Relação diária dos sucessos ocorridos entre os anos 1655 a 1656 na fronteira da Extremadura espanhola (parte 1)

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Foi-me remetido pelo estimado amigo Juan António Caro del Corral, há já alguns anos e sob a forma de fotocópia autorizada, um manuscrito em língua castelhana acerca dos acontecimentos desenrolados no teatro de operações da Extremadura, durante a Guerra da Restauração, no período compreendido entre 1655 e 1656. Dado o objectivo de divulgação histórica deste blog e o valor intrínseco deste documento, inicia-se aqui a transcrição (numa tradução para português) do referido manuscrito, intitulado “Relación diaria de los sucesos acaecidos entre los años 1655 a 1656” (Biblioteca Nacional de Madrid, Sala Cervantes, Colección Mascareñas, Manuscrito nº 2384). No final será feita uma análise das situações nele referenciadas, comparando com casos similares apresentados em documentos coevos portugueses.

Estremadura, Ano 1655

Por fim deste mês de Fevereiro saiu desta praça [Badajoz] Don Diego Cavallero, general da artilharia do exército, a quem Sua Majestade fez general da cavalaria da Catalunha.

Poucos dias depois se deu a artilharia deste exército a Don Gaspar de la Cueva, irmão do Duque de Albuquerque. E por haver morrido em aquele tempo o Conde de Tronçan, governador político e militar de Alcântara e seu distrito, se lhe deu também a Don Gaspar aquela ocupação, que ele solicitou vivamente, persuadido, segundo dizem, porque era aquele governo de grandes conveniências. Mas desenganado brevemente, fez denúncia [ou seja, quitação] dele sem haver saído da Corte, e se deu ao Conde Don Felix de Zuñiga, cavaleiro sevilhano que serviu, segundo se diz, em Alemanha, e se lhe deu com o título de general da artilharia de Sevilha, que tinha seu antecessor.

Por estes dias vieram algumas tropas de infantes de Sevilha, e da Corte dos irlandeses que ali levanta o sargento-mor Don Ricardo. E porque em Albuquerque e Valência de Alcântara não havia infantaria forasteira, por haverem-se ajustado as companhias da Província que guarneciam aquelas praças, se enviaram cinquenta ou sessenta irlandeses a cada praça, os quais se mudam desta praça cada mês ou cada dois meses.

Também vieram por esse mesmo tempo 200 infantes de Jaén, que levantou ali o mestre de campo D. Pedro de Viedma, e os conduziu seu sargento-mor e quatro capitães, e ficou Viedma com outros capitães para continuar a leva, que há-de ser de mil infantes, para cujo efeito de despacharam deste exército dois oficiais de soldo com o dinheiro necessário. Pareceu esta gente de Jaén melhor que a de Sevilha, mas também fugiram alguns deles, [tal] como dos sevilhanos, não obstante que o socorro [ou seja, dinheiro e víveres] se tenha continuado com pouca ou nenhuma interpolação. A pouca inclinação à guerra, a carestia do lugar, que é grande, e finalmente o trabalho contínuo de estar de guarda ordinariamente os vai arrolando cada dia daqui, que como nunca chega a haver a guarnição necessária em esta praça, pelo vagar com que se levanta esta gente é preciso que esses poucos que há façam as guardas e todas as demais tarefas, que houvera algum alívio se essa gente viera junta e não em partes.

Por estes dias entrou sem ordem em Portugal uma partida de dez ou doze tenentes vivos e reformados e outros oficiais e pessoas particulares, e trazendo uma presa de 80 rezes maiores, saiu outra partida de Arronches algo maior em número. Porém vendo o desenfado e resolução com que os nossos os procuravam na escaramuça, consideraram que era toda gente escolhida [ou seja, soldados escolhidos pela experiência e veterania, como que de elite] e nunca ousaram cerrar [ou seja, carregar]. Porém vieram sempre à vista, para se poderem lograr de alguma situação de descuido, como sucedeu, porque a nossa partida, desvanecida de ver o temor ou tibieza dos contrários, resolveu fazer alto e descansar um pouco da noite de trabalho da marcha, que havia sido grande. Assim se puseram a dormir como se não houvera inimigo no mundo, o qual, por assegurar-se se os nossos dormiam ou só haviam feito alto um pouco para descansar, se confirmou que dormiam e que estavam para demorar, vendo que ia outro soldado mudar o posto. Então, cerrando com os sentinelas, os prenderam, e carregando de improviso sobre os demais, que quase todos se encontravam a dormir e descuidados, prenderam oito ou dez e tiraram-lhes a presa e os cavalos. Só escaparam alguns poucos, e porque foram sem ordem, prenderam dois tenentes vivos que tinham ido com eles.

Outro dia, havendo saído desta praça uma manhã a guarda a bater e a pôr as sentinelas, chegou uma partida à casa d’El-Rei para deixar ali, segundo é costume, uma sentinela, e havendo-a posto sem reconhecer a casa, foi dando a volta a outros postos. Encontrava-se dentro o negro de Campo Maior com 4 cavalos, que é um partidário famoso, o qual se havia escondido ali por não poder escapar-se de outra sorte das nossas partidas que haviam saído a bater. E vendo a que se encaminhou à casa, esteve resolvido a render-se, mas como viu que não haviam reconhecido a casa, quiçá parecendo-lhes que o inimigo não viria a emboscar-se no mesmo posto onde se põe a sentinela nossa, logo que viu sozinhas as sentinelas, e desmontadas, saiu muito silencioso com os seus e as prendeu, e se foi a Campo Maior sem oposição por descuido dos nossos, pois só as sentinelas eram bastantes para prendê-lo dentro da casa, se a tivessem reconhecido.

(continua)

(fls. 250-251)

Imagem: Cavaleiros num campo, óleo de Philips Wouwerman, século XVII.

O capitão da ordenança e de auxiliares Luís Machado de Miranda: perfil de um combatente

Do estimado amigo Carlos P. M. da Silva recebi um interessante artigo que, com a devida autorização do autor, a quem agradeço, passo a reproduzir aqui.

Aventuras do capitão Luís Machado de Miranda: perfil de um homem muito completo

Entre os nomes bem conhecidos, quase familiares, dos investigadores e genealogistas que frequentam a Guimarães seiscentista, e o eixo Guimarães-Famalicão, temos Luís Machado de Miranda (Guimarães S. Paio, 1620 – Vermoim, 1695). Amplamente referido nos livros paroquiais, como padrinho, testemunha ou como pai de meninos da freguesia, com seus irmãos da Casa da Breia (Vermoim); nos livros da Câmara de Guimarães, como homem da governança, vereador, e como capitão de ordenanças no período conturbado da Guerra da Aclamação. Junto dois documentos que revelam um perfil um pouco mais completo desta interessante e ativa personagem.

Aspecto intelectual:

muito lido e de grande memoria, foi o tombo das familias do Minho. Fonte: “Livro das genealogias nobres deste reino de Portugal” dos apelidos que pertencem à letra M” – ver Machados da Breia- folha 264.

https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=4187624

Estado de serviço na guerra:

serviços […] feitos em capitão de uma companhia da ordenança da vila de Guimarães do ano de 1640 até o de 1647 em que foi promovido a capitão de auxiliares na mesma comarca.

o ano de 1641 assistir de guarnição na praça de Melgaço por duas vezes provendo os soldados da sua companhia e indo a Ponte das Vargas rebater os inimigos com muito risco de sua pessoa acompanhando depois o capitão-mor de Guimarães ao castelo de Lindoso / Sendo dos primeiros que cometeu a trincheira e no saque de seis lugares na entranda do lugar de Lamas e queima de um reduto;

o ano de 1642 acompanhar com dois homens a sua custa um comboio de munições [da coroa], na entrada que se fez por Galiza em que se saquearam e queimaram muitos lugares ocupando os postos mais perigosos / Sendo dos primeiros que investiram e entraram a vila de Lobeira;

o de 1643 nos repetidos rencontros da passagem do Rio Lima e tomada de Salvaterra na entrada daquela praça gouvernou um troço de mosqueteiros e tornando o inimigo sobre ela se lhe encarregar um lanço de muralha que defendeu com valor;

o de 1644 na entrada do lugar de São Bartolomeu das Eiras aonde foi ferido com um chuço na braço esquerdo e na entrada do lugar de Tamuge;

o de 1646 na peleja sobre a trincheira de Salgoza;

e o de 1647 assistindo com sua companhia na praça de Salvaterra Se achar no encontro que houve com duas tropas inimigas adiantando-se a guardar o passo de uns valos em que pelejou com muito valor até o mandarem retirar;

e depois de ser nomeado capitão de auxiliares assistir do ano de 1648 até o de 1654 na raia da Portela do Homem aos rebates que se ofereceram e rebater a entradas do inimigo com dois criados e cavalo a sua custa.

