Emboscadas e estratagemas na Guerra da Restauração – Holandeses em Agosto de 1642 (parte 2)

Continuando com o episódio referido na primeira parte, apresento agora a versão do capitão Luís Marinho de Azevedo acerca do mesmo incidente. Embora o oficial fosse mais preciso do que o cónego Aires Varela quanto à descrição dos acontecimentos militares, acerca dos quais tinha um conhecimento mais aprofundado, é difícil estabelecer com exactidão qual das versões, neste caso, se aproxima mais da realidade, uma vez que o episódio terá sido contado por terceiros.

Estavam aquarteladas na vila de Campo Maior algumas companhias de holandeses que desejavam, a uso de Flandres, entrar em quadrilhas nas terras do inimigo a fazer rapinas de que se aproveitassem, para o que se lhes não dava permissão, pelas ruins consequências que se podiam seguir deste exercício; mas havendo-se com impaciência nesta proibição, se temeu que eles se dispensassem nela, como algumas vezes costumaram. E para obviar estes descréditos, se lhes permitiu que vinte, com suas carabinas, fizessem o que tanto desejavam, e em treze do mês de Agosto se meteram em Castela de noite, e chegaram ao anoitecer ao caminho que vai de Lobón para Mérida, onde encontraram um alguazil [oficial de justiça] e um carcereiro e outros homens com três cargas de courama. E assaltando-os de repente, tomaram a todos prisioneiros, e com cargas e cavalgaduras os trouxeram a Portugal. Cevados os holandeses com esta presa, fizeram outras de importância, uma das quais foi tomarem prisioneiro um noivo com todos os que o acompanhavam, passando de um lugar a outro a desposar-se. E continuando este exercício, se juntaram vinte e cinco, e em uns matos perto do Montijo encontraram algumas cargas de panos que vinham de uma feira, acompanhadas de muita gente. E vendo que era desigual o partido para a cometer, se meteu no mato a metade dos holandeses e os mais saíram ao caminho e assaltaram os passageiros; os quais, querendo defender-se, tocaram a bastarda os holandeses emboscados e começaram a sair, dando-lhes a entender que eram muitos, com que todos os castelhanos se entregaram, e os despiram e lhe tomaram as cargas, que seis deles trouxeram a Campo Maior. Ficaram os dezanove continuando estes saltos, e tendo Dom João de Garay notícia do que passava, e divididas sentinelas para o avisarem, mandou algumas tropas de cavalaria a bater o mato em que estavam embrenhados. E vendo que não tinham remédio se entregaram, entendendo que lhes dessem bom quartel. Mas sendo trazidos a Badajoz, se lhe não concedeu, e enforcaram todos dezanove juntos em uma forca triangular, com que escramentaram os de Campo Maior para não fazerem mais rapinas.

Fonte: Luís Marinho de Azevedo, Commentarios dos valerosos feitos, que os portuguezes obraram em defensa de seu Rey, & patria na guerra de Alentejo que continuava o Capitaõ Luis Marinho d’Azevedo, Lisboa, na officina de Lourenço de Anveres, 1644, pgs. 253-254.

Imagem: Hendrick de Meijer, “Cerco e captura de Hulst”, óleo, 1645.

Emboscadas e estratagemas na Guerra da Restauração – Holandeses em Agosto de 1642 (parte 1)

Os militares holandeses que vieram para Portugal, contratados como mercenários, em Setembro de 1641, eram experientes veteranos da Guerra dos 30 Anos. Trouxeram consigo expedientes que, pela sua curiosidade, engenho e diferença de procedimentos em relação ao que era habitual ser posto em prática nas escaramuças na província do Alentejo, não escaparam aos cronistas e propagandistas da época. O caso que aqui vai ser trazido foi registado, com alguma diferença de pormenores, pelo cónego elvense Aires Varela e pelo capitão de infantaria e propagandista Luís Marinho de Azevedo. Sem mais comentários, passo a transcrever a versão de Aires Varela do sucedido em Agosto de 1642.

