Procedimentos irregulares de oficiais estrangeiros: o caso dos capitães La Morlaye e Tamericurt (1645)

Na sequência de um artigo anteriormente publicado, que tratava das atitudes perante os estrangeiros, trago aqui uma consulta do Conselho de Guerra que se reporta a um dos vários casos que contribuíram para que as dúvidas acerca da utilidade dos oficiais estrangeiros se adensassem, na fase inicial da guerra, em particular entre os anos de 1643 e 1645.

O facto é que os militares estrangeiros viam os seus soldos serem pagos com uma irregularidade que podia ir de meses a anos. Ao contrário dos portugueses, que sempre tinham mais facilidade em encontrar meios alternativos junto das populações, aos estrangeiros restava o recurso a expedientes ilegais. Daí a intervenção dos embaixadores, no sentido de poupar os oficiais infractores aos castigos que deviam incidir sobre os actos ilegais que praticavam. Umas vezes com mais sucesso, noutras nem tanto.

Todavia, os casos que a presente consulta aborda dizem respeito a dois oficiais franceses que viriam a distinguir-se ao serviço da Coroa portuguesa: Achim Avaux de Tamericurt, que atingiria o posto de governador da cavalaria da Beira, com a patente de tenente-general, e que só abandonaria o exército para regressar a França em Outubro de 1661 (acompanhando na ocasião D. Catarina de Bragança na sua viagem para Inglaterra), e Henri de La Morlaye, primo e homónimo de um outro La Morlaye (cavaleiro da Ordem de Malta, daí a sua alcunha “o Maltês”) que havia morrido em combate em Outubro de 1642. Também este La Morlaye viria a tombar em combate, quando era comissário geral da cavalaria de Trás-os-Montes, em Maio de 1649.

A consulta refere que o Conde de Castelo Melhor enviara uma devassa (que surge em anexo à consulta, juntamente com a informação do auditor geral) que a instâncias de André Mendes Lobo, pagador geral do exército do Alentejo, fora feita aos capitães de cavalos franceses Henri de La Morlaye e Achim de Tamericurt. Do primeiro foram encontrados cinco cavalos com a marca da sua companhia em poder de alguns hortelãos e moleiros, e da companhia de Tamericurt dois cavalos. Acrescentava-se que estes capitães procuravam pessoas que lhes quisessem tomar outros.

Mais referia a devassa que nas mostras de três anos àquela parte tinha passado o capitão de Lamorlé [La Morlaye] muitas fantásticas e falsas, e que para uma que se havia de passar em Borba fizera que dois soldados seus se fingissem enfermos em cama, tomando os nomes de outros dois que eram já mortos ou ausentes, ordenando a um escrivão os fosse ver nas camas e lhe passasse certidão para com ela na mostra lhe pagarem suas praças. E aponta o Conde que as intercessões do embaixador de França são tão poderosas que estes capitães não são castigados como merecem.

O Conselho de Guerra dá parecer que não se admita ao Embaixador qualquer intercessão nestes casos, nem a outra pessoa, para que os oficiais sejam castigados, porque assim convém o serviço do Rei.

O próprio Rei dá parecer favorável em 11 de Julho, acrescentando: com se falar em nada ao Embaixador de França. Ou seja, mantendo em segredo os castigos a serem aplicados aos oficiais.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, mç. 5, consulta de 4 de Julho de 1645.

Imagem: Soldado de dragões armado de arcabuz. Gravura francesa de meados do século XVII.

As atitudes perante os estrangeiros – um exemplo de 1645

A presença de oficiais e soldados estrangeiros em Portugal no decurso da Guerra da Restauração já foi abordada aqui por diversas vezes, em vários artigos e sob diferentes perspectivas. O caso que agora se apresenta é ilustrativo do desencontro de opiniões sobre a necessidade ou não do recurso a estes militares profissionais, que tão depressa eram considerados imprescindíveis para reforçar a capacidade de combate do exército português (principalmente na fase inicial do conflito), como eram vistos como dispensáveis arruaceiros e potenciais desertores, que nenhum benefício traziam para o esforço militar do Reino.