Fonte : Diligência de habilitação para a Ordem de Cristo de João de Sequeira Monteiro.

https://digitarq.arquivos.pt/viewer?id=7757999

Documento também ilustrativo, talvez, do que podia ser a participação de tropas vimaranenses nas operações militares da fronteira do Minho durante a Guerra da Restauração (1640-1668).

Imagem: Combate de cavalaria; autor desconhecido, pintura a óleo, séc. XVII.

Um olhar sobre a defesa do Reino do Algarve em 1662

A província mais meridional de Portugal – tradicionalmente designada por Reino do Algarve – foi um palco secundaríssimo da Guerra da Restauração. O limes de extensão reduzida e a defesa natural proporcionada pelo Guadiana salvaguardaram o Algarve das operações de pequena guerra, tão frequente noutras partes. Nunca se materializou a ameaça (sempre latente, contudo) de um desembarque inimigo que viesse abrir uma nova frente de guerra. De resto, as principais forças do Reino do Algarve eram deslocadas, como as de outras províncias, para o Alentejo, sempre que era necessário consolidar ali o esforço militar contra as invasões encetadas pelo exército espanhol da Extremadura.

Todavia, as preocupações em manter uma força minimamente preparada para acudir a qualquer situação estavam sempre presentes. Tal como a penúria de meios com que esbarrava esse intento.

Em Junho de 1662, o Conselho de Guerra pronunciava-se sobre uma carta de 30 de Março de 1662, enviada pelo mestre de campo António Galvão – um veterano soldado de fortuna, de origem plebeia. Este tinha sido nomeado para o governo de Cabo Verde. Contudo, devido às operações militares no Alentejo, foi-lhe ordenado que permanecesse no Reino do Algarve (onde estava há 9 anos, governando Castro Marim) e tivesse o terço pago pronto para marchar sobre o Alentejo. E suposto que a idade e achaques o impossibilitavam para este trabalho, tendo-o continuado nesta Coroa há trinta e dois anos, não queria faltar ao serviço de Sua Majestade, embora com sentimento de não levar um terço como levara no ano de 1658 (como mero apontamento, refira-se que a Majestade a que António Galvão se dirigia era a Rainha regente, na altura da redacção da carta; todavia, dois dias depois da consulta aqui reportada, D. Afonso VI assumiria, de facto, o trono, através de um golpe palaciano que afastou a sua mãe do poder),  Refere António Galvão que por várias ocasiões, estando na Corte, solicitou se reenchesse o terço, e o mesmo havia solicitado ao governador do Algarve. O terço conta 500 soldados, 300 dos quais têm alguma luz do exercício, os restantes foram-lhe dados no dia em que marchava, despidos, descalços e sem espadas, tirados os mais deles de guardar gado. Sugere por isso que o terço se preencha com 300 soldados retirados aos Auxiliares, que desta maneira seria Vossa Majestade melhor servido, e levantar em Alcoutim outros 150, por ser o termo muito grande e ter muito boa gente. Afirma-se de coração e alma estar pronto a sacrificar a vida pelo Rei, e que este se lembre, se ele morrer, de proteger os seus dois filhos, que ficam sem remédio. O Conselho de Guerra dá o parecer que se faça toda a mercê ao mestre de campo, e nesse sentido é assinado o decreto régio em 28 de Junho.

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1662, maço 22, consulta de 21 de Junho de 1662; e Secretaria de Guerra, Lv.º 28.º, fl. 65 v, carta régia de 1 de Julho de 1662.

Imagem: Soldados a jogar com bola, óleo sobre tela, escola italiana, século XVII.

A representação da infantaria no quadro do Marquês de Leganés sobre o combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645)

Saídos de Estremoz, os 400 infantes do terço da Ordenança da comarca de Évora, comandados pelo sargento-mor João da Fonseca Barreto, são surpreendidos e completamente desbaratados por uma força de cavalaria inimiga com cerca de 600 efectivos. Apesar da legenda no quadro referir uma igual composição numérica (1.000 para cada lado), as fontes documentais são bem claras.

Quanto à força de infantaria portuguesa, não restam dúvidas que seriam 4 companhias da Ordenança, a 100 homens cada. O quadro, curiosamente, parece comprovar este efectivo. Mostra dois esquadrões (formações tácticas) compostos exclusivamente por piqueiros (juntando, cada esquadrão, os piqueiros de 2 companhias). Os atiradores armados de arcabuz encontram-se abrigados atrás de uma tapada ou distribuídos pelos edifícios, estando uma parte deles já representada em fuga – curiosamente, carregando as armas, o que seria pouco praticável e contraria o que era profusamente descrito nas fontes a respeito de casos semelhantes.

Segundo as fontes coevas, reportadas num artigo de Outubro de 2008, da autoria do Sr. Santos Manoel, a inépcia do sargento-mor ao dispor as forças teria sido a causa de uma derrota que, ainda que menor no contexto dos inúmeros combates semelhantes ao longo da guerra, chocou os portugueses pela dimensão da derrocada: um terço inteiro destroçado, morta a quase totalidade dos seus soldados. Os erros que o Conde da Ericeira aponta a João da Fonseca Barreto (não ocupar e guarnecer uma tapada de parapeito alto, ou de ter dado ordem de ataque ou receber a carga de cavalaria em campo aberto) são, no entanto, contrariados em parte pela representação da força portuguesa no quadro do Marquês de Leganés.

Aí é visível que os atiradores portugueses se encontram abrigados atrás de muros – o que pode, no entanto, ser uma liberdade artística, para valorizar mais a vitória espanhola. No entanto, os esquadrões de piqueiros estão totalmente desguarnecidos de atiradores e posicionados em campo aberto. Dada a falta de preparação militar e consequente coesão, isso seria um factor facilitador da derrocada.

Um pormenor interessante é a representação de 4 bandeiras, uma por cada companhia: duas carregadas pelos respectivos alferes em fuga, outras duas em cada esquadrão de piqueiros. Aparentam ter representada uma cruz aspada – semelhante à Cruz de Borgonha dos exércitos espanhóis. No entanto, enquanto duas são verdes (verde e branco foram as cores heráldicas da casa de Bragança até 1707), uma terceira parece ter a cruz em vermelho, tal como a Cruz de Borgonha aparecia representada nas bandeiras das unidades espanholas. Uma outra bandeira, carregada em fuga, mais ao longe, é branca, mas não se distingue nela qualquer símbolo.

Outro pormenor que desperta curiosidade é a representação de 3 cavalos entre as forças portuguesas: um montado, outro que acabou de derrubar o próprio cavaleiro, e outro, mais ao longe, desmontado e em fuga. A representação dos cavaleiros com faixas brancas atadas à cintura identifica-os como portugueses. O facto, no entanto, é que apenas o sargento-mor teria direito a cavalo para se fazer transportar, o que pode significar que estamos perante outra hipóteses de liberdade artística.

A representação da cavalaria no quadro do Marquês de Leganés sobre o combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645)

Inicio aqui uma pequena exploração do quadro que o Senhor José Maria Villanova-Rattazi Guillén, descendente do Marquês de Leganés, gentilmente me deu a conhecer. Em artigos publicados em Março, Abril e Setembro de 2019 já o mesmo tinha sido referido, a propósito do combate de Alcaraviça, refrega essa que motivou a execução do quadro, numa evocação da vitória do Marquês sobre uma força de infantaria da ordenança portuguesa.

A temática bélica é muito comum na pintura do século XVII, marcado na sua fase inicial pela Guerra dos 30 Anos. No entanto, são escassas as pinturas que têm como pano de fundo a Guerra da Restauração. À parte as convenções observadas na pintura de temas de guerra (onde se realça uma tendência para a distorção da perspectiva, em benefício de uma visão panorâmica e esquemática de um combate ou batalha), o naturalismo e o realismo na representação das forças em contenda constituem preciosos elementos para o conhecimento do seu equipamento e armamento na vida real. De um modo geral, confirmam ou complementam informações presentes em fontes escritas.

É neste pressuposto que irão ser aqui abordados alguns pormenores constantes no quadro do combate de Alcaraviça, começando pela cavalaria. As fotos são da autoria do Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén.

A força de cavalaria, na totalidade espanhola, está representada no quadro em 10 batalhões (formações tácticas), a seis fileiras de frente por 4 filas de profundidade. Nos batalhões mais próximos é visível uma mistura de equipamentos defensivos: as duas fileiras da frente com cavaleiros equipados com couraça de peito e espaldar, e as restantes, com um ou outro pelo meio, maioritariamente com couras, ou seja, a protecção de couro. Nada de novo, dado que corrobora a prática também seguida entre a cavalaria portuguesa e que as fontes documentais – com particular relevo para os róis de equipamento das companhias que chegaram até nós – comprovam. Alguns cavaleiros apresentam faixas de cor vermelha, atadas sobre o tronco na diagonal ou usadas à cintura, o que os identifica como elementos do exército espanhol (o branco ou o verde eram usados entre os portugueses, dado serem essas, à época, as cores da Casa de Bragança). Todas as bandeiras das companhias espanholas são representadas numa só cor, o vermelho, cor que também predomina nas plumas que enfeitam os capacetes dos oficiais (alguns deles têm plumas vermelhas e brancas). De resto, todo o equipamento defensivo é usado sobre vestuário de cores diversas, tal como as capas que alguns cavaleiros apresentam não têm cor uniforme.

