“Guerra y revolución militar en la Iberia del siglo XVII” – artigo online, pela Dra. Lorraine White

Excelente artigo da Dr.a Lorraine White, publicado originalmente em Manuscrits: Revista d’història moderna, Bellaterra, Servei de Publicacions de la Universitat Autònoma de Barcelona, N. 21 (2003).

Pode ser lido online aqui.

Imagem: Cerco de Badajoz pelo exército português (1658), gravura existente num arquivo francês. Não disponho da referência completa da gravura, que me foi enviada pelo Sr. Carlos Sanchéz. Compare-se com a que foi aqui apresentada, da autoria de João Tomás Correia, existente na Biblioteca Nacional de Lisboa.

As mulheres e a guerra

TERBORCH

Um dos títulos mais recentes na área da História Militar da Era Moderna é Women, Armies, and Warfare in Early Modern Europe, de John A. Lynn II (New York, Cambridge University Press, 2008 – este autor assinava anteriormente apenas como John A. Lynn). Não é a melhor das obras de Lynn: uma estrutura pouco clara, um texto assente sobretudo em fontes secundárias, uma quase ausência de fontes primárias. No entanto, não deixa de ter algum interesse, pois entra num campo ainda pouco estudado: a relação das mulheres com o meio militar, numa época em que os interditos e a representação de valores eram, em grande parte, desfavoráveis ao sexo feminino, mas que se esbatiam – sem se apagarem totalmente – no seio da comunidade castrense. A mulher como companheira, legítima ou ilegítima, do militar, ganhando a vida com o comércio, incluindo o do próprio corpo, participando, por vezes activamente, nos perigos dos combates ou, no mínimo, nas actividades rotineiras dos exércitos. Em qualquer dos casos, sempre sujeita a cair vítima da violência de campanha, tal como a mulher que não se integrava na comunidade militar, mas que se deparava com a rudeza dos combatentes quando irrompiam pelas suas casas e propriedades para se alojarem ou, pior, com o intuito de pilhar e violar.

No período da Guerra da Restauração não são muito numerosas as referências à presença feminina enquanto acompanhante regular dos exércitos no terreno. A sazonalidade das operações de maior envergadura e, por outro lado, a especificidade das pequenas operações de saque e pilhagem, não davam azo a que a mulher se encontrasse com frequência ao lado dos militares no terreno, ao contrário do que sucedia, por exemplo, com os exércitos da Guerra dos Trinta Anos. Todavia, no que concerne a situações em que a mulher se podia encontrar no teatro de operações, sob os mais variados aspectos, as fontes não são tão escassas. Respigo aqui algumas passagens de dois casos diferentes: a mulher que participa activamente na guerra e a mulher que é vítima acidental das operações militares. Incentivos ao aprofundamento da pesquisa e análise sobre o tema, vertidas, como é habitual neste espaço, para português actual.

1. A mulher combatente (não enquadrada no exército)

Durante o ataque espanhol a Ouguela, em 1644, saiu a esta defensa uma mulher com um chuço, que pelejou nas trincheiras como qualquer soldado animoso; e se afirma que dos castelhanos mortos teve ela sua parte; foi ferida, e querendo-a um soldado retirar, o não consentiu, antes com maior ânimo se embraveceu e continuou a peleja. (ARAÚJO, João Salgado de, Successos Militares das Armas Portuguesas em suas fronteiras depois da Real acclamação contra Castella. Com a geografia das Prouincias, & nobreza dellas, Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1644, pg. 225 v)

Há nesta vila [de Olivença] uma moça, criada no campo, chamada Maria; serve a um seu parente lavrador; esta moça, tocando a rebate, sai no campo armada de peito e espaldar e morrião, com clavina [carabina] nas mãos, em um cavalo de seu amo; vai a ele, e sendo na vila acode à trincheira com valor e bizarria.

É esta moça de tantas forças, que um capitão de pouco mais de vinte anos de idade me afirmou, que pegando-lhe ela de uma mão, para se livrar foi necessário querer ela largar-lha. (Aires Varela, Sucessos que ouve nas fronteiras de Elvas, Olivença, Campo Maior e Ouguela, o primeiro anno da Recuperação de Portugal, que começou em 1º de Dezembro de 1640 e fez fim em ultimo de Novembro de 1641, Elvas, Typografia Progresso de António José Torres de Carvalho, 1901, pg. 33)

