Conferências Internacionais de Elvas 2019

Decorreram no passado dia 28 de Junho as 4.as Conferências Internacionais de Elvas 2019, organizadas pela AiaR – Associação de Desenvolvimento pela Cultura, com o apoio da Câmara Municipal de Elvas. Respondendo ao honroso convite da organização, foi com imenso gosto que apresentei uma comunicação, como as demais subordinada ao  tema “Alentejo Restaurado”.

Foi uma oportunidade para rever estimados amigos e colegas, a quem aproveito para, de novo, saudar: Coronel Engenheiro José Paulo Berger, Dr. Carlos Sánchez Rubio, Dr. Edwin Paar e Tenente-Coronel Abílio Lousada; sem esquecer o estimado amigo Dr. Julián García Blanco, que esteve presente como espectador nas Conferências e me deu a conhecer o seu trabalho mais recente: “Nación y Fidelidad en la Raya: el caso de João Dias de Matos” – um excelente artigo que vem contribuir para o aprofundamento do tema das identidades durante a Guerra da Restauração.

Um agradecimento aos restantes conferencistas, em particular ao Dr. António David Duarte, autor de Linhas de Elvas – Prova de Força (Tribuna, 2003), que tive o prazer de conhecer pessoalmente e que no dia 29 nos guiou numa explicação “no terreno” sobre os principais incidentes da batalha travada a 14 de Janeiro de 1659; e ao Eng. Jacinto César, pela agradável e bem humorada visita guiada (nocturna) ao Forte de Nossa Senhora da Graça. Agradecimentos que estendo à Drª. Patrícia Monteiro. que apresentou uma muitíssimo interessante comunicação sobre a Arte em tempo de guerra – e com muitas e oportunas referências aos processos e momentos da conservação do património; e ao Prof. Dr. Miguel Ángel Melón Jiménez, que nos trouxe um estudo sobre a influência to teatro de guerra do Alentejo nos confrontos entre Espanha e Portugal (1664-1801).

Na tarde do dia 29 de Junho, na Casa da Cultura de Elvas, foi lançado o livro Glórias e Desaires da História Militar de Portugal, obra da autoria do Tenente-Coronel Abílio Lousada. A apresentação foi feita pelo Coronel Joaquim Rodrigues Bucho, Director do Museu Militar de Elvas.

A terminar, endereço saudações e um agradecimento muito especial aos amigos Arq. Carlos Correia Dias e Dr. Nuno Grancho, com a promessa de voltar em breve.

Fotos:

– padrão comemorativo da batalha das Linhas de Elvas, local de reunião para ouvir a explicação dos incidentes levada a cabo pelo Dr. António David Duarte, com a preciosa colaboração do Arq. Carlos Correia Dias.

– momento da apresentação do livro Glórias e Desaires da História Militar de Portugal, com o Cor. Joaquim Bucho, Arq. Carlos Correia Dias e TCor. Abílio Lousada.

 

O combate de Alcaraviça (2 de Novembro de 1645) e o quadro do Marquês de Leganés – 1.ª parte

Um dos primeiros artigos publicados neste blog, no já distante ano de 2008, foi acerca da destruição da ponte de Nossa Senhora da Ajuda, ou ponte de Olivença, pelas forças espanholas comandadas pelo Marquês de Leganés, numa operação decorrida em Setembro de 1645. Mais tarde, a 2 de Novembro desse mesmo ano, uma incursão sob o comando do mesmo Marquês desbaratou um terço da Ordenança de Évora – um verdadeiro desastre para as forças portuguesas – no que ficou conhecido como o combate das Vendas de Alcaraviça (na actual localidade de Orada, próximo de Borba, e não na moderna Alcaraviça). Em 2009, um muito interessante artigo amavelmente enviado pelo Sr. Santos Manoel foi aqui publicado em duas partes, tendo eu feito um breve acrescentoposteriormente. E em 2010, o estimado amigo Julián García Blanco voltou ao assunto, num artigo também aqui publicado.

Recentemente, tive a grata surpresa de ser contactado pelo Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén, descendente do Marquês de Leganés, que tem em sua posse um quadro a óleo mandado pintar por aquele seu distinto antepassado, de forma a perpetuar o combate de 2 de Novembro de 1645, no qual as suas forças obtiveram uma retumbante vitória.

Com a devida autorização do Sr. José Maria Villanova-Rattazi Guillén, aqui publico uma das fotos que gentilmente me enviou. Num próximo artigo, dando continuidade ao que aqui se apresenta, voltaremos ao quadro – uma raridade no que toca à iconografia bélica da Guerra da Restauração –  e aos interessantes pormenores que retrata.

 

 

Há 350 anos… Notas sobre a campanha do Alentejo de 1663 – 26 e 27 de Maio

The-Sacking-of-a-Village-largeNo dia 26 de Maio, na sua tenda de campanha, o Conde de Vila Flor escrevia ao Rei D. Afonso VI:

Por carta de vinte e quatro do corrente é Vossa Majestade servido de me ordenar que com o exército de Vossa Majestade tome tal posto junto do inimigo, que com toda a certeza lhe impidamos [impeçamos] os comboios e a retirada, e oferece-me responder a Vossa Majestade sobre este particular, que assim como Vossa Majestade mo ordena acho que convém, acrescento que também é muito conveniente segurar do mesmo posto Vila Viçosa e Estremoz, e que o sítio seja tal que a inclemência do tempo não ocasione fugirem os soldados, e assim me é preciso para conservar o exército arrimar-me [aproximar-me] às praças, tendo sobre o inimigo de dia e de noite partidas de cavalaria para que de todos os seus movimentos me dêem conta, e juntamente as tenho sobre Olivença, que é a praça de donde lhe hão-de vir os seus comboios (se os mandar vir), para que com aviso de uma ou outra parte eu possa pôr-me diante a impedir-lhe uma ou outra coisa, e assim hoje elegerei com parecer de todos os cabos a parte mais conveniente, assim para estorvar os socorros do inimigo e a sua retirada, como para cobrir as praças e assegurar o melhor possível que os soldados não fujam. E perto do inimigo não será possível fazer a eleição do tal sítio, porque seria deixar as praças expostas a que o inimigo pudesse qualquer dela uma noite, levando co  a metade da sua cavalaria três mil infantes à garupa sem disso ter notícia, e seria dar ocasião a fugirem os soldados com os ter ao terreiro do sol, e poderia o inimigo sitiar-me tirando-me os comboios de mantimentos, sem ser obrigado a pelejar comigo, se o não quisesse fazer, porque, ou eu havia de fazer os comboios com todo o exército, ou eles mos romperiam com a sua muita cavalaria. E assim, Senhor, que o que convém é cobrir as praças e conservar os soldados e estorvar os socorros ao inimigo, e levantando-se de Évora pelejar com ele, e tudo isto se procurará fazer do posto que se eleger, para o que deve Vossa Majestade ser servido mandar logo engrossar este exército, com que se supra a falta de cavalaria e infantaria que se perdeu em Évora, pois é infalível que estorvando ao inimigo os comboios, haja de se pôr em marcha (…).

D. Sancho Manuel justificava a sua prudência na condução do exército (e aparente falta de espírito ofensivo) com a necessidade de obter reforços, em particular de cavalaria, em que o exército de D. Juan de Áustria tinha superioridade. Todavia, a estratégia seguida estava correcta, como em breve se veria.

Em 27 de Maio chegaram a Évora as obediências de Arraiolos, Redondo e Viana do Alentejo. Primeiro que estas localidades, veio a de Montemor-o-Novo, o que não obstou a que tivesse sido saqueada. Conforme narrou D. Jerónimo de Mascarenhas, o clérigo que se manteve fiel a Filipe IV de Espanha, na sua obra De la Guerra de Portugal, Sucessos del año MDCLXIII  (aqui vertido para português a partir da versão manuscrita do Arquivo Histórico Provincial de Badajoz, cuja cópia me foi gentilmente enviada pelo amigo Julián García Blanco, a quem aproveito para agradecer mais uma vez):

Por Montemor, vila considerável, e de território igualmente abundante e ameno, se começou a executar esta resolução, facilitando-a a sua distância de apenas quatro léguas de Évora. Havia assistido no seu castelo, durante o sítio daquela cidade, a companhia da dotação da mesma vila, que ocasionou nos moradores o descuido de enviar a tempo os seus deputados ao senhor Don Juan. Porém, depois de rendida Évora, teve a companhia ordem de passar a juntar-se com o exército português, deixando a sua pátria [no sentido de localidade] ao arbítrio de quem era dono da campanha. Marcharam 1.500 cavalos e algumas mangas de infantaria para dar-lhe a paga da sua necessidade, quando os vizinhos, avisados do seu movimento, despacharam pessoas com poderes e instruções para implorar o perdão. Mas apesar de que se vieram de caminho com o comissário geral Dom Miguel Ramona, comandante daquelas tropas, não puderam evitar a perda do seu gado, que consistia em mais de 4.000 cabeças (…). Aproveitou-se a Provedoria da maior parte do gado, que se passou durante alguns dias a dar ração de carne aos trabalhadores das fortificações (…).

Fontes: ANTT, Conselho de Guerra, 1663, Consultas, maço 23; AHPB,  D. Jerónimo de Mascarenhas, De la Guerra de Portugal, Sucessos del año MDCLXIII.

Imagem: “O saque de uma cidade”, óleo de Philips Wouwerman, in http://www.wouwerman.org

Praças de guerra na fronteira luso-espanhola – Revista “O Pelourinho” nº 16 (2012)

Campo Maior

Do estimado amigo Jesús Corrales, a quem muito agradeço, acabo de receber o exemplar da revista O Pelourinho, Boletín de Realaciones Transfronterizas, (Diputación de Badajoz, nº 16, 2ª época, 2012). Pelo elevado interesse dos diversos artigos, entre os quais se inclui um da autoria de Julián García Blanco acerca do forte de San Cristóbal (conhecido como forte de São Cristóvão entre os portugueses), aqui fica a ligação para a versão PDF da revista.