Apenas uma dissonância em relação ao vermelho identificativo da força militar da Coroa de Espanha: o trombeta em primeiro plano traz pendente do instrumento musical uma peça de tecido verde. Tratar-se-ia da cor pessoal do comandante da companhia ou do próprio Marquês de Leganés? No entanto, já um outro trombeta, representando num plano mais distante, exibe o vermelho usual.

No próximo artigo iremos ver como se encontram representadas as forças de infantaria portuguesa.

1.º de Dezembro de 1640

Embora ultimamente não tenha sido tão assíduo a actualizar o blogue, por motivo do muito trabalho que não me deixa tempo disponível, venho agradecer mais uma vez a todos quantos têm tido a simpatia de visitar este cantinho e colaborado com artigos e muita informação. A todos, renovo o meu Muito Obrigado.

Imagem: Vista de Vila Viçosa a partir da muralha do castelo, com o Paço Ducal ao fundo.

Situação da fortaleza de Viana do Castelo em finais de 1659

Em 25 de Dezembro de 1659 recebeu o Conselho de Guerra uma carta de Lourenço de Amorim Pereira, governador da fortaleza de Viana do Minho (hoje, Viana do Castelo), dando conta da situação daquela fortificação.

Assim, segundo o governador, havia na guarnição 129 praças, em que entravam oficiais reformados, capelão, fábrica da igreja, corpo da guarda e “outras coisas” (não especificadas), com que vinham a ficar ao serviço pouco mais de 60 soldados. Destes, a terça parte eram galegos, “que por passarem do inimigo, se lhes mandou ali assentar praça”. O castelo necessitava, no mínimo, de 200 homens de guarnição, e para a eventualidade de um sítio não bastariam 800. Como em ocasiões anteriores não tinha sido dada solução a estes pedidos e como o inimigo dava então sinais de ir retomar a guerra por aquelas partes, voltou o governador da fortaleza a solicitar que a Rainha regente, D. Luísa de Gusmão, fosse servida mandar que, ao juiz de fora e ouvidor de Barcelos, fossem dados 100 homens, dos mais desobrigados; e ao corregedor e juiz daquela vila de Viana, 50. E que o vedor geral os lhes fornecesse armamento, vestuário e alimentação, como se fazia ao restante exército provincial. Mais acrescentava que havia naquela fortaleza um alferes vivo (ou seja, no activo) com 15 anos de serviço e muito capaz de toda a ocupação, e que daquela gente lhe fosse feita uma companhia.

O Conselho de Guerra deu o parecer que seria proveitoso ao serviço de Sua Majestade mandar despejar os galegos do castelo, e que em seu lugar fosse formada uma companhia das terras circunvizinhas, escrevendo-se para isso ao Visconde de Vila Nova de Cerveira.

Por decreto de 23 de Janeiro de 1660, mandou a Rainha Regente anda assim proceder.

Fonte: ANTT, CG, Consultas, 1660, mç. 20, consulta de 14 de Janeiro de 1660.

Imagem: Forte de Santiago da Barra de Viana, na actualidade (foto via Wikipédia).

O quadro do Marquês de Leganés sobre o combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645)

Entre Março e Abril de 2019 foi aqui de novo tratado o combate de Alcaraviça, a propósito de um quadro que o Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén, descendente do Marquês de Leganés, tem em sua posse e do qual gentilmente me havia cedido várias fotos para aqui publicar. O tempo tem sido escasso para manter actualizado o blog, devido a compromissos profissionais e particulares, mas não quis deixar terminar o mês de Setembro sem publicar uma foto do referido quadro já restaurado.

A ele voltaremos em breve, para abordarmos os pormenores do armamento e equipamento das forças em contenda. Desde já, renovo os meus agradecimentos ao Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén.

Um recontro de cavalaria nas proximidades de Elvas – Cruz de Rui Gomes, 23 de Maio de 1647 (3.ª e última parte)

Continuação da transcrição do Manuscrito de Matheus Roiz:

Tanto que o meu tenente se viu ao ribeiro sem o inimigo, logo ficou mais contente, e passou o ribeiro livre. Mas apenas o passou, já o inimigo estava outra vez com ele, apertando-o grandemente até [à] atalaia, mas ele sempre pelejando, como dele se esperava, [a]té que se arrimou [à] atalaia. Mas naqueles apertos ainda o inimigo lhe captivou dois soldados e o furriel, que eram três, afora eu, que também me captivaram […].

[Q]uando eu ouvi o tiro que meu companheiro deu, a emboscada do inimigo já ia além, donde o inimigo estava, um tiro de mosquete sobre a partida do inimigo. Mas apenas ouvi o tiro, logo disse entre mim que meu companheiro dera com o inimigo e quis fazer alguma traça para me vir livrando dos dois cavalos do inimigo. Mas não me deram esse lugar, que assim como ouviram o tiro, logo presumiram que a sua emboscada era já fora, e assim se vieram a mim à rédea solta, e como eu não tinha ainda visto os mais castelhanos, fiz fugida para [a]  atalaia, pois era a mais breve retirada que tinha, mas assim como assumi correndo a um outeiro, vi toda a campanha cheia de castelhanos, que ainda andavam às voltas com a minha companhia, e se ia para lá metia-me nas suas mãos. Não tive outro remédio senão ir-me pela campanha abaixo, lá pelas vinhas da Terrinha, que é tudo campo como a palma da mão. E a tudo isto sempre apertando-me os dois cavalos grandemente, mas como o meu cavalo tinha já corrido muito, e correu ainda muito mais pelo decurso da carreira, chegaram os dois cavalos a mim e me captivaram, deixando-me em camisa, que só o que era meu [e] me tiraram valia de 20.000 réis, que me levaram um colete que me davam 10.000 [réis] por ele, e o demais tudo bom (1).

Finalmente me levaram a Badajoz com os mais e daí a 4 dias nos mandaram [de volta], e quando viemos nos mandou o Conde Martim Afonso de Melo dar munições de vestido e botas e couros a todos, porque estava bem informado de como todos fizeram bem sua obrigação, que o Conde daria tudo aos soldados que bem a fizessem. E quando vínhamos de Badajoz fomos primeiro a casa do meu capitão, que havia vindo de Lisboa com a patente da minha companhia de novo (2), e como ainda o não tínhamos visto fomos […] vê-lo. E logo fomos a falar com o Conde governador, e nos disse que se não estivera bem informado do nosso tenente o como procedemos, que nos não havia de dar nada. Viemo-nos cada um para seus alojamentos a tratar do que nos convinha, e ainda que vínhamos de Castela, vínhamos alegres.

(MMR, pgs. 166-168)

(1) O colete de couro (ou “coura”) era usualmente a única protecção dos cavaleiros de ambos os exércitos, como foi referido no artigo anterior. A ser verdade o que Mateus Rodrigues refere, tratar-se-ia de um colete de qualidade superior ao “colete de munição” distribuído aos soldados, provavelmente um despojo de guerra capturado a um oficial inimigo.

(2) A memória de Mateus Rodrigues prega-lhe mais uma rasteira aqui. D. João de Azevedo e Ataíde ainda não tinha caído em desgraça nesta altura (o combate da Atalaia da Terrinha que ditaria o seu afastamento ocorreria daí a poucos dias, a 5 de Junho), portanto não recebera “de novo” a patente da companhia. O comissário geral – a quem Mateus Rodrigues se refere por “meu capitão” num sentido mais lato de comandante da companhia – regressava de Coimbra, onde estivera sob licença entre Abril e Maio.

Imagem: Vista sobre a planície em direcção ao Caia e ao Guadiana, a partir do local onde se erguia a Atalaia da Terrinha. Toda a zona abrangida foi palco de muitos recontros entre as forças portuguesas e espanholas durante a Guerra da Restauração.