2. A mulher enquanto vítima das operações militares

Após a tomada da vila de Oliva pelas forças portuguesas, em 10 de Janeiro de 1654, e de acordo com as capitulações acordadas entre sitiantes e sitiados, o soldado Mateus Rodrigues (Matheus Roiz) assistiu ao desfilar dos civis que abandonavam a vila, passando no meio das fileiras de soldados portugueses que ladeavam a estrada. Comoveu o soldado a situação em que muitas mulheres se encontravam: não poderei aqui encarecer as grandes lástimas que neste dia aqui vi, porque além destas mulheres se verem fora de seu natural [ou seja, da sua terra natal] para sempre, com suas fazendas perdidas, fazia tão mau tempo que não se podia bulir com a muita água que chovia, que quando elas começaram assim era logo pela manhã, em 10 de Janeiro, ao Domingo, de 1654, e até noite nunca jamais deixou de chover, que suposto que Jerez de los Caballeros estava dali duas léguas, [que era] para onde esta gente se havia de retirar, muita dela havia de ficar ainda fora (…). Estas mulheres (…) eram entre todas 704, fora meninos, que passavam de 1.000 crianças e as demais delas mui pequenas. E havia mulher que levava duas nos braços e três em o rabo (…) [ou seja, envoltas num xaile às costas], uns gemendo e as mais chorando. Que como iam carregadas de fato à cabeça e levavam muitas delas muitos mantéus e saias vestidas, e como chovia muito, enchia[m]-se-lhe os fatos de água e não podiam bulir, e a tudo isto nós ali parados (…) esperando a água a pé quedo, (…) que ainda que quiséssemos fazer algum bem áquelas mulheres, não podíamos. (…) E trazia o bom velho [o governador de Oliva] consigo diante as suas duas filhas donzelas, que eram bizarras [quer dizer, bonitas]. Mas vinham elas tão enfadadas, que vinham muito cobertas, e não davam lugar a que víssemos bem suas partes, que não era o tempo para elas se deixarem ver. (Manuscrito de Matheus Roiz, pgs. 385-386).

Imagem: “Homem oferecendo moedas a uma mulher”, 1660-1663, por Gerard Terborch, Museu do Louvre. Um militar (de cavalaria), uma jovem mulher, e a expectativa de uma transacção não inocente.

Postos do exército português (8) – o capitão de infantaria

O capitão de infantaria comandava uma companhia. A insígnia do seu posto era uma gineta, espontão rematado com borlas na parte superior da haste. Em combate, o capitão podia encarregar o seu pajem do transporte da gineta e armar-se com um pique, um mosquete ou (o que era mais vulgar) combater com espada e rodela. O posto de capitão de infantaria era considerado inferior ao de capitão de cavalos, todavia era um posto de grande consideração na hierarquia militar seiscentista. Sobre a maneira de prover os capitães das companhias, tanto das tropas pagas como das milicianas, esclarece o título 9 do projecto de Ordenanças Militares de 1643:

Para capitães das companhias de infantaria se elegerão alferes reformados e ajudantes, em que uns e outros hajam servido oito anos na guerra com praça assentada debaixo de bandeira, que tenham as partes necessárias para exercitarem com prática e experiência o muito que a cada um deles se oferece e encarrega cada hora que exercitar, e os que forem de mais serviços e aprovados merecimentos nas ocasiões para maiores riscos e empenhos, precederão para serem escolhidos (…).

Porém, como em muitas outras passagens das Ordenanças Militares de 1643, Joane Mendes de Vasconcelos discordou de pormenores do projecto. No caso dos capitães de infantaria, a proposta ia contra a prática assente e instituída de facto, pelo que o experiente cabo de guerra contrapôs:

Nos terços fazem vantagem aos alferes reformados e vivos [isto é, no activo] os que são actualmente da companhia do mestre de campo, porque como governam (de ordinário) a melhor companhia deles, têm maior capacidade a este respeito que os outros, escusa consultarem-se a segunda companhia, que vaga em seu tempo, como também nos esquadrões a segunda manga de bocas de fogo do corno direito se lhes entrega firme. [Note-se, na parte final deste comentário, a referência à disposição e comando táctico.]

Também se devem admitir os alferes vivos para capitães de infantaria, toca também ao alferes entrar em capitão quando em ocasião de peleja morre o capitão da companhia, achando-se o tal alferes na mesma ocasião e proceder nela conforme as suas obrigações, e em sua pessoa concorrem as partes e requisitos convenientes.

As observações de Joane Mendes de Vasconcelos foram todas dirigidas à promoção dos alferes ao posto de capitão nas companhias de infantaria, pois que as funções inerentes ao posto eram bastante claras e sabidas, nem sendo sequer focadas no projecto – excepto no que respeitava aos ditames de ordem comportamental e moral que o capitão devia seguir. Mas aí, a resposta de Mendes de Vasconcelos foi clara:

A repreensão dos vícios que contém este capítulo toca a todos os postos, e assim me parece que se devia encomendar em título particular a conta que hão-de ter os conselheiros e os generais e não proporem a Vossa Majestade para os cargos militares pessoas conhecidas perniciosas, com escândalo.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pgs. 55-56.

