijo, os experientes soldados das Províncias Unidas eram muito apreciados pelos comandantes que operavam no terreno. Havia, claro, o problema da religião, que dificultava as relações entre portugueses e holandeses – mesmo que D. João da Costa afirmasse que muitos oficiais e soldados do contingente eram católicos, a maioria era protestante, como se depreende de várias passagens das narrativas de guerra e de documentos oficiais, incluindo o próprio contrato que abaixo se apresenta; e a isto se juntava a sempre presente desconfiança em relação aos estrangeiros, um traço comum da mentalidade do período. Aliás, a tolerância em relação aos militares protestantes estava condicionada à discrição da sua conduta – só não “causando escândalo” ficariam ao abrigo de qualquer procedimento de natureza jurídica.

Não obstante estas contrariedades, a falta de efectivos experientes e capazes no exército português da província do Alentejo tornou imperioso manter ao serviço da Coroa portuguesa os profissionais holandeses. D. João IV acabou por dar o seu consentimento à elaboração de um novo contrato.

É o documento respeitante a esse contrato – ou capitulação, como então se designava um acordo deste género – que irei transcrever em duas partes, vertendo para português moderno a ortografia seiscentista original.

Capitulação feita com Sua Excelência o Conde Governador das Armas desta província em nome de Sua Majestade, com os poderes que para isso lhe deu o dito Senhor, entre o tenente-coronel Alexandre van Harten [no original está escrito Herten, mas o nome correcto é Harten, como se pode ver pela assinatura do próprio] e o dito Senhor Conde Governador, em razão de se formar um terço de cavalaria estrangeira [a designação terço aparece por vezes em lugar de regimento; o sistema regimental não existia ainda no exército português], que com o dito tenente-coronel hão-de servir nestas ditas fronteiras de Alentejo, ao qual deram os seus oficiais os poderes necessários para a dita capitulação na maneira seguinte:

Proposta antes da capitulação

O tenente-coronel e seus oficiais protestam a Sua Majestade com todo o ânimo e vontade em seu Real Serviço fazerem que os soldados e mais oficiais do Regimento Holandês fiquem no serviço do dito Senhor, fazendo-lhe toda a instância para que neste Reino sirvam na forma das capitulações abaixo:

Que sendo caso que os oficiais do Regimento Holandês que acaba em fim de Julho presente, por mal intencionados intentarem consigo levar para Holanda alguns dos ditos soldados, ou eles próprios soldados o fizerem por outro qualquer inconveniente, eles ditos tenente-coronel e oficiais não serão obrigados a perda e desserviço que nisto a Sua Majestade se fizer, mas antes o dito Senhor lhe remunerará o trabalho que na condução e levas tiverem feito, mandando-lhes tomar contas do dinheiro que tiverem recebido para o tal efeito, ficando depois desobrigados de toda a capitulação, e nesta conformidade os capítulos dela são os seguintes:

1. Que o dito tenente-coronel e oficiais e soldados que ficarem servindo neste terço o farão bem e fielmente, tomando todos juramento na forma acostumada, em mãos do dito Senhor Governador, para que em nome de Sua Majestade lhe tome a menagem, ficando obrigados a servirem contra todos os inimigos desta Coroa, sem distinção alguma, não sendo eles ditos tenente-coronel e oficiais e soldados obrigados a servirem em outra parte mais que pela defensa da terra firme e costa de Portugal.

2. Que o tenente-coronel, oficiais e soldados que houverem de ficar serão pagos de seus [soldos] atrasados, conforme a capitulação holandesa, na conformidade que o hão-de ser os demais oficiais e soldados que do Regimento Holandês se vão para Holanda. E recebendo estes ditos oficiais e soldados dinheiro em alguma parte dos ditos atrasados, entrarão eles ditos capitulantes na dita partilha, ficando pagos para que de novo comecem o dito contrato.

3. Que Sua Majestade terá respondido a proposta que o tenente-coronel lhe fizer para os oficiais que se houverem de criar no dito regimento, e não se farão de outro, havendo sujeitos capazes nele.

4. Que enquanto à administração da justiça, será conforme às leis e costumes militares deste Reino de Portugal.

5. Que os oficiais e soldados gozarão de todos os privilégios que gozam os vassalos desta Coroa, e morrendo na guerra ou de doença, até ao dia de sua morte ou de sua ausência se lhes pagarão seus soldos em mão dos seus capitães, ou de seus herdeiros. E sendo oficial, na do maior, não se metendo outra pessoa alguma nos ditos soldos e bens que ficarem dos defuntos, mais que os oficiais do próprio Regimento, os quais serão obrigados a fazer tudo aquilo que os restantes deixarem ordenado. E que os feridos, se lhe pagará seu soldo, na conformidade que aos mais soldados e oficiais.

6. Que se não procederá contra os oficiais e soldados por causa da religião, não procedendo com escândalo.

7. Que ao tenente-coronel e oficiais e soldados lhe serão dados cavalos necessários e de préstimo para poderem servir a Sua Majestade com todas as dependências para eles necessárias, como convém: armas, que constará de duas pistolas e uma carabina, peito e espaldar e murrião a cada soldado. E estas por uma vez somente, das quais darão conta seus oficiais ou o dito tenente-coronel, salvo os cavalos e armas que perderem nas batalhas, e outros casos extraordinários se lhes levará em conta na forma em que se fizer com todos os mais soldados portugueses e franceses.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4-B, documento anexo à consulta de 2 de Agosto.

Imagem: “Cavaleiros num acampamento militar”, pintura de Philips Wouwerman.

O outro Jacques Talonneau de la Popelinière, oficial francês de cavalaria ao serviço de Portugal (1646-1658)

Aelber

O primeiro Jacques Talonneau de la Popelinière foi um oficial francês que chegou a Portugal em Setembro de 1641, na armada do Marquês de Brézé, fazendo parte do regimento de cavalaria ligeira do coronel Sebastian de Mahé de la Souche. É indubitável a chegada de Popelinière nesta data, pois o seu nome é referido em diversos documentos, alguns dos quais relações dos oficiais franceses e respectivos regimentos. Quando Mahé de la Souche deixou Portugal em Maio de 1642 e o seu regimento foi dissolvido, Jacques de la Popelinière seguiu com a sua companhia para a Beira, onde logo foi nomeado comissário geral (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, vol. I, pg. 387, edição de 1945). Em 1644, aquele oficial é dado como morto em combate – e é assim que o reporto no meu estudo O Combatente durante a Guerra da Restauração, ainda que referindo que o seu último posto foi o de tenente-general da cavalaria na província de Trás-os-Montes.

Na verdade, documentos que posteriormente consultei sugerem ter havido um outro Jacques Talonneau de la Popelinière (casos de homónimos eram raros, mas não impossíveis: houve o exemplo, também entre cavaleiros franceses ao serviço de Portugal na mesma época, dos primos Henri de la Morlaye, um morto em Outubro de 1642, outro em Maio de 1649, ambos em combate). Este Popelinière é que ocupou, como último posto, o de tenente-general da província de Trás-os-Montes. Chegou a Portugal em 1646, portanto já após a morte do primeiro, e também combateu nos mesmos teatros de operações antes de ser promovido a comissário geral na província de Trás-os-Montes, em Janeiro de 1658.

A necessidade de nomeação de um comissário geral da cavalaria para Trás-os-Montes deveu-se ao facto do posto estar vago, por promoção de Domingos da Ponte, o Galego, a tenente-general naquela mesma província. Na consulta do Conselho de Guerra onde são feitas as propostas de sujeitos para o posto vago pode ler-se a respeito do até então capitão Jacques Talonneau de la Popelinière (texto vertido para português corrente):