Um recontro de cavalaria nas proximidades de Elvas – Cruz de Rui Gomes, 23 de Maio de 1647 (2.ª parte)

Continuação da transcrição do Manuscrito de Matheus Roiz:

E assim como eu e o meu companheiro […] chegámos a um ribeiro que vai junto das casas quis passar além para ver o caminho que levava o inimigo. E o meu companheiro parece que adivinhava o que havia de ser, dizendo-me a mim que não fosse além, porquanto o inimigo tinha alguma emboscada nos carrascais. Mas como ele viu vir já muito perto a nossa companhia, logo passou comigo, porquanto a companhia não trazia mais batedores diante, fiando-se em nós ambos. E assim como fomos subindo ao outeiro da Cruz, vai ali a estrada de Badajoz e também vai um carreiro, que têm feito os cavalos por onde vão os soldados a descobrir os carrascais que estão ali detrás da Cruz. E quando eu e o soldado íamos já no alto da Cruz, já a minha companhia ia passando o ribeiro para além, e eu tomei a estrada adiante, seguindo a partida do inimigo. E o meu tenente ia mais adiante que a companhia um tiro de cravina [ou seja: carabina; cerca de 60 metros] e já ia chegando à Cruz quando ele ouve um tiro. E logo viu o inimigo vir pelo outeiro adiante como um raio, buscando a companhia. De modo que o soldado que ia comigo, que foi pelo carreiro a descobrir as coisas, assim como deu com o inimigo levava uma pistola na mão e tocando arma com ela lhe arrebentou. E assim como o inimigo o viu saiu como um raio das covas, que já estavam montados, pelo outeiro adiante, que eram 70 cavalos todos escolhidos das tropas de Badajoz, e todos armados de armas de corpo(*). E vinha um tenente por cabo deles, grande soldado, por nome Pedro Hernandez. E o soldado que deu neles veio fugindo quanto podia, e não podendo fugir para a companhia, se foi à estrada adiante, e não o seguiu o inimigo e livrou[-se].

De modo que assim que o nosso tenente ouviu o tiro, veio correndo à companhia que ia atrás dele um tiro de cravina, para a retirar [à] atalaia. Mas como a distância de onde o inimigo saiu aonde a companhia ia era mui pouca, deu logo o inimigo vista dela e se veio a ela à rédea solta, entendendo que a tinha nas unhas. E não há dúvida que tanto que o meu tenente viu o inimigo, já dava mui pouco pela nossa companhia, porquanto na passagem do ribeiro que ali estava se temia que o inimigo [a] apanhasse toda. Porém, sempre há um soslaio por onde as feridas não são mortais, de maneira que, como era em Maio, havia poucos dias chovido muito, e aquela terra por ali qualquer orvalho basta para que ele a atole muito, que é muito delgada e solta. E por à roda das casas donde haviam saído os castelhanos primeiros [sic] ao soldado, vai um caminho que é terra dura. E o inimigo não quis vir por ele, que por ele vinha a minha companhia, senão veio por detrás das casas, entendendo lhe tomava por ali grande volta. E não há dúvida que se não fora o atolar tanto, que toda a companhia leva[ria]. Mas tanto que entrou por ali se metiam os cavalos até à barriga na terra, que os não podiam tirar dela.

(MMR, pgs. 164-166) – CONTINUA NO PRÓXIMO ARTIGO

(*) Armas de corpo: couraça composta por peito e espaldar. Esta passagem – tal como outras semelhantes no manuscrito – é significativa quanto à não generalização da utilização de couraças pela cavalaria em operações de pilhagem ou nas contra-incursões. Só quando se previa um combate importante, ou quando o comandante de uma força impunha o seu uso por alguma razão, é que as armas de corpo eram usadas. Mais frequente era a casaca ou o colete de couro (a “coura”) constituírem a única protecção dos cavaleiros.

Imagem: Cena de combate de cavalaria, óleo de Pandolfo Reschi.

Um recontro de cavalaria nas proximidades de Elvas – Cruz de Rui Gomes, 23 de Maio de 1647 (1.ª parte)

Regressamos ao manuscrito de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz), para transcrever o testemunho do soldado de cavalos acerca de um recontro nas proximidades de Elvas, no qual a companhia onde servia foi derrotada.

O sucedido ocorreu na ausência do comissário geral D. João de Azevedo e Ataíde, comandante da companhia, que estava em Coimbra a tratar de assuntos pessoais. Antecedeu num par de meses a desgraça daquele oficial superior, que acabaria por perder o posto num outro desaire, de maiores proporções, também nos arredores de Elvas. Mas acompanhemos a pena de Mateus Rodrigues, numa escrita actualizada:

Estando a minha companhia de quartel na cidade de Elvas, lhe tocou fazer a guarda na campanha em 23 de Maio, véspera do Espírito Santo do ano de 1647. E como todas as companhias que fazem guarda na campanha saem logo para fora pela manhã, e como vão sempre duas, cada uma à sua atalaia, para a da Terrinha e outra para a do Mexia, e lá assistem todo o dia até noite, descobrindo tudo muito bem antes que lá cheguem, e com sentinelas em as parte mais vigilantes, de modo que saímos com a companhia para fora e não levávamos capitão, porque já se havia ausentado Dom João dela para Coimbra, e só o tenente ia com ela, por nome Agostinho Ribeiro, um dos bizarros soldados que a guerra botou de si. E como estivemos já lá no Rossio, mandou todos os batedores, cada dois para sua parte a descobrir aonde era costume, entre os quais fui eu com outro mais, por nome Pascoal Lopes, para um sítio a que chamam o outeiro da Padeira, e aí havíamos de ficar de sentinela todo o dia. Mas eu fui fazê-la a Badajoz por quatro dias!

Assim como chegamos ao outeiro, depois de ter já tudo muito bem descoberto, mas não dali para diante, que ficava ainda um posto por descobrir, arriscado. Mas não se havia de descobrir senão depois da tropa [ou seja, a companhia] ter chegado à atalaia, e aí havia o tenente de mandar um soldado em um bom cavalo a descobrir a Cruz de Rui Gomes e os carrascais dela. De modo que já nós ambos estávamos em o outeiro, vendo a companhia que já vinha chegando para a atalaia. E neste mesmo tempo ia um soldado da cidade a cavalo pela estrada abaixo, com tenção de ir segar erva em os vales de Úbeda, que havia muita. E estavam ali umas grandes casas, que eram de uma quinta de um fidalgo, as quais casas se descobriam sempre quando ia o soldado da atalaia a descobrir os carrascais. E o tal soldado que vinha da cidade andou demasiado em não procurar primeiro se se havia já descoberto as casas, pois sabia muito bem que haviam de descobri-las [o termo “descobrir” é usado como sinónimo de procurar inimigos emboscados – ou seja, também em linguagem militar, “bater um local”]. Mas não quis ser tão atilado, senão assim como chegou logo as quis descobrir, para segar a erva a seu gosto. E no mesmo tempo em que o soldado ia chegando às casas, a essa hora havia a minha companhia chegado [à] atalaia, e eu e mais o soldado lá de onde estávamos bem víamos […] ir o soldado a descobrir as casas, antes logo reparámos, dizendo mal do soldado […] ir tão cedo à erva a posto arriscado como era aquele antes que se descobrisse.

Assim como o soldado se foi assomar às portas das casas, para ver dentro se havia castelhanos, quando lhe saem de dentro dez castelhanos em dez cavalos […]. Apenas eles saíram da casa sobre o soldado, logo eu donde estava e mais o companheiro os vimos e montámos a cavalo muito depressa, tocando arma [disparando um tiro de aviso] e escaramuçando no outeiro, para que a companhia visse que havia inimigo. Mas a atalaia onde a companhia estava também os viu logo e tocou arma. Assim como o soldado viu o inimigo das casas, pôs-se em fugida pela estrada adiante, correndo quanto podia o cavalo, que não fazia mal sua obrigação, mas não lhe valeram suas diligências, que o apanharam no decurso da carreira, que ainda correria 200 passos, e assim como o apanharam, viraram com ele para casa como uns raios, tomando a estrada de Badajoz adiante, que era por onde se havia de mandar descobrir da atalaia. E eu e mais o soldado que estava comigo logo fomos pelo outeiro abaixo à rédea solta para seguirmos a partida, que já vinha a minha companhia pela atalaia abaixo como um raio, que como não havia ninguém que lhe lembrasse que naquelas casas se havia metido o inimigo, era causa para nos mover para seguir a partida, vendo se lhe podíamos tomar o soldado, quanto menos fosse, que a tenção do meu tenente era segui-la até à ponte do Caia.

(MMR, pgs. 163-165) – CONTINUA NO PRÓXIMO ARTIGO

Imagem: Cena de combate de cavalaria, óleo de Philip Wouwerman, 1645-46, National Gallery of Art.

O combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645) e o quadro do Marquês de Leganés – 1.ª parte

Um dos primeiros artigos publicados neste blog, no já distante ano de 2008, foi acerca da destruição da ponte de Nossa Senhora da Ajuda, ou ponte de Olivença, pelas forças espanholas comandadas pelo Marquês de Leganés, numa operação decorrida em Setembro de 1645. Mais tarde, a 2 de Novembro desse mesmo ano, uma incursão sob o comando do mesmo Marquês desbaratou um terço da Ordenança de Évora – um verdadeiro desastre para as forças portuguesas – no que ficou conhecido como o combate das Vendas de Alcaraviça (na actual localidade de Orada, próximo de Borba, e não na moderna Alcaraviça). Em 2009, um muito interessante artigo amavelmente enviado pelo Sr. Santos Manoel foi aqui publicado em duas partes, tendo eu feito um breve acrescentoposteriormente. E em 2010, o estimado amigo Julián García Blanco voltou ao assunto, num artigo também aqui publicado.