Em Agosto de 1645, o tenente francês Jean Boustier de Lanue, que havia chegado a Portugal em Setembro de 1641 como alferes de infantaria, enviou ao Conselho de Guerra uma petição para a formação de uma companhia de infantaria. Encontrava-se então sem contrato nem unidade onde servir desde o início do ano. A falta de montadas terá levado o oficial a propor-se servir numa unidade apeada, formada por si, ainda que a promoção não lhe trouxesse avanços no que ao soldo respeitava – um tenente de cavalos estrangeiro auferia 18.000 réis mensais, ao passo que um capitão de infantaria ganhava 16.000, o dobro de um oficial português com a mesma patente. No entanto, a  efectivação dos pagamentos era uma raridade, deixando os que não eram naturais do Reino numa situação difícil, sem outros meios de socorro imediato e levando-os a praticar alguns abusos e desmandos, o que, de certo modo, é usado por Joane Mendes de Vasconcelos como justificação do seu parecer.

João Boustier de Lanüe, francês, pela petição inclusa se oferece a levantar nesta cidade [Lisboa] uma companhia de cem infantes dos de sua nação para servir a Vossa Majestade com ela, fazendo-lhe Vossa Majestade mercê do posto de capitão dela para ir servir adonde se lhe ordene.

Consta dos papéis que este francês presentou, haver servido na província de Entre Douro e Minho de tenente de uma companhia de cavalos, de 17 de Setembro de 643 até 20 de Janeiro de 645, e achar-se no decurso deste tempo em todas as ocasiões e encontros que se teve com o inimigo, e nas facções de maior importância nos postos de maior risco, mostrando grande valor e zelo do serviço de Vossa Majestade.

Havendo-se visto esta oferta, considerando D. João da Costa e Jorge de Melo que será conveniência do serviço de Vossa Majestade admiti-la, assim por escusar que estes franceses vão descontentes a sua terra e lancem voz da pouca estimação que deles se fez neste Reino, intimidando outros para duvidarem vir a ele quando a necessidade obrigue a procurá-los, como porque sendo soldados práticos poderão servir melhor que os bisonhos que se levantarem de novo, e fazendo-o na infantaria não terão tanta ocasião de se ausentar, como a teriam se servissem a cavalo, por todas estas razões são de parecer que Vossa Majestade deve de admitir a oferta, ordenando que a cada um dos cem soldados se dê uma paga de quatro mil réis para se poderem vestir, e seus socorros ordinários na forma que são socorridos os soldados portugueses, e depois de formada esta companhia se poderá remeter ao Alentejo, com ordem ao Conde governador das armas que agregue a um dos terços daquele exército.

Joane Mendes de Vasconcelos é de parecer que não se deve de admitir esta oferta, entendendo que sendo esta gente a escória de todos os estrangeiros que passaram a este Reino, não servirá tão bem como o farão os soldados portugueses, ainda que sejam bisonhos, entendendo também que estes franceses, estando já costumados à vida de vagabundos, como se virem com as pagas e vestidos, por mais cuidado que se tenha com eles procurarão fugir, e que o receio do dano que eles podem causar indo-se descontentes deste Reino mal se poderá atalhar com os acomodar, sendo já idos tantos de mais autoridade e importância que eles, queixosos de não se lhes pagar o que se lhes devia, despedidos do serviço de Vossa Majestade, a cujas queixas é de crer se dará mais crédito nas suas terras, do que se dará a estes, sendo gente de tão pouca importância. Lisboa 22 de Agosto de 1645.

O Rei acrescenta à margem, como resposta ao parecer: Tenho deferido noutra consulta. Caldas, 13 de Setembro de 645.

Jean Boustier de Lanue seria mais tarde promovido a capitão de dragões, tendo morrido em combate em Dezembro de 1646.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1645, maço 5, consulta de 22 de Agosto de 1645.

Imagem: “O cavaleiro”, óleo de Gerard Terborsch.

Efectivos do exército da província do Alentejo em Setembro de 1661 (Parte 3 – a cavalaria estrangeira e os efectivos totais)

Conclui-se aqui a apresentação dos efectivos do exército da província do Alentejo com as listas da cavalaria estrangeira. Nesta época havia apenas dois regimentos de cavalaria francesa, um nominalmente sob o comando do Conde de Schomberg, que era ao tempo mestre de campo general do exército da província (daí que o título de coronel do regimento fosse honorífico; o comando no terreno era exercido pelo tenente-coronel Chavet); e o segundo era o muito reduzido regimento do coronel Monjorge, que sofrera com o assalto ocorrido durante a viagem para Portugal por parte da marinha de guerra espanhola. A captura de parte dos navios que transportavam o regimento significou o aprisionamento de muitos oficiais e soldados, incluindo o próprio Monjorge, de modo que o regimento era comandado pelo sargento-mor Sausé. Como era habitual na maioria dos documentos da época, os nomes próprios dos oficiais estrangeiros surgem em português.