Imagem: Nesta foto de uma reconstituição histórica levada a cabo pela English Civil War Society, representando uma força de infantaria do New Model Army de Oliver Cromwell, é visível em primeiro plano, à direita, com gola de aço (protecção para o peito), um capitão carregando a gineta (sem borlas). Repare-se na diferença entre a gineta e as alabardas dos sargentos que marcham na primeira fileira da formação, mais atrás.

Postos do exército português (4) – o furriel

Este posto só existia na cavalaria. Sobre as qualidades que devia ter o furriel e as suas funções, escreveu D. João de Azevedo e Ataíde:

O furriel de uma companhia se deve escolher entre os soldados mais práticos e entendidos que saiba[m] ler e escrever. O seu particular ofício é alojar e repartir os alojamentos quando marcha a companhia. Recebe do almoxarife a cevada e tudo o mais que aos soldados se dá de munição, para o repartir e dar conta quando se faz o pagamento.

Partindo-se diante para efeito de alojar a companhia, só por si ou em companhia do furriel-mor, pedirá ao tenente dois soldados para o ajudarem e tornarem, em recado seu, avisar a companhia de como estão os alojamentos feitos. (…)

Na companhia tem pouca jurisdição, para castigar nenhuma, contudo, sendo pessoa de respeito e soldado prático, em ausência do alferes poderá, se parecer bem ao capitão, governar a companhia, e doutro modo não, por não ser posto militar.

Regras militares…, pgs. 26-27.

Para os leitores do século XXI poderá parecer estranha esta referência ao furriel como um “posto não militar”. Na verdade, na estrutura militar seiscentista ainda não estavam completamente separadas as esferas do civil e do militar. Deste modo, o furriel estava para a sua companhia como o oficial que desempenhava o cargo de quartel-mestre geral estava para o exército provincial, ao nível das funções de organização do alojamento. Se, com o exército em campanha, o quartel-mestre geral era sempre um militar com patente de oficial superior, já numa localidade onde as tropas alojavam em permanência, constituindo a guarnição da vila ou cidade, o cargo podia ser atribuído a um civil, normalmente um elemento da burguesia local. Mas se o quadro mental da época aproximava, pela semelhança das funções administrativas desempenhadas pelos indivíduos (ainda que em escalas diferentes), o furriel do quartel-mestre geral civil, isso não deve induzir-nos em erro quanto às tarefas puramente militares que cabiam ao furriel, que era um combatente como qualquer outro.

A importância do furriel numa companhia de cavalaria, em termos administrativos, era idêntica à dos sargentos numa companhia de infantaria. Daí que o capitão pudesse confiar no furriel e até dar-lhe o comando da companhia, na ausência do tenente e do alferes. Mas seria esta possibilidade – apresentada em outros tratados militares do período, não só no esboço efectuado por D. João de Ataíde – bem vista pela oficialidade superior?

Dinis de Melo de Castro, um oficial que fez toda a Guerra da Restauração e que atingiu o posto de general da cavalaria do Alentejo e governador das armas da mesma província, para além de ter recebido o título de Conde de Galveias, tinha uma opinião crítica a este respeito. Para ele, era coisa indigna os furriéis comandarem companhias (na ausência do próprio capitão, entenda-se, o que era muito comum), pois os capitães acrescentam [ou seja, promovem] estes furriéis se lhes dão boas contas, e como estes procuram o acrescentamento por aquele caminho, não tratam de merecerem pelo ofício de soldado, e só procuram dar boa conta da palha e cevada, e quando passam a tenentes são os que menos experiência têm.

Estas palavras de Dinis de Melo surgem numa consulta ao Conselho de Guerra em 12 de Agosto de 1665. Mesmo próximo do final do conflito, parecia prevalecer a ideia do furriel como amanuense. Mas devemos ter em conta o preconceito do fidalgo em relação a deixar à frente das companhias alguém oriundo da plebe, numa função mais conotada com a administração do que com o ofício das armas. Contudo, essa opinião, um tanto extremada, desaparecerá no século seguinte. A separação definitiva entre o campo militar e o campo civil dissiparia as dúvidas quanto ao espaço do furriel – ou melhor, quanto ao conceito que se fazia do seu papel.

Imagem: Combates durante a Batalha das Linhas de Elvas (1659). Ilustração de Pedro de Santa Colomba. Biblioteca Nacional, Iconografia, E1090V.