Recentemente, tive a grata surpresa de ser contactado pelo Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén, descendente do Marquês de Leganés, que tem em sua posse um quadro a óleo mandado pintar por aquele seu distinto antepassado, de forma a perpetuar o combate de 2 de Novembro de 1645, no qual as suas forças obtiveram uma retumbante vitória.

Com a devida autorização do Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén, aqui publico uma das fotos que gentilmente me enviou. Num próximo artigo, dando continuidade ao que aqui se apresenta, voltaremos ao quadro – uma raridade no que toca à iconografia bélica da Guerra da Restauração –  e aos interessantes pormenores que retrata.

 

 

As ausências dos oficiais dos exércitos provinciais – um exemplo de 1662

Característica comum da Guerra da Restauração eram as deslocações a Lisboa de muitos oficiais dos exércitos provinciais. Os motivos respeitavam, de um modo geral, a assuntos particulares, mais frequentemente às diligências necessárias para concretizar uma mercê régia prometida ou atribuída como recompensa por feitos de bravura em acções de guerra. Essas ausências “na Corte” (designação que era, na verdade, sinónimo da própria cidade de Lisboa) podiam ser prolongadas, chegando a exceder largamente o período autorizado pelo governador das armas, pelo Conselho de Guerra ou pelo próprio monarca.

Após um combate mais aceso e invariavelmente depois de uma batalha campal ou campanha de um exército provincial, muitos oficiais de praticamente todas as patentes deixavam os seus postos e iam tratar dos aspectos burocráticos relacionados com as referidas recompensas. A preocupação em ver efectivada a mercê régia levava-os a demorarem-se em visitas frequentes às secretarias, sem que isso garantisse, na maior parte dos casos, a resolução do assunto. O crónico aperto das finanças régias obstava a uma pronta satisfação do que fora prometido, quer a mercê fosse meramente em numerário, quer fosse uma atribuição fundiária – em qualquer dos casos, atrasos de natureza burocrática arrastavam no tempo a sua consecução. Mas os assuntos pendentes a tratar na Corte podiam ser de outra e variada natureza, embora a lentidão no processo fosse usual.

Esta situação reflectia-se negativamente nos exércitos provinciais, cujas unidades – fossem de infantaria ou de cavalaria – se iam deteriorando na disciplina, prontidão para o combate e número de efectivos (devido à deserção) na ausência dos respectivos oficiais, fossem comandantes ou subalternos.

O documento aqui apresentado encontra-se anexo a uma consulta do Conselho de Guerra de Março de 1662, onde vários casos concretos e pessoais são apontados.

O Conselho de Guerra faz menção de um decreto régio de 15 de Fevereiro, em que se refere que alguns mestres de campo e outros oficiais tinham deixado seus postos e se retiraram do serviço, continuando assim até ao presente tempo, em que inimigo se estava preparando para entrar no Reino com grande poder, “exemplo que é prejudicial ao serviço de Sua Majestade”. O Rei indaga acerca do modo que conviria ter com esses oficiais. O Conselho de Guerra responde que, depois de mandar avisos para os ditos oficiais, e recebidas as respectivas respostas, “se lhes deve mandar deferir prontamente a seus despachos, ou ordenar ao Conselho que, sem embargo disso, os faça partir logo”.

Uma lista anexa (“Relação das pessoas a que se escreveu na forma da ordem de Vossa Majestade para se recolherem a seus postos. E do que consta de suas respostas”) dá conta dos oficiais ausentes na Corte e das respostas por eles dadas, ao serem instados a regressar às unidades e exércitos provinciais de origem. Realce-se a resistência, quando não mesmo a desobediência implícita ou mais ou menos declarada, de alguns oficiais perante as ordens régias.

– Comissário geral da cavalaria D. António Maldonado – logo partirá, sem embargo de ter negócios nesta Corte.

– Comissário geral da cavalaria do exército de Entre-Douro-e-Minho João da Cunha Sottomayor – tem metido na Secretaria das Mercês seus papéis; sendo despachado logo partirá.

– Filipe de Araújo Calelas, capitão-mor da Vila de Valadares – idem.

– João Fernandes Pacheco, capitão de infantaria – idem.

– Capitão de cavalos D. Manuel Lobo – idem, mas está prestes para fazer o que Vossa Majestade lhe ordenar.

– Nicolau Ribeiro Picado – em estando despachado se partirá logo.

– Manuel Nunes Leitão, tenente de mestre de campo general do exército de Entre-Douro-e-Minho – idem.

– D. Francisco Mascarenhas – fazendo-se-lhe efectiva a promessa, se partirá logo, mas antes disso é impossível.

– D. Noutel de Castro – está-se curando, logo que esteja melhor partirá.

– Francisco Pita Malheiro – fazendo-se efectiva a tença que tem prometida, partirá logo.

– Bartolomeu Ferreira Figueiredo – estando despachado, vai logo.

– João Correia Carneiro – idem.

– Lourenço de Amorim Pereira – diz que veio com licença de Sua Majestade livrar-se da culpa que lhe impendem da morte de um clérigo, que mandando Sua Majestade parar a causa se partirá logo.

– João Vannicelli [tenente-general da cavalaria do exército do Alentejo, veneziano, servindo em Portugal desde a década de 50] – diz para Vossa Majestade dispor do seu posto, pois não se acha capaz de servir mais nele.

– Luís de Frisa de Castro – estando despachado vai logo.

– João da Costa – veio com ordem do Conde de Atouguia e assiste nesta Corte com ordem do Marquês de Marialva.

– Rodrigo Pereira Sottomayor – espera que se sentenceie a causa a que veio a esta Corte; com toda a brevidade se julgue, e que sentenciado partirá logo.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1662, mç. 22, consulta de 6 de Março de 1662

Imagem: Militares de cavalaria, óleo de Gerard Terborch.

Artigos e comunicações disponíveis online

Aqui ficam duas ligações para artigos de minha autoria que se encontram disponíveis online:

A batalha de Montes Claros vista por um oficial inglês

O sentido de “pertença” na raia alentejana durante a Guerra da Restauração: identidades e fidelidades num clima de conflito

Imagem: “Mulher entre soldados na casa da guarda”, de Willem Cornelisz Duyter, primeira metade do século XVII.

A fortificação das praças do partido (distrito militar) de Riba Coa em 1657

Urgência na reparação ou na edificação de fortificações, falta de mão de obra e escassez de meios financeiros para concretizar os projectos. Três aspectos de uma constante da guerra em qualquer uma das fronteiras, que num caso específico – o do partido (ou distrito militar) de Riba Coa em 1657 – é abordado pelo respectivo governador das armas, D. Rodrigo de Castro, numa carta enviada ao Conselho de Guerra. Nessa missiva, avançava soluções para ultrapassar os obstáculos acima referidos.

Para conseguir mão de obra, propunha chamar a gente de guerra que ainda não tinha sido convocada para os terços de auxiliares e volantes (da ordenança, estes últimos, destinados a acorrerem, quando necessário, à defesa de qualquer local do partido militar). Já não iam à guerra nem a outro serviço militar há mais de 8 anos, e seriam 14.727 homens. Deveriam trabalhar em turnos de 8 dias, 400 homens em cada turno, o que faria 117.816 homens de trabalho, necessários para cavar 12.515 braças cúbicas de terra, abrindo fossos para a defesa das praças. Dando a esta gente pão de munição como se estivessem em campanha, orçaria em 1.531.816 réis. Daqui resultaria uma poupança para a fazenda real. É isso que salienta D. Rodrigo de Castro na sua carta: venho aforrar a real fazenda de Vossa Majestade de dezoito contos, quatrocentos e noventa e seis mil, cento e dezoito réis, porque esta obra, fazendo-a os mestres e pagando-se-lhes na forma da estrutura que tem feito, importa vinte contos e vinte e oito mil réis. Para sobresselente de pão de munição de dois meses, a nove mil rações da gente que há-de guarnecer as praças e do pé de exército para o socorro delas, são necessários trezentos e trinta e três moios e vinte alqueires de trigo.

O assentista não estava obrigado a dar este alimento pelo seu contrato, mas comprometeu-se a pô-lo em farinha nas praças, pelo que D. Rodrigo solicitava que o Rei lhe mandasse, por carta, agradecer. Também os moradores foram persuadidos a colocar nas praças 2.400 carros de lenha sem despesa para a fazenda real. Solicitava também D. Rodrigo que o rei mandasse colocar o que fosse necessário nas praças para alimento da gente delas, e que não vindo o inimigo a importunar se poderia vender, recuperando a fazenda real a despesa feita: 1.249 quintais de carne e outros tantos de peixe seco, 1.200 alqueires de legumes, 6.000 almudes de vinho, 200 de azeite, 550 de vinagre, que importariam 11.395.940 réis.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, consulta de 28 de Março de 1657.

Imagem: Soldados assaltando uma fortificação, quadro de Peter Snayers, período da Guerra dos 30 Anos.

Martim Afonso de Melo, 2.º Conde de S. Lourenço

Retrato de Martim Afonso de Melo, 2.º Conde de S. Lourenço (c. 1600-1671), na Galeria dos Ofícios, em Florença.