Os holandeses que assistiam nesta cidade [Elvas] houveram licença de D. João da Costa, que já de volta de Lisboa estava nela, para fazer entradas na terra do inimigo: oito holandeses se arriscavam com grande valor e maior indústria; saiam pela tarde e se faziam à volta de campo Maior, e como era noite, guiados pelas estrelas se emboscavam na terra do inimigo divididos, e um vigiava os caminhos, e segundo a gente que passava assim se resolvia. Levavam três clarins de que se valiam com grande indústria, porque sentindo-se apertados, tocando este instrumento em diversas partes entendia o inimigo que eram outras tantas tropas, e porque reparava fazendo altos, se punham os holandeses em cobro. Com esta indústria fizeram algumas pilhagens, em que traziam um e dois castelhanos, que entregavam pelo quinto, porque da revolta da presa não davam nada [o quinto de todas as pilhagens era obrigatoriamente entregue à Coroa – isto não se aplicava a prisioneiros de guerra, pelo que Aires Varela provavelmente ironiza aqui].

Tiveram notícia de uma feira, que se faz sobre o rio Tejo junto às barcas de Alconete, na ermida de Nossa Senhora da Alta Gracia, passaram duas léguas além de Badajoz esperar os castelhanos que dela vinham, e porque aquela terra é capina, perto do caminho fizeram covas em que se meteram, e cobriram as cabeças com mato, vigiavam tudo.

Passaram sete castelhanos, levantaram-se os holandeses tão de repente que ficaram atemorizados e sem poder resistir, levando armas com que o fazer. Os holandeses roubaram todos e trouxeram para quinto um alcaide do cárcere de Badajoz, que chamam João Alconero, e um tendeiro, que tem um filho médico naquela cidade.

Por muitas vezes continuaram este exercício com bom sucesso, o castelhano teve notícia do modo e por fim os veio cercar. Os holandeses se puseram em defesa como valentes soldados, os castelhanos lhes prometeram bom quartel [ou seja, que aceitavam a rendição, fazendo-os prisioneiros], que lhe não deram, antes depois de rendidos com muita crueldade os mataram.

Fonte: Aires Varela, Sucessos que ouve nas fronteiras de Elvas, Olivença, Campo Maior e Ouguella, o segundo anno da Recuperação de Portugal que começou em 1º de Dezembro de 1641 e fez fim em o ultimo de Novembro de 1642, Elvas, Typografia Progresso de António José Torres de Carvalho, 1906, pp. 92-93.

Imagem: “Militar holandês”, óleo de Joost Cornelisz, séc. XVII.

Sobre o capitão holandês Manuel Cornellis e a sua companhia de cavalos

A respeito do capitão Manuel Cornellis, oficial holandês que serviu vários anos a Coroa portuguesa, já foi publicada uma série de artigos. No último destes, foi feita uma abordagem sucinta ao processo judicial decorrido entre 1648 e 1649, que determinaria a perda de privilégios por parte do capitão de cavalos e o seu afastamento, ainda que provisório, do comando da companhia. A escassez de referências a Cornellis nos documentos de anos subsequentes tinham-me levado a crer que o capitão tivesse deixado o serviço por volta de 1654. Todavia, uma consulta do Conselho de Guerra de 1657 mostra que, nesta data mais avançada, o oficial holandês não só se mantinha em Portugal, como se encontrava de novo no comando da sua companhia.

A consulta aborda uma petição de Manuel Cornellis. Nela, o capitão de cavalos refere ter necessidade de gente na sua companhia, e explica que, tendo tido informação de que um António Correia de Sequeira tinha sido condenado em três anos de degredo para um dos lugares de África, por ter sido encontrado de noite com uma pistola pelo meirinho da correição de Elvas, e sabendo que o dito soldado tinha já satisfeito as condenações pecuniárias, o persuadiu a assentar praça na sua companhia como soldado durante três anos, não recebendo soldo até que o Rei lhe fizesse mercê de tal. Expõe também que António Correia de Sequeira é soldado de muito préstimo, havendo já servido 10 anos na cavalaria com muita satisfação, e servido de guia em incursões a Castela.