Jacques Talonneau de la Popelinière, pessoa de qualidade, de nação francês, que serve a Vossa Majestade há quase doze anos, ocupando os postos, depois de soldado, de alferes, tenente, e de capitão de cavalos, que serve em Trás-os-Montes há seis anos, um mês, e quinze dias, e o mais tempo parte dele na Beira, e outro nas fronteiras de Alentejo, achando-se nelas na maior parte das ocasiões que naquele tempo se ofereceram, e particularmente no encontro que houve em vinte seis de Março de seiscentos quarenta e sete, com vinte quatro tropas na passagem de Cantilhana, na escaramuça que depois se teve com outras tropas de Badajoz, ficando prisioneiro entre elas, e tornando de Castela em sua liberdade, se achou na emboscada que se fez junto a Badajoz em Setembro de quarenta e nove; no encontro que houve com sete tropas em Albufeira, indo mais de uma légua no seguimento delas; e se achou na peleja que a nossa cavalaria teve com a que saiu de Montijo, na correria da campanha de Xerês. E sair de Olivença a pelejar com o inimigo, que se veio emboscar junto da muralha da mesma praça, em Maio de seiscentos e cinquenta, desmontando um castelhano lhe deu uma cutilada no rosto. Na oposição que em treze de Fevereiro de seiscentos cinquenta e um se fez ao inimigo vindo com grosso de sua cavalaria a correr a campanha de Olivença, saiu ferido num braço com bala de pistola. E o mesmo ano se achou na entrada de Salvaterra, e o mesmo ano passou a Trás-os-Montes, onde por ordem do Conde de Atouguia, que governava as armas, por não haver cabo, governou a cavalaria que assistia em Chaves, achando-se nas duas entradas que se fizeram em Castela, e na ausência do capitão-mor da cidade de Miranda a ficou governando, acudindo com grande zelo às fortificações dela, e ultimamente se assinalou, matando e ferindo e rendendo a muitos do inimigo. E na entrada que em dois de Maio de seiscentos cinquenta e cinco se fez, pelas terras de Trás-os-Montes com quatrocentos e quarenta cavalos, tendo-se-lhe encarregado investisse o inimigo, como fez com valor indo em seu seguimento, e da mesma maneira obrar nas ocasiões referidas. Depois delas, acompanhou o mestre de campo António Jacques de Paiva, e achando-se em Miranda, nas entradas que fez em Galiza onze léguas pela terra dentro, saqueando-lhe mais de  setenta lugares, e as Vilas de Pino, Távora e Carvalhosa. E pretendendo o inimigo desquitar-se, vindo com quinhentos infantes pagos e outros tantos milicianos, e cento e quarenta cavalos, achando-se o mestre de campo na campanha com duzentos e três infantes e oitenta cavalos à ordem de Jacques Talonneau, investiu o inimigo com tal resolução, que matando-lhe muita gente e aprisionando-lhe duzentos trinta e sete soldados, com vinte e oito cavalos, e ganhando-lhe as munições e bagagem, e finalmente restaurando a presa que levava se recolheram, assinalando-se este capitão com particular valor, pelejando à espada, rendendo, ferindo e matando muitos castelhanos. Em outra ocasião, por ordem do tenente-general Luís de Figueiredo Bandeira, saiu com a sua companhia, e outra mais, governando-as, por haver o inimigo dado rebate à praça de Bragança, e encontrado-se com ele, pelejou com tal resolução que o pôs em fugida, trazendo ainda alguns prisioneiros do inimigo. Foi de socorro com sua companhia e a mais cavalaria de Trás-os-Montes à fronteira do Minho na ocasião que o inimigo a entrou com exército, e em todo o tempo que ali assistiram, se houve com grande valor nas pelejas, emboscadas e encontros que se teve com o inimigo, em que recebeu muito grande perda de gente morta, ferida, prisioneiros, e de cavalos que se lhe tomaram. Acabada a campanha, tornou para Trás-os-Montes. E vindo a esta Corte a tratar de seu requerimento, escreveu a favor deste capitão Joane Mendes de Vasconcelos, governando as armas naquela província, a Vossa Majestade que lhe devia Vossa Majestade de mandar deferir, assim por seu grande valor, como por ser o capitão mais antigo dela. E havendo Vossa Majestade despachado por seus serviços com o hábito de Santiago, foi servido se lhe mudasse ao de Cristo, com uma comenda de lote de duzentos mil réis.

O outro nome proposto foi o de Manuel da Costa Pessoa, que servia há treze anos, dois meses e vinte dias, tendo começado a servir em Setúbal em Setembro de 1640, na companhia de infantaria do Duque de Aveiro que devia ir à Catalunha; serviu 5 anos no Alentejo como soldado de infantaria e da cavalaria, foi cabo de esquadra e furriel e depois alferes de infantaria; participou na campanha de 1643 e nas duas campanhas de Montijo (como soldado de cavalos). Passou a Trás-os-Montes como alferes reformado, assim permanecendo 5 meses e 17 dias, mas depois, 3 anos e 27 dias de ajudante e como capitão de cavalos 4 anos, 7 meses e 11 dias.

O capitão francês acabou por ser provido no posto de comissário geral por decreto de 21 de Janeiro de 1658.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1658, mç. 18, consulta de 9 de Janeiro de 1658.

Imagem: Aelbert Cuyp, “Descanso no acampamento”, c. 1660, Musée des Beaux Arts, Rennes.

Cavalaria e dragões holandeses em Portugal (1641-1644) – uma revisão

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A escrita da História nunca é definitiva. Quando se produz uma síntese em função da documentação recolhida e analisada, eis que se descobre um documento até então “escondido” ou descurado que obriga a rever o que até então era dado como muito plausível ou mesmo certo.

É o caso dos dragões ao serviço do exército português. Sobre a existência de uma única companhia portuguesa, não existem grandes dúvidas. No que respeita às unidades estrangeiras de dragões, sabia-se que haviam sido constituídos – pelo menos no papel – um regimento holandês e outro francês. Do francês, a única prova fidedigna que existe é o de uma companhia com 20 soldados, mas sem qualquer tipo de armamento, segundo uma mostra passada em Julho de 1644. Do holandês, escrevi que nunca tinha sido constituído e que os seus militares haviam sido integrados em companhias de cavalos ou combatido como infantaria. A documentação dispersa apontava nesse sentido. A ausência de referências explícitas nas fontes narrativas a dragões holandeses parecia confirmar a hipótese. Até porque o seu hipotético comandante regimental, o tenente-coronel Eustacius Pick, esteve em vias de regressar às Províncias Unidas em meados de 1642, mas acabou por permanecer em Portugal, onde serviu como mestre de campo de um terço português até à batalha de Montijo.

Mas um documento que até agora não tinha sido explorado veio lançar uma nova perspectiva sobre o assunto. Uma carta de D. João da Costa, de 28 de Dezembro de 1643, inclusa numa consulta do Conselho de Guerra de Janeiro do ano seguinte, refere que, ao contrário do sucedido com as unidades francesas, as holandesas ainda não tinham sido reformadas (ou seja, reorganizadas ou extintas, conforme os casos) nessa altura, por se ter extraviado a carta régia que assim o ordenava. Na missiva, o cabo de guerra aponta os números da última mostra que se passara ao contingente holandês. Assim, havia 369 soldados montados de cavalaria ligeira, em oito companhias, que se podem e devem reduzir a quatro. E 148 dragões montados em quatro companhias, que se devem reduzir a duas. Havia ainda 101 soldados a pé. D. João da Costa sugeria que se  formasse com estes soldados uma companhia de infantaria, para que sirvam a pé com mosquetes e arcabuzes enquanto não houver cavalos para lhes dar.

No rol de unidades que constituíram o exército que em 1643 lançou a campanha ofensiva sobre território espanhol, todas as companhias holandesas são incluídas na cavalaria, sem qualquer distinção ou referência a dragões (veja-se, por exemplo, João Salgado de Araújo). No segundo contrato celebrado com a Coroa portuguesa (1644-1647), ficou a servir em Portugal apenas um regimento de cavalaria a 4 companhias, inicialmente com cerca de 100 soldados cada. Sobre este assunto a documentação é mais clara e não deixa margem para dúvidas.

Fonte:  ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4, cx. 29, carta anexa ao doc. nº 75.

Imagem: “Assalto de militares a uma aldeia”; Sebastian Vrancx, meados do séc. XVII.

Regimentos ingleses ao serviço da Coroa portuguesa (1662-1668)

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Na sequência do Tratado de Aliança celebrado entre Portugal e Inglaterra em Junho de 1661, ficou acordado que a Coroa inglesa enviaria para Portugal dois regimentos de cavalaria e dois regimentos de infantaria. Os primeiros teriam um efectivo de 500 homens cada e os segundos contariam, cada um, com 1.000 infantes. Uma força de 3.000 militares profissionais, assim se esperava.

Os efectivos totais enviados para Portugal ficaram abaixo do esperado. A cavalaria contou apenas com um regimento composto, inicialmente, por 8 companhias, num total de 400 homens. Uma força bastante heterogénea, com militares provenientes do antigo exército da Commonwealth de Oliver Cromwell e outros que se tinham batido no campo oposto – os Realistas – durante a Guerra Civil Inglesa, incluindo irlandeses. Aliás, o primeiro comandante do regimento foi um irlandês, o coronel Michael Dongan, que até 1661 tinha servido como mestre de campo no exército de Filipe IV. Já os dois regimentos de infantaria embarcaram para Portugal com um efectivo total de 2.200 homens, todos eles voluntários e antigos militares do exército de Cromwell. Após a restauração da monarquia em Inglaterra, Carlos II desmobilizou a maior parte das unidades criadas por Oliver Cromwell, mas algumas mantiveram-se ao serviço da monarquia. Era o caso de três regimentos que tinham a sua guarnição na Escócia, a partir dos quais se formaram os dois que viajaram para Portugal em 1662. A infantaria veio equipada com uniformes de cor vermelha (casaca, colete e calça), provavelmente com vivos nos canhões das mangas de cor diferente para cada regimento, como era usual na época. O vermelho tornara-se cor predominante (embora não a única utilizada) nos uniformes ingleses desde a criação do New Model Army em 1645. Em suma, o efectivo inicial do contingente inglês era de 2.600 militares (2.200 infantes e 400 cavaleiros).

A deserção e o atrito das campanhas fez oscilar grandemente os números ao longo dos anos da guerra, sempre com a tendência para a diminuição, pois as reposições das perdas foram escassas. Por exemplo, na batalha do Ameixial, em Junho de 1663, o contingente inglês compunha-se de 1.600 infantes, em dois regimentos, e 300 cavaleiros, num regimento a 6 companhias. Nos finais de 1666, o regimento de cavalaria mantinha cerca de 300 soldados nas fileiras (graças a um reforço de irlandeses), mas os dois regimentos de infantaria não conseguiam, em conjunto, alinhar mais do que 700 soldados. O contingente tinha então  pouco mais da terça parte do efectivo inicial.

Os ingleses bateram-se com brio e coragem em muitas ocasiões, sendo a sua experiência militar muitísismo importante para os sucessos alcançados na batalha do Ameixial (1663), tomada de Valência de Alcântara (1664) e batalha de Montes Claros (1665).

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este tema é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais. Aqui ficam os comandantes das unidades:

Comando do contingente: Murrough O’ Brien, Conde de Inchinquin (Julho-Novembro 1662); Christopher O’ Brien (Novembro 1662-Janeiro 1663); Conde de Schomberg (1663-1668).

1º Regimento de infantaria: Coronel James Apsley. A partir de 1665, o regimento passou para o comando pessoal do Conde de Schomberg, mas o comando efectivo foi delegado no tenente-coronel William Sheldon. Este oficial liderou o regimento na batalha de Montes Claros, em 1665, tendo morrido aí em combate.