Foi por três vezes governador das armas da província do Alentejo (1641-1643, 1647-1650 e 1657-1658). Desempenhou um importante papel na reorganização da cavalaria portuguesa, a nível operacional, aquando da sua segunda passagem pelo governo das armas. Seria menos feliz na derradeira, num período muito atribulado: comandando o exército de socorro a Olivença, não conseguiu evitar a perda daquela vila em 1657.

Lugares da Galiza rendidos a Portugal em Dezembro de 1667

Quase no final da Guerra da Restauração, na fronteira da província de Trás-os-Montes, uma sucessão de acções de guerra ofensiva por parte do exército português levou o receio aos moradores de muitas localidades da Galiza. Em consequência, os moradores de mais de 100 dessas localidades renderam-se a Portugal – ou, mais correctamente, foram coagidos a submeter-se às exigências do exército de Trás-os-Montes, permanecendo nas suas casas e terras, mas entregando uma parte de bens e haveres aos portugueses. Uma forma de estabelecer o modus vivendi em zonas de conflito muito comum, por exemplo, durante a Guerra dos 30 Anos.

A primeira incursão foi conduzida pelo sargento-mor de batalha Francisco de Távora, irmão do governador das armas de Trás-os-Montes, D. Luís Álvares de Távora, Conde de São João da Pesqueira (futuro 1.º Marquês de Távora, título que receberia em 1669). Estando o governador das armas ausente da província, mas com ordem dada para que o seu irmão avançasse com a operação, entrou Francisco de Távora 11 léguas Galiza adentro (cerca de 60 Km) até ao Vale de Lobeira, com 400 cavalos às ordens do tenente-general D. Miguel da Silveira e 500 infantes comandados pelo sargento-mor Luís de Barros Gavião. Por serem as povoações daquele vale riquíssimas (a expressão é do próprio sargento-mor de batalha, em carta enviada ao Conselho de Guerra), se trouxe dali presa e saque considerável. Seguiu-se uma segunda incursão, comandada pelo mestre de campo Duarte Ferreira Chaves, e uma terceira, a cargo do comissário geral da cavalaria João de Almada de Melo, ambas com bom sucesso.

Na carta enviada ao Conselho de Guerra por Francisco de Távora são descritos os motivos e os pormenores da incursão, bem como a listagem das localidades que se submeteram a Portugal.

Entendendo o Conde meu Irmão, Governador das Armas desta Província, que destruindo o país de Galiza não só segurava estas raias, mas sustentando as nossas tropas impossibilitava também aos inimigos, porque do dano que experimentavam aqueles moradores resultava à sua cavalaria a perda dos quartéis a falta dos mantimentos, procurou e conseguiu todo este ano que assim se executasse. E vendo os Galegos que se achavam forçados, ou a largar a pátria ou a viver debaixo de nosso consentimento, quiseram e escolheram comprar a assistência de suas casas a troco de seus cabedais, e assim se reduziram todos os lugares que contém o papel que envio a Vossa Majestade, a pagar uma contribuição (que se agora não é tamanha), tendo por certo que assim que se contarem os anos crescerá a quantia. Seguindo pois, Senhor, a máxima do Conde por lograr o mesmo fim, me resolvi sábado, que foram 10 do mês (tendo estas armas a meu cargo) a entrar (com quatrocentos cavalos mandados pelo tenente-general Dom Miguel da Silveira, e quinhentos mosqueteiros que governava o sargento-mor Luís de Barros Gavião) no Vale de Lobeira, onze léguas pelo interior, composto de dezanove riquíssimas e grandes povoações, aonde nunca haviam chegado os nossos soldados, e de que tiraram boa presa e grande saco. O mestre de campo Duarte Teixeira Chaves e o comissário geral João de Almada de Melo, a quem por diversas partes mandei fazer segunda e terceira invasão, tiveram a mesma felicidade, obrando-se tudo sem a menor resistência, como sucederá sempre que com o nome de Vossa Majestade intentemos outras empresas.

Guarde Deus a muito alta e poderosa Pessoa de Vossa Majestade […].

Chaves, 13 de Dezembro de 1667.

Segue-se uma extensa lista com os nomes das 112 localidades, alguns dos quais de difícil percepção devido à caligrafia:

Feris de Lima

Vila Maior de Gironda

São Milhão

Medeiros

São Cristóvão

Santa Vaia

Mandim

Valtar

Ninho d’Águia

Vila Maior da Boa Hora

São Paio da Badis

São Lourenço de Tozende

Sanenago

Rubias

São João

Mendim

Santiago de Baixo

Requiones

Vilar d’Alhos

Pedroza

Bouço

Graveliz

Lijões

Gumanriz

Eixames

Godem

Tamagelos

Tamangos

Alourazes

Mar

Tourem

Olmbra

Rozal

Bouzeins

Moinhos

Salcharens

Nogueira

Prado

Gomar

São Fernando

Prado Novo

Huetras

Larosa

Pijeires

Pijeiros

Pereiro

Sabuzedo

Parada

Covelos

Moreiros

Vilar de Lebres

Moimenta

Lobos

Tresmores

Coaledo

Vilaça

Ataes

Pivadaz

Nuzelos

Vilar de Servos

Herreros

a Madonelha

Sendim

São Martinho

Lubença

Asezedo

Carçosa

Vila de Rey

Soutelo

Santo António

Santo Antoninho

Alvaredos

Ababidis

Pinheira

Infesta

Santa Valha da Lima

Chamuzinhos

Pardieiros

Lovanzes

Soutelo da Limia

São Pedro da Limia

Rebordachã

Somis

Satharis

Lodozelo

Freixo

Pambre

Suzedo da Pena

Escarnabois

Coais

Souto Chão

Cherrande

Arsolá

Crastelo de Baixo

São Vicente

Dona Elvira

Vergunda

Riós

Vilarinho da Toussa

A Barreira

Vilar de Flor

Tameirão

Crastelos de Moterrey

Passos

Gueiçães

Covas

Fiães

Arsadagues

Salharinz

São Salvador

Barria

Covis

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1668, mç. 28, consulta de 11 de Janeiro de 1668.

Imagens: Castelo de Chaves, na actualidade; e retrato do governador das armas de Trás-os-Montes em 1667, o Conde de São João da Pesqueira, D. Luís Álvares de Távora.

Bombardeiros da Nómina em 1641 – um documento

Os Bombardeiros da Nómina, corpo criado em 1515 por D. Manuel I e assim designado por serem os militares nomeados por designação régia, ainda existiam em 1641. Nesse primeiro ano da Guerra da Restauração estavam abaixo da dotação prevista de 100 elementos (mais um condestável, que os comandava). A relação, feita em 25 de Junho de 1641 e apontada no Livro da Nómina, contém a descrição de cada um. Aqui se transcreve essa relação, desdobrando as abreviaturas e vertendo para português corrente a grafia:

