Espingardas e emboscadas

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No século XVII, o termo espingarda designava uma arma de fogo com fecho de pederneira. À margem do meio militar, era muito utilizada por caçadores. Mas também tinha o seu emprego no meio castrense, apesar das armas de fogo pessoais mais utilizadas serem a pistola, o arcabuz de mecha e o mosquete de mecha.

O problema das armas de fogo de mecha era a necessidade de transportar o morrão aceso, de forma a provocar a ignição da pólvora e fazer o disparo. Quando se pretendia emboscar o inimigo à noite ou em zonas obscuras, o morrão aceso podia denunciar os soldados que preparavam a surpresa ao inimigo. Aliás, um estratagema conhecido, destinado a enganar o adversário à noite, era deixar morrões acesos num local – por exemplo, atrás de sebes ou mato – de forma a atrair o fogo inimigo, para depois mais facilmente o castigar com uma salva de tiros a partir de outra posição ou para o carregar, sem deixar tempo a que pudesse recarregar a arma ou ter outra reacção. Um exemplo deste tipo é referido por Aires Varela em 1644:

[Joane Mendes de Vasconcelos] (…) enviou desta cidade o coronel Til [Jan Willem van Til, holandês] com o seu regimento, e a Luís Mendes de Vasconcelos, para que em Campo Maior, com o capitão João de Saldanha da Gama, passassem a Vilar del Rey,  fizessem emboscada e dano que pudessem; ordenou que na madrugada de 9 de Fevereiro, em ue se havia de fazer, tocassem arma viva em Valverde, para o inimigo mandar pedir socorro a Badajoz, e obrar emboscada em Vilar del Rey sem risco. De Olivença passaram áquele lugar alguns soldados, e junto dele, por entre o arvoredo maquieiro e outro mato baixo, puseram quantidade de mechas acesas; e tocando arma, se meteu o Castelhano em confusão, e a nossa gente em lugar seguro. O inimigo correu às trincheiras, descobriu as mechas, e parecendo-lhe gente de guerra deu contra elas muitas cargas [tiros]; os nossos, seguros, as festejavam, e em amanhecendo se retiraram, e os Castelhanos descobriram a travessura e se acharam corridos [enganados]. (Aires Varela, Sucessos que houve nas fronteiras (…), o terceiro anno da Recuperação de Portugal, que começou em o 1º de Dezembro de 1643, Elvas, Typografia Progresso de António José Torres de Carvalho, 1900, pg. 13)

Isto era o que se podia fazer com morrões. Para outras surpresas nocturnas, as espingardas com fecho de pederneira eram fundamentais. Num documento de 1657, João Rodrigues de Vasconcelos e Sousa, 2º Conde de Castelo Melhor e governador das armas de Entre Douro e Minho, pede que lhe sejam enviadas 200 espingardas para as emboscadas. No entanto, não se tratava de qualquer novidade. A espingarda datava do século XVI, e já Isidoro de Almeida se lhe referia quando recomendava que, de noite, para dar sinal da aproximação do inimigo (o tocar arma), se utilizasse o fuzil – entenda-se: arma com fecho de pederneira, como a espingarda – de forma a que o soldado de vigia não fosse denunciado pelo morrão aceso: Entre estas cumpre haver um arcabuzeiro para dar sinal de arma; outros o dão com fuzil, se é de noite. (“Quarto Livro das Instruções Militares de Isidoro de Almeida”, in Alberto Faria de Morais, Arte Militar Quinhentista, separata do Boletim do Arquivo Histórico Militar, Lisboa, s.n., 1953, pp. 144-145; edição original: Évora, em casa de André de Burgos, 1573)

Imagem: Guarda de piqueiros e mosqueteiros. Reconstituição histórica do período da Guerra Civil Inglesa em Old Sarum, Inglaterra. Foto de J. P. Freitas.

Regimentos holandeses de 1641 ao serviço da Coroa portuguesa (cavalaria e infantaria – organização teórica)

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Regimentos constituídos “no papel” em Outubro de 1641. Tal como no caso dos franceses, as 8 companhias de cavalaria (a 100 cavalos cada, segundo o efectivo previsto) operaram quase sempre de forma independente, embora a designação “regimento” se mantivesse em termos puramente administrativos e contratuais. O regimento de dragões é mencionado num documento de 1644, mas tal como a cavalaria, as companhias (num máximo de quatro) terão operado de forma independente. As fontes narrativas não distinguem cavaleiros e dragões holandeses, e os documentos oficiais (róis enviados ao Conselho de Guerra após as mostras efectuadas no Alentejo, ou cartas com declaração minuciosa dos efectivos) juntam sempre a cavalaria e os dragões num único regimento. O tenente-coronel Estacius Pick, inicialmente declarado como comandante do regimento de dragões, recebeu patente de mestre de campo e o comando de um terço de infantaria portuguesa a 12 companhias (com vários  militares estrangeiros, incluindo quatro oficiais holandeses e franceses) no Alentejo em 1642. Pick foi capturado pelos espanhóis na batalha de Montijo e só foi libertado em finais de 1646, tendo regressado à Holanda.