Postos do exército português (3) – o cabo de esquadra

O cabo de esquadra comandava… uma esquadra! O equivalente, hoje em dia, a uma secção, passe o risco de anacronismo. Na infantaria e na cavalaria, correspondia a um efectivo de 20 a 25 homens – mas na cavalaria, onde as companhias registavam, com alguma frequência, quebras de efectivos, a esquadra podia não ir além de 10 homens.

Sobre as atribuições seiscentistas de um cabo de esquadra, o tratadista italiano Galeazzo Gualdo Priorato, traduzido e comentado por D. João de Mascarenhas (Conde de Sabugal) em plena Guerra da Restauração, riscou à pena conselhos que foram seguidos pelos portugueses. Vejamos:

O cabo de esquadra

Manda este cabo a sua esquadra, a qual deve doutrinar de tudo aquilo que deve saber um soldado. Tem obrigação de antever e reparar as desordens e pendências entre eles, e imediatamente que descobrir algum indício, (…) o deve advertir ao capitão, porque a ele não lhe toca o castigá-los (…). Terá um rol dos soldados da sua esquadra e quando algum falte, dará parte ao sargento (…).

Deve conhecer quais são os mais experimentados e os mais revoltosos, para pôr estes de sentinela, e para mandá-los às facções de maior importância (…).

Achando-se o cabo de guarda com a sua esquadra, estará vigilante e cuidadoso, para que não [o] surpreenda o inimigo ainda que esteja longe, e porá as sentinelas aonde lhas mandarem pôr os seus maiores, e as mudará ele mesmo, tendo juntamente cuidado com as rondas. Instruirá as sentinelas [sobre] como devem regular-se vendo o inimigo, e como devem tocar arma e advertir sem rumor, e como se não devem retirar as sentinelas dos seus postos, senão mudadas do cabo, ou bem forçadas do inimigo, no qual caso seretirarão aos corpos de guarda.

Será razão que o cabo saiba ler e escrever, para que tenha rol da sua esquadra e seja assim o serviço melhor repartido.

D. João de Mascarenhas era um veterano da batalha de Rocroi (1643), onde se bateu (ainda muito jovem) no exército de Filipe IV. Voltou pouco depois a Portugal e aderiu à causa de D. João IV, distinguindo-se como tenente-general e general da cavalaria no exército do Alentejo. Membro do Conselho de Guerra, D. João de Mascarenhas foi, acima de tudo, um dos mais brilhantes oficiais da Guerra da Restauração. A tradução da obra de Gualdo Priorato, à qual acrescentou interessantíssimos comentários, só foi impressa em 1707, em plena Guerra da Sucessão de Espanha, mas o manuscrito foi composto na década de 60 do século XVII: Maneio da Cavallaria escrito pelo Conde Galeaço Gualdo Priorato com annotaçoens de Dom João Mascarenhas Conde do Sabugal do Conselho de Guerra d’ElRei Dom Affonço 6º. O excerto acima transcrito corresponde às páginas 78 v-79 v do manuscrito.

Também D. João de Azevedo e Ataíde se refere aos cabos de esquadra, a páginas 24 a 26 do seu rascunho de tratado:

O seu ofício próprio é terem alistados os soldados das suas próprias esquadras, os quais não só hão-de conhecer todos de nome, senão também o natural [ou seja, o local de nascimento] e qualidades deles, se são frouxos ou têm indústria [isto é, se são desembaraçados] e valor para assim os acomodar e distribuir os postos conforme aos talentos que conhecerem neles (…).

Havendo de marchar a companhia [de cavalaria] em ordem, se porão nos cabos [ou seja, nos extremos] da primeira e da última fileira, donde se não podem sair, senão fora para remediar e acudir a algum erro ou desordem dos soldados, tornando-se logo ao mesmo posto.

Imagem: Duas fileiras de mosqueteiros abrindo fogo (“dando carga“, como se diria em português do século XVII). Reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kellmarsh Hall, 2007. Foto do autor.

Postos do exército português (2) – o soldado de cavalaria

Sobre o soldado de cavalaria, trago aqui as considerações de D. João de Azevedo e Ataíde. Este oficial relativamente obscuro, apesar de referido em várias Relações propagandísticas dos feitos de armas do início da guerra, foi comissário geral da cavalaria do exército do Alentejo entre 1644 e 1647. Deixou a carreira das armas sem glória, mas com algum proveito material, na última destas datas. Deixou também um esboço manuscrito de tratado militar sobre a cavalaria, cuja transcrição estou a ultimar e que será integrada numa resenha biográfica do ex-oficial a publicar em breve. Como curiosidades adicionais, refira-se que D. João de Ataíde foi responsável pelo recrutamento do soldado e memorialista Mateus Rodrigues, o qual serviu sob seu comando nos primeiros seis anos da guerra e do fidalgo nos legou um testemunho bem mais rico que o da literatura panegírica impressa; e que D. João foi trisavô, pela parte materna, de Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e Marquês de Pombal.