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Imagem: Planta de Campo Maior, da autoria de Nicolau de Langres (Desenhos e Plantas de todas as praças do Reyno de Portugal pelo Tenente General Nicolao de Langres Francez, que servio na guerra da Acclamação. BNL, cod. 7445)

Em torno das noções de fidelidade e de identidade no contexto da Guerra da Restauração

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No momento em que se aproxima mais um final de ano, começo por agradecer aos amigos Juan Antonio Caro del Corral e Julián García Blanco, que tão generosos têm sido na oferta de preciosa documentação para os meus trabalhos em geral e para a continuidade deste blog em particular. Um grande bem haja a ambos! Agradecimentos que estendo a todos quantos têm colaborado, directa ou indirectamente, para a continuação deste espaço, através de comentários e sugestões.

Uma das últimas ofertas que me chegou por via de Julián García Blanco foi um artigo de Antonio José Rodriguez Hernández, intitulado Nación, Fidelidad y Frontera durante la Guerra de Restauración de Portugal (1640-1668), comunicação apresentada às XII Jornadas de Historia en Llerena (sob o tema geral: “España, Nación y Constitución y otros estudios sobre Extremadura”).

Trata-se de um artigo com muito interesse, debruçando-se sobre as mudanças de campo de portugueses e espanhóis durante a Guerra da Restauração e as suas motivações. Todavia, gostaria de enumerar alguns pontos em relação aos quais não estou em sintonia com as conclusões do autor. Em primeiro lugar, a generalização algo arriscada de que foram em maior número as deserções portuguesas para o campo oposto do que as espanholas. Não contesto esta opinião por qualquer preconceito de índole nacionalista, mas muito simplesmente porque não há dados quantitativos sólidos que permitam tecer uma conclusão tão peremptória como aquela. Seria necessário compilar, de uma maneira minuciosa, e comparar posteriormente toda a documentação referente a episódios de deserção para o campo inimigo. Tarefa que, não sendo impossível de concretizar, não é de maneira nenhuma fácil, tendo em conta a falta de dados quantitativos objectivos acerca deste fenómeno. É diferente ter uma intuição de base empírica, de fundamentar uma conclusão assente em dados concretos.

Em segundo lugar, coloco algumas reservas em relação à terminologia utilizada, nomeadamente quanto  de forma ao conceito de ideologia. Tendo em conta a estrutura mental e conceptual da época, aquilo que hoje em dia podemos considerar como ideologia era praticamente monopolizado, no século XVII, pelas concepções religiosas – com destaque óbvio para a divisão entre as várias crenças monoteístas (cristianismo, islamismo, judaísmo), e de forma mais aguda, no período em causa e na Europa ocidental em particular, no que respeita às diversas maneiras de exprimir a religião cristã, com o confronto aberto desde o século XVI entre o catolicismo e as Igrejas reformistas. Curiosamente, era este um dos aspectos que mais aproximava os campos em confronto (portugueses e espanhóis), em contraposição a alguns dos seus aliados, nomeadamente os holandeses e ingleses (e alguns franceses) que vieram para Portugal ajudar a combater os exércitos de Filipe IV.

Por fim, há que ter em conta que não era só a nação de origem – para utilizar um termo em uso na época – ou a religião que contavam como elementos polarizadores da noção identitária. O sentimento de fidelização a um soberano e os interesses pessoais e particulares (que, embora de forma muito diferente, tinham expressão em todas as categorias sociais) eram muito importantes. Será aí que devemos procurar, em primeiro lugar, a explicação para a manutenção de fidelidades de portugueses ao soberano espanhol e vice-versa, por ocasião do rompimento da monarquia dual. A guerra que se seguiu quebrou equilíbrios e vivências de décadas, particularmente sentidas nas fronteiras agora de novo demarcadas e em ebulição. E se em alguns casos se manteve a cooperação entre as populações (por vezes, em oposição às próprias forças militares), em muitos outros se verificou uma verdadeira guerra de vendetta e de rivalidades locais.

Estes breves reparos não pretendem beliscar o estudo meritório de Rodriguez Hernández, mas tão somente contribuir com alguns pontos de vista diferentes para a problemática. Curiosamente, entre os nomes que o autor refere, de espanhóis que permaneceram fiéis à Coroa Portuguesa após a Aclamação, falta um bem importante: o do sargento-mor Antonio Gallo, que serviu no exército do Alentejo entre 1641 e 1644 e que, já avançado em anos e doente, em 1645 se aposentou, fixando residência na ilha Terceira. Foi autor do tratado militar Regimiento Militar, que trata de como los soldados se hande governar, obedecer, y guardar las ordenes, y como los oficiales los han de governar (Lisboa, Paulo Craesbeeck, 1644). Também Domingos da Ponte, o Galego, que viajou para Portugal com D. Francisco Manuel de Melo (o prolífico literato – não confundir com o homónimo que comandou as forças espanholas na batalha de Rocroi) e muitos ex-combatentes portugueses do exército da Flandres, foi outro oficial que ganhou notoriedade ao serviço de Portugal. De resto, as mudanças de campo eram muitas vezes motivadas por questões pessoais, sobretudo crimes cometidos num dos reinos e em relação aos quais o indivíduo procurava escapar à justiça régia. O mestre de campo napolitano D. Pedro Opecinga trocou o exército espanhol pelo português por via de um caso desses, tal como o fez outro mestre de campo, D. Sanchez del Pozo (referido no artigo de Rodriguez Hernández). Entre os oficiais de menor categoria – tanto no que respeita à patente como ao estrato social – e sobretudo entre os soldados, as necessidades que padeciam na zona de guerra eram muitas vezes determinantes para a deserção em direcção ao território do inimigo. Todavia, como procurei demonstrar em O Combatente da Guerra da Restauração, este fluxo era o menos importante de todos os destinos da deserção, que se dirigia, principalmente, para as terras de origem dos militares foragidos.

Dois casos referidos no estudo merecem uma menção particular. O capitão de cavalos português ao serviço do exército espanhol João Dias de Matos, desertor em 1657 e responsável pela conquista de Olivença nesse ano, não seria propriamente um exemplo de fidelidade a uma causa. É mencionado em várias fontes portuguesas, entre as quais o Memorial de Mateus Rodrigues. Enquanto furriel de cavalaria, foi um dos espiões infiltrados em Badajoz, aquando da fracassada tentativa portuguesa de tomar aquela importante praça de armas pela traição em 1652. Foi tenente da companhia de D. Luís de Meneses e a deserção em 1657 terá sido motivada pelo descontentamento com a sua situação e pela ambição em alcançar mais altos voos. Tratava-se de um aventureiro, como outros havia em ambos os exércitos. Acabou mal, tendo sido capturado por militares portugueses em 1660 e enforcado.

O outro caso, porventura mais interessante, é o do capitão de cavalos Manuel Vaz. Rodriguez Hernández refere-o como Manuel Báez e cita-o como exemplo de um dos casos em que uma companhia inteira teria desertado. Passo a transcrever uma parte do artigo, pois complementa o que a documentação portuguesa refere acerca deste oficial:

En 1660 toda una compañia de caballería portuguesa se pasó al bando español. Para conseguirlo el capitán de lamisma, Manuel Baéz, inventó una argucia para evitar los recelos de sus superiores. Con la escusa de disponer una fiesta con su familia en una ermita cercana a Campo Maior, el capitán llevó a su compañia como convoy sin ser advertido, pasándose a los españoles con su familia y parientes, pero también con la mayor parte de sus soldados. Éstos no conocían el designio de su capitán, por lo que algunos se resistieron, trabándose una pequeña escaramuza con las tropas estremeñas que salieron a recibirlos. En total cerca de 40 personas cambiaron de bando, estando entre ellos la mujer del capitán, su cuñado, varios primos del capitán y otros familiares y adeptos. En Portugal Manuel Báez dejaba 6.000 ducados de hacienda, por lo que fue recompensado con nuevos puestos en el ejército y diferentes ayudas de costa, algo que se extendió a sus parientes. (pg. 72)

Manuel Vaz era um oficial muito capaz e de boa reputação, destacando-se pelo menos desde os inícios da década de 50 como valente militar, quando servia como tenente de cavalos na companhia do capitão João da Silva de Sousa. A ele se refere com admiração Mateus Rodrigues, nas suas memórias. Já como capitão, continua a receber elogios, como se vê numa carta de Joane Mendes de Vasconcelos de 18 de Setembro de 1657, a propósito de uma escaramuça nos arredores de Campo Maior. O que levaria um oficial veterano com tal folha de serviços a desertar e a deixar para trás tão valioso património? Muito simplesmente: para escapar às garras da Inquisição. Manuel Vaz era cristão-novo e estava na iminência de ser preso pelo Tribunal do Santo Ofício. Daí o acto desesperado de sair em segredo de Campo Maior com 31 familiares, incluindo mulheres e crianças, em 21 cavalos da sua companhia (a carta do Conde de Atouguia para o Conselho de Guerra, de 13 de Fevereiro de 1660, descreve em pormenor o sucedido; cf. Cartas dos Governadores da Província do Alentejo…, publ. por P. M. Laranjo Coelho, Lisboa, 1940, vol. III, pg. 11). A acusação de heresia, no caso vertente por alegadamente seguir a religião judaica em segredo, podia ter consequências terríveis. Que o diga Jácome de Melo Pereira, também ele veterano capitão de cavalos do exército do Alentejo, condenado à fogueira e executado em Évora pela Inquisição em 1666.

Imagem: Combate entre cavalaria e infantaria. Ilustração moderna, representando um confronto do período da Guerra dos 30 Anos.

Escaramuças na província da Beira em Maio de 1646

Continuando a transcrever alguns documentos, cujas cópias o estimado amigo Julián García Blanco me remeteu, cabe agora a vez de uma breve carta narrando escaramuças ocorridas na província da Beira. Os manuscritos pertencem ao espólio da Biblioteca Nacional de Madrid e são cópias coevas das cartas originais, para registo de arquivo, à semelhança das que se podem encontrar nos Livros de Registo da Secretaria de Guerra, em Lisboa.

As escaramuças que são descritas numa carta endereçada a um padre jesuíta de Évora não se encontram mencionadas na História de Portugal Restaurado do Conde de Ericeira. Episódios menores, em comparação às operações de maior envergadura que nesse ano ocorreram na província, são todavia de interesse para o conhecimento da vivência da guerra e seus efeitos sobre as populações da fronteira.