A petição de comutação da pena encontrou o apoio do Conselho de Guerra, que mandou primeiro remeter a dita petição ao Dr. Jorge da Silva Mascarenhas, Juiz Assessor. Como a culpa não foi “escandalosa” (ou seja, de muita gravidade), o Conselho de Guerra deu o parecer favorável à petição, por ser mais preciso e de maior utilidade o serviço que podia fazer o soldado neste Reino, do que nos lugares de África.

O decreto régio de 20 de Março de 1657 manda aplicar o parecer do Conselho de Guerra.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1657, mç. 17, consulta de 16 de Março de 1657.

Imagem: Soldado de cavalaria armado de carabina, meados do século XVII.

O novo contrato com os mercenários holandeses, Julho de 1644 (2ª parte)

Muitos afazeres profissionais têm impedido a actualização mais regular do blogue. Pelo menos até meados deste mês, a actualização continuará a ser feita numa base semanal, para posteriormente regressar a um ritmo mais habitual. Prossigamos, pois, com a transcrição do contrato:

8. Que as companhias deste Regimento constarão de sessenta até oitenta praças o mais, entendendo-se isto neste princípio. Refazendo-se depois de oitenta a cem praças dentro de dois meses.

9. Que os soldos que vencerem os soldados deste Regimento lhe serão pagos em mão de seus capitães, os quais por eles o repartirão, fazendo com que tenham sempre seus cavalos e armas consertadas.

10. Que os soldados que de presente se conduzirem e levantarem aqui nestas fronteiras para este Regimento haverão catorze patacas [4.480 réis], que faz um mês de soldo na forma da capitulação holandesa, e os que vierem de Lisboa e outras partes haverão seis mil réis.

11. Que ao tenente-coronel, oficiais e soldados deste terço lhe correrão seus soldos do primeiro de Agosto deste presente ano por este contrato se começar com eles no próprio dia.

12. Que aos soldados que se apresentarem no dito terço, do dia que aclararem praça em Lisboa ou aqui, lhes correrá seu soldo, sendo-lhes pago na conformidade que os demais, com declaração que os que assentarem praça em Lisboa serão obrigados a virem a servir na fronteira dentro de quinze dias, e não o fazendo assim não vencerão soldo.

13. E que nem um oficial do Regimento holandês possa levar consigo a Lisboa ou outra parte soldado dele sem expressa licença do Governador das Armas, nem pessoa alguma, de qualquer qualidade que seja, possa tirar ou levantar deste Regimento holandês que ora serve soldado algum, porquanto os que ficarem devem servir, e são obrigados, neste Regimento estrangeiro. Mas antes que o dito tenente-coronel poderá fazer leva dos soldados estrangeiros desobrigados, quantos lhe forem possível, em qualquer parte que seja, sem pessoa alguma de qualquer qualidade que seja lho contradizer.

14. Que Sua Majestade, ou o Governador das Armas em seu nome, será obrigado a sustentar e pagar este Regimento alguns anos na forma prescrita, e em caso que algum oficial ou algum soldado deste Regimento, por causas justas, requeiram ir em qualquer tempo, se lhes concederá licença para o poderem fazer, pagando-lhes tudo o que lhe dever.

15. Que Sua Majestade, ou o Governador das Armas em seu nome, será obrigado a que no Regimento haja os oficiais seguintes e soldados pagos pelos soldos abaixo declarados cada mês.

Oficiais da Primeira Plana

Ao tenente-coronel haverá por soldo cada mês cento e cinquenta patacas e outras noventa patacas, as quais Sua Majestade fez mercê ao dito tenente-coronel Alexandre van Harten, de maneira que ao todo vem a ser setenta e seis mil e oitocentos réis.