O trecho aqui transcrito para português corrente corresponde às pgs. 17 a 23 de Regras militares da cauallaria ligeira compostas per Dom João de Azeuedo e Attayde, Comissario Geral da caualaria, do exercito, e Prouincia do Alentejo [manuscrito composto após 1644, provavelmente 1644-47].

O soldado de cavalaria

O soldado que se resolver assentar praça de cavalos deve dar por entendido que há-de servir e trabalhar sem passar a vida ociosamente, como muitos cuidam, porque os trabalhos, e principalmente os da cavalaria, são contínuos, de dia ao sol, de noite ao sereno, aos rigores dos tempos, sem ter vontade própria, sofrendo as sem razões de seus superiores, as más pagas dos Príncipes, obrigados a pelejar com risco da vida todas as vezes que o seu capitão quiser, e ainda alguma vez o inimigo, contemporizando com as rigorosas leis da honra e do mundo, certo o perigo, o prémio duvidoso, ou porque o pobre soldado não chega a alcançar o favor dos que governam, ou porque sendo as coisas limitadas, não pode haver prémio para todos (…).

Convém que o soldado de cavalo seja curioso do seu cavalo, trazendo-o sempre bem pensado [isto é, alimentado – o penso era a ração de cevada para a montada], não se desprezando de o limpar por suas próprias mãos (…). Na mesma forma se deve prezar muito do conserto e limpeza de suas armas, porque além de parecerem bem na paz, no tempo da peleja as armas reluzentes metem medo e temor ao inimigo (…).

Deve saber qualquer soldado governar e moderar o seu cavalo, sem o trazer desabrigado e descomposto, correr e escaramuçar assim por terra firme como pela áspera, subir e descer desenvoltamente por um e outro lado, armado e desarmado, que suposto que esteja em uso o subir e descer pela parte esquerda do cavalo, porque por ali fica mais à mão a espada e faz menos estorvo (…), contudo será importante acostumar-se a cavalgar pelas partes ambas (…).

Saberá desenvoltamente jogar todas as armas de cavalo, na tropa [designação para companhia, ou a subdivisão táctica desta, ou a formação táctica designada por batalhão] e fora dela, donde andará com bom conserto, dobrando quanto necessário for, e sucedendo por algum caso duvidar-se, se saberá tornar a reunir e juntar na tropa em seu lugar, sem se perturbar nem confundir (…).

Acudirá dos primeiros em ouvindo que se toca as trombetas, ocupando o lugar que lhe tocar, havendo de marchar seguirá ao que direitamente for diante dele, conservando-se na sua fileira, e na ordem que o seu capitão lhe dá. E quando a não chegue a alcançar de boca, fará e guardará o que vir fazer aos outros que vão diante dele. Dando a carga [quer dizer, disparando a arma de fogo] tornará a carregar depressa, contanto que com muita pressa não acerte a não carregar como convém. Por nenhum modo dará a sua carga senão muito a tempo, e quando puder, de modo que possa fazer golpe, porque o mais é perder pólvora [e] ficar desarmado ao melhor tempo.

Imagem: Combate de cavalaria – Arronches, 8 de Novembro de 1653. Painel de azulejos seiscentistas, “Sala das Batalhas”, Palácio dos Marqueses de Fronteira. Foto do Comandante Augusto Salgado.

Postos do exército português (1) – o soldado de infantaria

 

O tema desta série de entradas, que alternará com outros temas já em curso, centrar-se-á na hierarquia do exército português da Guerra da Restauração. Não se trata somente de expor os postos, funções e cargos, tentando quando possível traçar paralelos com os actuais. O traço da mentalidade do período será aqui trazido, através das regras de conduta e conselhos presentes em manuais e tratados militares para cada um dos postos.