[Abreviaturas: – Companhia; Cap – Capitão ; Of – Oficiais; Sold – Soldados]

Regimento das companhias francesas de que é coronel o Conde de Schomberg, mestre de campo general do Exército

Of

Sold

Todos

Cavalos

Cª do mestre de campo general

7

93

100

91

Cª do sargento-mor Bogni

1

43

44

47

Cª do tenente-coronel Jeremias Chavet

7

53

60

60

Cª do cap. João Salomon

4

54

58

51

Cª do cap. Bartolomeu de Brand

4

38

42

44

Cª do cap. João Morignac

2

47

49

21

TOTAL

25

328

353

314

Regimento do coronel Monsieur de Monjorge

Cª do sargento-mor M. de Sossé

4

30

34

14

Cª do cap.  Du Mortier

3

12

15

4

Cª do cap. Labotinière

1

24

25

0

TOTAL

8

66

74

18

TOTAIS

Of

Sold Todos Cavalos
Os terços da infantaria da guarnição deste Exército

867

5234

6101

60 companhias de cavalos portuguesas (incluso duas companhias soltas de cavalaria francesa)

283

2683

2966

2879

Regimento francês do Conde de Schomberg

25

328

353

314

Regimento francês de Monsieur Monjorge

8

66

74

18

TOTAL DA CAVALARIA

316

3077

3393

3211

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21, “Relação dos Officiais, e Soldados da Infantaria e Cauallaria deste Ex[érci]to que se acha effectiua, Conforme consta dos roes de Lista da ultima m[ost]ra, que se lhes passou na maneira seguinte”.

Imagem: Cena de batalha, pintura de Sebastian Vrancx.

Efectivos do exército da província do Alentejo em Setembro de 1661 (Parte 1 – a Infantaria)

Em 9 de Setembro de 1661 foi passada uma mostra a todas as unidades pagas do exército da província do Alentejo (excluindo a artilharia, cuja especificidade não obrigava a participar nesta revista geral, como hoje se diria). São raros os documentos sobreviventes que nos permitem ter uma percepção detalhada das forças que compunham, a um dado momento, o exército de uma província.

Devido às características do WordPress, que torna difícil a apresentação de múltiplas tabelas pré-formatadas, o rol das forças será dividido em várias partes.

Algumas notas sobre os mestres de campo apresentados na lista: D. Luís de Meneses seria, como é sabido, o futuro 3º Conde de Ericeira; D. Pedro, o Pecinga (ou Opecinga como também surge em vários documentos) era um nobre napolitano que havia servido o rei Filipe IV de Espanha, mas que se encontrava homiziado em Portugal devido a um crime cometido no reino vizinho e servindo a monarquia portuguesa; e Francisco Pacheco Mascarenhas, que anteriormente fora capitão de cavalos, comandara a última companhia em que serviu o memorialista Mateus Rodrigues.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1661, maço 21, “Relação dos Officiais, e Soldados da Infantaria e Cauallaria deste Ex[érci]to que se acha effectiua, Conforme consta dos roes de Lista da ultima m[ost]ra, que se lhes passou na maneira seguinte”.

Imagem: Mais uma perspectiva da excelente maquete representando piqueiros e mosqueteiros suecos do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648), presente no Museu Militar de Estocolmo. Foto de JPF.