Ao ajudante, cada mês, dez mil réis.

Ao auditor do terço, cada mês, oito mil réis.

Ao preboste do terço, cada mês, oito mil réis.

Ao cirurgião-mor, nove mil e seiscentos réis.

Oficiais de cada uma companhia

Aos quatro capitães que trabalhando em esta leva haverão por soldo cada mês trinta e dois mil réis, e fora destas doze mil  oitocentos réis, os quais Sua Majestade foi servido fazer mercê em particular a cada um deles, pela razão acima, que vem a ser quarenta e quatro mil e oitocentos réis.

Ao tenente de cada companhia, dezoito mil réis.

Ao alferes, por cada mês, catorze mil réis.

Aos furriéis de cada companhia, por cada mês, sete mil e quinhentos réis.

Aos cabos de esquadra, que serão três de cada companhia, haverão cada um por mês sete mil e quinhentos réis.

Aos trombetas, haverão dois em cada companhia, haverá cada um por mês sete mil e quinhentos réis.

A cada um soldado, segundo o soldo português, cada mês seis mil réis.

A alguns oficiais reformados que queiram ficar no real serviço até que alcancem postos aqueles que Sua Majestade ou Vossa Excelência for servido de lhe fazer mercê. [Não está indicada a quantia]

Pelo dito modo se cerrou esta capitulação ou convenção acima e atrás escrita, de uma parte o Senhor Conde Governador das Armas em nome de Sua Majestade. Pela outra parte o tenente-coronel Alexandre van Harten, em nome de todos os oficiais e soldados, obrigados cada um a cumprir e guardar tudo o escrito nesta capitulação. E se fizeram dois deste. Um ficou ao Senhor Conde Governador das Armas, outro ao tenente-coronel Alexandre van Harten. Feita em Elvas a dezoito de Julho da era de mil seiscentos e quarenta e quatro anos.

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4-B, documento anexo à consulta de 2 de Agosto.

Imagem: “Celebração da Paz de Münster”, de Bartolomeus van der Helst (Rijksmuseum, Amesterdão). O contexto político-diplomático em torno da Paz de Münster em 1648 influenciou o destino do regimento holandês de cavalaria ao serviço de Portugal, ainda antes de ser oficialmente celebrado o fim da Guerra dos 30 Anos. Não haveria um terceiro contrato com os holandeses enquanto unidade. Os militares que continuaram ao serviço em Portugal após 1647 fizeram-no a título individual, integrados em unidades portuguesas. Alexandre van Harten passou a ser comissário geral na província do Alentejo.

O novo contrato com os mercenários holandeses, Julho de 1644 (1ª parte)

O tema que ora inicio está relacionado com assuntos já tratados aqui, aqui e aqui, respeitantes à presença do contingente holandês em Portugal, durante os primeiros anos da Guerra da Restauração.

O contrato estabelecido com os mercenários holandeses em Agosto de 1641 expirou passados três anos. Em Julho de 1644, apesar das reticências de D. João IV (ou de quem aconselhava particularmente o Rei) quanto a manter os holandeses ao seu serviço, tanto o Conde de Alegrete Matias de Albuquerque, governador das armas do Alentejo, como D. João da Costa, mestre de campo general, trataram de pressionar a Coroa no sentido de fazer um novo contrato com aqueles estrangeiros. Contrariando o mito – que se perpetuaria até aos nossos dias – da responsabilidade da cavalaria holandesa na derrocada inicial da batalha de Montijo, os experientes soldados das Províncias Unidas eram muito apreciados pelos comandantes que operavam no terreno. Havia, claro, o problema da religião, que dificultava as relações entre portugueses e holandeses – mesmo que D. João da Costa afirmasse que muitos oficiais e soldados do contingente eram católicos, a maioria era protestante, como se depreende de várias passagens das narrativas de guerra e de documentos oficiais, incluindo o próprio contrato que abaixo se apresenta; e a isto se juntava a sempre presente desconfiança em relação aos estrangeiros, um traço comum da mentalidade do período. Aliás, a tolerância em relação aos militares protestantes estava condicionada à discrição da sua conduta – só não “causando escândalo” ficariam ao abrigo de qualquer procedimento de natureza jurídica.