O soldado (pago, ou seja, profissional), bastas vezes anónimo e sacrificado combatente, o mais raso da hierarquia militar, é o primeiro a passar por aqui. E ao de infantaria, contingente mais numeroso, será dada a primazia. As linhas que se seguem foram redigidas em castelhano, nos primeiros anos da Guerra da Restauração, pelo sargento-mor António Gallo. Nascido no reino vizinho, cavaleiro professo da Ordem de Cristo, optou por tomar como seu soberano D. João IV, continuando a residir em Portugal após a Aclamação. Foi nomeado sargento-mor de um terço pago na província do Alentejo em Janeiro de 1641, quando já estava no Outono da vida. Valente militar, muito experiente, combateu em vários recontros, aposentando-se em finais de 1643, por motivos de saúde, quando era sargento-mor do terço do mestre de campo holandês Estacius Pick. No ano seguinte saiu à estampa a sua obra Regimiento Militar, que trata de como los soldados se hande governar, obedecer, y guardar las ordenes, y como los oficiales los han de governar, Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1644. O texto a seguir apresentado foi vertido para português corrente, correspondendo ao texto das fls. 1 a 3 da referida obra:

O Soldado

Em assentando praça o soldado nas listas do Rei nosso Senhor, fica honrado e obrigado a servir bem a seu Rei e capitão-general, e a  obedecer a todos os seus oficiais, em tudo o que fôr de serviço do Rei nosso Senhor, sob pena de grave castigo (…).

E para ser honrados, e alcançar vitórias e ser providos em cargos honrados, devem ser bons Cristãos (…) os soldados, pois sua profissão é mais arriscada que outras, por trazerem, como trazem, a morte diante dos seus olhos, pelas ocasiões de guerra que se oferecem a cada hora de repente.

Pela qual causa todo o soldado se há-de confessar muitas vezes no ano, ao menos quatro, recebendo a Santa Comunhão.

E deve guardar-se com grandíssimo cuidado de cair em infâmia, como é estar amancebado, trazer consigo mulher que não seja a sua, beber de modo que se prive com o vinho do seu sentido: e a estes tais bêbados deve-se-lhes retirar a praça. Não sejam ladrões, nem encobridores, nem amotinadores, que se lhes dará morte com desonra. Não seja falador, ouvir aqui e murmurar ali, que fará inimigos, e ninguém o quererá ver.

O hábito de soldado arma a todos, e é-lhes muito necessário saber-se governar com o seu soldo, porque não há coisa neste hábito mais vil que o pedir, nem de mais grandeza, que o dar. (…)

Seja curioso de saber jogar a espada, adaga, broquel e rodela, pique, arcabuz e mosquete, que é importante a este hábito militar.

Será vigilantíssimo a fazer a sua guarda, assim de posto como de ronda, em qualquer lugar que o puserem, que é a principal obrigação que tem. (…)

Se o seu capitão, alferes, ou sargento, ou cabo de esquadra, ou sargento-mor deitarem mão à espada ou à insígnia que trazem para o castigar com cólera, ainda que não tenham razão, oiça-os e não replique (…). E aviso-o que não deite a mão à espada, nem a outra arma alguma para resistir e defender-se, que lhe custará a vida (…).

Havendo licença para saquear alguma vila ou lugar, avise-se que não toque em coisa alguma das igrejas (…).

Não há-de jogar sobre as armas [ou seja, apostando as armas], que sem elas não se pode servir a El-Rei; nem jogará vestidos (…), nem sobre palavra, que é a causa de perder o crédito.

 Foto do autor: Mosqueteiros e piqueiros; reconstituição histórica da Guerra Civil Inglesa, Kellmarsh Hall, 2007.

Bandeiras, estandartes, guiões – exército português (2)

As bandeiras, os estandartes e os guiões eram habitualmente confeccionados em diversos tipos de seda, como por exemplo damasco, tafetá, ruão, etc. Existem referências quanto às dimensões dos estandartes da cavalaria, que teriam uma vara de lado (ou seja, 1,1m). As bandeiras e guiões eram maiores, embora não tenha encontrado referências precisas às dimensões.

guião real (por vezes designado por estandarte real) tinha numa das faces as armas do Reino (sobre o lado, como no guião de capitão general já aqui apresentado – o qual poderá ser, porventura, um guião real); e na outra, desde 1646, a representação de Nossa Senhora da Conceição. Quanto à cor do fundo, presume-se que fosse branco, havendo até a sugestão de uma hipotética orla azul, mas aqui, tal como nos outros casos da vexilografia restauracionista, as certezas são poucas. De concreto, sabe-se que  só fazia a a sua aparição quando um exército saía em campanha. Quando cumpria à companhia do general da cavalaria transportá-lo, era ao alferes da dita companhia que cabia a honra, o qual ia metido no meio da fileira intermédia da formação (Manuscrito de Matheus Roiz, transcrição dactilografada do Arquivo Histórico Militar, pg. 116).

As fontes iconográficas do período mostram, com muita frequência, as bandeiras da infantaria e os estandartes da cavalaria ostentando a Cruz de Cristo. Tratava-se de um elemento identificativo das forças portuguesas, tal como a Cruz de Borgonha o era para o exército espanhol. Há um ou outro pormenor dissonante desta aparente ubiquidade – por exemplo, a bandeira que surge no quadro de Dirk Stoop referente ao cortejo no Terreiro do Paço, já aqui tratado noutra entrada.