2º Regimento de infantaria: Coronel Henry Pearson; o regimento foi comandado pelo tenente-coronel Thomas Hunt na batalha do Ameixial. Thomas Hunt morreu em 1664, no ataque a Valência de Alcântara, passando o regimento a ser comandado pelo major John Rumpsey. Foi este oficial que conduziu o regimento em 1665, na batalha de Montes Claros, pois Pearson continuava ausente em Inglaterra.

Regimento de cavalaria: Murrough O’ Brien, Conde de Inchinquin (Julho-Novembro 1662); Conde de Schomberg (comandante honorário. 1662-1668). O comando efectivo do regimento foi desempenhado pelo tenente coronel Michael Dongan, até à sua morte na batalha do Ameixial. Depois,  foi entregue ao major Lawrence Dempsey, e quando este morreu em 1664, coube ao Marquês de Schomberg, o filho mais velho do Conde, chefiar a unidade até ao final da guerra.

Bibliografia:

CHILDS, John – “The British Brigade in Portugal, 1661-1668”, in Journal of the Society for Army Historical Research, vol. LIII, 1975, pp. 135-147.

Id. – The Army of Charles II, London, Routledge & Kegan Paul, 1976. (O apêndice sobre o contingente inglês, no final do volume, contém erros a respeito das unidades em que os oficiais serviram)

HARDACRE, P. H. – “The English Contingent in Portugal, 1662-1668”, in Journal of the Society for Army Historical Research, vol. XXXVIII, 1960, pp. 112-125.

Imagem: Piqueiros ingleses do período da Guerra Civil. É pouco provável que em Portugal tenham usado peitos e espaldares – embora alguns oficiais os utilizassem: numa ocasião, foram as boas armas de corpo usadas por James Apsley que o salvaram de receber danos de armas de fogo. Também as casacas seriam de um modelo diferente, mais compridas, de acordo com a moda da década de 60. Foto de J. P. Freitas – Kelmarsh Hall, “History Day” 2007.

Nicolau de Langres, arquitecto e engenheiro militar

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Nicolau de Langres, arquitecto e engenheiro militar, chegou a Portugal em 1644, com um contrato inicial válido por três anos. Em França, ao serviço de Luís XIII, adquirira experiência no projecto e reparação de fortalezas. Permaneceu em Portugal muito para além do termo do primeiro contrato. Sucedeu a João Pascácio Cosmander na província do Alentejo como coronel superintendente dos engenheiros, tendo desenhado os projectos de fortificação de várias praças naquela província, como Estremoz, Campo Maior ou Juromenha. Tal como o seu antecessor holandês, também Nicolau de Langres viria a ser capturado e passaria a servir o soberano espanhol, neste caso no início da década de 60. E a completar a coincidência de trajectos entre aqueles dois engenheiros militares, também Nicolau de Langres viria a morrer num cerco: o de Vila Viçosa, em 1665, onde foi mortalmente ferido, durante a campanha que conduziu à batalha de Montes Claros.

Na Biblioteca Nacional de Lisboa existe um volume que reúne vários dos seus trabalhos ao serviço da Coroa portuguesa. É desse volume que se reproduz a gravura acima – um auto-retrato de Nicolau de Langres, no acto idealizado de preparar um esboço de fortificação, sendo acompanhado de dois criados, muito provavelmente durante a década de 1650.

LANGRES, Nicolau de – Desenhos e Plantas de todas as praças do Reyno de Portugal pelo Tenente General Nicolao de Langres Francez, que servio na guerra da Acclamação. (F2359)

Regimentos holandeses de 1641 ao serviço da Coroa portuguesa (cavalaria e infantaria – organização teórica)

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Regimentos constituídos “no papel” em Outubro de 1641. Tal como no caso dos franceses, as 8 companhias de cavalaria (a 100 cavalos cada, segundo o efectivo previsto) operaram quase sempre de forma independente, embora a designação “regimento” se mantivesse em termos puramente administrativos e contratuais. O regimento de dragões é mencionado num documento de 1644, mas tal como a cavalaria, as companhias (num máximo de quatro) terão operado de forma independente. As fontes narrativas não distinguem cavaleiros e dragões holandeses, e os documentos oficiais (róis enviados ao Conselho de Guerra após as mostras efectuadas no Alentejo, ou cartas com declaração minuciosa dos efectivos) juntam sempre a cavalaria e os dragões num único regimento. O tenente-coronel Estacius Pick, inicialmente declarado como comandante do regimento de dragões, recebeu patente de mestre de campo e o comando de um terço de infantaria portuguesa a 12 companhias (com vários  militares estrangeiros, incluindo quatro oficiais holandeses e franceses) no Alentejo em 1642. Pick foi capturado pelos espanhóis na batalha de Montijo e só foi libertado em finais de 1646, tendo regressado à Holanda.

À semelhança do que aconteceu com a cavalaria francesa, as reformas de Março de 1645 integraram as companhias do ex-regimento de cavalaria no exército português (nessa data já não se fazia qualquer referência aos dragões). Até então, por motivos religiosos, as unidades de cavalaria holandesa estavam proibidas de incluir soldados portugueses. Com a dissolução do regimento e a integração dos oficiais e soldados holandeses no exército português, essa discriminação terminou.

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este assunto é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais.

Comando do contingente (apenas até ao início de 1642): coronel Lambert Floris van Til (m. 1642; cabia-lhe comandar uma companhia de cavalaria, embora delegasse o comando efectivo da mesma no tenente Mathias Waremburg).

Regimento de cavalaria: Comandante, tenente-coronel Jan Willem van Til (irmão do coronel Lambert Floris); sargento-mor, Alexandre van Harten (comandava uma companhia; m. 1647, sendo comissário geral no Alentejo); capitães, Conrad Piper, Jacob de Cleer, Jacob van Wagen, Alexandre Bery, Mauricius Lamair, Henrique Schilt, Gaspar van Berg.

Regimento de dragões (só parcialmente constituído no terreno): Comandante, tenente-coronel Estacius Pick; capitães, Frederik van Plettemburg, Frederik Streecht, Joan Doecy, Pedro Behan, Sigismundus Finkeltous, Roomfort, Joan de La Roche. Alguns destes oficiais passaram a servir na cavalaria, outros receberam passaportes para regressarem à Holanda em meados de 1642, mas alguns deles demoraram-se em Portugal, sem prestar qualquer serviço, pelo menos até finais de 1643.

Imagem: Combate de cavalaria. Pintura do século XVII (autor não identificado).

O combate da Atalaia da Terrinha, 5 de Junho de 1647 (3ª parte)

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Recebera D. João de Ataíde ordem de atacar a cavalaria inimiga, mas a progressão foi feita com tanto vagar que a força espanhola passou primeiro o ribeiro e ficou do lado oposto, à espera da reacção portuguesa. Conforme relatou o governador das armas Martim Afonso de Melo…

(…) como não o investimos antes de o passar, com quatro tropas [companhias] que o comissário tinha apartadas, depois foi com grande risco avançar com o inimigo passada a ribeira, o que fez o capitão António Jacques de Paiva e Lopo de Sequeira, tenente da companhia de António Saldanha [da Gama], que ficou na praça [de Elvas] mal disposto, e como estavam da outra banda carregaram todas as tropas do inimigo, que seriam oitocentos cavalos, sobre estas duas nossas, que não puderam aguentar o choque e voltando feriram alguns soldados e o mesmo capitão António Jacques de Paiva e o capitão de dragões [René] Grudé [francês] e o capitão Van Ingen [holandês], a quem levaram prisioneiro por se ir nas companhias que passaram a ribeira; o general da artilharia me fez queixa que os oficiais da cavalaria não fizeram o que ele lhe ordenara (…), e hei-de castigar com todo o rigor ao que achar culpado em não querer investir quando o mandaram, porque o certo é que anda mal acostumada esta nossa cavalaria, mas contudo o inimigo se retirou e largou o posto e nós ficámos nele até às cinco da tarde (…).

O que aconteceu entre a ordem de atacar e a sua tardia e incompleta execução (estando a cavalaria espanhola já formada no lado oposto do ribeiro) é narrado pelo soldado Mateus Rodrigues, que participou na acção:

Dom João (…) chamou um ajudante da cavalaria para levar as ordens do que haviam de fazer, e como este tal ajudante lhe não eram os capitães fidalgos muito afeiçoados, por haver sido criado do mesmo Dom João de Ataíde, (…) quando (…) levou as ordens aos capitães houve uma descomposição com ele, e um capitão de cavalos, por nome João da Silva [de Sousa] lhe disse mui más palavras, e correu após dele com a espada na mão para lhe dar, e o dito ajudante se veio mui queixoso (…) ter com Dom João do que lhe haviam feito. De modo que o mesmo Dom João levou as ordens  pessoalmente a todos os capitães e mandou a um capitão, por nome António Jacques de Paiva, com três companhias, que era a sua e a do tenente Lopo de Sequeira e a (…) companhia de Dom João, que era a minha, e o cabo [ou seja, comandante] que ia na minha [era] o alferes Agostinho Ribeiro, e (…) disse Dom João ao capitão António Jacques que fosse sua mercê com aquelas três companhias a pelejar com o inimigo, mas que não passasse o ribeiro além (…), que assim como chegasse [a] averbar com o inimigo ao pé do ribeiro, lhe desse uma carga de cravinas e pistolas, mas que logo voltasse na mesma hora para trás, dando as costas ao inimigo, e que era força que, vendo-o o inimigo fugir, o havia de carregar logo, e tanto que o inimigo passasse o ribeiro após eles, era força que se havia de descompor (…).