Não obstante estas contrariedades, a falta de efectivos experientes e capazes no exército português da província do Alentejo tornou imperioso manter ao serviço da Coroa portuguesa os profissionais holandeses. D. João IV acabou por dar o seu consentimento à elaboração de um novo contrato.

É o documento respeitante a esse contrato – ou capitulação, como então se designava um acordo deste género – que irei transcrever em duas partes, vertendo para português moderno a ortografia seiscentista original.

Capitulação feita com Sua Excelência o Conde Governador das Armas desta província em nome de Sua Majestade, com os poderes que para isso lhe deu o dito Senhor, entre o tenente-coronel Alexandre van Harten [no original está escrito Herten, mas o nome correcto é Harten, como se pode ver pela assinatura do próprio] e o dito Senhor Conde Governador, em razão de se formar um terço de cavalaria estrangeira [a designação terço aparece por vezes em lugar de regimento; o sistema regimental não existia ainda no exército português], que com o dito tenente-coronel hão-de servir nestas ditas fronteiras de Alentejo, ao qual deram os seus oficiais os poderes necessários para a dita capitulação na maneira seguinte:

Proposta antes da capitulação

O tenente-coronel e seus oficiais protestam a Sua Majestade com todo o ânimo e vontade em seu Real Serviço fazerem que os soldados e mais oficiais do Regimento Holandês fiquem no serviço do dito Senhor, fazendo-lhe toda a instância para que neste Reino sirvam na forma das capitulações abaixo:

Que sendo caso que os oficiais do Regimento Holandês que acaba em fim de Julho presente, por mal intencionados intentarem consigo levar para Holanda alguns dos ditos soldados, ou eles próprios soldados o fizerem por outro qualquer inconveniente, eles ditos tenente-coronel e oficiais não serão obrigados a perda e desserviço que nisto a Sua Majestade se fizer, mas antes o dito Senhor lhe remunerará o trabalho que na condução e levas tiverem feito, mandando-lhes tomar contas do dinheiro que tiverem recebido para o tal efeito, ficando depois desobrigados de toda a capitulação, e nesta conformidade os capítulos dela são os seguintes:

1. Que o dito tenente-coronel e oficiais e soldados que ficarem servindo neste terço o farão bem e fielmente, tomando todos juramento na forma acostumada, em mãos do dito Senhor Governador, para que em nome de Sua Majestade lhe tome a menagem, ficando obrigados a servirem contra todos os inimigos desta Coroa, sem distinção alguma, não sendo eles ditos tenente-coronel e oficiais e soldados obrigados a servirem em outra parte mais que pela defensa da terra firme e costa de Portugal.

2. Que o tenente-coronel, oficiais e soldados que houverem de ficar serão pagos de seus [soldos] atrasados, conforme a capitulação holandesa, na conformidade que o hão-de ser os demais oficiais e soldados que do Regimento Holandês se vão para Holanda. E recebendo estes ditos oficiais e soldados dinheiro em alguma parte dos ditos atrasados, entrarão eles ditos capitulantes na dita partilha, ficando pagos para que de novo comecem o dito contrato.

3. Que Sua Majestade terá respondido a proposta que o tenente-coronel lhe fizer para os oficiais que se houverem de criar no dito regimento, e não se farão de outro, havendo sujeitos capazes nele.