Havendo uma bandeira ou estandarte por companhia (note-se que os terços de infantaria não tinham bandeiras identificativas da unidade como um todo, apenas as das suas companhias), é provável que houvesse variantes nas cores e até no símbolo de cada uma. Gastão de Melo de Matos (ver bibliografia) duvidava da uniformidade do verde como cor de campo das bandeiras e estandartes, conforme fora sugerido no estudo do padre Ernesto Sales. O eclesiástico tomara como fonte iconográfica segura a este respeito o biombo do Visconde de Fonte Arcada (Pedro Jacques de Magalhães, general durante a Guerra da Restauração), hoje patente no Museu Nacional de Arte Antiga. Mas Gastão de Melo de Matos argumentava que as bandeiras talvez tivessem cores diferentes, fundamentando-se em fontes literárias muito diversas, como obras de tratadistas militares anteriores à Restauração (Luís Mendes de Vasconcelos, 1612; João Brito de Lemos, 1631), ou poemas laudatórios do período da guerra (Epinício lusitano à memorável victoria de Montes Claros, de João Pereira da Silva; Phaenix da Lusitania, de Manuel Tomás). Do Epinício… respiga:

“Mil vezes dezasseis Lusos armados/(…)/Em terços vinte e nove moderados/(…)/Volteando tafetás de várias cores/Dão lisonjas ao vento, enveja às flores” (estrofe 68).

Já da Phaenix da Lusitania cita o seguinte: “Animan ondeandose, as bandeiras/Os terços com as cores variadas” (Livro X, estrofe 48).

Há outras fontes que sugerem o uso da Cruz de Cristo em campo branco. De resto, não será difícil admitir a predominância do verde e do branco como fundo para bandeiras e estandartes, pois estas eram então as cores da Casa de Bragança (foram mudadas em 1707 para azul e vermelho).

Imagens: Em cima, alferes volteando bandeira com cruz verde em fundo branco (pormenor de um quadro atribuído a Dirk Stoop, Museu da Cidade de Lisboa); em baixo, pormenor de estandartes de cavalaria, ilustração de Pedro de Santa Colomba (1662) relativa à batalha das Linhas de Elvas; bandeira ou estandarte, ilustração do mapa de João Teixeira Albernaz, c. 1650 (Biblioteca Nacional, Iconografia, respectivamente E1090V e CC254A). Nestes dois últimos documentos está presente a Cruz de Cristo, o que não acontece no primeiro.

Infantaria portuguesa, década de 1650

Pormenores de um quadro atribuído ao pintor flamengo Dirk Stoop (1610-1686), patente no Museu da Cidade de Lisboa. Representa um cortejo (provavelmente régio) no Terreiro do Paço, saudado por uma pequena força militar. É plausível que a cena retratada se situe na  primeira metade da década de 50 do século XVII. Dirk Stoop trabalhou em Portugal durante os anos 50 e 60.

Na primeira imagem estão representados piqueiros sem armadura (piques secos; também se dizia picas secas, embora o termo pica fosse castelhano e Joane Mendes de Vasconcelos recomendasse a sua substituição pelo termo português).

Na segunda, a cavalo e à frente de uma fileira de mosqueteiros está um mestre de campo (embora também possa ser um sargento-mor, uma vez que este oficial também tinha direito a montada). No entanto, caso a força fosse oriunda da ordenança de Lisboa, o oficial não seria mestre de campo mas coronel, e em vez de terço, a unidade seria designada por regimento, por tradição. A propósito do posto de sargento-mor, veja-se esta nota num outro blogue de História Militar, o excelente “Lagos Militar”.

Na terceira e última imagem, igualmente à frente da fileira de mosqueteiros, está um sargento, reconhecível pela alabarda que servia como insígnia do seu posto, arma pessoal e instrumento para alinhar as fileiras.

Bandeiras, estandartes, guiões – exército português (1)

É escasso o que nos resta de documentação sólida sobre este assunto. Em 1755, o arquivo da Tenência (Arsenal do Exército) foi destruído pelo Terramoto, e nos anos 30 do século XIX, um incêndio consumiu o arquivo da Junta dos Três Estados, privando-nos assim de informações preciosas sobre as bandeiras, estandartes e guiões utilizados durante a Guerra da Restauração pelo exército português. O que existe, tanto em fontes escritas como iconográficas, é muito fragmentado. Tanto quanto conheço, resta apenas uma relíquia do período, provavelmente um guião de capitão-general do exército – e nesse caso seria o do Marquês de Marialva, ostentado na batalha de Montes Claros em 1665. Foi oferecido à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Vila Viçosa, e aí se mantém em exposição.