Carta de Francisco Leonardo a um religioso da Companhia do Colégio de Évora, em que dá novas de um sucesso que o nossos tiveram na Beira contra os castelhanos em 15 de maio de 1646

Novas da Beira têm sucedido agora muito boas. Em Alfaiates tivemos um bom sucesso, pelejou uma tropa de cavalos nossa de 40 soldados, com duas companhias de infantaria, com 150 cavalos cavalos sarcenhos [ou seja, de Zarza la Mayor] e foram derrotados, deixando no campo mortos 21 e muitos cavalos, e dezassete vivos, e a presa que levavam restituída ao lugar de Souto e Quadrazais. Se o Tejo se pudera vadear tivéramos a maior presa do mundo todo; a qual mandava o Conde [de Serém] fazer pelo tenente-general da artilharia, que passou o rio com 40 cavalos, e o resto deles ficou por se perder a barca, com que a infantaria não teve em que passar também da outra parte. E como se mal logrou esta ocasião, vendo o tenente-general da artilharia que não tinha caminho para Portugal senão marchando por Castela, o fez bizarramente com os 40 cavalos, e chegou a Carvajo de Santiago [Santiago de Carbajo], e a Membrio, e a outros lugares, e recolheu tudo o que neles achou até entrar aqui por Montalvão a salvamento, sem perda mais que de dois homens que se afogaram ao passar do rio. O forte de Zebra, que o Conde mandou fazer, está feito uma Rochella [comparação exagerada, feita pelo autor, com as defesas de La Rochelle, em França], dali se faz grandes estorvos aos danos que o inimigo fazia em algum tempo. O Bispo de Ciudad Rodrigo comete tréguas no que toca a roubos, e que se faça a guerra por termos militares; avisou-se disto a Sua Majestade, para o mandar resolver.

Francisco Leonardo

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Relações manuscriptas de Portugal, desdo anno de 1643 athe 1646″, fls. 70-70 v.

Imagem: Soldados de infantaria do século XVII. Museu Militar de Estocolmo. Foto de JPF.

A tentativa de tomada de Badajoz pelo 2º Conde de Castelo Melhor, segundo uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama (1645) – 2ª parte

Conclui-se aqui a transcrição da carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama:

Eu levava à minha conta pôr o petardo principal,e o efeito dele devia ser sinal para se investir pelas outras partes. E com estes fundamentos, que pareceram bastantes para se intentar a facção, deu o Conde de Castelo Melhor conta a Sua Majestade e lhe perguntou se queria que se obrasse. Sua Majestade respondeu que sim, escrevendo uma carta ao Conde e pondo quatro regras de sua mão. Dizia que tomando-se a cidade, ele partia logo de Lisboa com todo o socorro possível, e que da Beira, Trás-os-Montes, Entre-Douro-e-Minho e Algarve mandava vir gente paga, para que de tudo se formasse um exército capaz de defender Badajoz e fortificá-lo, e que por todo o Reino mandava fazer orações para o bom sucesso da jornada. Com a resolução de Sua Majestade se preveniu tudo para o último de Julho marcharmos, e ao amanhecer dar em Badajoz. Mandou-se ordem à gente de Olivença e à de Campo Maior, para que se ajuntasse em Telena, que [é] légua e meia desta praça e duas de Badajoz pelo caminho por onde íamos. Começámos a marchar desta praça para Telena e três peças de artilharia que levávamos, e outras carroças com ferramentas e as escadas, quebraram tantas vezes, que com as consertarem e passagem do rio, chegámos a Telena uma hora antemanhã [isto é, antes do amanhecer], e não poderíamos chegar a Badajoz senão com duas ou três de dia, e como a ordem de Sua Majestade era chegando de dia não acometêssemos a praça, nos retirámos cada um para a praça donde tinha saído. E Dom Rodrigo de Castro foi com a cavalaria a correr o campo de Xerez de los Caballeros, donde trouxe novecentas vacas.

Este é pontualmente o sucesso da jornada de Badajoz. os motivos com que se intentou e os defeitos por que se não executou. Os castelhanos não tiveram notícia nenhuma de nossa jornada, nem souberam que havíamos marchado senão a dois de Agosto, que acaso vieram a Telena e viram a trilha da gente que ali havia estado.Todos os que têm vindo de Badajoz depois disto, assim castelhanos como portugueses, dizem que tomávamos a praça sem dúvida nenhuma, e isto mesmo disse Jorge de Melo e Dom Diogo de Meneses e o Conde de Santa Cruz. Queira Deus termos guardado esta empresa para melhor ocasião. Os castelhanos depois disto têm crescido a infantaria, e têm seis mil homens e dois mil e quinhentos cavalos, e a nossa cavalaria consta só de mil e cento, com que nos levam uma grande vantagem.

Haverá sete dias que o capitão de cavalos Francisco Barreto, filho natural de Francisco Barreto, único filho do morgado de Quarteira, que estava alojado com a sua companhia em Arronches, fez uma emboscada a uma companhia de infantaria que de Albuquerque vem todos os meses mudar o presídio da Codiceira, e deu nela de repente e matou trinta castelhanos e trouxe dezanove prisioneiros com as armas de todos, e as cavalgaduras em que traziam a bagagem. Eles se quiseram vingar e nos vieram aqui armar uma emboscada da outra parte de Guadiana, ainda na sua terra, e mandaram vinte cavalos que viessem tomar o gado. A nossa companhia de cavalos que estava de guarda no campo mandou alguns atrás deles, os quais, contra a ordem que levavam, passaram o rio. O inimigo, em nos vendo da outra parte, carregou sobre eles, e como levavam os cavalos cansados de correr tanto, não se puderam livrar todos, e ficaram prisioneiros doze e o tenente de  Dom Vasco Coutinho. Ficaram mortos dois. E quando fomos saindo desta cidade, se foi o inimigo retirando logo.

De Olivença saíram oito soldados de cavalo a tomar língua, e encontrando-se com trinta soldados que iam para Badajoz de uma leva, os prenderam e trouxeram todos a Olivença.

Isto é o que por cá há estes dias, e do mais que houver avisarei a Vossa Mercê. A Relação da Índia folgarei muito de ver, ainda que é grande o mal que ali nos têm feito os holandeses.

Ao senhor Chantre beijo as mãos e a Vossa Majestade Deus guarde como desejo. Elvas, 12 de Setembro de 1645. João de Saldanha

A propósito de Francisco Barreto de Meneses, que João de Saldanha refere na parte final da sua carta, assinale-se o estudo de José Gerardo Barbosa Pereira, A Restauração de Portugal e do Brasil. A Figura de Francisco Barreto (ou Francisco Barreto de Menezes), texto policopiado, dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2001. Francisco Barreto partiria para o Brasil em 1647 e aí viria a comandar o exército que derrotou os holandeses nas duas batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), o que lhe valeu o epíteto de “Restaurador de Pernambuco”. Em Portugal, a sua participação na Guerra da Restauração decorreu no Alentejo e na Beira, como capitão de infantaria do terço do mestre de campo David Caley, tendo demonstrado valor para ser promovido a capitão de cavalaria em 13 de Abril de 1644 e posteriormente a mestre de campo. Distinguiu-se especialmente no ataque à praça de Valença de Alcântara onde recebeu vários ferimentos em combate.

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Interpreza intentada contra Badajoz a 31 de Julho”, fls. 36-37 v.

Imagem:”Cerco de uma cidade”, óleo de Peter Snayers.

A tentativa de tomada de Badajoz pelo 2º Conde de Castelo Melhor, segundo uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama (1645) – 1ª parte

A fracassada tentativa de João de Vasconcelos e Sousa, 2º Conde de Castelo Melhor e governador das armas do Alentejo, de tomar Badajoz em 1645, é um episódio bem conhecido da Guerra da Restauração. Além da narrativa do Conde de Ericeira na História de Portugal Restaurado, outros documentos impressos, nomeadamente as Cartas dos Governadores da Província do Alentejo… publicadas em 1940 por P. M. Laranjo Coelho, se referem a esse empreendimento bélico frustrado (ou sabotado pelos inimigos internos do Conde) ainda na fase de aproximação ao objectivo – mais por malícia, que por descuido, segundo escreveu o Conde de Ericeira. Também o soldado Mateus Rodrigues se refere, nas suas memórias, à incompleta campanha do desafortunado Conde, na qual participou.

Uma outra descrição da operação manteve-se até agora inédita. Trata-se de uma carta do mestre de campo João de Saldanha da Gama, comandante de um terço de infantaria, escrita ao chantre da Sé de Évora, Manuel Severim de Faria – não é referido o nome do destinatário na carta, mas o contexto dos restantes manuscritos permite identificá-lo, com razoável certeza. Uma cópia (treslado, na designação comum do período) da carta encontra-se na Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, que em boa hora o prezado amigo Julián García Blanco me fez chegar às mãos. É essa carta que aqui se apresenta, modernizada na grafia, e que por ser algo extensa ocupará dois artigos.