4. Que enquanto à administração da justiça, será conforme às leis e costumes militares deste Reino de Portugal.

5. Que os oficiais e soldados gozarão de todos os privilégios que gozam os vassalos desta Coroa, e morrendo na guerra ou de doença, até ao dia de sua morte ou de sua ausência se lhes pagarão seus soldos em mão dos seus capitães, ou de seus herdeiros. E sendo oficial, na do maior, não se metendo outra pessoa alguma nos ditos soldos e bens que ficarem dos defuntos, mais que os oficiais do próprio Regimento, os quais serão obrigados a fazer tudo aquilo que os restantes deixarem ordenado. E que os feridos, se lhe pagará seu soldo, na conformidade que aos mais soldados e oficiais.

6. Que se não procederá contra os oficiais e soldados por causa da religião, não procedendo com escândalo.

7. Que ao tenente-coronel e oficiais e soldados lhe serão dados cavalos necessários e de préstimo para poderem servir a Sua Majestade com todas as dependências para eles necessárias, como convém: armas, que constará de duas pistolas e uma carabina, peito e espaldar e murrião a cada soldado. E estas por uma vez somente, das quais darão conta seus oficiais ou o dito tenente-coronel, salvo os cavalos e armas que perderem nas batalhas, e outros casos extraordinários se lhes levará em conta na forma em que se fizer com todos os mais soldados portugueses e franceses.

(continua)

Fonte: ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4-B, documento anexo à consulta de 2 de Agosto.

Imagem: “Cavaleiros num acampamento militar”, pintura de Philips Wouwerman.

Cavalaria e dragões holandeses em Portugal – a mostra de 29 de Junho de 1644

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A mostra de 29 de Junho de 1644 foi feita com o intuito de verificar os efectivos reais da cavalaria na província do Alentejo, um mês volvido sobre o desastre das forças montadas do exército português na batalha de Montijo, e aquilatar as necessidades em cavalos, armamento e equipamento.

No rol da mostra não se faz qualquer referência a regimentos de cavalaria ou dragões, somente a cada companhia, sob o título genérico “Cavalaria Holandesa”; havia 8 companhias de cavalos e 4 de dragões – estas só se distinguem pelo armamento descrito. A cavalaria (e dragões) dos holandeses contava com um efectivo de 448 homens, correspondente então a 26,8% do total da província, contando soldados montados e apeados. No entanto, cerca de 40% dos soldados holandeses não estavam providos de cavalos.

Ao contrário da cavalaria francesa, que não estava equipada com murriões, peitos e espaldares, a cavalaria holandesa estava munida deste equipamento, tal como as companhias portuguesas, embora uma parte dele estivesse em falta. Só os dragões não tinham qualquer tipo de protecção metálica.

Eis os efectivos detalhados (não estão incluídos os oficiais das companhias, nem os furriéis, trombetas e ferreiros):

Companhia do coronel Jan Willem van Til: soldados montados – 49; apeados – 3; carabinas – 9; pistolas – 54; peitos – 28; espaldares – 27; murriões – 22.

Cª do sargento-mor Alexandre van Harten: soldados montados – 23; apeados – 7; carabinas – 25; pistolas – 56; peitos – 28; espaldares – 28; murriões – 28.

Cª do capitão Conrad Piper: soldados montados – 22; apeados – 12; carabinas – 11; pistolas – 44; peitos – 22; espaldares – 22; murriões – 22.

Cª do capitão van Wagen (ou Wagenheim): soldados montados – 43; apeados – 10; carabinas – 9; pistolas – 78; peitos – 3; espaldares – 3; murriões – 2.

Cª do capitão Mauricius Lamair (2): soldados montados – 19; apeados – 6; carabinas – 2; pistolas – 38; peitos – 1; espaldares – 1; murriões – 1.

Cª do capitão Jacob de Cleer (2): soldados montados – 25; apeados – 7; carabinas – 1; pistolas – 46; peitos – 24; espaldares – 24; murriões – 24.

Cª do capitão Mathias Waremburg (1): soldados montados – 22; apeados – 18; carabinas – 4; pistolas – 35; peitos – 23; espaldares – 23; murriões – 23.