  • Domingos Fernandes, condestável da capitania da Armada, morador ao Ver-do-Peso, casado com Isabel Gonçalves, de 37 anos, pequeno do corpo, barba castanha.
  • João Francisco, morador a São Miguel de Alfama, casado com Ana Vieira, de 48 anos.
  • Noutel Dias, morador às Janelas Verdes, casado com Isabel Mendes, de 42 anos, meão, barba ruiva, cabelo da cabeça negro e crespo.
  • Estêvão Nunes, morador a São José na rua do Carrião, casado com Maria Rodrigues, de 29 anos, alvo do rosto, barba loura, nariz comprido.
  • João Gonçalves Bocarra, morador a Jubetaria Velha, casado com Domingas de Almeida, de 38 anos, boa estatura, ruivo da barba, uma ferida na mão direita.
  • Gabriel Gonçalves, viúvo, morador a São Paulo em casa de Maria Lopes, sua tia, de 35 anos, uma ferida no pulso da mão esquerda, seco, cabelo negro.
  • Domingos Ferreira, morador na Adiça, casado com Jerónima Luís, de 42 anos, seco da cara, esquerdo, um sinal de ferida na testa.
  • Pedro Gonçalves, morador a Santo Estêvão de Alfama, casado com Ana Fernandes, de 50 anos, alto, barba loura.
  • Jorge Rodrigues, morador no Beco do Espírito Santo em Alfama, casado com Antónia Dias, de 35 anos, meão, cheio de rosto, um sinal de ferida na testa.
  • Miguel João, morador ao Espírito Santo, casado com Maria Ribeiro, de 42 anos, seco de cara e amarela, moreno do cabelo.
  • Francisco Pereira, morador na Rua Nova da Palma, casado com Marquesa Antunes, de 35 anos, miúdo do rosto, meão, barba negra, sobrancelhas cerradas.
  • Vicente da Silva, morador no Castelo, casado com Maria Francisca, de 30 anos, alto, bem disposto, bigode castanho, olhos grandes.
  • Manuel Rodrigues, morador ao pé da Calçada de Santa Ana, casado com Isabel Branco, de 38 anos, homem pardo, bem disposto.
  • Luís Martins, morador na Calçada de São Francisco, casado com Maria Nunes, de 27 anos, alto, vermelho do rosto, pouca barba, olhos encovados.
  • Baltasar Gonçalves, morador no Adro de Santo Estêvão, casado com Joana Rodrigues, de 30 anos, boa estatura, a ponta do nariz romba, um sinal de ferida na testa.
  • João Rodrigues, morador ao Hospital das Chagas, casado com Lourença das Neves, de 30 anos, meão, pouca barba, sinais de pólvora no rosto.
  • Domingos Correia, morador a São Paulo, casado com Maria Jorge, de 38 anos, meão, moreno de cara, um dente de cima menos.
  • João Fernandes, morador à Porta da Cruz, casado com Damiana André, de 50 anos, meão, quase branco, uma ferida na testa.
  • Domingos dos Rios, morador à Rua do Saco, casado com Maria de Azevedo, de 66 anos, alto e seco, branco, um pique de ferida na testa.
  • João Rodrigues de Alhandra, morador no Castelo, casado com Maria Cardosa, de 45 anos, bem disposto, seco do rosto, barbinegro que começa pintar de branco.
  • Inácio Martins, morador no Castelo, casado com Bastiana Dias, de 36 anos, alto, moreno, nariz largo, cabelo negro e crespo.
  • Domingos da Costa, morador no Castelo, casado com Maria Ximenes, de 35 anos, cabelo negro, olhos grandes.
  • João Domingues Baldes, morador ao Chiado, casado com Maria Carvalha, de 39 anos, alto, bem disposto, barba castanha, cheio do rosto, montanhês.
  • Cosme Rodrigues, morador no Castelo, casado com Inês Fernandes, de 35 anos, meão, nariz agisenho e cabelo preto.
  • Pedro Fernandes, casado com Mariana da Costa, morador a São José, de 30 anos, miúdo do rosto, olhos encovados, estatura meã e magro.
  • António Soares, casado com Maria Quaresma, morador a São Nicolau, de 35 anos, alto e magro, sobrancelhas negras e cerradas, alvo do rosto.
  • Manuel de Lacerda, casado com Maria dos Santos, morador ao Hospital dos Palmeiros, de 30 anos, vermelho do rosto, nariz um pouco chato, e bem disposto.
  • Domingos Simões, casado com Bastiana Antunes, morador no Castelo, de 21 anos, alto, bem disposto, olhos grandes, uma ferida na cabeça, da parte direita.
  • Luís João, filho de João Coelho, natural de Colares, de 30 anos, moreno, uns sinais de costura por baixo da orelha direita, cabelo negro, sobrancelhas cerradas.
  • João Gonçalves, casado com Maria Manuel, morador a São João de Deus, de 45 anos, bexigoso, cabelo negro, e meão.
  • Simão Delgado, casado com Maria Jorge, morador no Adro de Santo André, de 30 anos, homem pardo.
  • Sebastião de Bonano, casado com Maria Pereira, morador na Rua do Caldeira, de 40 anos, bexigoso, italiano de nação.
  • Bernardo Martins, casado com Margarida Gomes, morador na Travessa da Espera, de 40 anos, alto, amarelo do rosto e pouca barba.

Fonte: ANTT, CG, Decretos, 1641, mç. 1, n.º 221, relação anexa ao decreto de 8 de Outubro.

Imagem: Lisboa no século XVII.

Um “regresso” a Alcântara

Há cerca de oito anos foi publicado um artigo em duas partes, sobre a tentativa de tomada de Alcântara (Alcántara, em castelhano) pelas forças comandadas por D. Sancho Manuel de Vilhena, que viria a ser Conde de Vila Flor. A tentativa foi gorada, mas o assalto à ponte romana de Alcântara e a destruição parcial de um dos arcos da mesma foi descrita por fontes portuguesas e espanholas. Os combates tiveram lugar nos dias 25 e 26 de Março de 1648 (clique nas datas para aceder aos respectivos artigos).

Trezentos e setenta anos decorridos sobre a investida portuguesa, o aspecto da ponte e dos lugares onde decorreram os combates, observados a partir da margem onde se situa Alcântara, são apresentados nas fotos acima. A ponte seria parcialmente destruída – e mais tarde reconstruída – em outras duas ocasiões: na Guerra da Sucessão de Espanha e durante as Invasões Francesas, que a historiografia espanhola denomina Guerra da Independência.

Fotos do autor do artigo.

Uma escaramuça na ponte sobre o rio Coa (20 de Março de 1664)

Numa consulta do Conselho de Guerra datada de 2 de Abril de 1664, é lida uma carta de Pedro Jacques de Magalhães, governador das armas do partido de Riba Coa. Nela dá conta o governador que o inimigo arruinou as pontes do rio Coa, tendo ele, Pedro Jacques, mandado reedificar a principal com madeira, para assim ter comunicação com a praça de Almeida. Mandou também fazer uma atalaia sobre a mesma ponte, guarnecida com 20 mosqueteiros. O que, sabendo o inimigo, veio em 20 de Março com 600 cavalos e 1.000 infantes , para ver se a podia destruir. Avisado deste intento, Pedro Jacques mandou ocupar com mosqueteiros os altos de uma e outra parte do rio, das quais o inimigo foi rechaçado e se retirou com perda, sem conseguir o que pretendia, travando-se escaramuça com os batalhões da vanguarda, em que lhe mataram e feriram soldados, procedendo os portugueses com valor.

E como as companhias de cavalos se encontram muito enfraquecidas, mandou o governador das armas o tenente-general da cavalaria D. António Maldonado à comarca de Lamego, para tomar os cavalos que nela houvesse, a fim de as reequipar.

O Conselho deu parecer que, para além de enviar os agradecimentos a Pedro Jacques, se lhe enviasse dinheiro para pagar os cavalos que se tomarem para remontar as tropas.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1664, mç. 24, consulta de 2 de Abril de 1664.

Imagem: David Teniers, o Jovem, Interior da sala da guarda; MLibrary Digital Collections, University of Michigan.

Caçadores em tempo de guerra

Numa passagem da narrativa de Matheus Roiz, já trazida aqui há alguns anos, era feita menção à temível pontaria de alguns elementos da população da vila de Oliva, que eram caçadores e que ajudavam à defesa da localidade, atacada pelo exército português entre 8 e 11 de Janeiro de 1654:

[C]omo vinha já amanhecendo, não era possível aparecer ninguém onde chegasse arma de fogo do castelo, porque assim que aparecia algum nosso onde o inimigo lhe chegasse, já ele estava morto; que, de 200 homens que no castelo estavam, não havia um só que não fosse caçador do ar [caçadores de aves], e assim nunca jamais erravam tiro que fizessem. (MMR, pg. 375)

A prática da caça, embora estivesse sujeita a legislação específica e dependesse da autorização régia ou do donatário do domínio senhorial, era efectuada em determinadas épocas do ano por homens do povo. Os caçadores dispunham de armas de fogo que diferiam dos mosquetes e arcabuzes utilizados como arma de guerra. Ao contrário destes, cujo cano era de alma lisa, as armas dos caçadores tinham cano estriado (um processo inventado na Alemanha por volta de 1520) e – como é possível verificar na imagem que acompanha este artigo – uma configuração um pouco diferente dos mosquetes, a cuja versão mais pesada, no entanto, se assemelhavam. Isto conferia uma maior precisão ao tiro, mas com a desvantagem de ser mais moroso de carregar (pelo cano) que as armas de alma lisa. Claro que num cerco, como no caso testemunhado por Matheus Roiz, em que os defensores dispunham da protecção de uma muralha e não estavam sujeitos à pressão de remuniciarem a arma com a rapidez exigida aos soldados que se encontravam em campo aberto, a vantagem de um maior alcance prático e precisão não era de desprezar.

Imagem: Caçadores descansando num celeiro. Óleo de Gerard Donck.

Marquês de Marialva

Retrato de D. António Luís de Meneses, 3.º Conde de Cantanhede e 1.º Marquês de Marialva (1596-1675).

Comandante do exército português que triunfou nas batalhas das Linhas de Elvas (14 de Janeiro de 1659 – nesta batalha comandou o exército de socorro que acudiu às forças sitiadas em Elvas, as quais estavam sob o comando de D. Sancho Manuel de Vilhena, que viria a ser Conde de Vila Flor) e de Montes Claros (17 de Junho de 1665).

The use of uniforms during the War of the Portuguese Restoration – the cavalry

O presente artigo em língua inglesa é o segundo de uma tradução de dois artigos já publicados há anos. Por curiosidade, num curto espaço de tempo alguns leitores de língua inglesa solicitaram-me que lhes fornecesse informações sobre o eventual uso de uniformes durante a Guerra da Restauração. Deste modo, a tradução dos dois artigos corresponderá à resposta a essas solicitações. Por motivos pessoais e profissionais, não pude dar a continuidade tão rápida quanto desejava à sequência de artigos, mas ela aqui fica agora.