D. João de Ataíde foi então dar as ordens aos capitães, para que atacassem todos ao mesmo tempo logo que o inimigo passasse o ribeiro em perseguição das companhias (quatro, segundo Martim Afonso de Melo; três, na versão de Mateus Rodrigues). Mas, segundo escreve o soldado, o mesmo foi dar-lhe[s] esta ordem que dizer-lhes que fugissem.  António Jacques de Paiva, por seu lado, excedeu as ordens que recebera, pois passou o ribeiro com as companhias, e na desorganizada retirada veio [o inimigo] logo sobre os nossos como um raio, fazendo tudo numa poeira. Mas o que os nossos batalhões haviam de fazer em investir o inimigo, fizeram em fugir todos à rédea solta para [a] Atalaia, e são [sic] o mais infame que jamais se há visto. Tanto que o inimigo (…) viu nossa pouca vergonha, aproveita-se logo da ocasião, seguindo-nos como uns cães, e o pior de tudo que quem ficava nas piores eram as três companhias que havíamos ido a picá-lo, pois lhe ficávamos mais à mão. E assim a perda que houve foi delas, que lhe tomou o inimigo mais de 60 cavalos (…), matando-lhe 20 ou 30 homens.

O general da artilharia André de Albuquerque, que estava na Atalaia com a infantaria, mal viu a fuga precipitada da cavalaria portuguesa, mandou avançar os terços.

(…) o inimigo, assim como viu nossa infantaria, logo se retirou mui depressa, visto haver feito já o que podia fazer, e se retirou a Badajoz, donde teve aquele capitão [D. Alonso Cabrera], que foi causa daquilo, grandes louvores do seu governador; e na verdade os merecia tanto como os nossos mereciam o castigo.

Do lado português, o governador das armas Martim Afonso de Melo ficou furioso com o sucedido. Das consequências finais tratará o derradeiro capítulo desta série.

(continua)

Citações: Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, vol. I,  pgs. 144-145; Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 176-178.

Imagem: Adam Frans van der Meulen, “Combate de cavalaria”, Kunsthistorisches Museum, Viena.

Um escocês ao serviço de D. João IV – o mestre de campo David Caley (3ª parte)

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Nos finais de 1645, David Caley estava na província da Beira, em Penamacor. Um procedimento incorrecto da sua parte motivou uma advertência, conforme se pode ler num decreto régio de 22 de Novembro de 1645:

Pelo Conselho de Guerra se avise ao Governador das Armas da Província da Beira estranhe com demonstração ao Mestre de Campo David Caley o mau tratamento que em companhia dos reformados que levou de Lisboa fez, em Penamacor, aos oficiais que lhes foram fazer pagamento na forma das ordens que tinham minhas, e lhe advirta da minha parte, o respeito e decoro que é bem se guarde a semelhantes oficiais, e que do contrário me haverei por muito mal servido, e mandarei proceder na matéria com rigor. E ao Vedor geral da mesma Província encarregará mui particularmente a pontual observância do Regimento que lhe mandei dar. Montemor o Novo em 22 de Novembro de 1645.

Em Janeiro de 1646, nova advertência. Desta feita, o mestre de campo guardara para si a totalidade da venda do saque efectuado numa incursão a território inimigo, não entregando a quinta parte à fazenda real, como a lei determinava. Caley argumentou que o montante da presa (300.000 réis) era inferior ao total dos soldos que lhe eram devidos e cujo pagamento estava em atraso. Nesse ano, David Caley passou a comandar um dos dois terços pagos que aquartelavam em Olivença. Apesar do feitio algo difícil, o mestre de campo escocês era apreciado pela sua experiência e valor militar.

Todavia, o prestígio de Caley estava a baixar quando ocorreu o assalto espanhol à praça de Olivença, em 18 de Junho de 1648. Durante os combates travados nas ruas daquela localidade, D. João de Meneses, governador da vila, tombou gravemente ferido, e o mestre de campo D. António Ortiz de Mendonça, comandante do primeiro terço da guarnição, foi mortalmente atingido. Poucos dias depois do sucedido, o Conde de São Lourenço escreveu a D. João IV acerca do desempenho dos defensores durante o assalto:

Os capitães do terço de David Caley o fizeram mui honradamente, o mestre de campo muito mal, e é grande a murmuração que em todos os soldados e moradores de Olivença corre sobre este homem, porque sobre ser de pouco préstimo, ser fraco, não é coisa que se sofra, ocupando um posto tamanho, que em faltando o governador daquela praça lhe toca a ele.

O Conde de S. Lourenço não era muito apreciador de estrangeiros. Na sua correspondência, raramente algum lhe merecia encómios, enquanto as observações de desdém eram frequentes (na verdade, também muitos oficiais portugueses eram vítimas da soberba do governador das armas). Mas a reputação de David Caley já não era a mesma de anos anteriores, e o facto de D. João de Meneses, impossibilitado de governar a praça devido ao seu grave ferimento, não ter passado o governo interino ao mestre de campo escocês (o oficial mais graduado e mais antigo no exército do Alentejo, após a morte de D. António Ortiz), preferindo entragá-lo ao capitão de cavalos António Jacques de Paiva, é revelador do pouco crédito do oficial mercenário.

O Conde de S. Lourenço mandou de imediato levantar um inquérito (uma devassa, como então se dizia) ao alegado mau comportamento de David Caley durante o assalto à vila. Mas entre o ordenar e o executar, o tempo foi passando. Três meses mais tarde, em Setembro, a devassa ainda não tinha principiado. Os soldados do terço de Caley – os que ainda não tinham desertado – não queriam testemunhar contra o seu comandante. Afinal, talvez o mestre de campo estivesse a ser vítima de intrigas ou desavenças anteriores com outros oficiais. O próprio Rei D. João IV não autorizou que Caley fosse afastado do comando do terço até o inquérito estar concluído, apesar da insistência do Conde de S. Lourenço para que isso acontecesse, argumentando que o escocês poderia desertar para Espanha.

Em Outubro de 1648, com a devassa ainda por concluir, David Caley e a sua mulher deixaram Olivença e foram para Lisboa. Precisamente um ano mais tarde, um alvará régio mandava que se fizesse o ajuste das contas com o oficial entretanto despedido do serviço de El-Rei, para que se lhe pagasse o que era devido, de modo a que pudesse embarcar para a sua terra. Mas em Março de 1650 ainda se encontrava em Lisboa, miserável e doente, conforme refere numa petição enviada ao Conselho de Guerra: havia mais de ano e meio que não recebia nada do que lhe era devido, e além disso era injustamente acusado de não ter dado conta do equipamento militar que fora distribuído ao seu terço da ordenança na campanha de 1643! O Conselho de Guerra mostrou-se compreensivo para com o oficial estrangeiro:

(…) porque como é estrangeiro e ao tal tempo nem sabia a língua nem os estilos deste reino, tudo o sobredito recebeu e repartiu o seu sargento-mor João de Canton, que era prático, sabia a língua e havia servido no Brasil e tudo repartiu pelas companhias, que como eram soldados de três meses só para a campanha (…) se foram, além de que borrachas, mochilas, bândolas e balas, nenhuns soldados tornam a entregar, que lá gastam (…)

Os conselheiros estranharam que o mestre de campo fosse obrigado a dar conta do material, pois essa responsabilidade cabia aos comandantes das companhias do terço; e acrescentaram que seria de maior escândalo e sentimento se David Caley deixasse o Reino com mais esta ignomínia. No mês seguinte, em Abril de 1650, em nova consulta, o Conselho de Guerra esclareceu definitivamente o caso, com uma cópia da certidão de armas entregue, em 1643, pelo sargento-mor João de Canton. E concluiu que David Caley não estava em dívida, e que se lhe devia fazer o remate das contas para voltar para a sua terra, que é o prémio que pede do tempo que serviu Vossa Majestade tantos anos e não haver sido condenado.

Não há mais informações sobre David Caley, pelo que é muito provável que tenha deixado o Reino em meados de 1650. Pode entender-se, tanto pela recusa dos seus subordinados em deporem contra ele, como pela atitude favorável do Conselho de Guerra e pelo facto de não ter sido condenado, que o escocês terá tido problemas no Alentejo com elementos do topo da hierarquia militar e talvez com outras pessoas mais – aparentemente, Caley era, também ele, de trato difícil – mas que não terá havido fundamento para as graves acusações que sobre ele recaíram na ocasião do assalto a Olivença em Junho de 1648.

Bibliografia: o período de serviço de David Caley em Portugal foi abordado num artigo de minha autoria, “War abroad: English, Scot and Irish officers in the Portuguese Army, 1641 to 1657”, in Arquebusier, vol. XXIX/III, 2005, pp. 2-11. Para além da obra de Cristóvão Aires de Magalhães Sepúlveda, História Orgânica e Política do Exército Português – Provas, onde David Caley é referido entre muitos outros oficais estrangeiros, existe também uma transcrição de um documento relativo àquele oficial em JAYNE, M. S. , “State papers, Portugal, 89/4, Public Record Office, London”, in Congresso do Mundo Português, vol. VII, t. II, II sec., Lisboa, Publicações da Comissão Executiva dos Centenários, 1940, pp. 236-237.

Fontes:

ANTT, Conselho de Guerra, Decretos, 1642, maço 2, nº 43; 1643, maço 3, nº 103; 1644, maço 4, nº 24 e nº 26; 1645, maço 5, nº 110; Consultas, 1650, maço 10, conultas de 18 de Março e de 30 de Abril.

ARAÚJO, João Salgado de,  Successos Militares das Armas Portuguesas em suas fronteiras depois da Real acclamação contra Castella. Com a geografia das Prouincias, & nobreza dellas, Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1644, pgs. 183 v e 223.