Beijo a mão a Vossa Mercê pela mercê que me faz nesta sua carta, pois além do interesse que tenho de boas novas suas, me mostra o caminho de as procurar, o que farei sempre como tão interessado nelas, e com a certeza deste portador não se perderão as cartas, como devia suceder à que escrevi a Vossa Mercê sobre Badajoz, pois não chegou às suas mãos, e assim torno a referir a Vossa Mercê os motivos que houve para se intentar a jornada. Badajoz é uma praça de grande circuito, tinha quatrocentos soldados pagos e os moradores da cidade faziam as guardas das portas e as sentinelas da muralha, os quais ordinariamente as não fazem com o cuidado necessário. Havia mais quatrocentos cavalos. O Marquês de Leganés estava doente. As portas da cidade eram direitas, e só com uma porta singela e sem rastilho, todas eram nove, quatro grandes e cinco pequenas que caíam para a parte do rio. A muralha toda sem flancos e pela parte por onde havíamos de cometer muito baixo. Dentro nela grande quantidade de moradores portugueses, e muitas mulheres e gente inútil. Todas estas coisas, e o desunido e segurança com que estava o inimigo ajudavam a se poder conseguir a entrepresa. As notícias de tudo isto se souberam por diferentes pessoas, línguas que se tomaram, prisioneiros que vieram, um português que ali vivia há muitos anos, que se passou para nós e um capitão castelhano, que por uma morte que lá fez se veio também a esta praça. E para maior segurança de tudo, foi daqui um sargento nosso feito almocreve a reconhecer tudo muito bem, e também um criado meu entrou lá do mesmo modo, e reconheceu as portas e o corpo da guarda, e fez as plantas de tudo. Também um engenheiro francês que ficou prisioneiro na batalha de Montijo, esteve prisioneiro sete meses sem saberem que era engenheiro, nos deu notícia de tudo. Nós tínhamos seis mil homens nestas três praças de Elvas, Olivença e Campo Maior, e mil cavalos que se podiam ajuntar com grande segredo, como se fez. Havíamos de cometer por três partes, com o grosso da gente por duas partes com os petardos, e pela muralha baixa com as esquadras; e pelas outras cinco partes da muralha se haviam de tocar armas mui rijas, para que não soubessem os de dentro por que parte lhe haviam de entrar. E como eram tão poucos, não podiam guarnecer as muralhas, ainda estando todos prevenidos, e quanto mais tomando-os nós nas camas sem sermos sentidos.

(continua)

Fonte: Biblioteca Nacional de Madrid, mss. 8187, “Interpreza intentada contra Badajoz a 31 de Julho”, fls. 36-37 v.

Imagem: Porta de Palmas, em Badajoz. Foi provavelmente por esta porta que passaram os espiões disfarçados de almocreves, a fazer o reconhecimento para a intentada operação de tomada da cidade. Fotografia retirada do blog Puertas de Badajoz, de Julián García Blanco.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645, última parte) – Carta de D. Gregório Ortis de Ibarra ao Marquês de Molinguen

Com a publicação desta carta, a partir de uma cópia do original em castelhano, termina a série dedicada a este evento menor, quase insignificante, da Guerra da Restauração (não foi insignificante de todo, porque se perderam vidas humanas e mais uma vez a população da raia se viu a braços com as incursões de pilhagem que sobressaltavam o seu quotidiano). A carta é, de facto, um relatório da entrada no termo de Monsaraz, e permite contrapor a versão espanhola às diversas narrativas que sobre o mesmo acontecimento se produziram do lado português. Foi escrita pelo tenente-general D. Gregório de Ibarra, comandante da força espanhola que fez a incursão, e era destinada ao general da cavalaria , o Marquês de Molinguen. As palavras em castelhano são por vezes escritas com grafia portuguesa (por exemplo, companhias em vez de compañias, troços em vez de trozos, etc – de um modo geral, é empregue o ç em vez do z), o que pode tratar-se de um erro de quem copiou a carta original. O castelhano original seiscentista foi respeitado.

Doi parte a V. Excelencia de las aventuras destas companhias, que no ha sido poco, el que todas no quedasen en Portugal, por las buenas noticias que me dio Ramos, que asi sea su salvo. Lo que succedio es que, conforme la orden de Vuestra Excelencia, y lo que tenia dispuesto con dicho Ramos era que las seis compañias se dividiesen en tres troços, el uno en la Luz, el otro en el esguaço, y el otro que passasse Guadiana; para que inquietando Monçaras, saldria a algunos de estos puestos la compañia de Moron [Mourão]. A lo qual digo, Señor, que el enemigo se emparejava y a que no fuesse mas a qualquiera destos troços; y que quedava a la fortuna el buen, o mal successo. Y assi tomamos la marcha el dia que di aviso a V. Excelencia, y el siguiente estuvimos emboscados de donde embié a tomar lengua y truxeron tres, y todos convinieron en que la compañia de Moron  no havia mas que una esquadra, porque todos los demas cavallos estavan mlos de lamparones, y que se havian llevado a curar. Y el capitán havia ido a Helves [Elvas], porque se dizia iva a ser comissario general. Y viendo esto, todos los capitanes y yo acordamos, ya que estavamos en aquel paraje, si se podia intentar el hazerle algun daño al enemigo, y Ramos y todos sus confidentes dixeron que si, y mui facil, porque en dos aldeas que estan mas adentro dos leguas de Monçaraz se podia traher dos mil bueyes y vacas, y preguntandoles si a los esguaços de Guadiana nos podia el enemigo impedir, dixeron que no, por dos causas; la una, porque el enemigo no tenia fuerça para ello, y que nunca acostumbrava ocupar estos puestos, y que quando quisiesse, no se hallava con furça para ello, ademas que quando los ocupasse, que Guadiana se esguaçava por todas partes. Y asi resolvimos el hazer esta entrada, y todos convenimos en que no quedasse ninguna compañia en el esguaço, porque quedaba perdida como lo seran, aunque quedassen mil cavallos  por el mas terreno, y que un infante bale en aquel paraje por vinte. Enfin, Señor, ganamos a estas aldeas, de donde se cogio cosa de seis cientos bueyes y vacas, dos mil cabras, y algunos puercos, y de saqueo una aldea y caserias, y tomando nuestra marcha la vuelta del esguaço, le hallamos ocupadocon gruesso de cavallaria y infanteria y nos fue fuerça el buscar otro, y estaua ocupdo en la misma conformidad; con que fuimos al tercero y fue todo uno; y diziendo a las guias que como me havian dicho, que Guadiana se esguaçava, y no me enseñavan por donde, se encogieron de hombros medio turbados. Esto ès lo que sabe hazer el buen Ramos, y viendo qu eramos cortados y perdidos, embie a Don Juan Unsueta y Don Christoval de Bustamante y mi compañia pera que, perdiendo o ganando, pasassen el esguaçoy que le limpiassen del enemigo, para que yo, en el interin, diesse calor a que pudiesse passar tambien el ganado, y como para obrar esto havia de passar tiempo, el enemigo se engrossava, yo le hize mas de tres horas peleando con el; y como eramos cortados por vanguardia y retaguardia, y el passaje tan aspero, torne a ordenar a Don Juan Unsueta cerrasse dentro de su misma fortificacion con el enemigo, lo qual puso por execucion, y obligo al rebelde a meterse entre unos peñascos. Y viendome yo impossibilitado el poder retirar la presa e salvar la cavallaria, lo hize con toda presteza dexandola, y unos al esguaço, y otros a nado, escapamos con gran ventura, porque el enemigo havia encorporado todo su gruesso. Nuestra perdida han sido diesyseis cavallos muertos de mosquetaços, y quatro soldados muertos y algunos heridos. Lo que puedo asegurar es que creo emos salido bien desquitos. Lo que se pudo salvar fue hasta diesyseis o diesysiete presas maiores y menores, entre las quales ha havido uma excellente potranea y una mula, las quales estos señores capitanes se las embian a V. Excelencia, y la restra entre estos malos guias y dichos capitanes se han consumido. Mi retirada  fue por Moron, y vine a parar a Oliva, oy, sabado, treinta del corriente, y para los cuarteles partiremos mañana, adonde V. Excelencia me podra dar el parabien de tan venturosa retirada. Dios guarde a V. Excelencia muchos años y le suplico otra vez no se fie de gente ruina. Oliva, treinta de septiembre de 645. De V. Excelencia, Don Gregorio Ortis de Ibarra. (Dos cavallos de los mios fenecieron de dos mosquetaços, con que quede acomodado. Sobrescrito – Al Excelentissimo Señor Marqués de Molinguen, guarde Dios, capitan general de la cavallaria del exercito, &tc. Badajoz.

Como se pode verificar, os números apontados na carta do tenente-general Ibarra diferem bastante dos que circulavam entre as notícias portuguesas. Por outro lado, verifica-se a habitual auto-desculpabilização dos comandantes, quando as operações militares não corriam conforme o previsto – traço comum em ambos os exércitos.

Fonte: Copia de huã carta de D. Gregorio Ortis de Ibarra cabo da gente que entrou no termo de Monçaras, para o General da Caualaria Castelhana (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 43-44)

Imagem: “Cena de pilhagem”, pintura de Sebastian Vrancx, do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648). Museu do Louvre, Paris.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – Carta de Mourão com novas desta entrada

A 29 de Setembro de 645, dia de S. Miguel amanhecente entraram 300 castelhanos de cavalo no termo de Monsaraz, aonde vinha a companhia do Lara e Bustamante e Don Alonso de Cabrera por cabo, que são os da fama. Chegaram até à Caridade, vieram recolhendo todo o gado que acharam até Vale de Xeres e Dona Amada. Quiseram vir passar ao porto da Vila Velha, acharam, dizem, seriam sessenta homens do termo de Monsaraz, não se atreveram a passar, foram ribeira acima, estavam ao porto de S. Gens outra pouca de gente, houveram-se tão bem, que os castelhanos houveram por bem largar a presa toda com perda de alguns mortos, e cuido disseram haviam achado, e lhe tomaram cinco cavalos vivos, afora outros que pelo campo se acharam mortos. Vieram-nos dando vista pelo caminho velho, direito ao Penedo da Corva, vieram sair à fonte de Pedro Mateus. Começou-se a jogar com a artilharia, de modo que logo se tomou um cavalo passado pelo pescoço com um pelouro de uma peça, e ainda está vivo, de modo que lhe fugiu um cativo dos que levaram de Valência, e vindo pelo caminho por donde foram, achou à cabeça de João de Vilheiro cinco homens mortos, e disse que levavam alguns com pernas e braços quebrados, e outros feridos, que de noite se queixavam muito; e dizem que todos aqueles haviam morto [morrido] com a artilharia. Parece que Nosso Senhor nos quer ajudar, e bem os castigou nesta jornada, em verdade que bem se pode restituir aos de Monsaraz o crédito, que tão perdido o tinham. Também temos novas que tem o castelhano muita gente junta. Acuda-se a tudo, etc.

Mourão, o derradeiro de Setembro de 645.

António Cordeiro de Sande

Fonte: Carta de Mourão que dá novas desta entrada (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 42 v-43)

Imagem: “Cena de Pilhagem”, gravura de Jacques Callot, do período da Guerra dos 30 Anos (1618-1648).