Cª do capitão Willem Segres van Wassenhoven: soldados montados – 20; apeados – 29; carabinas – 4; pistolas – 26; peitos – 4; espaldares – 4; murriões – 4.

[dragões] do capitão Frederik van Plettemburg (2): soldados montados – 20; apeados – 11; arcabuzes – 25.

[dragões] do capitão Joan de La Roche: soldados montados – 13; apeados – 27; arcabuzes – 24.

[dragões] do capitão Sigismundus Finkeltous (2): soldados montados – 7; apeados – 23; arcabuzes – 30.

[dragões] do capitão Frederik Streecht (1): soldados montados – 9; apeados – 23; arcabuzes – 31.

(1) Estes capitães não deixaram o serviço em meados de 1642, apesar de terem então recebido passaporte para regressar à sua terra natal (quando escrevi O Combatente durante a Guerra da Restauração…, o período conhecido de serviço destes militares, em face da documentação consultada, não ia além de 1642; fica aqui a correcção).

(2) Estes capitães não deixaram o serviço da Coroa Portuguesa em 1643, conforme refiro a pgs. 87-88 de O Combatente durante a Guerra da Restauração…, mas somente após o termo do primeiro contrato, em meados do ano seguinte.

Fonte principal:  ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, mç. 4-A, nº 264, doc. anexo à consulta de 12 de Julho de 1644, “Rezumo das Companhias de Cauallo que neste Ex.to Seruem a SMgde Apresentado na mostra que se comesou em 29 de Junho 1644”.

Imagem: Cavalaria do período da Guerra Civil Inglesa. “History Day”, Kelmarsh Hall, 2007. Foto de J. P. Freitas.

Cavalaria e dragões holandeses em Portugal (1641-1644) – uma revisão

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A escrita da História nunca é definitiva. Quando se produz uma síntese em função da documentação recolhida e analisada, eis que se descobre um documento até então “escondido” ou descurado que obriga a rever o que até então era dado como muito plausível ou mesmo certo.

É o caso dos dragões ao serviço do exército português. Sobre a existência de uma única companhia portuguesa, não existem grandes dúvidas. No que respeita às unidades estrangeiras de dragões, sabia-se que haviam sido constituídos – pelo menos no papel – um regimento holandês e outro francês. Do francês, a única prova fidedigna que existe é o de uma companhia com 20 soldados, mas sem qualquer tipo de armamento, segundo uma mostra passada em Julho de 1644. Do holandês, escrevi que nunca tinha sido constituído e que os seus militares haviam sido integrados em companhias de cavalos ou combatido como infantaria. A documentação dispersa apontava nesse sentido. A ausência de referências explícitas nas fontes narrativas a dragões holandeses parecia confirmar a hipótese. Até porque o seu hipotético comandante regimental, o tenente-coronel Eustacius Pick, esteve em vias de regressar às Províncias Unidas em meados de 1642, mas acabou por permanecer em Portugal, onde serviu como mestre de campo de um terço português até à batalha de Montijo.

Mas um documento que até agora não tinha sido explorado veio lançar uma nova perspectiva sobre o assunto. Uma carta de D. João da Costa, de 28 de Dezembro de 1643, inclusa numa consulta do Conselho de Guerra de Janeiro do ano seguinte, refere que, ao contrário do sucedido com as unidades francesas, as holandesas ainda não tinham sido reformadas (ou seja, reorganizadas ou extintas, conforme os casos) nessa altura, por se ter extraviado a carta régia que assim o ordenava. Na missiva, o cabo de guerra aponta os números da última mostra que se passara ao contingente holandês. Assim, havia 369 soldados montados de cavalaria ligeira, em oito companhias, que se podem e devem reduzir a quatro. E 148 dragões montados em quatro companhias, que se devem reduzir a duas. Havia ainda 101 soldados a pé. D. João da Costa sugeria que se  formasse com estes soldados uma companhia de infantaria, para que sirvam a pé com mosquetes e arcabuzes enquanto não houver cavalos para lhes dar.