Apesar das ambivalências dos termos, podemos tentar discernir, através da frequência com que são empregues, algumas diferenças no uso: o guião, apesar de Diogo do Couto (séc. XVI) se lhe referir como “pequena bandeira”, designava no século XVII uma bandeira principal, destinada a guiar o exército, ou a assinalar a presença de um general. Apresentava forma rectangular. A bandeira era de uso regulamentar em cada companhia de infantaria, fosse do exército pago (profissional) ou da milícia de auxiliares ou de ordenança. Tinha forma quadrada. Do mesmo formato, mas mais pequeno, era o estandarte das companhias de cavalaria. Por norma, só as companhias de couraceiros (cavalos couraças) deviam ter direito a estandarte (e portanto, incluírem um alferes na sua composição) mas, na prática, era vulgar as companhias de cavalos arcabuzeiros também os terem. Curiosamente, D. Luís de Meneses, 3º Conde de Ericeira, refere que, enquanto general da artilharia do exército do Alentejo em 1663, se fazia acompanhar de dois estandartes (em rigor, seriam guiões) – um com as armas reais (provavelmente semelhante ao que se conserva em Vila Viçosa) e outro com as suas próprias armas, “e ao pé delas uma peça de artilharia [bordada ou pintada], entre as quais se viam umas letras de ouro, que diziam: Sine qua non” (História de Portugal Restaurado, 1946, vol. IV, pg. 212).

Este tema continuará a ser abordado nas próximas entradas.

Bibliografia:

MATOS, Gastão de Melo de, Bandeiras militares do século XVII e a bandeira da Aclamação, sem local, sem nome, 1940.

SALES, Ernesto Augusto Pereira de, Bandeiras e Estandartes Regimentais do Exército e da Armada e outras Bandeiras Militares, Lisboa, Centro Tipográfico Colonial, 1930.

Foto: Guião de capitão-general do exército, batalha de Montes Claros (1665), preservado em Vila Viçosa. Note-se que era esta a configuração do guião – a haste à qual se prendia ficava do lado esquerdo da presente foto. As armas reais apareciam “sobre o lado”.

A formação táctica da infantaria – o esquadrão

A imagem mostra a infantaria formada em esquadrão, com a respectiva batalha de piques e as guarnições e mangas de mosqueteiros e arcabuzeiros. Faltam na imagem as alas, que se colocavam a alguma distância das mangas, em ambos os lados da formação e paralelos às guarnições laterais.

Quando uma força militar se dispunha no terreno, preparada para um recontro ou batalha, cada terço de infantaria constituía o núcleo de um esquadrão (a menos que estivesse tão desfalcado que não bastasse para tal). A realização de uma formação destas no terreno era complexa. Implicava muita prática por parte dos sargentos-mores, o quais deviam saber calcular com presteza raízes quadradas, de forma a conseguirem organizar os soldados no terreno. Para isso eram auxiliados por dois ajudantes e pelos sargentos do terço. Esta formação era utilizada apenas para a defesa estática e para a progressão no terreno após o contacto estabelecido com o inimigo. As marchas de aproximação não eram efectuadas com os esquadrões formados, pois tornar-se-iam demasiado lentas e impraticáveis.

Na década de 60, o esquadrão guarnecido de mangas e alas caiu em desuso. A evolução da táctica passou a favorecer formações mais lineares e de maior capacidade de movimento debaixo de fogo. Em Portugal, o advento da marcha de costado (já conhecida dos portugueses na teoria, mas não praticada antes da chegada do Conde de Schomberg), em que o exército progredia já em formação de batalha, impôs o abandono do complexo esquadrão herdado da escola militar espanhola, que tão bons resultados havia dado na primeira metade do século XVII. No entanto, essa transição não terá sido muito rápida. Escrevendo sobre a situação do exército português do início da década de 60, o francês Frémont d’Ablancourt observou que os portugueses mantinham o hábito de colocarem sobre as alas dos seus esquadrões “quatro a cinco filas de mosqueteiros, cujos mosquetes se assemelham a pequenos arcabuzes pesados” (Mémoires de Monsieur d’Ablancourt, Amsterdam, J. Louis De Lorme, 1701, p. 30). Referia-se, com toda a probabilidade, às mangas.

Gravura baseada numa outra, apresentada em JÖRGENSEN, Christer, e outros, Fighting Techniques of the Early Modern World, AD 1500-AD 1763, Equipment, Combat Skills and Tactics, London, Amber Books, 2005.