Terços de Infantaria

[Abreviaturas: MC – Mestre de Campo; Of – Oficiais; Sold – Soldados]

Terços

Of

Sold

Total

MC D. Luís de Meneses 90

880

970

MC D. Francisco Mascarenhas

103

737

840

MC D. Pedro, o Pecinga (ou Opecinga)

98

607

705

MC D. Jorge Henriques

82

366

448

MC João Leite de Oliveira

86

550

636

MC D. Pedro Mascarenhas

92

415

507

MC Agostinho de Andrade Freire

101

670

771

MC Pedro de Melo

71

361

432

MC Francisco Pacheco Mascarenhas

66

271

337

MC Fernão da Mesquita Pimentel

78

377

455

Totais

867

5234

6101

O outro Jacques Talonneau de la Popelinière, oficial francês de cavalaria ao serviço de Portugal (1646-1658)

Aelber

O primeiro Jacques Talonneau de la Popelinière foi um oficial francês que chegou a Portugal em Setembro de 1641, na armada do Marquês de Brézé, fazendo parte do regimento de cavalaria ligeira do coronel Sebastian de Mahé de la Souche. É indubitável a chegada de Popelinière nesta data, pois o seu nome é referido em diversos documentos, alguns dos quais relações dos oficiais franceses e respectivos regimentos. Quando Mahé de la Souche deixou Portugal em Maio de 1642 e o seu regimento foi dissolvido, Jacques de la Popelinière seguiu com a sua companhia para a Beira, onde logo foi nomeado comissário geral (Conde de Ericeira, História de Portugal Restaurado, vol. I, pg. 387, edição de 1945). Em 1644, aquele oficial é dado como morto em combate – e é assim que o reporto no meu estudo O Combatente durante a Guerra da Restauração, ainda que referindo que o seu último posto foi o de tenente-general da cavalaria na província de Trás-os-Montes.

Na verdade, documentos que posteriormente consultei sugerem ter havido um outro Jacques Talonneau de la Popelinière (casos de homónimos eram raros, mas não impossíveis: houve o exemplo, também entre cavaleiros franceses ao serviço de Portugal na mesma época, dos primos Henri de la Morlaye, um morto em Outubro de 1642, outro em Maio de 1649, ambos em combate). Este Popelinière é que ocupou, como último posto, o de tenente-general da província de Trás-os-Montes. Chegou a Portugal em 1646, portanto já após a morte do primeiro, e também combateu nos mesmos teatros de operações antes de ser promovido a comissário geral na província de Trás-os-Montes, em Janeiro de 1658.

A necessidade de nomeação de um comissário geral da cavalaria para Trás-os-Montes deveu-se ao facto do posto estar vago, por promoção de Domingos da Ponte, o Galego, a tenente-general naquela mesma província. Na consulta do Conselho de Guerra onde são feitas as propostas de sujeitos para o posto vago pode ler-se a respeito do até então capitão Jacques Talonneau de la Popelinière (texto vertido para português corrente):