No rol de unidades que constituíram o exército que em 1643 lançou a campanha ofensiva sobre território espanhol, todas as companhias holandesas são incluídas na cavalaria, sem qualquer distinção ou referência a dragões (veja-se, por exemplo, João Salgado de Araújo). No segundo contrato celebrado com a Coroa portuguesa (1644-1647), ficou a servir em Portugal apenas um regimento de cavalaria a 4 companhias, inicialmente com cerca de 100 soldados cada. Sobre este assunto a documentação é mais clara e não deixa margem para dúvidas.

Fonte:  ANTT, Conselho de Guerra, Consultas, 1644, maço 4, cx. 29, carta anexa ao doc. nº 75.

Imagem: “Assalto de militares a uma aldeia”; Sebastian Vrancx, meados do séc. XVII.

Regimentos holandeses de 1641 ao serviço da Coroa portuguesa (cavalaria e infantaria – organização teórica)

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Regimentos constituídos “no papel” em Outubro de 1641. Tal como no caso dos franceses, as 8 companhias de cavalaria (a 100 cavalos cada, segundo o efectivo previsto) operaram quase sempre de forma independente, embora a designação “regimento” se mantivesse em termos puramente administrativos e contratuais. O regimento de dragões é mencionado num documento de 1644, mas tal como a cavalaria, as companhias (num máximo de quatro) terão operado de forma independente. As fontes narrativas não distinguem cavaleiros e dragões holandeses, e os documentos oficiais (róis enviados ao Conselho de Guerra após as mostras efectuadas no Alentejo, ou cartas com declaração minuciosa dos efectivos) juntam sempre a cavalaria e os dragões num único regimento. O tenente-coronel Estacius Pick, inicialmente declarado como comandante do regimento de dragões, recebeu patente de mestre de campo e o comando de um terço de infantaria portuguesa a 12 companhias (com vários  militares estrangeiros, incluindo quatro oficiais holandeses e franceses) no Alentejo em 1642. Pick foi capturado pelos espanhóis na batalha de Montijo e só foi libertado em finais de 1646, tendo regressado à Holanda.

À semelhança do que aconteceu com a cavalaria francesa, as reformas de Março de 1645 integraram as companhias do ex-regimento de cavalaria no exército português (nessa data já não se fazia qualquer referência aos dragões). Até então, por motivos religiosos, as unidades de cavalaria holandesa estavam proibidas de incluir soldados portugueses. Com a dissolução do regimento e a integração dos oficiais e soldados holandeses no exército português, essa discriminação terminou.

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este assunto é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais.

Comando do contingente (apenas até ao início de 1642): coronel Lambert Floris van Til (m. 1642; cabia-lhe comandar uma companhia de cavalaria, embora delegasse o comando efectivo da mesma no tenente Mathias Waremburg).

Regimento de cavalaria: Comandante, tenente-coronel Jan Willem van Til (irmão do coronel Lambert Floris); sargento-mor, Alexandre van Harten (comandava uma companhia; m. 1647, sendo comissário geral no Alentejo); capitães, Conrad Piper, Jacob de Cleer, Jacob van Wagen, Alexandre Bery, Mauricius Lamair, Henrique Schilt, Gaspar van Berg.

Regimento de dragões (só parcialmente constituído no terreno): Comandante, tenente-coronel Estacius Pick; capitães, Frederik van Plettemburg, Frederik Streecht, Joan Doecy, Pedro Behan, Sigismundus Finkeltous, Roomfort, Joan de La Roche. Alguns destes oficiais passaram a servir na cavalaria, outros receberam passaportes para regressarem à Holanda em meados de 1642, mas alguns deles demoraram-se em Portugal, sem prestar qualquer serviço, pelo menos até finais de 1643.

Imagem: Combate de cavalaria. Pintura do século XVII (autor não identificado).