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – O rebate em Évora

Conforme tinha sido referido na primeira parte desta série, um dos documentos inéditos acerca desta operação reporta-se ao sucedido em Évora, quando aí chegaram as notícias da entrada da força espanhola no termo de Monsaraz. É esse documento que a seguir se transcreve:

Sexta-feira, 29 de Setembro de 645, dia de S. Miguel, pouco depois do meio dia, chegou recado ao capitão-mor Luís de Miranda de João de Mira, lavrador, capitão do campo da freguesia de S. Vicente, que aquela manhã vinha entrando grande poder de gente castelhana, tanto avante que entendeu que marchava para esta cidade. Mandou logo o capitão-mor chamar o sargento-mor, que viesse correndo a casa do chantre para que mandasse picar o relógio a rebate e fizesse fechar todas as portas da cidade, tirando a de Alconchel, e tocarem caixa todas as companhias; fosse tudo com muita diligência, cerrando-se as portas das estacadas, que algumas estavam no chão. Acudiram a casa do capitão-mor todos os oficiais, e o capitão Luís da Silva Vasconcelos ia correndo pela cidade a cavalo dizendo “Arma, senhores, arma”, o que causou grande perturbação nas mulheres, levantando a esta voz seus choros e gritos. Levou-se o recado ao Cabido, porquanto o senhor chantre estava de cama sangrando daquela manhã, presidindo o tesoureiro-mor Dom Veríssimo, e se mandou logo a todos os clérigos da cidade que tomassem armas, e mandaram recado a todos os conventos de religiosos para que estivessem prestes. O primeiro de todos que se foi oferecer ao capitão-mor foi Dom Rodrigo de Melo, arcediago e cónego da sé, com 24 criados armados; o mesmo fez Dom Teotónio Manuel e Dom Veríssimo, a que se seguiu uma numerosa companhia de clérigos, que levavam por capitão o mestre-escola Duarte de Vasconcelos com um arcabuz às costas, e os mais todos armados com mosquetes e espingardas. O mesmo fizeram todos os fidalgos da terra, como foram Fernão Martins Freire, seu filho Luís Freire, Henrique de Melo de Azambuja, Manuel de Mendo, Martim Ferreira da Câmara, Jorge da Silva Velho, Rui de Brito, Dom João Solis, Vasco de Melo e toda a nobreza da cidade. Foi a gente tanta que se puderam coroar os muros, porém contentou-se o capitão-mor em mandar ocupar a praça com um grande corpo de guarda, e em cada porta da cidade outro, e pelos muros, em cada ponta do lenço, um soldado de vigia.  Com o repique do relógio acudiu muita parte da gente que andava na vindima ao longo da cidade, e trouxeram consigo o gado que tinham. A gente de cavalo se ajuntou também na praça com seu capitão João de Macedo, não chegavam a cento, deles escolheu o capitão-mor uma tropa de vinte e cinco, que com o mesmo João de Macedo mandou que fossem pelo caminho de Montoito, por onde diziam que o inimigo vinha, até achar língua, e que não passasse de Montoito. Estando todas as coisas neste estado, chegou um correio de Elvas, que mandava o Conde general ao capitão-mor, pedindo-lhe cavalgaduras de carga para a bagagem do nosso exército, em caso que o inimigo saísse de Badajoz, donde até então não tinha partido. Veio este correio por Vila Viçosa e pelo Redondo e chegou à cidade às quatro horas, sem em todo o caminho se achar nova, nem rumor algum da entrada dos inimigos, por onde se entendeu que o lavrador João de Mira se enganou em cuidar que marchavam os castelhanos pela terra dentro. A certeza deste discurso se confirmou logo, porque pouco depois chegou recado de João de Mira que os castelhanos, chegando a algumas herdades, tomavam o gado e roubavam as casas e se tornavam. Mandou logo o capitão-mor este recado ao senhor chantre, com o qual se recolheram os eclesiásticos e fidalgos, mas a cidade ainda se ficou guardando pela gente da ordenança. O capitão João de Macedo passou a noite em Montoito, onde se ouviram muitas peças de artilharia e muitos mosquetes. E ao outro dia se soube como saindo alguma gente daquelas freguesias a esperar os inimigos no vau por onde dizem que entraram, lhe deram algumas cargas, com que lhe fizeram deixar todo o gado que levavam, com morte de cinco castelhanos, fugindo os outros todos, muitos deles feridos, deixando alguns cavalos. O padre regedor da Universidade mandou repicar o sino do colégio, e como eram férias e não vindos ainda os estudantes de fora, acudiram somente alguns da cidade, que não chegaram a fazer número de trinta, mas esses armados, e mandando-lhe o reitor dar sua bandeira e tambor, saíram pela cidade até casa do capitão-mor, e tornando ao colégio ficaram toda a noite guardando a trincheira da cerca.

Os castelhanos dizem que eram sete tropas, e segundo isto não podiam chegar a duzentos e cinquenta, ainda que ao outro lhe pareceu que eram quinhentos. O guia desta gente era um negro escravo de um fidalgo de Monsaraz que tinha fugido para Castela, este, como conhecia todos os lavradores daquele território e os portos por donde se podia passar o Guadiana, os devia persuadir a fazerem esta entrada, ou com esta ocasião a tomaram eles, por onde parece isto era gente solta de Xerês e Ensinasola e Aroche. O negro os trouxe pelas herdades dos mais ricos, ou dos menos amigos, mas como pela artilharia de Mourão viram que eram sentidos, procuraram logo voltar, e nas herdades onde achavam resistência passavam por se não deter.

Fonte: Entrada de Castelhanos no campo de Monçaràs e rebate de Évora (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 41 v-42 v)

Imagem: Évora. A Porta de Alconchel na actualidade. Foto de JPF.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – parte 3

Partido o dito capitão pela outra parte da vila sem ser visto nem sentido do inimigo, foi o dito inimigo seguindo seu caminho para o dito porto, e encontrando a gente do Reguengo de sobressalto, todos se espalharam cada um por onde pôde, porém logo se foram ajuntando com seu capitão Domingos Pires Guato, e (…) se lhe ajuntou o capitão Domingos Valada com a sua companhia das Vidigueiras, e ambos juntos vieram pelos alcances do inimigo, até chegarem a avistá-lo junto aos Álvaros Gis, e por aquelas barrocas e partes mais altas e ásperas o vieram seguindo sempre, [a]tirando-se-lhe alguns tiros de mosquetes a seus corredores de retaguarda, com o que os inquietaram muito, e assim lhe vieram seguindo os passos até o Monte do Boi, dando-lhe muito boas cargas. Vendo-se o inimigo enfadado de os nossos o perseguirem tanto, ou por lhe fazer algum dano, se virou com a maior parte de sua gente em tropas fechadas para os romper, ou pôr em fugida, o que começaram a fazer alguns, que fora total perdição de todos se o capitão Valada não metera mão à espada, dando-lhe muitas espadeiradas e algumas feridas, ajudado do capitão Guato e do seu sargento, de sorte que os fizeram ter, e tiveram lugar de ganhar um palanquezinho que ali está, donde se tiveram e esperaram ao inimigo. Dando-lhe muito boas cargas o rebateram, depois de porfiarem um bom espaço por entrarem no palanque, que todo o tinham cercado, e como não lhe faziam bom agasalho, se foram alargando. Neste tempo, com o tiro de uma cravina caiu um cavalo de um que andava diante, devia de ser pessoa de porte, porque como se retirou deixando o cavalo, logo todos largaram a pretensão e se vieram em seguimento do gado que vinha pelo Monte do Caminho. Saindo às duas lameiras e serra do Vale de Xeres se vieram chegando ao rio, porém o gado todo o levaram para baixo, de modo que esteve junto do Álamo, que fica muito distante do porto por onde queriam passar. E chegando com o dito gado ao Monte dos Mouros, dizem que tiveram vista de dois ou três homens de cavalo nossos, e imaginando que havia gente nossa no porto de Portel, vieram com o gado rio acima. O capitão António Pereira, tanto que chegou ao porto de Vila Velha com a gente que levava, passou o rio da outra parte. Escolhendo um bom posto, se puseram encobertos para que se o inimigo [a]cometesse o dito posto, o rebater. E chegando alguns do inimigo ao dito porto, se disparou por descuido um mosquete nosso, com que foram sentidos os nossos, de sorte que o inimigo se começou a retirar. Contudo, aqui se lhe [a]tiraram alguns tiros de mosquete, com que se desviaram mais depressa e fizeram alto na Cabeça Solta. Ali deviam ter aviso, ou viram que o gado ia muito abaixo e marcharam todos para lá, e encontrando-o, que já vinha para cima, se vieram todos em demanda do mesmo porto, e tornaram a fazer alto na Cabeça Solta. Nesta volta que fez o inimigo, tiveram lugar as companhias do termo, que já se lhes haviam juntado a de S. Marcos e a de Montoito, de lhe darem algumas muito boas cargas entre o Vale de Xeres e o Monte da Barca. E investindo aqui os nossos, guiados do capitão Guato e Simão Lopes, com uma boa tropa que o inimigo ali tinha, lhe fizeram largar o posto e fugir para os mais. Já aqui o inimigo vinha perdido, porque a gente do capitão lhe ficava à retaguarda, e por diante achava o porto por onde queria passar impedido, e assim se resolveu a mandar duas valentes tropas, com mita gente, a passar pelo porto de Mourão, que chamam o porto de São Gens, guiados pelo mulato Mateus, natural desta vila, cativo [ou seja, escravo] que foi de Baltasar Limpo. Bem viu o capitão António Pereira vir aquela gente a passar, mandou logo pôr sentinelas, por que os não colhessem descuidados. Passado o inimigo da parte de além do rio, e feita uma das tropas em duas, os acometeu no porto com grande ímpeto e fúria, imaginando fazê-los largar o posto ou rompê-los, e com grande grita[ria] das outras tropas que ficaram desta parte com o gado, que diziam com muito altas vozes, para que as outras tropas que acometiam os ouvissem “cerra Espanha, cerra Espanha”, e isto muitas vezes, querendo também cometer o posto, para que uns de uma parte e outros de outra tomassem os nossos, que os tinham no meio, e os rompessem ou fizessem largar o posto, para eles passarem com o gado livremente. Mas foram as duas tropas tão bem recebidas e com tão boas cargas, que depois de os investirem duas vezes se retiraram com perda, e vindo a outra sua tropa muito à pressa, em socorro, se encontraram junto da igreja de Santiago que está naquele lugar, e não sei eu que novas as duas tropas lhe deram, que todas se retiraram ao largo, e depois voltaram sobre o porto de Mourão, aonde fizeram alto. A outra sua gente que estava desta parte, tanto que viu o sucesso dos seus e ouviram uns poucos tiros que alguns nossos [a]tiraram ao porto de São Gens, logo desentenderam de tudo e largaram todo o gado e fugiram infamemente pelo rio acima, indo sempre ao longo dele por partes por onde se não pode andar a pé, mas que não fará o temor e necessidade.