Cartas de El-Rei D. João IV para diversas autoridades do Reino, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, pg. 26, carta régia de 27 de Janeiro de 1646.

Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV e a El-Rei D. Afonso VI, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940, Vol. I,  pgs. 289, 318-319, 321-322, 325 e 333; Vol. II, pgs. 50, 63-64, 68 e 72.

Imagem: Alguns dos locais do Alentejo por onde se movimentou David Caley, no período em que serviu em Portugal. Novissima regnorum Portugalliae et Algarbiae descriptio, c. 1680, Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1681A.

Um escocês ao serviço de D. João IV – o mestre de campo David Caley (2ª parte)

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No início do ano de 1644, David Caley recebeu o comando de outro terço da ordenança de Lisboa, que devia ser formado com uma mescla de recrutas inexperientes e reformados (oficiais tornados excedentários devido à dissolução das suas unidades, os quais passavam a  receber uma pequena fracção do soldo e podiam ser incorporados de novo, mesmo como simples soldados). Estas unidades novas da ordenança, destinadas a combater nas fronteiras, eram constituídas apenas por um período de três meses, findo o qual oficiais e soldados eram desmobilizados. Em Fevereiro de 1644 ainda faltavam três companhias para completar o terço, que também necessitava de capitães e de um sargento-mor. Foi com este terço que, em Maio, Caley se bateu na batalha de Montijo, a qual provocou uma razia no exército do Alentejo. David Caley regressou a Lisboa para assumir o comando de um de três novos terços da ordenança, rapidamente levantados para suprir as baixas sofridas. Ainda com pouca instrução militar e sem armas, os cerca de 1.000 homens foram conduzidos pelo mestre de campo até Estremoz, onde finalmente receberam armas e munições capturadas aos espanhóis durante a campanha do ano anterior. Daí, partiram para Olivença, onde ficariam a fazer parte da guarnição.

David Caley conhecia agora muito bem o exército português, as suas características e principalmente as suas fraquezas. Ele e outros oficiais providenciavam instrução militar com regularidade aos soldados, mas tudo isso seria desperdiçado quando a unidade fosse desmobilizada, findos os três meses de serviço. Escreveu ao Conselho de Guerra a esse propósito e foi o próprio Rei que, em resposta à solicitação do escocês, enviou uma carta ao então governador das armas da província, Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete:

Conde de Alegrete amigo, Eu El-Rei vos envio muito saudar como aquele que amo. David Caley me pede em uma carta que me escreveu, mande que a gente do seu terço seja paga, pois se conhece que de o não ser resulta grande desserviço [ou seja, prejuízo] meu, servindo os oficiais da primeira plana só três meses do ano e estarem ociosos os nove restantes no castelo de Lisboa, e por outras razões que se deixam considerar, para que o ensino e exercício que se vai dando à gente de que hoje se compõe o terço, se não perca por se ir afeiçoando a este exercício, estando já hoje de sorte que os mais aceitarão o não sair dele, podendo-se também considerar grande conveniência em que se pode poupar o trabalho e gasto que se faz em novas levas, encomendo-vos que inteirado de tudo e mandando-vos informar por um tenente de mestre de campo general, ou por quem melhor vos parecer, se os soldados deste terço, sendo da leva dos três meses, se acomodarão de sua própria vontade a assentar praça e ficar servindo nele de soldados pagos, me avisais do que se vos oferecer sobre esta matéria para se tomar nela a resolução que mais convenha a meu serviço. Escrita em Alcântara a 30 de Junho de 1644. Rei. (ANTT, Secretaria de Guerra, Livro 5º, fl.153 – a ortografia foi actualizada; as restantes fontes e bibliografia serão referidas no final desta série de artigos.)

O terço foi elevado à categoria de tropas pagas, mas as previsões optimistas não se confirmaram. Muitos soldados acabaram por não se adaptar à vida na fronteira de guerra e as deserções foram aumentando. Em Março de 1645 o terço foi dissolvido. A próxima etapa na carreira de David Caley passaria pela província da Beira.

(continua)

Imagem: Infantaria do período da Guerra Civil Inglesa. Reconstituição histórica, Kelmarsh Hall, 2007. Foto de Jorge P. Freitas.

Um escocês ao serviço de D. João IV – o mestre de campo David Caley (1ª parte)

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Desfeita a Monarquia Hispânica, o conflito entre os reinos vizinhos ibéricos atraiu muitos mercenários estrangeiros, dispostos a oferecer os seus serviços a qualquer dos exércitos. No caso de Portugal, eram muito apetecidos, no início da guerra, os militares que pela sua experiência e capacidade pudessem ocupar postos na cavalaria, onde se notava mais a falta de capitães e oficiais superiores com efectiva experiência de comando em cenário de guerra. Já na infantaria o caso não era tão premente, pois havia muitos oficiais com anos passados na guerra contra os holandeses no Brasil, ou contra os inimigos de Filipe IV (III de Portugal) na Flandres. O caso do escocês David Caley é uma dessas excepções, em que um estrangeiro acabou por comandar terços de infantaria portuguesa.

O mercenário David Caley chegou ao Reino em meados de 1641, acompanhado de um outro oficial, o inglês Christopher Potley. Ambos tinham uma longa carreira, tendo servido durante 30 anos nos exércitos dos reis da Suécia e da Dinamarca. Potley atingira o posto de coronel, enquanto Caley, que fizera o mesmo percurso, chegara a tenente-coronel. Em Portugal, propuseram a D. João IV constituir cada um o seu regimento de infantaria, recebendo em troca a patente de coronel e a respectiva paga, que era, em regra, o dobro da que usufruía um mestre de campo português. No caso destes súbditos do rei Carlos I de Inglaterra, o soldo atribuído foi bem mais generoso: 64.000 réis por mês (um mestre de campo português recebia 23.200 réis).

Não foi possível formar os regimentos conforme pretendiam os oficiais, que no entanto receberam as patentes de coronel. Em Agosto de 1641, David Caley e Christopher Potley acompanharam o governador das armas Martim Afonso de Melo na jornada para Elvas, quando o futuro Conde de São Lourenço assumiu pela primeira vez o governo das armas do Alentejo. Deviam servir a título individual e esperar que vagasse um posto de comando num dos terços portugueses do exército da província. Em 28 de Outubro de 1641, Caley e Potley estiveram presentes no assalto e saque de Valverde, na primeira operação ofensiva do exército português desencadeada na província da Extremadura espanhola. Uma operação confusa, dirigida pelo mestre de campo D. João da Costa (futuro Conde de Soure), na qual perdeu a vida o comissário geral Francisco Rebelo de Almada, que comandava operacionalmente a cavalaria então existente no Alentejo. O exército português sofreu muitas baixas nessa ocasião, tendo David Caley ficado ferido nos combates.

No início de 1642, Caley e Potley estavam de regresso a Lisboa. Como muitos outros oficiais estrangeiros ao serviço da Coroa portuguesa, abandonaram os seus postos na fronteira, exasperados com a falta de cumprimento no pagamento dos soldos. Regressaram ao Alentejo em Abril, após receberem o soldo de dois meses (entre os vários que estavam em atraso) e a promessa de que não veriam os pagamentos diminuídos. Corriam então rumores que os contratos com os estrangeiros iriam ser revistos, baixando-lhes as exageradas pagas, as quais eram incomportáveis para as finanças da Coroa; de facto, tal medida veio a ser tomada nos primeiros meses de 1643.

Talvez por isso Christopher Potley tenha decidido regressar a Inglaterra entre Abril e Junho de 1643 (viria a participar na Guerra Civil Inglesa, nas forças fiéis ao Parlamento). Entretanto, em 14 de Abril de 1643, recebera nova patente, a de mestre de campo, e o comando de um dos dois novos terços da ordenança de Lisboa que iriam ser formados e enviados para o Alentejo. Nunca chegou a assumir o posto, pelo que a unidade foi “herdada” por David Caley, que também recebera patente de mestre de campo. Foi à frente desse terço a 10 companhias que Caley fez a campanha de Setembro de 1643, no Alentejo e na Extremadura espanhola. O sargento-mor era um francês, João de Canton (o nome próprio era quase sempre aportuguesado nos documentos), o ajudante era Francisco Vaz Aranha, e os comandantes das companhias os seguintes: Roland Baix (alferes que comandava a companhia do mestre de campo – todos os outros a seguir referidos eram capitães), Lourenço Lousado, D. Vasco Coutinho, Álvaro de Carvalho, Francisco Barreto, Aires de Figueiredo, Manuel da Veiga, António Fernandes de Lima, Guilherme De Brum e Fernando Yanses. Note-se a seguinte curiosidade: as grandes unidades da ordenança de Lisboa eram tradicionalmente designadas por regimentos e não por terços, e os seus comandantes eram coronéis e não mestres de campo; todavia, os dois terços temporários que se formaram propositadamente para a campanha de 1643 não partilharam dessa tradição.

No decurso da campanha de 1643, Caley regressou a Valverde, onde tinha sido ferido cerca de dois anos antes. Desta feita, a localidade caiu nas mãos dos portugueses, bem como Villanueva del Fresno, rebaptizada Vila Nova de Portugal. Foi aqui que o terço de David Caley se manteve em guarnição durante algum tempo. Finda a campanha, a unidade foi dissolvida, e o mestre de campo escocês passou os meses seguintes alojado no castelo de S. Jorge.

(continua – fontes e bibliografia serão referidas no final da série).

Imagem: Piqueiros exercitando-se sob as ordens de um capitão. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa, em Old Sarum. Foto de Jorge P. Freitas.