Jacques Talonneau de la Popelinière, pessoa de qualidade, de nação francês, que serve a Vossa Majestade há quase doze anos, ocupando os postos, depois de soldado, de alferes, tenente, e de capitão de cavalos, que serve em Trás-os-Montes há seis anos, um mês, e quinze dias, e o mais tempo parte dele na Beira, e outro nas fronteiras de Alentejo, achando-se nelas na maior parte das ocasiões que naquele tempo se ofereceram, e particularmente no encontro que houve em vinte seis de Março de seiscentos quarenta e sete, com vinte quatro tropas na passagem de Cantilhana, na escaramuça que depois se teve com outras tropas de Badajoz, ficando prisioneiro entre elas, e tornando de Castela em sua liberdade, se achou na emboscada que se fez junto a Badajoz em Setembro de quarenta e nove; no encontro que houve com sete tropas em Albufeira, indo mais de uma légua no seguimento delas; e se achou na peleja que a nossa cavalaria teve com a que saiu de Montijo, na correria da campanha de Xerês. E sair de Olivença a pelejar com o inimigo, que se veio emboscar junto da muralha da mesma praça, em Maio de seiscentos e cinquenta, desmontando um castelhano lhe deu uma cutilada no rosto. Na oposição que em treze de Fevereiro de seiscentos cinquenta e um se fez ao inimigo vindo com grosso de sua cavalaria a correr a campanha de Olivença, saiu ferido num braço com bala de pistola. E o mesmo ano se achou na entrada de Salvaterra, e o mesmo ano passou a Trás-os-Montes, onde por ordem do Conde de Atouguia, que governava as armas, por não haver cabo, governou a cavalaria que assistia em Chaves, achando-se nas duas entradas que se fizeram em Castela, e na ausência do capitão-mor da cidade de Miranda a ficou governando, acudindo com grande zelo às fortificações dela, e ultimamente se assinalou, matando e ferindo e rendendo a muitos do inimigo. E na entrada que em dois de Maio de seiscentos cinquenta e cinco se fez, pelas terras de Trás-os-Montes com quatrocentos e quarenta cavalos, tendo-se-lhe encarregado investisse o inimigo, como fez com valor indo em seu seguimento, e da mesma maneira obrar nas ocasiões referidas. Depois delas, acompanhou o mestre de campo António Jacques de Paiva, e achando-se em Miranda, nas entradas que fez em Galiza onze léguas pela terra dentro, saqueando-lhe mais de  setenta lugares, e as Vilas de Pino, Távora e Carvalhosa. E pretendendo o inimigo desquitar-se, vindo com quinhentos infantes pagos e outros tantos milicianos, e cento e quarenta cavalos, achando-se o mestre de campo na campanha com duzentos e três infantes e oitenta cavalos à ordem de Jacques Talonneau, investiu o inimigo com tal resolução, que matando-lhe muita gente e aprisionando-lhe duzentos trinta e sete soldados, com vinte e oito cavalos, e ganhando-lhe as munições e bagagem, e finalmente restaurando a presa que levava se recolheram, assinalando-se este capitão com particular valor, pelejando à espada, rendendo, ferindo e matando muitos castelhanos. Em outra ocasião, por ordem do tenente-general Luís de Figueiredo Bandeira, saiu com a sua companhia, e outra mais, governando-as, por haver o inimigo dado rebate à praça de Bragança, e encontrado-se com ele, pelejou com tal resolução que o pôs em fugida, trazendo ainda alguns prisioneiros do inimigo. Foi de socorro com sua companhia e a mais cavalaria de Trás-os-Montes à fronteira do Minho na ocasião que o inimigo a entrou com exército, e em todo o tempo que ali assistiram, se houve com grande valor nas pelejas, emboscadas e encontros que se teve com o inimigo, em que recebeu muito grande perda de gente morta, ferida, prisioneiros, e de cavalos que se lhe tomaram. Acabada a campanha, tornou para Trás-os-Montes. E vindo a esta Corte a tratar de seu requerimento, escreveu a favor deste capitão Joane Mendes de Vasconcelos, governando as armas naquela província, a Vossa Majestade que lhe devia Vossa Majestade de mandar deferir, assim por seu grande valor, como por ser o capitão mais antigo dela. E havendo Vossa Majestade despachado por seus serviços com o hábito de Santiago, foi servido se lhe mudasse ao de Cristo, com uma comenda de lote de duzentos mil réis.

O outro nome proposto foi o de Manuel da Costa Pessoa, que servia há treze anos, dois meses e vinte dias, tendo começado a servir em Setúbal em Setembro de 1640, na companhia de infantaria do Duque de Aveiro que devia ir à Catalunha; serviu 5 anos no Alentejo como soldado de infantaria e da cavalaria, foi cabo de esquadra e furriel e depois alferes de infantaria; participou na campanha de 1643 e nas duas campanhas de Montijo (como soldado de cavalos). Passou a Trás-os-Montes como alferes reformado, assim permanecendo 5 meses e 17 dias, mas depois, 3 anos e 27 dias de ajudante e como capitão de cavalos 4 anos, 7 meses e 11 dias.

O capitão francês acabou por ser provido no posto de comissário geral por decreto de 21 de Janeiro de 1658.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1658, mç. 18, consulta de 9 de Janeiro de 1658.

Imagem: Aelbert Cuyp, “Descanso no acampamento”, c. 1660, Musée des Beaux Arts, Rennes.

Nicolau de Langres, arquitecto e engenheiro militar

nicolau-de-langres-auto-retrato1

Nicolau de Langres, arquitecto e engenheiro militar, chegou a Portugal em 1644, com um contrato inicial válido por três anos. Em França, ao serviço de Luís XIII, adquirira experiência no projecto e reparação de fortalezas. Permaneceu em Portugal muito para além do termo do primeiro contrato. Sucedeu a João Pascácio Cosmander na província do Alentejo como coronel superintendente dos engenheiros, tendo desenhado os projectos de fortificação de várias praças naquela província, como Estremoz, Campo Maior ou Juromenha. Tal como o seu antecessor holandês, também Nicolau de Langres viria a ser capturado e passaria a servir o soberano espanhol, neste caso no início da década de 60. E a completar a coincidência de trajectos entre aqueles dois engenheiros militares, também Nicolau de Langres viria a morrer num cerco: o de Vila Viçosa, em 1665, onde foi mortalmente ferido, durante a campanha que conduziu à batalha de Montes Claros.