This post in English language is the second part of a translation of two posts published here years ago. Recently, several English speakers, followers of this blog, asked me about the use of uniforms in the course of the War of Portuguese Restoration. I decided to translate the two posts in order to answer their requests. The second is about the cavalry.

Cavalry

While the use of proper uniforms was in its first steps in the infantry (much because of English and French influence, though the precursory Swedish Army of the 30 Years War is also worth of mention), the units of horse maintained their usual undistinguished look during the war. First of all, because the defensive equipment of the cavalry was similar among all Western European armies of the period: buff coats (with or without sleeves), corslets composed of breast and backplate (or at least the first) and helmets or hats. Second, as the company was the basic administrative unit in the Portuguese and Spanish cavalry, and the financial problems in maintaining the men, equipment and horses of the unit was the primary concern of each captain, there was no point to even think about extravagances like uniforms.

Even so, it is possible to find some references to uniforms in the cavalry, but – unlike the infantry – none concerning Portuguese units. The Count Schomberg’s Company of Guards, during the campaign of Alentejo in 1663, wore blue coats over the body armour. Two years later, at the battle of Montes Claros, the same company wore red coats with white crosses. Least clear was the use of red coats by the English horse, like their infantry counterpart, but that’s a possibility. Another distinct unit mentioned by the sources was the Guard cavalry of Don Juan de Austria, using yellow coats with red cuffs at the battle of Ameixial in 1663. And an English report about the battle of Montes Claros in 1665 reffers the cavalry regiment of the German Count of Rabat (of the Spanish army commanded by the Marquis of Caracena) all clothed in buff coats, though that could mean just the lighter piece of deffensive equipment a horseman would wear, not any kind of textile coat used over the body armour. These are the exceptions found in the sources referring the cavalry of the War of the Portuguese Restoration about the use of some kind of uniforms.

 

Bibliography:

A Anti-Catastrophe, Historia d’ElRei D. Affonso 6º de Portugal, publicada por Camilo Aureliano da Silva e Sousa, Porto, Tipographia da Rua Formosa, 1845.

“A Relation of the last summers Campagne in the Kingdome of Portugall, 1665”, anonymous (by an officer of an English Regiment of Horse), 23 June 1665, The National Archives, SP89/7, fl. 49.

Image: Detail of a painting by Jacques Callot (at Versailles Museum). French army dragoons, from Louis XIII period, wore red coats with white crosses, similar to the “uniform” described in use by Count Shomberg’s Company of Guards at Montes Claros. However, about thirty years later, by 1665, the cut of the cloth in military fashion would have changed.

O contrato com os capitães de cavalos da província da Beira (1663-1664)

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A introdução do contrato com os capitães de cavalos em 1647 foi uma medida destinada a reorganizar e a conferir maior operacionalidade à cavalaria do exército português. Sobre este assunto foram já publicados artigos aqui, aqui e aqui. Inicialmente só abrangeu a cavalaria do exército da província do Alentejo, por ser aí mais numerosa e mais necessária. Após a chegada do Conde de Schomberg a Portugal, o contrato foi alargado aos outros exércitos provinciais. A medida foi tomada para travar uma reorganização mais profunda que o Conde tinha pretendido: a implementação do sistema regimental, que poria fim aos privilégios dos capitães de cavalaria, principalmente à sua ampla autonomia na condução da guerra de saque e pilhagem. No caso vertente, o contrato com os capitães de cavalos da Beira foi objecto de uma consulta ao Conselho de Guerra em 1664, retomando as propostas e contra-propostas do ano anterior.

Em 21 de Março de 1663, uma carta régia dirigida ao mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães mandava aplicar o contrato às companhias de cavalos do exército daquela província, à semelhança do que se fazia com as do Alentejo. Os capitães e o comissário geral D. António Maldonado protestaram, tendo lavrado uma petição ao Rei, em 22 de Setembro de 1663, que foi vista pelo Conselho de Guerra, juntamente com outras cartas particulares, incluindo a do próprio comissário geral. É sobre este conjunto de cartas que se pronuncia o Conselho de Guerra em 19 de Fevereiro de 1664, nos seguintes termos:

Dado que os capitães de cavalos e o Conselho de Guerra não concorreram com o seu consentimento neste contrato, (pois fora imposto e não negociado, ao contrário do do exército do Alentejo), não era de crer que os oficiais da cavalaria estivessem de acordo com o dito contrato sem se lhes dar palha para os cavalos e sem haver dinheiro pronto para a contribuição do contrato, como se pratica no Alentejo.

O Conselho foi de parecer que se devia procurar fazer com que, dos lugares da província da Beira, se acudisse com palha para sustento da cavalaria, que se trouxesse para as praças onde assistisse a cavalaria e às casas que servissem de depósito, despendendo-se com a conta e razão que conviesse, “porque noutra forma nunca os oficiais da cavalaria podem ser obrigados às condições dele, faltando-se-lhe com estas”. Já quanto ao pedido de que se levasse em conta os cavalos que morressem nas marchas, o Conselho deu parecer negativo, devendo ser indeferido para que não se desse exemplo que poderia ser muito prejudicial ao serviço de Sua Majestade; “porém os que constar aos oficiais da fazenda que, respeito das largas marchas de Alentejo, Minho e Trás-os-Montes, morreram, e não por culpa de seus oficiais e soldados, sempre será justo se lhe levem em conta, ou faça toda a equidade, como aponta a contadoria geral na sua informação, e o Conde do prado na carta junta, como também o fez por outra o Conde de São João”.

Dando despacho à consulta, o Rei escreveu “Como parece” em 7 de Março de 1664.

Anexa à consulta e datada de 22 de Setembro de 1663, a carta dos capitães de cavalos do exército provincial da Beira é do seguinte teor:

O comissário general e capitães de cavalos da Província da Beira, que Vossa Majestade foi servido mandar por carta de vinte e um de Março de 1663 ao mestre de campo general Pedro Jacques de Magalhães, a cujo cargo está o governo das armas da dita Província, fizesse dar à execução a entrega das tropas, por arca e contrato, a eles, oficiais, na forma em que as têm os capitães da Província do Alentejo, e porque eles, suplicantes, sem serem ouvidos e perguntados para aceitarem o dito contrato, foram obrigados à dita entrega, que aceitaram por ser em tempo que estavam para marchar à província de Alentejo e não perturbarem o socorro com dilações de réplicas.

Pedem a Vossa Majestade, em consideração do amor e bom zelo com que servem, lhe faça Vossa Majestade mandar ver as razões que apontam em o papel que oferecem e remediar o dano que recebem em o contrato.

Em os últimos de Abril acodem os socorros da Província da Beira à do Alentejo, com que ficam os oficiais da cavalaria sem dar verde às suas tropas [colocar os cavalos das companhias em pastagens], e não só perdem o lucro que podiam tirar em lho dar por sua conta, e como o não comem, lhe morrem de enfermidades e com o trabalho de socorrer as Províncias aonde os mandam a melhora dos cavalos. Por que [pelo que] Vossa Majestade deve mandar se lhe levem em conta os que morrerem nestas marchas, derrogando o capítulo tantos do regimento, ou dando-se-lhe cada ano uns tantos cavalos mortos.

A falta do assento da palha diverte a condição do contrato e estilo que se guarda no Alentejo, porque Vossa Majestade foi servido mandar se fizesse a entrega das tropas, o que vem a ser em prejuízo deles, oficiais, por lhe faltar grande parte do ano a palha, com que enfraquecem os cavalos e ficam nisto incapazes de serviço.

A consignação de dinheiro à província nem é bastante para trigo e cevada e primeiras planas, com que lhe não podem pagar a contribuição do contrato, e faltando esta não é possível que eles, oficiais, metam cavalos nas tropas, e diminuindo o valor da entrega nem poderão vencer a dita contribuição da arca e contrato, nem crescerá o número da cavalaria. Por que Vossa Majestade deve de mandar fazer assento de palha como se estila na Província do Alentejo, e nomear consignação certa de dinheiro para satisfação do vencerem com contrato, porque em outra forma não poderão eles, oficiais, faltando-lhe com as condições do contrato, observá-lo.

Espera pelo bem que servem da Real grandeza de Vossa Majestade que, informando-se Vossa Majestade da verdade, lhe faça mercê de mandar compor e tomar meio capaz nesta matéria como mais convier ao serviço de Vossa Majestade. Guarde Deus a Católica e Real Pessoa de Vossa Majestade como todos havemos mister. Almeida, em 22 de Setembro de 1663.

E assim também os mantimentos que correm por conta dos capitães da Província de Entre Douro [e Minho] o ofereciam até agora.

(assinaturas de capitães): João Soares de Almeida, Fernão Cabral, Paulo Homem e mais dois ilegíveis.

Fonte: ANTT, CG, Consultas, 1664, mç. 24, consulta de 19 de Fevereiro de 1664, com anexos relativos a 1663.

Imagem: Pieter Meulener, dois óleos com temas de cavalaria seiscentista.