Um crime em Abrantes (2ª parte)

Em 23 de Maio de 1648, o Rei D. João IV escreve uma carta ao governador das armas do Alentejo, Conde de São Lourenço, acerca de um crime praticado em Abrantes e dos procedimentos que deviam ser tomados a esse respeito (missiva aqui vertida para português corrente, para melhor entendimento):

Conde amigo. Eu, El-Rei, vos envio muito saudar, como aquele que amo. Da carta e outros que com esta se vos remetem, vereis o excesso que os soldados de cavalo da companhia do capitão Manuel Cornellis, que estiveram alojados na vila de Abrantes, cometeram matando a João Roiz, o Campos, que encontraram caçando na vila de Abrantes, e porque este caso, segundo se tem entendido, foi cometido com grande atrocidade, e não convém que fique sem castigo pelo geral escândalo que tem dado, sendo mandado ordenar ao corregedor da comarca passe logo àquela vila a tirar devassa dele, e tanto que a tiver acabada vo-la remeta para fazerdes sentenciar no juízo da auditoria geral os culpados nela, de que me pareceu avisar-vos para que o tenhais entendido. E vós ordenareis (se já o não tiverdes feito, em virtude da ordem que vos foi) que logo seja preso a bom recado o capitão Manuel Cornellis, e posto em prisão segura a respeito da graveza [gravidade] do delito até ser sentenciado. Escrita em Lisboa a 23 de Maio de 1648.

O oficial respondia pelo crime cometido por alguns dos seus subordinados. Uma desavença por causa da caça? Os documentos não esclarecem os motivos da morte do paisano João Rodrigues, mais conhecido por Campos (o uso de alcunhas era vulgar na época; por vezes, tornavam-se nomes de família, que a descendência já não conseguia descartar e acabava por adoptar como patronímico).

Quem era este oficial holandês, Manuel Cornellis? Como já foi referido, o seu pai era cônsul da Províncias Unidas (vulgo, Holanda) em Portugal. Fora tenente na companhia do comissário geral Alexandre van Harten, um dos militares sobreviventes do contingente holandês que em Setembro de 1641 entrara ao serviço de D. João IV. Mas a chegada de Cornellis a Portugal é muito posterior àquela data – provavelmente durante o ano de 1646. Em Março de 1647 recebe patente de capitão de cavalos couraças. É então que parte para a Holanda, disposto a comprar 100 cavalos e recrutar 100 soldados para a sua companhia. Regressa em meados de Agosto, trazendo os cavalos prometidos, mas somente 30 soldados. Para completar o efectivo previsto, a sua companhia terá de integrar soldados portugueses – e também alguns estrangeiros cujas companhias haviam sido reformadas, como foi o caso do alferes holandês Guilherme (Willem) Liner, que se oferece para a unidade de Cornellis.

Em Abril de 1648, a companhia de Manuel Cornellis encontra-se na província da Beira, para onde fora enviada com outras unidades, a fim de reforçar o exército que D. Sancho Manuel lançara em operações sobre Valência de Alcântara, no mês anterior. O capitão desespera por regressar ao Alentejo. Escreve ao Conde de São Lourenço, pedindo licença para levar os cavalos a tomar o verde a Estremoz ou Vila Viçosa. O Conde, por sua vez, pede autorização ao Rei. Afirma que se a companhia tardar muito e já não encontrar pastagens, os cavalos ficarão perdidos de todo. Mas a resposta demora a chegar, e Cornellis decide abandonar a Beira por sua iniciativa, precipitando os acontecimentos. O crime cometido pelos seus subordinados levá-lo-á a um penoso processo, que será descrito no próximo e derradeiro artigo.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Livros de Registos, Livro 10, fl. 7 e Livro 11, fl. 110 v; Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV, vol. I, pgs. 171, 210, 233, 246 e 250.

Imagem: Cavaleiros do período da Guerra Civil Inglesa, reconstituição histórica, Kelmarsh Hall, 2008. Foto emprestada pela English Civil War Society.

O uso de “uniformes” na cavalaria

Com toda a propriedade, devemos colocar entre aspas a palavra uniformes quando nos referimos à indumentária da cavalaria durante a Guerra da Restauração. Se, entre a infantaria, o uso de uniformes no sentido moderno da palavra começava a dar os primeiros passos, mais por iniciativa pessoal dos comandantes dos terços do que por institucionalização, já entre a cavalaria seria difícil levar a cabo a distinção de unidade para unidade com base no equipamento usado. Em primeiro lugar, porque o equipamento defensivo da cavalaria era muito semelhante em qualquer exército do ocidente europeu do período – coletes ou casacas de couro e couraças de aço. Em segundo lugar, porque a companhia continuava a ser a unidade administrativa básica nos exércitos português e espanhol e as preocupações imediatas que sobrecarregavam os capitães em termos financeiros tinham que ver com a manutenção das montadas e do material de guerra imprescindível aos combatentes. A aparência distinta da sua unidade em relação às demais era um luxo impensável para a esmagadora maioria dos comandantes de companhia.

Além disso, é questionável que o conceito actual de uniforme estivesse formado na época. O uso de casacas de cores idênticas no seio de uma unidade, distinguindo-a das outras do mesmo exército, se não constituía novidade (veja-se como exemplo o exército sueco de Gustavo Adolfo), era pouco frequente, e quase sempre encontrado na infantaria. É provável que a preocupação de um comandante como Roque da Costa Barreto em dotar a sua unidade com casacas de cores específicas relevasse mais da ideia de libré (cor tradicional usada pela criadagem de uma casa nobre), do que aquilo que a partir dos finais do século XVII seria tido como norma militar. Mesmo nos casos em que uma determinada cor predominava num exército, ao ponto de se tornar um símbolo de identificação do mesmo (o vermelho das casacas inglesas, introduzido a partir do New Model Army de Cromwell em 1645), os motivos originais da escolha eram económicos e de facilidade logística – por exemplo, o corante que produzia a tonalidade escura de vermelho era relativamente comum e barato, sendo adequado ao tingimento de uma quantidade considerável de tecido.

Apesar de tudo o que acima ficou escrito, é possível encontrar na cavalaria alguns exemplos de unidades que se notabilizaram, em dada altura, pelo uso de equipamento distinto das demais. A sua excepcionalidade é revelada pelos documentos que os referem. Nenhuma delas era composta por portugueses. Assim, a companhia da guarda do Conde de Schomberg, durante a campanha do Alentejo em 1663, usava casacas azuis sobre as armas de corpo (ou seja, sobre a couraça de peito e espaldar). Note-se que não era invulgar o uso de casacas de tecido sobre as armas de corpo. Dois anos mais tarde, na batalha de Montes Claros, a mesma guarda usava capas vermelhas com cruzes brancas. Menos certo é que a cavalaria inglesa usasse casacas vermelhas, como a sua infantaria, mas a hipótese não é de pôr de parte. Outra unidade distinta era a cavalaria da guarda de D. Juan de Áustria, que na batalha do Ameixial, em 1663, usava casacas amarelas. E um documento inglês relativo à batalha de Montes Claros refere o regimento de cavalaria do alemão Conde de Rabat (que pertencia ao exército espanhol comandado pelo Marquês de Caracena) uniformemente equipado com casacas de cor castanho-claro, embora a passagem possa significar que todos usavam apenas casacas de couro. São, todavia, momentos excepcionais em que unidades de cavalaria são referenciadas pela sua aparência peculiar.

Bibliografia:

A Anti-Catastrophe, Historia d’ElRei D. Affonso 6º de Portugal, publicada por Camilo Aureliano da Silva e Sousa, Porto, Tipographia da Rua Formosa, 1845.

“A Relation of the last summers Campagne in the Kingdome of Portugall, 1665”, anonymous (by an officer of an English Regiment of Horse), 23 June 1665, The National Archives, SP89/7, fl. 49.

Imagem: Pormenor de um quadro de Jacques Callot (da colecção do Museu de Versailles), onde dragões do exército francês (reinado de Luís XIII) ostentam capas vermelhas com cruzes brancas. Uma inspiração para a cavalaria do Conde de Schomberg que se bateu em Montes Claros? Todavia, a moda e o trajo eram já diferentes por altura da batalha de 1665, nas proximidades de Vila Viçosa.

Ainda o assalto a Olivença e o padre Cosmander (18 de Junho de 1648)

No dia em que passam 360 anos sobre o assalto comandado pelo engenheiro militar João Pascácio Cosmander à praça de Olivença, nada melhor do que corrigir uma imprecisão. Veja-se o artigo e principalmente o comentário nº 3, feito pelo leitor Edwin Paar, a quem agradeço a correcção.

Stéphane Auguste de Castille e a perda de Olivença em 1657 (parte 2)

Stéphane Auguste de Castille não chegou a cumprir o degredo na Índia, tendo permanecido preso no Reino depois de ter sido considerado culpado pela entrega de Olivença aos espanhóis. Continuava a reclamar inocência, que dizia ser “tão clara como o Sol”, dirigindo várias petições ao Conselho de Guerra para que fosse anulada a sentença. Ele, que viera para Portugal em 1648, servira a maior parte do tempo à sua custa, tendo uma experiência militar de 24 anos contínuos em guerras. Tinha sido capitão de infantaria e de cavalaria na Flandres e tenente-general na província da Baixa Bretanha, tendo abandonado a França por motivos de força maior (provavelmente a contas com a justiça). A sua permanência na prisão, desde 1657, já lhe custara para cima de 13.000 cruzados, uma pequena fortuna, como não bastasse a Coroa dever-lhe mais de 7 anos de soldos – uma situação frequente entre os capitães de cavalos.

“Não se devia descompor um cavaleiro estrangeiro, homem de tanta experiência, assim no formar das batalhas e batalhões, evoluções da cavalaria e nas mais ciências dependentes da milícia ofensiva e defensiva, e que tem servido a Vossa Majestade desinteressadamente tantos anos, com tanta satisfação e bons sucessos.”