À semelhança do que aconteceu com a cavalaria francesa, as reformas de Março de 1645 integraram as companhias do ex-regimento de cavalaria no exército português (nessa data já não se fazia qualquer referência aos dragões). Até então, por motivos religiosos, as unidades de cavalaria holandesa estavam proibidas de incluir soldados portugueses. Com a dissolução do regimento e a integração dos oficiais e soldados holandeses no exército português, essa discriminação terminou.

Para mais detalhes, consulte-se O Combatente durante a Guerra da Restauração… e A Cavalaria na Guerra da Restauração…, onde este assunto é devidamente aprofundado, bem como as histórias pessoais de alguns oficiais.

Comando do contingente (apenas até ao início de 1642): coronel Lambert Floris van Til (m. 1642; cabia-lhe comandar uma companhia de cavalaria, embora delegasse o comando efectivo da mesma no tenente Mathias Waremburg).

Regimento de cavalaria: Comandante, tenente-coronel Jan Willem van Til (irmão do coronel Lambert Floris); sargento-mor, Alexandre van Harten (comandava uma companhia; m. 1647, sendo comissário geral no Alentejo); capitães, Conrad Piper, Jacob de Cleer, Jacob van Wagen, Alexandre Bery, Mauricius Lamair, Henrique Schilt, Gaspar van Berg.

Regimento de dragões (só parcialmente constituído no terreno): Comandante, tenente-coronel Estacius Pick; capitães, Frederik van Plettemburg, Frederik Streecht, Joan Doecy, Pedro Behan, Sigismundus Finkeltous, Roomfort, Joan de La Roche. Alguns destes oficiais passaram a servir na cavalaria, outros receberam passaportes para regressarem à Holanda em meados de 1642, mas alguns deles demoraram-se em Portugal, sem prestar qualquer serviço, pelo menos até finais de 1643.

Imagem: Combate de cavalaria. Pintura do século XVII (autor não identificado).

Postos do exército português (14) – o tenente-general da cavalaria

Para tenentes-generais da cavalaria se hão-de nomear dos comissários gerais da cavalaria de melhor aprovação, e também se poderão eleger de capitães de couraças, cuja qualidade, serviços e partes obriguem a serem escolhidos [ou seja, os distingam para a promoção] para exercitarem o dito posto; são os que ajudam e hão-de dar todas as ordens que o comissário geral da cavalaria e mais oficias houverem de receber (…).

Era esta a disposição do título 15 do projecto de Ordenanças Militares de 1643. O comentário de Joane Mendes de Vasconcelos acrescentava que também deviam os tenentes-generais da cavalaria provir da infantaria, promovendo-se mestres de campo àquele posto. Seria conveniente, acrescentava, porque muitas vezes iam os tenentes-generais em operações com forças mistas de cavalaria e infantaria, e era necessário que saibam de uma e outra cousa, para mandar com acerto.

Este posto tinha a particularidade de poder ser também um cargo. Isto é, podia ser desempenhado por um oficial com outra patente, como coronel (estrangeiro) ou comissário geral. No entanto, não foram muito frequentes estes casos. Em cada exército provincial começou por haver um tenente-general da cavalaria – mas não antes de 1643, nem sequer no Alentejo, cujo exército era o maior de todos. Com o decorrer do conflito, o aumento dos efectivos da cavalaria impôs o consequente aumento do número de oficiais com aquela patente. Idealmente, o topo da estrutura hierárquica na cavalaria devia compreender um general, dois tenentes-generais e quatro comissários gerais, embora em certos casos um tenente-general pudesse bastar para assegurar o comando da cavalaria de um exército provincial pouco numeroso, podendo ser então designado como governador da cavalaria.

Nos primeiros anos da Guerra da Restauração, alguns oficiais estrangeiros obtiveram a patente de tenente-general. Na Beira, o francês Jacques Talonneau de La Popelinière morreria em combate em Março de 1644, já com aquele posto (chegara a Portugal havia dois anos e meio com a patente de capitão de cavalos). O holandês Jan Willem van Til foi tenente-general no Alentejo em 1645, embora sem grande destaque. Já o francês Achim Avaux de Tamericurt foi um do mais brilhantes naquele posto, que desempenhou no Alentejo e na Beira. Também se destacou, no Alentejo, o italiano (de Roma) João Vannicelli. Entre os portugueses, merecem destaque grandes comandantes da cavalaria como D. João de Mascarenhas (mais tarde, Conde de Sabugal), Dinis de Melo de Castro, D. João da Silva, entre vários que ocuparam aquele posto.

Bibliografia: AIRES, Cristóvão, Historia Organica e Politica do Exercito Português – Provas, vol. IV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1908, pg. 61.

Imagem: Capa da edição impressa de 1707 da obra Maneio da Cavallaria escrito pello Conde Galeaço Gualdo Priorato Com annotaçoens de Dom João Mascarenhas Conde do Sabugal do Conselho de Guerra d’ElRei Dom Affonço 6º. D. João de Mascarenhas foi tenente-general e general da cavalaria do Alentejo na segunda metade da década de 1640.