Neste tempo tinham chegado catorze ou quinze infantes nossos ao dito porto, e como os inimigos iam tão apressados, lhe deram suas cargas, que os meteram em tanta confusão que se apinharam dentro na água. Muitos passaram a nado pela garganta do pego, que se o rio levara alguma água ocasião houve de se perderem muitos. Aqui lhe tomaram muitas cavalgaduras carregadas de roupa e cinco cavalos seus e alguns escravos que levavam cativos, e os prisioneiros, e assim se foram fugindo. E ao passar por Mourão lhe saiu o tenente de Dom João de Ataíde [era o tenente Agostinho Ribeiro] com alguns vinte cavalos que ali ficaram, a escaramuçar com eles dando-lhes cargas e chamando-os para lhe chegar a artilharia, o que se logrou porque lhe [a]tiraram nove peças, que lhe deram no meio das tropas e lhe mataram dois cavalos, mas não se sabe quanta gente, porque não deixaram pessoa alguma. E lhes perderam no nosso termo alguma gente, eu tenho alcançado que são doze pessoas as que se acharam mortas e outras que lhe viram levar em cavalgaduras atravessadas. E de crer é que que, em tanto distrito que se lhe foi [a]tirando, lhe mataram muita gente, porque foram seguidos mais de légua e meia [aproximadamente 7,5 Km], e a tempos se lhes davam muito boas cargas, e é certo que levaram muita gente ferida, e lhe ficaram muitos cavalos mortos. De um prisioneiro que levaram até onde fizeram pouco soubemos, que toda a noite estiveram gemendo muitos que seriam os feridos, e diz este que se achou perto donde estavam falando uns castelhanos, e que dissera um: “mal viaje havemos echo”, e falando outro, parece que encontrando-o [ou seja, contrariando-o], tornara ele: “boto que nos cuesta mas de cien hombres entre muertos y heridos”, no que se não põe dúvida, pelo bom agasalho que se lhe havia feito em todo o dia. E é de notar que não houve da nossa parte nenhuma morte nem ferida, donde eu entendo e creio que foi um grande milagre que Deus Nosso Senhor fez, por intercepção do Glorioso Arcanjo São Miguel e das almas do Purgatório, cujas festas se faziam naquele e no dia seguinte. E para que ficasse todo o louvor à gente desta vila e termo do bom sucesso deste dia, há-de se advertir que mando[u] o capitão-mor desta vila dois ou três recados muito a tempo ao de Mourão; e o mesmo fez o capitão António Pereira depois de estar no rio, que lhe mandasse algum socorro, ou lhe mandasse guarnecer algum porto; não mandou soldado algum [o capitão-mor de Mourão], desculpando-se que tinha pouca gente para poder mandar. E ainda que se pudera dizer que o Limpo, com os companheiros, fizeram grande temeridade em escaramuçarem com o inimigo, não se lhe pode negar o louvor a todos; nem menos ao capitão António Pereira que, com tão pouca gente e mal disciplinada, se opôs a tanta cavalaria e tão luzida, que é de crer vinha muita gente de porte nela. Em resolução todos o fizeram muito bem e cada um melhor. Queira Deus levar muito avante este Reino, e que as armas do nosso Rei sejam sempre vitoriosas dos nossos inimigos.


E assim termina a relação. Uma longa narrativa que empola uma acção insignificante no contexto da guerra, mas de grande importância para uma região que não era então das mais agitadas pelas operações na fronteira e cuja pacatez fora quebrada de forma brusca e súbita. Essa escala de vivência da guerra confere outra dimensão ao drama humano, quase sempre esbatido no grande quadro das operações militares.

De realçar que Mateus Rodrigues não inclui esta incursão nas suas memórias, apesar do documento aqui transcrito se referir à  intervenção da companhia onde o soldado servia na altura, a do comissário geral D. João de Ataíde. Contudo, o memorialista refere, em algumas passagens da sua obra, a região onde se desenrolou este episódio e na qual a sua companhia esteve alojada pelo menos entre 1644-45 e 1648.

Um outro dado aparentemente menor, mas que é de salientar, é a referência, por parte dos soldados espanhóis, ao termo “Espanha” como grito de guerra e factor de identificação. Mais um exemplo a juntar a vários outros que tenho vindo a pesquisar e a encontrar, e que contraria opiniões académicas recentes e bem divulgadas (estou a lembrar-me de alguns trabalhos do Professor António Hespanha e do Dr. Fernando Dores Costa), nas quais se nega a ideia de “Espanha” como factor identitário por parte dos militares de Filipe IV, apontando para a historiografia tradicional portuguesa, nacionalista e romântica, a criação desse pretenso “mito”. Nada como investigar a fundo as fontes primárias para corrigir mitos mais recentes – mas é essa, mesmo, a função do historiador, cujas conclusões nunca são definitivas.

Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

Imagem: Novissima regnorum Portugalliae et Algarbiae descriptio (c. 1680). Biblioteca Nacional, Cartografia, CC1681A.

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – parte 2


Boa parte das terras que no século XVII serviram de palco à incursão que aqui é relatada estão hoje submersas, devido à construção da barragem do Alqueva, como se pode verificar pela imagem retirada do Google Earth que acima se reproduz. Mas retornemos à narrativa, interrompida no momento em que 80 infantes e 17  cavaleiros da ordenança montados em éguas saíram de Monsaraz.

Se foram detrás da serra de Gaspar Dias, aonde estiveram com determinação de esperar o inimigo (se por ali viesse). Depois de um bom espaço de tempo se tornaram todos a subir a serra, porque lhe chegou um corredor nosso novo, que o inimigo vinha marchando pela estrada de Évora para passar entre a serra e as vinhas e que eram muitos, no que se certificaram com a vista e temeram com muita razão, porque vinham cinco ou seis castelhanos para cada infante nosso. E assim se foram retirando pelo cume da serra para pé da atalaia, aonde fizeram alto, e ouviu-se uma voz de um soldado bisonho, e disse “senhores, o poder do inimigo é muito grande, mostremo-nos neste alto espalhados para que pareçamos muitos”, o que se executou com tão bom acerto que foi total perdição do inimigo e remédio nosso. Neste tempo vinha o inimigo passando pelo Monte do Duque com três tropas de vanguarda e seus corredores diante, e contra o Monte do Cazevel e a aldeia dos Moinhos. Fizeram alto as três tropas, aonde estiveram grande espaço de tempo indecisos, porque seus corredores lhe levaram a nova que haviam visto da aldeia (onde haviam estado) muita gente na serra e ao pé da atalaia que era nossa. Na detença que fizeram deviam de mandar aviso às quatro tropas que vinham de retaguarda na acumada do Monte do Duque, donde pareciam os campos cobertos de gado, que era muito. Deviam tomar resolução de virarem com temor da nossa gente, parecendo-lhe que era muita e que seria ali vinda de Olivença, porque perguntavam a um prisioneiro quantas léguas havia daqui àquela praça; e dada a resposta pelo prisioneiro, viraram todo o gado e a cavalaria pela de Mísia Nunes, e pelo Barrocal da Morgada, e Santa Margarida, vindo sair ao Monte do Caminho e ao de Gaspar Pereira, aonde chegaram Baltasar Limpo, Manuel Tenreiro e Fernão Rodrigues e o Garção, e o João Nunes e o Tourillo, e Diogo Mendes dos Abandeiros, soldados de cavalo da ordenança desta vila e termo, que iam em seguimento do inimigo. E no dito Monte de Gaspar Pereira tiveram um[a] gentil escaramuça com uma pouca de gente que ali estava, dando-se muito boas cargas por espaço de muito tempo, e saíram também os castelhanos a dar-lhas, até que largaram o posto e se foram seguindo os mais, e não pararam ainda aqui porque se foram [a]trás [d]eles, e nas matas tiveram outra mais travada. E é certo que os desviaram da adega e horta do Licenciado Marcos Esteves, sendo os castelhanos mais de vinte e os nossos os sobreditos.

Os nossos da serra, vendo o muito poder do inimigo, estavam perplexos, sem saberem o que haviam de fazer na parada que o inimigo fez à vista deles. Disse então um dos mais atentados soldados  dos nossos, que era grande temeridade estarem ali com tão pouca gente, porque se o inimigo se resolvesse a vir por aquela parte e os [a]cometesse, que mal lhe poderiam resistir. Que o acerto era com grande brevidade retirarem-se para a vila, porque ficaria nela muito pouca gente, e que poderiam lá ser necessários. O capitão António Pereira de Oliveira, parecendo-lhe bem o conselho, despachou logo um de cavalo ao capitão-mor, dando-lhe conta do poder que era muito superior ao nosso, que se lhe parecesse retirarem-se para a vila o fariam. Partido este recado, viram que o inimigo virava para baixo, e sem esperarem resposta do capitão-mor se veio a nossa infantaria, com alguns de cavalo, pelo caminho da vila, e dela mandou segundo recado o dito capitão ao capitão-mor, que o inimigo ia virado para passar o rio de Guadiana por baixo desta vila, que lhe desse sua mercê licença para vir ocupar um porto, por onde se entendia havia de passar o inimigo. E logo, sem esperar resposta, se pôs a caminho com grandíssima pressa por chegar ao dito porto primeiro que o inimigo. E o dito capitão-mor lhe mandou recado, que fosse em boa hora.