Fora o único capitão de cavalos a permanecer em Olivença, tendo a restante força de cavalaria (400 homens sob o comando do tenente-general francês Achim de Tamericurt) abandonado a praça antes de começarem os trabalhos de cerco. Alegava ter procedido com muito valor durante o sítio e que só ficara em Olivença movido pelo zelo em servir numa arriscada situação. Todos os dias, ao amanhecer, saía a pelejar fora da estacada, “obrando acções memoráveis e dignas de grande estimação”. Dos 96 cavalos que a sua companhia tinha, veio a ficar somente com 37, muitos deles feridos, além de lhe terem matado 5, “a pistoletaços e estocadas, debaixo de sua pessoa”. Recordava ainda vários combates travados no tempo de D. João IV, “que o conhecia, amava, estimava e honrava com muitas cartas suas” (as cartas régias de agradecimento eram muito honrosas para quem as recebia, equivalendo às actuais medalhas como testemunhos de bravura e bom desempenho militar).

Numa das petições, Stéphane de Castille lamentava a acusação de que fora alvo, dizendo que todos os outros implicados se tinham conseguido livrar, incluindo o capitão António Barbosa de Brito, tido na devassa (inquérito) como o principal culpado. Só ele próprio e o compatriota Du Four tinham sido condenados. Acusava o eminente doutor de leis Jorge da Silva Mascarenhas, relator, de ter mandado aceitar como verdadeiros os depoimentos das testemunhas do processo, depois de numa primeira instância as testemunhas terem sido acusadas de faltarem à verdade. O doutor, com influência na Corte, teria procedido assim para livrar de culpa o juiz de fora de Olivença, que era seu sobrinho.

Este juiz de fora, de seu nome João Garcês de Teive, era tido pelo oficial francês como o culpado pela sua condenação, pois “não tendo por onde se livrar, o fez com a perda do suplicante, e alcançou de Vossa Majestade, em lugar de castigo, o cargo de provedor da comarca de Elvas, do qual cargo Deus, como tão justo e recto, não permitiu deixá-lo lograr, pois o alcançou à custa da honra e sangue do inocente que padece”. De resto, desde 1654 que era pública a inimizade entre o juiz de fora e o capitão estrangeiro. A invocação da acção da justiça divina é feita a propósito dos indivíduos que Stéphane de Castille acusava de conjura e falsos testemunhos, pois dos iniciais 106 que assim procederam por temerem o juiz de fora e o seu poderoso tio, já tinham morrido 92, apenas quatro anos volvidos sobre o acontecimento.

Não obstante todos os argumentos invocados, as petições do capitão Stéphane Auguste de Castille continuaram a ser indeferidas pela Coroa. Os nebulosos contornos da capitulação de Olivença nunca seriam esclarecidos. Passam hoje 351 anos sobre a queda da vila alentejana, que seria devolvida a Portugal após a assinatura da paz, em 1668.

Fonte: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21-A, caixa 78, consulta de 19 de Julho de 1661 e documentos anexos.

Imagem: Vista de Olivença e arrabaldes a partir da fabulosa torre do castelo. É perceptível a configuração das fortificações seiscentistas, posteriormente melhoradas. Em primeiro plano, o antigo quartel de cavalaria. Foto do autor.

Stéphane Auguste de Castille e a perda de Olivença em 1657 (parte 1)

Em 30 de Maio de 1657, após um mês de cerco pelo exército espanhol, capitulava a vila de Olivença. O mestre de campo Manuel de Saldanha entregava a praça que até então governara ao Duque de San Germán, comandante das forças sitiantes. Contando inicialmente com uma guarnição de 4.000 infantes e uma companhia de 100 cavalos, Olivença viu perecer mais de 1.700 defensores durante as operações de sítio. Enquanto isso, o exército de socorro, confiado pela rainha viúva D. Luísa ao Conde de São Lourenço, desgastava-se inutilmente numa ousada tentativa de tomar Badajoz, em vez de se lançar sobre o exército de San Germán.

A queda de Olivença, coincidindo com o reacender da guerra nas fronteiras do Reino, trouxe consigo um imenso pesar e uma vaga de suspeitas de traição. Nem sequer foi poupado o Conde de São Lourenço, apesar do prestígio alcançado no governo das armas do Alentejo durante a década de 40. Caiu em desgraça, como alguns outros que foram acusados de envolvimento na entrega da praça alentejana ao inimigo.

Uma das acusações mais surpreendentes que os inquéritos em torno da queda de Olivença produziram foi dirigida contra um capitão de cavalos, o francês Stéphane Auguste de Castille, cujo nome aparece também aportuguesado em várias fontes como Estêvão Augusto de Castilho. Não causa estranheza que um estrangeiro fosse tido como suspeito, uma vez que, na época, existia uma enorme desconfiança em relação aos súbditos de reis estrangeiros, mesmo os que se batiam no exército português. Contudo, sobre Castille e um outro seu compatriota, François Du Four, recaíram as culpas da perda da praça, apesar de nenhum deles ter estado envolvido nas negociações da entrega da vila. Condenados, Du Four seguiu para as ferrarias de Tomar, enquanto Stéphane Auguste de Castille foi sentenciado no crime de lesa-majestade e degredado por toda a vida para a Índia por infame, ele e os seus descendentes. O caso deixa entrever uma complexa intriga de bastidores e o envolvimento de pessoas ligadas à burguesia e justiças locais, eventualmente receosas de perderem os bens se a capitulação proposta pelo Duque de San Germán não fosse aceite, e certamente receosas de perderem a vida se acusadas de traição após a rendição. Os estrangeiros poderiam ter servido, assim, de bodes expiatórios muito convenientes.

Entre 1660 e 1661, Stéphane Auguste de Castille escreveu várias petições ao Conselho de Guerra, reafirmando a sua inocência e clamando pela anulação da sentença. Para não tornar esta entrada demasiado extensa, amanhã será aqui publicada a argumentação do cavaleiro francês, bem como a sua versão da estranha intriga em torno da queda de Olivença.

Bibliografia on-line (História de Portugal Restaurado)

Gravura: Planta de Olivença, c. de 1700; Biblioteca Nacional, Iconografia, CC29P. A legenda em francês refere que a tomada da vila pelo exército espanhol ocorreu em 1658, quando na verdade foi no ano anterior. Olivença seria devolvida à Coroa portuguesa em 1668, após a assinatura da paz.

Organização do exército português (5) – Dragões

Existiu apenas uma companhia portuguesa de dragões durante a Guerra da Restauração. Foi formada nos inícios de 1642 e fazia parte do exército da província do Alentejo. O seu primeiro comandante foi António Teixeira Castanho, ex-tenente de uma companhia de cavalos arcabuzeiros, um indivíduo com prévia experiência militar ao serviço da monarquia dual. O tenente era António Banha, referido em algumas Relações de feitos de armas. A partir de 1646, os dragões tiveram sempre oficiais franceses a comandá-los. A companhia não tinha alferes, pois não usava estandarte. Em princípio teria duas caixas de guerra (tambores) em vez de trombetas. Quanto ao resto, seguia a estrutura de uma companhia de cavalos, embora fosse considerada infantaria montada. No entanto, os soldos pagos aos oficiais eram idênticos aos da cavalaria – e portanto, superiores aos da infantaria. O armamento defensivo dos dragões consistia de um colete de couro e o ofensivo de um arcabuz de mecha e uma espada.

Apesar de indicações para que fossem constituídas mais unidades de dragões, nenhuma outra portuguesa tomou forma. Em Março de 1648, a companhia foi transformada em cavalos arcabuzeiros. Na opinião do governador das armas do Alentejo que ordenou essa conversão – Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço – os dragões serviam pouco e os oficiais faziam a mesma despesa que os da cavalaria. Chegava ao fim a breve história dos dragões na Guerra da Restauração. Como curiosidade, refira-se que a companhia tinha como local habitual de alojamento a vila de Olivença – localidade que aparece, numa época posterior, associada àquele tipo de força militar.

Um procedimento relativamente comum durante toda a Guerra da Restauração era fazer montar em mulas parte da infantaria dos terços – os arcabuzeiros, principalmente, mas também piqueiros e mosqueteiros – para lançar incursões em território inimigo ou acudir a alguma ocasião de maior necessidade. Dois soldados por animal era a “dotação” habitual. No entanto, não devem ser considerados dragões no sentido operacional (apesar de algumas fontes narrativas se lhes referirem confusamente como tal), pois não faziam operações de reconhecimento, emboscadas ou protecção do dispositivo em marcha. Os animais serviam apenas de meio de transporte aos militares.

Quanto a unidades estrangeiras de dragões no exército português, houve 4 companhias holandesas que serviram entre 1641 e 1644. Mas esse assunto será tratado num artigo próprio.

Imagem: “Escaramuça de Cavalaria”, quadro de Philips Wouwerman, c. 1640-45.

O coronel François de Huybert de Chantereine

Entre os muitos oficiais estrangeiros que estiveram ao serviço da Coroa portuguesa durante a Guerra da Restauração, um dos que mais se destacou nos anos iniciais do conflito foi François de Huybert, senhor de Chantereine. O nome deste oficial aparece escrito com ligeiras diferenças nas muitas fontes, impressas ou manuscritas, que a ele se referem.