Na Biblioteca Nacional de Lisboa existe um volume que reúne vários dos seus trabalhos ao serviço da Coroa portuguesa. É desse volume que se reproduz a gravura acima – um auto-retrato de Nicolau de Langres, no acto idealizado de preparar um esboço de fortificação, sendo acompanhado de dois criados, muito provavelmente durante a década de 1650.

LANGRES, Nicolau de – Desenhos e Plantas de todas as praças do Reyno de Portugal pelo Tenente General Nicolao de Langres Francez, que servio na guerra da Acclamação. (F2359)

Regimentos franceses de 1641 ao serviço da Coroa portuguesa (cavalaria e infantaria – organização teórica)

franceses-1640s

Regimentos constituídos em Setembro de 1641, a partir do contingente enviado pelo Cardeal Richelieu. Organização teórica, nunca cumprida no terreno. A maioria dos regimentos de cavalaria só conseguiu alinhar duas companhias, inicialmente com 25-30 efectivos cada, quando era suposto terem quatro companhias de 40 a 50 efectivos cada uma, a do coronel incluída. Nunca combateram como unidades autónomas, e várias companhias actuaram como as portuguesas, isto é, independentes ou integradas em troços (agrupamentos) temporários, sob as ordens de um coronel estrangeiro ou um comissário geral português. Uma curiosidade: de acordo com as listas de equipamento apresentado nas mostras, a cavalaria francesa em Portugal nunca utilizou protecções metálicas (peito, espaldar e murrião), limitando-se a usar um colete de couro para protecção do tronco e chapéu de aba larga para a cabeça.

Os regimentos de infantaria nunca se formaram por falta de oficiais e soldados franceses em número suficiente. Os coronéis e restantes oficiais das companhias foram comandar ou integrar terços mistos de portugueses e estrangeiros.

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este assunto é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais.

Cavalaria (apesar das diferentes designações, os elementos da cavalaria ligeira e os carabineiros estavam equipados de maneira idêntica, correspondendo aos chevaux légers franceses: carabina e um par de pistolas; o regimento de dragões nunca se constituiu como tal, apesar de, em 1644, uma das duas companhias comandadas então pelo Marquês de Gravelines ser nominalmente de dragões, mas sem um único arcabuz entre os 20 elementos que a constituíam – presume-se que combatesse unicamente com espada, como a restante cavalaria)

Regimento de cavalaria ligeira de du Boucquoy. Coronel: Jean du Boucquoy de La Motte; capitães: Arnaud Bruneau de La Chabatière, Bernabé Brisson de La Touche, Théodore de Murasson.

Regimento de cavalaria ligeira de Montjouant. Coronel: Claude de Montjouant, Barão de Cornau; capitães: Jacques de Grille de Roubiac, Jean Danse d’Erbauvillins, Stéphane Paschier de Brussy.

Regimento de cavalaria ligeira de Gravelines. Coronel: Jean Pierre de la Roque, Marquês de Gravelines; capitães: Achim Avaux de Tamericurt, Jean Heitor de Nier, Stéphane Boule de Rosières (m. 1653).

Regimento de cavalaria ligeira de Chantereine. Coronel: François de Huybert de Chantereine; capitães: Louis de Chivray du Plessis, Henri de Belys de Billon, Michel du Bocage (a partir de Dezembro de 1641).

Regimento de cavalaria ligeira de Mahé. Coronel: Sebastian de Mahé de La Souche; capitães: Adrien de Mahé du Plessis, Pierre Guerineau de La Tortinière, Jacques Talonneau de La Popelinière.

Regimento de carabineiros de Boisemont. Coronel: Esme de Pillavoine de Boisemont; capitães: Jean Baptiste Lambert de Gransan, Urbain de Boissey de Chandonville, Nicolas Verniere de Lousières.

Regimento de dragões de Mazeros. Coronel: Pierre de Berfriert de Mazeros; capitães: Jean Chevallier de La Blanchardière, Jean de La Valée de Beaulieu, Henri de La Morlaye, o Maltês (m. 1642).