(continua)

Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

Imagem: Em cima, “Escaramuça de cavalaria”, pintura de Pieter Meulener, com permissão para reprodução para fins não comerciais a partir deste site. Em baixo, a região onde se desenrolou parte da acção aqui narrada, hoje em dia (imagem Google Earth).

Uma incursão no termo de Monsaraz (28 e 29 de Setembro de 1645) – parte 1

O ano de 1645 foi fértil em acontecimentos bélicos na província do Alentejo, desde a frustrada intenção do 2º Conde de Castelo Melhor de tomar Badajoz, passando pelas investidas do exército espanhol sob o comando do Marquês de Leganés, até ao episódio, já diversas vezes tratado neste blog, do desastre de Alcaraviça (aqui, aqui, e aqui). No entanto, um dos pequenos casos de guerra que ocorreram nesse ano passou quase despercebido. Nem o minucioso Conde de Ericeira lhe faz referência na História de Portugal Restaurado (embora não lhe tenha escapado sequer a presença no exército do Alentejo, nesse ano de 1645, do rei das ilhas Maldivas, senhor de grande riqueza e muitos vassalos no Estado da Índia, que tinha vindo a Portugal pedir auxílio a D. João IV para retomar o trono que um seu irmão lhe havia usurpado, e que entretanto decidira servir algum tempo no exército daquela província, com honras de oficial superior).

O episódio de menor envergadura a que me reporto é uma entrada da cavalaria espanhola na zona de Monsaraz, que acabou por colocar em alvoroço a própria população de Évora. Sobre este acontecimento da pequena guerra de fronteira existem quatro referências manuscritas que se completam. Três foram produzidas por portugueses, ao jeito das habituais “Relações” do período. A primeira, da qual se inicia aqui a transcrição, respeita à entrada propriamente dita. A segunda reporta o acontecido em Évora após terem chegado as novas da incursão. E a terceira é a cópia de uma carta remetida de Mourão, acerca da entrada do inimigos nos campos da região. E a quarta é outra cópia, esta em castelhano, de uma carta do tenente-general D. Gregório Ortis de Ibarra para o general da cavalaria Marquês de Molinguen, dando conta do sucedido na operação.

Nada do que aqui se irá apresentar foi alguma vez publicado, tendo eu tomado conhecimento deste episódio esquecido da guerra de fronteira através de um manuscrito existente na Biblioteca Nacional de Madrid, cuja cópia em boa hora me foi enviada pelo estimado amigo Julián García Blanco, a quem muito agradeço.

A transcrição do original manuscrito foi vertida para português corrente.

Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monsaraz

Em 28 deste mês de Setembro, véspera do bem-aventurado Arcanjo S. Miguel, vieram à coutada desta vila seis corredores castelhanos, e nela cativaram três homens nossos e os levaram. Veio logo recado a esta praça, saíram dela doze homens nossos em éguas, que foram em busca sua até muito além de Cheles; e foi Deus servido que errassem a trilha, porque fora sua perdição se lha acharam, porque haviam de segui-la até se meter no poder do inimigo. Os voltadores [sic] castelhanos com os prisioneiros foram ao da Lapa, aonde acharam muita gente de cavalo, mui luzida, com muitas couras guarnecidas de ouro e prata, e bandas de custo, e muito gentis cavalos; e é certo que era a melhor cavalaria escolhida, a que tem o inimigo em Badajoz. Dizem que eram seiscentos cavalos; e há outros que afirmam que era maior número. Com a confissão que fizeram os cativos se puseram logo a caminho para o termo desta vila, de modo que, quando amanheceu, estavam metidos dentro nele. Em S. Pedro do Corval deixaram uma tropa e foram repartindo outras pela terra dentro, e punham-nas em partes altas e descobertas, porque seus corredores fossem saqueando e ajuntando o gado, o que fizeram com grande cuidado, roubando a maior parte das casas do termo; porque o fizeram quase a toda a freguesia de S. Pedro, e na de Caridade lhes ficou muito pouco, e ainda tocaram na das Vidigueiras, e no termo de Évora e Montoito, usando de crueldades em razão dos roubos, porque despiam a toda a mulher que achavam com bom vestido, e pelo conseguinte a homens e meninos. Mataram duas ou três pessoas sem pelejarem e feriram poucas mais. Em três ou quatro montes se fizeram os nossos moradores do termo fortes e ficaram livres. A mesma sorte teve a aldeia do Reguengo de Baixo, porque de umas trincheiras que tem, com poucos defensores que ali se acharam, os detiveram e fizeram retirar. Da mesma maneira se houve o Licenciado Paulo Duarte, que com alguma gente que se lhe ajuntou, se defendeu do inimigo, e fez que não chegasse à igreja e aldeia que ali está. Diferente a tiveram as aldeias do Reguengo de Cima e a do Mato, que as entraram e saquearam, e todos os mais montes que há por aquela banda, donde roubaram muita quantidade de roupa, fato e algum dinheiro, e até na igreja de S. Pedro entraram e despiram as imagens da Virgem Nossa Senhora do Rosário, e Conceição, deixando-as no chão como se foram hereges.

Depois de ajuntarem todo o gado vacum que por ali havia, que era muito muito [sic], e cabras e porcos que também era muita quantidade, se vieram recolhendo para S. Pedro, aonde se ajuntaram todos, e vieram marchando pela estrada que vem de Évora para esta vila.

No dia do glorioso Arcanjo S. Miguel, pela manhã, chegou a esta vila nova [ou seja, notícia] onde estava o inimigo, mas muito diferente na quantidade do que era, porque diziam que seriam 150 homens de cavalo. Ordenou logo o capitão-mor Luís Álvares Baines que lhe saísse desta vila gente; para o que se ofereceu logo o capitão António Pereira de Oliveira, que foi com a que havia, acompanhado dos alferes Gaspar Grisante, Rafael Segurado e Miguel Gomes de Sampaio, com o sargento da companhia do dito capitão, Francisco Mendes Couto, e os sargentos Simão Lopes e Diogo Mendes. E assim se foram [a] caminho da serra da Atalaia. Seriam pouco mais de oitenta infantes, com dezassete homens de éguas que aqui estavam.

(continua)

Fonte: Relação da entrada dos Castelhanos no termo de Monçaras (Biblioteca Nacional de Madrid, ms. 8187, fls. 45 v-49)

Imagem: Sebastian Vrancx, cena de pilhagem (detalhe de uma pintura do período da Guerra dos 30 Anos).

A”Passagem de Alcaraviça” – mais um contributo sobre este episódio da Guerra da Restauração, por Julián García Blanco

Há cerca de ano e meio, o Sr. Santos Manoel publicou aqui uma interessante narrativa sobre o combate das Vendas de Alcaraviça em 1645, em duas partes. Posteriormente, acrescentei uma pequena adenda sobre o destino de um dos militares envolvidos nesse episódio. Hoje é a vez do amigo e investigador Julián García Blanco nos trazer um documento que respeita à mesma acção. A parte introdutória foi por mim traduzida e adaptada.

Trata-se de um relato da autoria de Luis de Villarroel y Sandoval, que na altura era ajudante de cavalaria e testemunhou o combate, dirigido, em carta datada de 16 de Novembro de 1645 e escrita em Telena, a Melchor Cabrera, advogado dos Reales Consejos.

Nessa carta se diz que em 20 de Outubro tinha saído de Badajoz o Marquês de Leganés com 6.500 infantes e 1.800 cavalos. Às 4 da tarde de 20 de Outubro, um sábado, chegaram a Telena, onde fizeram alto, para depois seguirem até à ponte de Nossa Senhora da Ajuda (ponte de Olivença). O documento faz uma descrição minuciosa das operações para tomar o torreão situado no centro da ponte e o forte que defendia a entrada da ponte desde a margem esquerda do Guadiana (operações que são também apresentadas nas memórias de Mateus Rodrigues (Matheus Roiz),  aqui transcritas). Uma vez ganho o forte, o Marquês mandou destruir a ponte. Nesta operação gastaram-se 19 dias, e enquanto uma parte das forças se esforçava nas operações abrindo minas, o Marquês de Leganés enviou Sancho de Monroy para que, com 1.000 infantes escolhidos e 400 cavalos sob o comando do comissário geral Gregório de Ibarra, tentasse tomar Juromenha. A operação foi bem executada e as tropas castelhanas tomaram as trincheiras que defendiam o casario, porém vizinhos e soldados retiraram para o castelo, onde se fortificaram. Sancho de Monroy teve de retirar, pois não conseguiu que os seus homens pusessem um petardo para fazer voar a porta, nem contava com artilharia.

Cinco ou seis dias após este sucesso, um alferes de cavalaria da companhia de Alonso Cabrera informou que:

“…Al enemigo le benia de socorro vn tercio de ynfantería y que marchaba de estremoz a yelbes esto fue alarma de la noche a las dos salieron con mis (sic) caballos los dos comisarios jenerales Pedro Pardo de arguello y don gregorio de Ybarra romperlos y hallamoslos que los encontraron junto a las ventas de alcarauica vna legua y media destremoz auiendo corrido siete leguas a una parte y otra para alcanzarlos que sin ponerse en defensa biniedo todos armados dieron a huir y nuestra caualleria con todo desconçierto a seguirlos finalmte se degollaron mas de 350 trajeron prisioneros160 todos los demas se quedaron escondidos entre la espesura del terreno  y a lo que entiendo heridos los mas = entre los prisioneros binieron 4 capitanes y algunas vanderas que segun se diçe benian diez con ellos = esto ha de dar gran campanada en lisboa por ser la jente de miliçia de ebora y montemor escojido()y tan zercana a aquella ciudad = tengo por infalible que en el Ronpimiento de estos 700 hombres quiso dios  azer un milagro con nuestra caualleria siendo el ynstrumento del don gregorio de ybarra mi comisario general y fue que de las  diez y ocho tropas de caballos que llebauamos hiço haçer alto a ocho de ellas  en una cuesta y desde alli tocando llamadas apenas se podia recoger vn hombre  porque todos embebidos en el saco no tratauan codiçiosos de Retirarse estando esparçidos  por las caseri (os) del contorno en tanto estremo que el comisario general  Pedro Pardo llego casi solo Como los demas capitanes y offiçailes de las conpañias que faltauan = cosa que suçede siempre en esta caualleria por la mala disciplina deli()sados  que son sumamente ladrones = apenas se auian yncorporado  las tropas  quando al llegar al monte de la tapada del du(que) nos enbistio el enemigo por la Retaguardia con 650 caballos de Refresco pero en tierra tan estrecha que solo  con sus caballos dragones nos hacia daño y como nos vio ya incorpora(dos) nos dexo sin atreberse a esperarnos en lo llano si bien  lo pudieran haçer porquel mexor caballo nuestrono se pod(ia) mober y casi estaban todos Rendidos= y como digo ari() a benir media hora Antes nos coje esparçidos cada un(o) por su parte y se le perdiera al Rey la fuerça con que açe la gu(erra) a Portugal y el sr Marques de leganes no se y como se Ret(istio)

Escribo esto porque la mayor haçaña en las vitorias es saber vsar dellas dexando vatallones de Reparo cosa que a aqui no se a podido conseguir asta oy y asi puedo decir con verdad quel mayor serbiçio que echo ni tengo de açer al Rey el auer ayudado a don gregorio de Ybarra a juntar la jente que sin duda se vbiera perdido…”

A acção decorreu nos finais de Outubro de 1645, perto das Vendas de Alcaraviça.