O coronel Chantereine chegou a Portugal em Agosto de 1641, integrado no contingente enviado pelo cardeal Richelieu com o objectivo de auxiliar o exército português. Devia comandar um regimento de cavalaria ligeira, mas os efectivos trazidos de França eram insuficientes para compor as quatro companhias de 40 ou 50 elementos cada (era este o efectivo apontado no contrato estabelecido com a Coroa portuguesa). Nos regimentos de cavalaria do período (excepto no exército português, onde não existia o sistema regimental na cavalaria), o coronel comandava a primeira companhia, estando as restantes sob o comando de capitães. Os subordinados de Chantereine eram Louis de Chivray du Plessis – parente do próprio Richelieu, de acordo com a carta de recomendação apresentada a D. João IV – e Henri de Belys de Billon. A quarta companhia do regimento passou a ser comandada pelo capitão Michel du Bocage a partir de Dezembro de 1641.

Chantereine foi enviado para a província do Alentejo nos finais de 1641. Aí se distinguiu pela sua bravura e mestria no comando táctico da cavalaria. Era admirado por todos, desde os simples soldados aos cabos de guerra mais importantes. As suas acções constam de variadas relações dos feitos de armas – a propaganda impressa do período – e de documentos oficiais. O memorialista Mateus Rodrigues também se refere elogiosamente a este oficial, sob as ordens do qual combateu. François de Huybert era conhecido entre os soldados portugueses como “o coronel da arcada”, devido ao brinco que usava na orelha direita. Todavia, a sua estadia em Portugal foi relativamente curta, tendo regressado a França na segunda metade de 1643, provavelmente desiludido com a condução da guerra e com a falta de pontualidade no pagamento dos soldos.

Existe a uma página francesa sobre história local na qual são reveladas mais informações sobre este oficial, principalmente após a sua saída de Portugal. Pertencente à nobreza, François de Huybert era senhor de várias terras: Chantereine (na região de Yonne, na Borgonha), Colméry, Saint-Malo e outros lugares. Em 1655 é mencionado nos registos paroquiais de Colméry. Era então conselheiro do jovem rei Luís XIV. Em 1664, certamente já idoso, vivia em Cessy-les-Bois, paróquia vizinha de Colméry. Consulte-se a página da autoria de Philippe Cendron.

Quanto aos feitos marciais do “coronel da arcada”, serão abordados numa próxima entrada.

Foto do autor: combate de cavalaria, reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa, Kellmarsh Hall, Agosto 2007.

João Pascácio Cosmander e o assalto a Olivença (18 de Junho de 1648)

olivenca

Joannes Cieremans, mais conhecido em Portugal como João Pascácio Cosmander, nasceu em Hertogenbosh (Países Baixos) em 7 de Abril de 1602 e morreu em Olivença em 18 de Junho de 1648. Padre da Companhia de Jesus, notável matemático e engenheiro militar, fez parte do grupo de arquitectos e engenheiros estrangeiros contratados no início da Guerra da Restauração para fortificar as praças de guerra da fronteira e da orla marítima. A Cosmander se devem, entre outros trabalhos, o forte de Santa Luzia em Elvas, o de São Tiago em Sesimbra, a fortificação da praça de Juromenha e vários melhoramentos das defesas de Olivença.

Numa época em que as fidelidades mercenárias dependiam da boa recompensa em metal sonante pelos serviços prestados, de preferência dispensada com pontual regularidade (condição muito difícil de cumprir, dadas as dificuldades financeiras da Coroa), era natural que alguém com o talento e o saber de Cosmander fosse tentado pelo inimigo a trocar de campo. A ocasião – muito provavelmente premeditada e planeada pelos espanhóis, com recurso à espionagem – proporcionou-se em Outubro de 1647, quando o engenheiro regressava de uma das suas frequentes deslocações a Lisboa. Perto da Fonte dos Sapateiros, a cerca de duas léguas (10 Km) de Elvas, saiu-lhe ao caminho uma pequena força de cavalaria espanhola – apenas uma dezena de cavaleiros comandados por um alferes – que o levou prisioneiro e a um criado seu para Badajoz. Conduzido mais tarde a Madrid, à presença de Filipe IV, foi convidado a entrar ao serviço deste soberano, proposta que acabou por aceitar. A selar o novo compromisso de fidelidade, Cosmander traçou um plano para a conquista da praça de Olivença, que muito bem conhecia.

Na madrugada de 18 Junho de 1648, João Pascácio Cosmander intentou tomar de assalto o seu objectivo com uma força de 1.000 infantes e cavaleiros. A acção é referida em muitos documentos dispersos, mas a descrição mais colorida deve-se ao então soldado de cavalaria Mateus Rodrigues, que passo a transcrever, com a devida adaptação para português corrente:

“(…) Quando vinha já amanhecendo (…) já ele [Cosmander] estava à roda da vila, e para melhor dizer dentro dela, e a ordem e modo como entrou foi assim como os castelhanos iam passando por umas hortas que chamam da Rala, onde havia muitos hortelões, e assim como viram os castelhanos lhe não pareceram homens, senão porcos, e como as hortas estavam mui cheias de hortaliça naquele tempo, tomaram paus nas mãos para ir a botar os castelhanos fora dizendo «Valha o diabo! Quem trouxe aqui tanto porco, donde veio isto?». E os castelhanos mui calados, marchando para a vila, e averbando com a muralha se meteram dentro por escadas, e mais estando a muralha com suas sentinelas nossas, mas quando a nossa gente se começou a alvoroçar e a gritar «Armas! Armas!», já o inimigo estava [com] muita (…) da sua infantaria dentro da vila. E no Rossio de Santo António [já] estava um batalhão de 1.000 infantes formados (…), [que] por um buraco que na muralha estava (…) [tinha entrado] uma manga de castelhanos, todos aventureiros e gente escolhida. De modo que ainda estava toda a gente da vila na cama , e muitos (…) tinham por parvoíce o dizerem que estava o inimigo dentro da vila. Logo começaram a ir-se levantando todos muito depressa, uns mal calçados e mal vestidos, e a gente de cavalo acudindo, uns em sela, outros em osso, que havia uma notável confusão da vila em ver já o inimigo dentro sem lhe poderem valer (…). E a tudo isto o Cosmander andava lá fora da vila dando ordem para meter a sua cavalaria dentro (…), e foi buscar um petardo para ele mesmo lhe pôr fogo às portas, para que entrasse a sua cavalaria, e assim como o trouxe para junto da porta, já neste tempo a nossa trincheira tinha muita gente defendendo (…). De modo que tanto que Cosmander veio com o petardo para as portas, sem se lhe dar das balas que neste tempo choviam da muralha, e ele só, trazendo o petardo às portas sem se lhe dar de nada, e a sua cavalaria toda já à vista esperando que ele botasse as portas dentro para virem entrar, mas tanto que ele se veio arrimando às portas, começaram da muralha bradando todos «Eis ali Cosmander! Eis ali Cosmander!». Mas apenas (…) o nomearam, já ele estava estirado no chão com uma bala, que estava na trincheira um carpinteiro com uma espingarda nas mãos, (…) [que] assim como o viu, já o tinha aviado, ao qual carpinteiro fez El-Rei mercê.

Assim como o inimigo viu este homem morto, parece que se acabou o seu encantamento, que não houve mais castelhano que pegasse em arma senão tratar cada um de fugir mais. Os que estavam fora logo se retiraram a bom passo e os que estavam dentro levaram tal esfrega que não sabiam por onde se meterem. (…) O batalhão que estava já no terreiro de Santo António (…) [foi atacado e ficou] em breves horas em miserável estado, que como não tinham já outro remédio se metiam pelas casas e se escondiam por debaixo das camas (…). É certo que não escaparam nem 50 homens dele.”

Uma “esfrega”, é certo, mas como em outras partes das suas memórias, Mateus Rodrigues deixou-se levar pelo exagero dos números. Segundo a carta enviada no dia seguinte a D. João IV pelo governador das armas do Alentejo, Martim Afonso de Melo, foram apenas 300 os soldados inimigos que conseguiram entrar na praça, dos quais 154 foram mortos e 35 feridos e capturados, entre os quais 3 capitães. Quanto aos portugueses, sofreram menos de 20 baixas, mas entre estas contaram-se o mestre de campo D. António Ortiz, morto, e o governador militar da vila, D. João de Meneses, gravemente ferido.

Assim se finou João Pascácio Cosmander, com uma bala ajustada por um carpinteiro. Conforme referiu Mateus Rodrigues, e nisso é corroborado por outros documentos, o engenheiro jesuíta bateu-se até ao fim com bravura: tendo falhado o primeiro petardo que colocara na porta, Cosmander voltou atrás, indiferente ao perigo, de modo a colocar um segundo engenho, acção que lhe foi fatal. A interpretação nacionalista dos acontecimentos – não só a do típico nacionalismo restauracionista da época, como a do nacionalismo romântico dos séculos XIX e XX – estigmatizou João Pascácio Cosmander como um traidor que teve o fim merecido. Mas como refere Vítor Serrão, “as dramáticas vicissitudes da sua morte (…) não invalidam o grau de novidade construtiva das empresas militares que gizou e que profundamente alteraram em eficácia e em fisionomia o carácter das linhas defensivas portuguesas” (SERRÃO, Vítor, História da Arte em Portugal – O Barroco, Barcarena, Editorial Presença, 2003).

Bibliografia:

COELHO, P. M. Laranjo, Cartas dos Governadores da Província do Alentejo a El-Rei D. João IV, vol. I, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1940.

Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição do códice 3062 [Campanha do Alentejo (1641-1654)] da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Lisboa, Arquivo Histórico Militar, 1952 (1ª divisão, 2ª secção, caixa 3, nº 2), pgs. 179-185.

Gravura: Planta de Olivença, in La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII. Originalmente tinha incluído neste artigo um suposto retrato do Padre João Cosmander. Na verdade, não se tratava de Cosmander, mas de um outro padre jesuíta, o sueco Brott, conforme esclareceu o Dr. Edwin Paar no comentário 3 deste artigo.