Nota: com os militares franceses chegou também a Portugal um capitão genovês, Francisco Fiesco, Conde de Lavagna, que comandou uma companhia de cavalos. Embora não estivesse originalmente integrada em nenhum regimento, a sua companhia é sempre incluída na cavalaria francesa nos documentos da época, pois os oficiais e soldados eram franceses. Francisco Fiesco foi capturado pelos espanhóis na batalha de Montijo, tendo passado alguns anos no cárcere.

Infantaria (os regimentos nunca tomaram forma)

Regimento de infantaria de Viole d’Athis. Coronel: Eustache Pierre Viole d’Athis (m. 1643); capitães: François Bouchel de Mirville, Stephan Damar de La Molière, Charles Yvelin de Roquemont.

Regimento de infantaria de Orelio (ou O’Reilly, irlandês). Coronel: Hugo Orelio (ou O’Reilly, irlandês); capitães: Carlos Orelio (ou O’Reilly, irlandês), Nicolas de La Rocca, Volant de Roufiat.

Regimento de infantaria de MacSuey (escocês). Coronel: Maurice MacSuey (escocês); capitães: Henri Marast de Loges, Louis de La Motte de La Prelle, Guillaume Giroult de La Vardin

Regimento de infantaria de Tirel (italiano). Coronel: Gualtiero Tirel (italiano); capitães: Rodrigo Chiogo (italiano – em 1644 deixou o exército e tornou-se frade), John Dungan (irlandês).

Imagem: Soldados franceses – um cavaleiro e um infante mosqueteiro da década de 1640. Gravura extraída da obra de Philip Haythornthwayte The English Civil War 1642-1651. An Illustrated Military History, London, Brockhampton Press,1994.

Organização do exército português (5) – Dragões

Existiu apenas uma companhia portuguesa de dragões durante a Guerra da Restauração. Foi formada nos inícios de 1642 e fazia parte do exército da província do Alentejo. O seu primeiro comandante foi António Teixeira Castanho, ex-tenente de uma companhia de cavalos arcabuzeiros, um indivíduo com prévia experiência militar ao serviço da monarquia dual. O tenente era António Banha, referido em algumas Relações de feitos de armas. A partir de 1646, os dragões tiveram sempre oficiais franceses a comandá-los. A companhia não tinha alferes, pois não usava estandarte. Em princípio teria duas caixas de guerra (tambores) em vez de trombetas. Quanto ao resto, seguia a estrutura de uma companhia de cavalos, embora fosse considerada infantaria montada. No entanto, os soldos pagos aos oficiais eram idênticos aos da cavalaria – e portanto, superiores aos da infantaria. O armamento defensivo dos dragões consistia de um colete de couro e o ofensivo de um arcabuz de mecha e uma espada.

Apesar de indicações para que fossem constituídas mais unidades de dragões, nenhuma outra portuguesa tomou forma. Em Março de 1648, a companhia foi transformada em cavalos arcabuzeiros. Na opinião do governador das armas do Alentejo que ordenou essa conversão – Martim Afonso de Melo, Conde de São Lourenço – os dragões serviam pouco e os oficiais faziam a mesma despesa que os da cavalaria. Chegava ao fim a breve história dos dragões na Guerra da Restauração. Como curiosidade, refira-se que a companhia tinha como local habitual de alojamento a vila de Olivença – localidade que aparece, numa época posterior, associada àquele tipo de força militar.

Um procedimento relativamente comum durante toda a Guerra da Restauração era fazer montar em mulas parte da infantaria dos terços – os arcabuzeiros, principalmente, mas também piqueiros e mosqueteiros – para lançar incursões em território inimigo ou acudir a alguma ocasião de maior necessidade. Dois soldados por animal era a “dotação” habitual. No entanto, não devem ser considerados dragões no sentido operacional (apesar de algumas fontes narrativas se lhes referirem confusamente como tal), pois não faziam operações de reconhecimento, emboscadas ou protecção do dispositivo em marcha. Os animais serviam apenas de meio de transporte aos militares.

Quanto a unidades estrangeiras de dragões no exército português, houve 4 companhias holandesas que serviram entre 1641 e 1644. Mas esse assunto será tratado num artigo próprio.

Imagem: “Escaramuça de Cavalaria”, quadro de Philips Wouwerman, c. 1640-45.