Decidi publicar este documento tal como Julián García Blanco o tomou do original, devido ao interesse do seu conteúdo. No entanto, providencio seguidamente uma tradução:

…Ao inimigo vinha-lhe de socorro um  terço de infantaria, que marchava de Estremoz para Elvas, isto foi alarme da noite. Às duas saíram com os meus cavalos os dois comissários gerais, Pedro Pardo de Arguello e Dom Gregorio de Ibarra, a derrotá-los. Encontraram-nos junto às Vendas de Alcaraviça, uma légua e meia de Estremoz, havendo corrido sete léguas de uma parte e outra para os alcançar, que sem se porem em defesa, vindo todos armados, deram em fugir, e a nossa cavalaria, com todo o desconcerto, a segui-los. Por fim se degolaram mais de 350, trouxeram prisioneiros 160, todos os demais ficaram escondidos entre a espessura do terreno, ao que entendo feridos na maior parte. Entre os prisioneiros vieram 4 capitães e algumas bandeiras, que segundo se disse vinham dez com eles. Isto há-de dar grande falatório em Lisboa, por ser a gente de milícia de Évora e Montemor, escolhida e tão próxima daquela cidade. Tenho por infalível que na derrota destes 700 homens quis Deus fazer um milagre com a nossa cavalaria, sendo o instrumento dele Dom Gregorio de Ibarra, meu comissário geral, e foi que das  dezoito tropas de cavalos que levávamos fez fazer alto a oito delas  em uma encosta, e desde ali tocando chamadas apenas se pôde recolher um homem,  porque todos imersos no saque não tratavam, codiciosos, de retirar-se, estando espalhados pelo casario do local em tanto extremo que o comissário geral  Pedro Pardo chegou quase só, como os demais capitães e oficiais das companhias que faltavam, coisa que sucede sempre em esta cavalaria pela má disciplina dos soldados que são sumamente ladrões. Apenas se haviam incorporado as tropas quando, ao chegar ao monte da Tapada do Duque, nos investiu o inimigo pela retaguarda com 650 cavalos de reforço, porém em terra tão estreita que só com seus cavalos dragões nos fazia dano, e como nos viu já incorporados nos deixou sem atrever-se a esperar-nos na planície, se bem o pudesse fazer, porque o melhor cavalo nosso não se podia mover e quase estavam todos rendidos. E como digo, [tivesse o inimigo] chegado meia hora antes, nos colhia espalhados cada um por sua parte, e se perderia ao Rei a força com que faz a guerra a Portugal, e o Senhor Marquês de Leganés não sei como resistiria.

Escrevo isto porque a maior façanha nas vitórias é saber usar delas, deixando batalhões de reserva, coisa que aqui não se pôde conseguir até hoje, e assim posso dizer com verdade que o maior serviço que fiz e tenho de fazer ao Rei é o haver ajudado a Dom Gregorio de Ibarra a juntar a gente, que siem dúvida se teria perdido…

Imagem: “O saque de uma aldeia”, pintura de Philips Wouwerman.

A muralha de Badajoz. Da cerca medieval à cerca abaluartada (1679-1700) – por Julián García Blanco

Um interessante trabalho de Julián García Blanco, que já se encontra há algum tempo nas ligações – na coluna ao lado, secção “Património” -, mas que merece o devido destaque. Apesar do título remeter para uma época posterior à Guerra da Restauração, o primeiro capítulo diz respeito ao período entre 1640 e 1668. Pode ser lido aqui:

La muralla de Badajoz

Imagem: “Planta da linha de circunvalação, redutos e fortes do sítio de Badajoz” (1658), de João Nunes Tinoco. In La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Ainda os “cavalinhos de pau”

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O estimado amigo e investigador Julián García Blanco, a propósito do artigo sobre os “cavalinhos de pau”, enviou-me cópias de dois documentos impressos em Espanha durante a Guerra da Restauração, nos quais é feita menção àquele engenho que a infantaria portuguesa utilizava para se proteger da cavalaria inimiga. Obstáculos deste tipo eram usados desde a Idade Média e algumas variantes foram utilizadas durante a Guerra dos 30 Anos, como por exemplo o  jocosamente denominado por “Penas Suecas”, ou “Penas de Porco” – uma forquilha para mosquete, na qual estava incorporado um espigão para a defesa do infante atirador contra a cavalaria. No entanto, no contexto da guerra entre os vizinhos ibéricos, pelas referências até agora encontradas, parece ter sido de uso exclusivo dos portugueses, embora os obstáculos do género fossem bem conhecidos pelos militares espanhóis.

Na Verdadera Relación de la famosa Batalla, y vitoria que han tenido las armas Catolicas contra Portugal, viniendo a sitiar la Ciudad de Badajoz, de 1646, há uma passagem em que se demonstra a eficácia dos “cavalinhos de pau”. De acordo com o autor espanhol da Relación:

Nuestra cavalleria apretava fuertemente la contraria, y ella peleava siempre opuesta para salvar su infanteria. (…) Viendo el Marqués [de Molinguen] que el enemigo llegava ya al esguazo, dexando la mitad de la cavalleria de reten con la otra mitad, y con determinada, y no vista resolucion embistio la del enemigo hasta hazerla bolver las espaldas, y huir a su infanteria, que corriera la misma fortuna, si llegando a ella, no la toparan los nuestros guarnecida con un frente de crizos (que aqui llaman cavallos de palo) todos encadenados, y puestos a modo de peynes, de donde no pudo passar nuestra cavalleria, antes le fue fuerza retirarse de las muchas, y menudas cargas de mosqueteria que le dava el enemigo, logrando la ocasion que le dava el estorvo referido (…).

A descrição dos “cavalinhos de pau” corresponde à que o soldado Mateus Rodrigues deixou (com um detalhe mais minucioso) nas suas memórias sobre a campanha do forte de Telena e que aqui foi reproduzida.

Referência que se repete em outro documento, uma carta enviada pelo Marquês de Molinguen a Filipe IV de Espanha sobre a mesma campanha, entre 15 e 21 de Setembro de 1646, na qual, a dado passo, se descreve a disposição do exército português:

En 18 por la mañana amanecio en batalla, y su carruage y demas bagaje puesto en ordenança entre el esguazo del rio Guadiana y el fuerte de Telena, que dista menos de un tiro de cañon, deixandolo cubierto por el costado derecho de los vallados y viñas, que los ay desde el fuerte hasta el mesmo esguazo, y por el izquierdo le guarnecio de una hilera de carros, y otra de puerco espines, que ellos llaman cauallos de palo.

Note-se a designação de “porco-espinhos” aos obstáculos. Na relação, também impressa, do Marquês de Molinguen sobre a composição do exército português, pode ler-se que havia “quinientos cavallos de palo” entre o material de guerra do exército comandado por Matias de Albuquerque, Conde de Alegrete.

Fontes:

Copia de carta del Marques de Molinguen General del Exercito de Badajoz, escrita al Sñor Don Iuan de Santelizes e Guevara, del Consejo de Su Magestad en el Real de Castilla, y Governador de là Audiencia de Sevilla, su fecha en 21 de Setiembre deste año de 1646, en que se le dà quenta de lo sucedido en el Campo de Telena desde 15 del dicho mes, hasta los dichos 21. En que se incluye otra copia de la Relacion que el dicho Marques de Molinguen embió a Su Magestad sobre lo mismo, cuyo tenor es como se sigue, Sevilla, Juan Gomez de Ilas, 1646.

Verdadera Relación de la famosa Batalla, y vitoria que han tenido las armas Catolicas contra Portugal, viniendo a sitiar la Ciudad de Badajoz, Madrid, Carlos Sanchez Bravo, 1646.

Imagem: Planta de Telena, c. 1655, publicada em La memoria ausente. Cartografia de España y Portugal en el Archivo Militar de Estocolmo. Siglos XVII y XVIII.

Com um grande obrigado ao amigo Julián García Blanco.

Ainda sobre a tentativa frustrada de tomar Badajoz pela traição em 1652

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No seu magnífico blogue Puertas de Badajoz, o estimado amigo Sr. Julián García Blanco publicou um interessantíssimo artigo sobre os sargentos traidores e o local onde essa traição deveria ter sido consumada em 1652. Devido aos afazeres profissionais que me mantiveram algum tempo ausente da blogosfera, não me tinha ainda sido possível consultar o excelente artigo. Aqui fica a reparação deste atraso, dando o devido destaque a um blogue cuja leitura, no seu todo, é imprescindível para quem gosta de História. Para mim, claro, é uma enorme satisfação poder ficar a conhecer mais sobre o episódio que foi aqui focado numa série de seis artigos.

Imagem: “Corographía y descripción del territorio de la Plaza de Badajoz y fronteras del Reyno de Portugal confinantes a ella” (1658), de Bernabé de Gaynza, in La Memoria Ausente. Agradecimentos a Carlos Sanchéz e à Editora 4 Gatos.